UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS
CURSO DE LETRAS PORTUGUÊS
A SÁTIRA TROVADORESCA NOS TEMPOS DA REPRESSÃO
MILITAR
Daniel Mateus Barbosa de Lima
João Pessoa
2015
Resumo
Neste ensaio iremos entender um pouco sobre o Trovadoresca,
movimento literário que permeou, no período do século XII, em línguas de
influência latina, tendo em destaque o Cantiga de Escárnio e Maldizer, fazendo
um comparativo com as canções que embalaram as décadas de 60 a início da
de 80 no Brasil.
1. Introdução
Em meados do século XII, surgiu, na Europa, na região de Provença, um
movimento que poderia ser considerado a primeira manifestação literária: o
Trovadorismo. Conhecido como o século de ouro, onde aconteceu o chamado
Renascimento Medieval, esse século foi o período em que se deu a origem da
canção gesta, da poesia lírica, e do drama litúrgico.
Nesse mesmo período, também ocorreram os torneios cavalheirescos,
onde temos como destaque Joseph Bérdier e Guilherme IX. As condições sociais
e políticas, segundo Arnaldo Hauser, poderiam elevar muito mais a temática do
feminino.
Na região da Provença, surge uma classe assalariada chamada os
apaniguados, que era constituída por soldados montados de cavalaria. (A.
Hauser, 1972) Essa classe surgiu devido à necessidade de proteção dos
senhores feudais e de suas terras, em decorrência das constantes guerras. Os
Apaniguados não poderiam ser considerados de fato cavaleiros, pois isso exigia
muito dinheiro, então transformava-se um escravo em homem livre e davam-lhe
um mísero salário para sagrá-lo cavaleiro.
A cultura de cavalaria e da corte medieval é baseada numa organização
cortesã (1972, p. 286) “a primeira em que se verifica uma autêntica unidade
espiritual entre os príncipes, os cortesãos e os poetas”. Isso é, a fidelidade aos
seus senhores fazia a poética mediévica-cavaleiresca carregar esse traço
subalternizado dos Apaniguados. Entretanto o alvo dessas canções, muitas
vezes, eram as esposas abandonadas de atenção dos seus senhores.
Os Apaniguados após serem libertados, ganhavam uma pequena terra,
onde poderia começar a caminhar para a nobreza. O contato destes homens
com a corte e a nobreza fez com que surgisse um outro estilo dentro da lírica
trovadoresca, o que seria a Cantiga de Escárnio ou Maldizer.
2. A Cantiga de Escárnio e Maldizer
Esse canto satírico era uma forma em que os trovadores podiam criticar
o poder, o governo, o rei ou qualquer alvo que lhe coubesse fazê-lo. O mais
conhecido trovador lírico foi o sexto rei de Portugal, Dom Dinis, responsável por
diversos feitos que valorizaram o seu povo, como eleger o português como a
língua oficial da região.
Chega a ser difícil, às vezes, discernir a cantiga de escárnio da cantiga de
maldizer, mas ambas carregam uma característica: a crítica (sátira).
Na cantiga de escárnio, nós tínhamos uma crítica mais indireta, onde não
era possível identificar o alvo da sátira; uma linguagem mais trabalhada e a
clássica ironia. Já na cantiga de maldizer tínhamos uma crítica mais direta, onde
a pessoa satirizada era facilmente identificada; uma linguagem mais agressiva,
obscena, porém mais culta.
2.1. Exemplo
Ai dona fea! Foste-vos queixar
Que vos nunca louv'en meu trobar
Mais ora quero fazer un cantar
En que vos loarei toda via;
E vedes como vos quero loar:
Dona fea, velha e sandia!
Ai dona fea! Se Deus mi pardon!
E pois havedes tan gran coraçon
Que vos eu loe en esta razon,
Vos quero já loar toda via;
E vedes qual será a loaçon:
Dona fea, velha e sandia!
Dona fea, nunca vos eu loei
En meu trobar, pero muito trobei;
Mais ora já en bom cantar farei
En que vos loarei toda via;
E direi-vos como vos loarei:
Dona fea, velha e sandia!
