A Logística na Grande Guerra A LOGÍSTICA NA GRANDE GUERRA SAj AM Alves dos Santos No período em que se evoca o centenário da Grande Guerra e tendo como base o trabalho de investigação que a Escola Prática dos Serviços se encontra a desenvolver nesse âmbito, pareceu-nos oportuno antecipar parte desse trabalho, fazendo uma breve análise da situação portuguesa neste período e que, direta ou indiretamente, influenciou a participação portuguesa naquele conflito. No campo económico-financeiro, Portugal debatia-se com sucessivos e astronómicos défices que vinham desde os governos monárquicos, tendo Afonso Costa equilibrado as finanças no exercício de 1913/1914, impondo uma drástica redução da despesa. A capacidade produtiva do País era, no entanto, muito limitada. Para uma população de pouco mais de 5 milhões de habitantes, 80 % residentes em zonas rurais, com uma taxa de analfabetismo de cerca de 75%, Portugal produz alguns produtos agrícolas, nomeadamente vinho e cortiça, mas é deficitário em cereais. Cerca de 60% da população utiliza o milho como base para o pão, sendo que o trigo era utilizado essencialmente nos grandes centros urbanos1 . A indústria de características artesanais encontra-se pouco desenvolvida, baseando-se em setores que produzem produtos de baixo valor (têxteis, moagem, conservas, etc.) a que não será alheio a falta de matériasprimas, principalmente as energéticas, bem como uma deficiente rede de transportes e comunicações. As dificuldades que a guerra vem trazer ao comércio internacional, conjugadas com os movimentos grevistas e a fuga de capitais, vem ampliar as dificuldades nacionais com que se confrontava a população. A indústria conserveira nacional foi uma das poucas industrias que conseguiu abastecer as necessidades do Exército. Pouco se sabe sobre as marcas fornecedoras, embora se encontrem algumas referências, nomeadamente, à Fábrica de Conservas Brandão, Gomes & C.ª de Espinho. Esta empresa possuía em 1910, a capacidade de produzir diariamente mais de 30.000 latas de conservas, recorrendo a métodos de conservação e embalagem bastante avançados. A Primeira Grande Guerra veio contribuir para um aumento da produção, tendo esta empresa apresentado: «refeições de campanha para o exército português, que incluíam o inevitável bacalhau, o chispe com feijão branco, o carneiro guisado com batatas, a carne de vaca ou a vitela à jardineira, aconselhando a publicidade que seria 1 CARQUEJA, Bento. O Povo português – Aspectos Sociais e Económicos, Livraria Chardron, Porto, 1916. Escola Prática dos Serviços, Boletim nº 1 de 1 de julho de 2014 1 A Logística na Grande Guerra preferível servirem-se aquecidas “emergindo a lata em água a ferver durante trinta minutos, ou então em fogo vivo, devendo neste caso ser a lata aberta previamente”»2 Curiosamente, neste período, a indústria têxtil representava mais de metade dos empregos na indústria em Portugal, no entanto, os militares do Exército não conseguiram fardar-se adequadamente e, em França, tiveram de ser os britânicos a assegurar o nosso fardamento. No que diz respeito a bens alimentares é a Manutenção Militar que assume um papel preponderante, graças ao empenho e inteligência do coronel Vasconcelos Dias que, na altura, era o diretor deste estabelecimento militar. No início da guerra, a Manutenção Militar possuía fábricas da moagem, pão e massas alimentares, uma fábrica de torrefação 1. O Grupo de Administração Militar em Bivaque: As amassadeiras do pão e fabrico do rancho. In Ilustração Portuguesa nº393 de 11 de Setembro de 1913, e moagem de café, uma fábrica de bolacha, p. 275. uma fábrica de comprimidos, uma fábrica de conservas alimentares, uma fábrica de bolo alimentar para solípedes e em construção uma fábrica de refinação de açúcar e uma fábrica de descasque de arroz. A sua capacidade logística encontrava-se ainda organizada com depósitos de trigo e outros cereais para panificação, de farinhas e sêmolas, de sal, de pão, de géneros para rancho, de conservas alimentares, de grão para forragens, de palha, etc.. Para se perceber a injustiça de algumas das criticas que, no pós-guerra, foram apontados às deficiências da Manutenção Militar, recordamos em exerto do «Relatório da Gerência do ano económico de 1913-1914», do coronel Vasconcelos Dias: 2 GAIO, Carlos Morais – A Fábrica de Conservas. In “ A Génese de Espinho – Histórias e Postais”. Porto: Campo das Letras, 1999, p. 174. Escola Prática dos Serviços, Boletim nº 1 de 1 de julho de 2014 2 A Logística na Grande Guerra “(…)Conheço bem ser, em demasia, tarde para procurar suprir agora, sob pressão esmagadora dos acontecimentos, todas as deficiências da Manutenção; alargar todas as suas instalações; aumentar a sua força motriz; organisar devidamente o seu serviço de transportes; estudar, emfim, os multíplices assuntos do serviço de subsistências, nunca até hoje estudados, e que tão decisiva influencia têem nas questões de preparação para a guerra; mas resta-me, como única consolação, a certêsa de haver sido o primeiro (e quasi o único, atento o diminuto numero daqueles que tão patrioticamente se colocaram ao meu lado) a clamar contra o 2. O coronel Vasconcelos Dias deplorável estado em que, sob o ponto de vista daquele importantíssimo serviço, nos encontrávamos na previsão de um conflito armado, e isto exatamente quando era quasi um crime falar-se em tal assunto, dizer-se toda a verdade, quando os que pensavam nas questões que intimamente se ligam com a preparação para a guerra eram considerados visionários, se