João Garcia Guilhade¹
¹ JOÃO GARCIA DE GUILHADE FOI UM TROVADOR PORTUGUÊS, NASCIDO EM MILHAZES,
CONCELHO DE BARCELOS. DESENVOLVEU A SUA ARTE POÉTICA EM MEADOS DO SÉCULO
XIII.
2.1.1. ANÁLISE DA TROVA
Podemos perceber nessa trova, características da cantiga de maldizer,
como a crítica direta:
Ai dona fea
Linguagem agressiva:
En que vos loarei toda via;
E direi-vos como vos loarei:
Dona fea, velha e sandia!
Linguagem culta:
Ai dona fea! Se Deus mi pardon!
E pois havedes tan gran coraçon
Que vos eu loe en esta razon,
Vos quero já loar toda via;
E vedes qual será a loaçon
2.1.1.2. Comentário
A Cantiga de Escárnio e Maldizer foi um estilo que teve uma grande
importância para o mundo literário e exerce influências hodiernamente. Podemos
perceber em letras musicais, características resgatam a trova portuguesa. Letras
que criticam o governo, pessoas, divisão de classes, de maneiras inteligentes,
da mesma forma que eram feitos os cânticos satíricos.
No Brasil não foi diferente. Nós podemos nos orgulhar da imensa
bagagem de cantores que souberam fazer críticas que incentivavam o povo em
tempos de repressão. Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Edu Lobo,
Os Mutantes e tantos outros cantores populares, fizeram da Ditadura Militar, um
tempo de gritos em meio ao silêncio imposto.
3. A Ditadura Militar
Em 1964, o Brasil estava sob o governo do Presidente João Gullar, o
Jango. Os custos de vida estavam altos, haviam escândalos de corrupção,
porém as maiores críticas eram direcionadas aos projetos de reforma, por serem
apontados de comunistas, por abordarem assuntos de reforma agrária,
redistribuição de terras, gerando um descontentamento da extrema direita,
apoiados pela classe média alta, a Igreja Católica e países de primeiro mundo,
como os Estados Unidos.
Com o governo dividido, onde um lado sociedade acusava-o de
comunista, gerando diversas manifestações, por sentirem-se indignadas. Para
resolver esse problema, os militares resolvem tirar o Jango do poder e colocar
em seu lugar o Marechal Castelo Branco.
A partir deste momento, os militares começaram a implantar uma série de
leis e decretos com a justificativa de manter a ordem e a moral, dos “bons
costumes familiares”.
O primeiro decreto foi o Ato Institucional I – AI-1 – que “dava ao governo
militar o poder de alterar a constituição, cassar mandatos legislativos, suspender
direitos políticos por dez anos e demitir, colocar em disponibilidade ou aposentar
compulsoriamente qualquer pessoa que tivesse atentado contra a segurança do
país, o regime democrático e a probidade da administração pública.”
Depois desse, vieram mais dezesseis, porém, pode-se dizer que o mais
marcante foi o AI-5, que estabelecia:
I - cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;
II - suspensão do direito de votar e ser votado nas eleições sindicais;
III - proibição de atividades ou manifestação sobre assuntos de natureza política;
IV - aplicação, pelo Ministério da Justiça, independentemente de apreciação pelo
Poder Judiciário, das seguintes medidas:
a) liberdade vigiada;
b) proibição de frequentar determinados lugares;
c) domicílio determinado.
Entretanto, "outras restrições ou proibições ao exercício de quaisquer outros
direitos públicos ou privados poderiam ser estabelecidas à discrição do
Executivo". Isto poderia incluir sequestros, torturas e mortes.
4. O Festival de Música Popular Brasileira
Durante os anos de 1966 a 1969, a TV Record exibiu o Festival de Música
Popular Brasileira (FMPB), onde diversos artistas e compositores expunham
suas canções ao julgamento da plateia e de juízes. Artistas como Chico Buarque,
Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Elis Regina, Caetano Veloso, Edu Lobo e outros
tantos passaram por esse programa, onde acabaram ganhando uma proporção
e popularidade nacional.
O Festival mais conhecido foi o de 67, quando a canção Ponteio, de Edu
Lobo, venceu, após grande conflito da plateia com os juízes. A canção narra a
primeira vista, a história de um “cantador” e suas aventuras com o violão.
Quando melhor analisada e contextualizada, podemos perceber que a canção
traz toda uma crítica acerca do governo, de maneira sutil e indireta, como a
Cantiga de Escárnio. Vejamos a seguir a canção e uma breve análise.
4.1 Canção Ponteio, de Edu Lobo
Era um, era dois, era cem
Era o mundo chegando e ninguém
Que soubesse que eu sou violeiro
Que me desse o amor ou dinheiro...
Era um, era dois, era cem
Vieram prá me perguntar:
"Ô voce, de onde vai
de onde vem?
Diga logo o que tem
Prá contar"...
Parado no meio do mundo
Senti chegar meu momento
Olhei pro mundo e nem via
Nem sombra, nem sol
Nem vento...
Quem me dera agora
Eu tivesse a viola
Prá cantar...
Era um dia, era claro
Quase meio
Era um canto falado
Sem ponteio
Violência, viola
Violeiro
Era morte redor
Mundo inteiro...
Era um dia, era claro
Quase meio
Tinha um que jurou
Me quebrar
Mas não lembro de dor
Nem receio
Só sabia das ondas do mar...
Jogaram a viola no mundo
Mas fui lá no fundo buscar
Se eu tomo a viola
Ponteio!
Meu canto não posso parar Não!...
Quem me dera agora
Eu tivesse a viola
Prá cantar, prá cantar
Ponteio! Pontiar!
Era um, era dois, era cem
Era um dia, era claro
Quase meio
Encerrar meu cantar
Já convém
Prometendo um novo ponteio
Certo dia que sei
Por inteiro
Eu espero não vá demorar
Esse dia estou certo que vem
Digo logo o que vim
Prá buscar
Correndo no meio do mundo
Não deixo a viola de lado
Vou ver o tempo mudado
E um novo lugar prá cantar...
4.1.2 Análise e comparação
A canção começa com o eu-lírico contando que vieram guardas em cima dele, e
ele explica que nada tem a ver com a revolução, que é apenas um violeiro,
cantando para se sustentar:
Era um, era dois, era cem
Era o mundo chegando e ninguém
Que soubesse que eu sou violeiro
Que me desse o amor ou dinheiro...
Depois, pode-se perceber um interrogatório por parte dos policiais:
Era um, era dois, era cem
Vieram prá me perguntar:
"Ô voce, de onde vai
de onde vem?
Diga logo o que tem
Prá contar"
No refrão, o eu-lírico faz alusão ao seu violão. Assunto também usado pelos
trovadores, mudando apenas o instrumento, de lira para violão:
Quem me dera agora
Eu tivesse a viola
Prá cantar
Na última estrofe, nós percebemos a finalização de sua história, do seu “causo”,
assim digamos, onde mais uma vez encontramos características do
trovadorismo:
Encerrar meu cantar
Já convém
Prometendo um novo ponteio
Certo dia que sei
Por inteiro
Eu espero não vá demorar
Esse dia estou certo que vem
Digo logo o que vim
Prá buscar
Correndo no meio do mundo
Não deixo a viola de lado
Vou ver o tempo mudado
E um novo lugar prá cantar
5. Conclusão
Podemos perceber nesse breve artigo, a importância que o trovadorismo
teve para a formação de uma identidade literária, desencadeando numa
identidade também musical. É de grande felicidade termos “cancioneiros”, como
os nomes citados anteriormente em nosso estudo. A ligação do trovadorismo
com tantas outras músicas da época, poderia nos dar uma lista imensa, mas já
não cabe a este trabalho apresentar o que agora é apreciável.
Referências Bibliográficas
HAUSER, A. História social da literatura e da arte, 1972.
SPINA, S. A lírica trovadoresca, ed. Edusp, São Paulo, 1996.
ASPAHAN, S. e GODINHO, M. Mochileiros nos anos de Chumbo, ed. Duplo
Ofício, Belo Horizonte, 2014.
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a sátira trovadoresca nos tempos de repressão militar