não apodados de insensatos”. Assim, com uma industria pouco desenvolvida, uma agricultura de subsistência e uma população muito empobrecida, verifica-se que a alimentação do português comum, era feita à base de produtos ricos em calorias, mas de baixo valor proteico, onde predominava o pão, as batatas, bacalhau e outros peixes, massas, vegetais e frutas. Num trabalho3 de 1909 caracteriza-se assim a alimentação típica de um operário portuense: • Almoço, às 8 horas da manhã: Caldo ou café e pão; • Jantar, ao meio dia: Caldo, pão, bacalhau; • Ceia, às 7 da tarde: Caldo e pão. Em 1915, num conjunto de inquéritos realizados na zona do Grande Porto, Silva Arozo, verifica que a alimentação do trabalhador comum se baseia no consumo de batata, pão de milho, caldo, carne gorda de porco, bacalhau e vinho verde. No ano seguinte, o investigador Bento Carqueja no seu estudo sobre o povo português, apresenta os valores característicos da alimentação nacional, revelando a predominância da batata, do pão e dos legumes verdes. Deste trabalho bastante esclarecedor, torna-se fundamental transcrever algumas das observações que o autor apresenta: 3 PEREIRA, Arantes. A Ração alimentar do operariado portuense, in Revista Tuberculose, ano 4º, nº16, Lisboa, 1909, pp 1-6. Escola Prática dos Serviços, Boletim nº 1 de 1 de julho de 2014 3 A Logística na Grande Guerra “Zona norte – Em Viana, só exepcionalmente na classe operária se consomem ovos. O alimento peixe consta geralmente de sardinha e bacalhau. Zona nordeste – No distrito de Vila Real, as classes operárias não gastam ordinariamente, nem carne nem peixe, nem ovos, nem açucar, nem leite, nem manteiga, nem massas, nem queijo, a não ser um dia por outro, aos domingos e dias de festa. O mesmo se pode dizer quanto a vinho que, em geral, bebem na taberna. – No concelho de Vimioso, o consumo de frutas frescas faz-se quase exclusivamente no tempo de verão, como o de legumes secos no tempo de inverno. Zona central – No distrito de Santarém (…) o consumo de leite, ovos, vinho, manteiga e queijo é ali raríssimo. Zona sul – No distrito de Évora, leite e ovos são géneros que só por motivo de doença se adquirem. Em Elvas, a família de um oficial carpinteiro alimenta-se, em média, com 500 gr. De carne de chibato, 125 gr. De toucinho e umas couves ou grãos, batatas ou arroz, e daqui não passa. Uma açorda ao almoço, os legumes para o jantar e guardam a carne para a ceia; e isto com poucas variantes. Em Vila Viçosa, as famílias operárias gastam bastante azeitona e queijo”4 . Destas refeições conseguia retirar entre 1100 a 1300 calorias, mas numa dieta pouco variada suportada por um elevado valor de hidratos de carbono e pobre em vitaminas, o que veio a justificar muita da insatisfação dos militares mobilizados, perante as alternativas nutricionais que lhes foram apresentadas nos teatros de operações. Era pois este o estado do País que suportava a ação dos homens que atuaram nos três Teatros de Operações da Grande Guerra e cujos serviços de apoio irão ser historiados no trabalho que a EPS se encontra a ultimar. Assim à falta de recursos capazes de sustentar um Exército, durante muito tempo, colocado a muitos milhares de quilómetros, tínhamos de encarar a falta de experiência e organização deficiente do Serviço de Administração que, no início da guerra, encontrava-se ainda em fase embrionária. O primeiro oficial de Administração Militar terminara o curso em 1895 e, só a partir desta data passou a ser possível dotar a administração do Exército com técnicos militares, visto que até então esses técnicos eram elementos civis, embora graduados em postos militares e enquadrados por oficiais das Armas. A primeira tentativa de estabelecer unidades territoriais de administração militar que apoiassem o Exército, foi ensaiada, apenas, em 1911. Atualmente, 100 anos após o inicio da Grande Guerra, o Exército encontra-se novamente em fase de reorganização e, como do antecedente, os Serviços estão igualmente numa lógica de acentuada redução. O Serviço de Transportes e de Secretariado perspetiva-se que venham a ser extintos, a Administração Militar com a extinção do Batalhão de Administração Militar deixou de ter uma componente fisica na estrutura do Exército o que, 4 Idem, CARQUEJA, Bento, pp. 472-3. Escola Prática dos Serviços, Boletim nº 1 de 1 de julho de 2014 4 A Logística na Grande Guerra naturalmente, acaba por secundarizar a componente do Reabastecimento e dos Serviços de Campanha, trazendonos à lembrança as palavras que, sobre o assunto, o general Pereira d’Eça proferiu há 100 anos, em que alertava para a necessidade de se garantirem as competências necessárias naquelas funções logisticas. Em conclusão, quando nos questionamos sobre que Exército queremos amanhã, não podemos ignorar os fatos que nos precederam e que, mesmo tendo por base contextos muitas vezes distintos da situação que agora vivemos, nos podem ajudar a evitar a repetição de erros inaceitáveis. Certamente não podemos, pelo simples ensino da História, impedir que os homens repitam os erros do passado, mas podemos, individual e conscientemente, aprender com os exemplos de outras épocas, utilizando o discernimento para entender as eventuais diferenças contextuais e circunstanciais, assegurando dessa forma que o “novo” Exército, embora mais pequeno, se encontra melhor preparado para cumprir as missões que lhe venham a ser atribuídas. 3. "Uma coluna de reabastecimentos" em França, 1917. foto AHM. Escola Prática dos Serviços, Boletim nº 1 de 1 de julho de 2014 5