AS FIANDEIRAS DE JATAÍ: UMA MEMÓRIA SE PERDENDO NO TEMPO Simone Aparecida Borges Dantas1 Adriano Freitas Silva 2 Esta comunicação é fruto do projeto de pesquisa – As fiandeiras de Jataí: Uma memória se perdendo no tempo – em que se estabeleceu a parceria entre o Curso de História da UFG/Jataí e o Museu Histórico Francisco Honório Campos. Com objetivo de atender a demanda colocada pela Secretaria Municipal de Cultura, o Curso, desenvolveu, sob a coordenação da Professora Mestre Simone Aparecida Borges Dantas, e colaboração voluntária dos alunos do Curso, atividades de coleta e reunião de fontes escritas, iconográficas e orais, que retrataram a história e memória das fiandeiras da cidade de Jataí. Para viabilizar a pesquisa, reconstituir e registrar a história e memória das fiandeiras de Jataí trabalhou-se com uma noção ampliada de documento histórico, por isso, foram utilizadas fontes de diversas naturezas: documentos escritos, iconográficos e, notadamente, as fontes orais. No trabalho com as fontes orais, utilizou-o princípio formulado por Thompson (2002, p. 176), que diz o seguinte: “[Todas as fontes] são falíveis e sujeitas a viés, e cada uma delas possui força variável em situações diferentes. Em alguns contextos, a evidência oral é o que há de melhor, em outros, ela é suplementar, ou complementar, à de outras fontes”. Conforme Macêdo (1999, p.11), “Não estamos vendo a documentação oral como panacéia, mas como instrumento de inegável importância para o historiador que trabalha com a chamada História do Tempo Presente”. E ainda a intenção é trabalhar com a memória 1 Professora da UFG/Jataí 2 Acadêmico de Graduação do curso de História da UFG/Jataí “percebendo–a como uma construção do passado, portanto carregada de emoções e vivências” (MACÊDO, 1999, p. 11). No trabalho com as fontes orais, primeiramente definiu-se a colônia, ou seja, o grupo comum que seria entrevistado. Definiu–se, assim, como colônia o grupo de pessoas ligadas diretamente a memória das fiandeiras de Jataí, isto é, senhoras praticantes desta arte e que participam do Mutirão da fiandeiras, evento organizado pelo Museu Histórico Francisco Honório Campos. Posteriormente, a rede: “uma subdivisão da colônia e que visa estabelecer parâmetros para decidir sobre quem deve ser entrevistado ou não” (MEIHY, 1996, p. 53). A partir dessas definições estabeleceu-se a entrevista denominada “ponto zero”. A rede, na verdade, formou–se à medida que as entrevistas se sucederam, pois uma entrevistada, na maioria das vezes, indicava outra. No trabalho com as entrevistas, foi utilizado o conceito de composição da memória em Thomson (1997). Conforme Thompson, no trabalho com as fontes orais “A lição importante é aprender a estar atento àquilo que não está sendo dito, e a considerar o que significam os silêncios. Os significados mais simples são provavelmente os mais convincentes” (THOMPSON, 2002, p. 204–205). Na perspectiva de se utilizar as fontes orais e em resposta àqueles que duvidam de sua credibilidade, Thompson afirma que: Toda fonte histórica derivada da percepção humana é subjetiva, mas apenas a fonte oral permiti–nos desafiar essa subjetividade: descolar as camadas de memória, cavar fundo em suas sombras, na expectativa de atingir a verdade oculta (THOMPSON, 2002, p. 197). A partir da memória de sujeitos que fizeram e fazem parte da história da arte de fiar na cidade de Jataí, o intuito foi de: Recuperar lágrimas e risos, desilusões e esperanças, fracassos e vitórias, fruto de como os sujeitos viveram e pensaram sua própria existência, forjando saídas na sobrevivência, gozando as alegrias da solidariedade ou sucumbindo ao peso de forças adversas (KHOURY, 1991, p. 12). A partir das entrevistas realizadas, percebeu-se que a arte de fiar era uma atividade praticada desde cedo pelas mulheres da família, isto é, um trabalho feminino, desenvolvido de geração em geração. Assim, as mulheres que a exerciam passavam para as suas filhas desde os primeiros anos de vida. Esta atividade era utilizada como fonte de renda para o sustento da família, como pode ser percebido no relato a seguir: Eu não lembro mais acho que eu tinha uns 5 anos quando a gente começou a aprender e mamãe ensinava a gente., punha a gente pra descaroçar o algodão a cardar. Eu acho que é 5 anos mesmo ai a gente iniciou desde a idade de 5 anos. Morava tudo na fazenda e o serviço era só esse não tinha outra coisa para fazer tinha que fazer esse serviço (...) quando eu morava na fazenda era só fiar, fazendo corte de rede coberta, né fazia bacheiro, ontem eu tava contando pros colega aqui, que agente fazia bacheiro e passava os viajante, viajantes não o boiadeiro e o ponto de posso era a nossa casa ne agente morava na fazenda dos outros não nessa não então agente pegava achava bom de mais quando os boiadeiros chegava agente corriam vendia os bacheiro pra eles (OLIVEIRA, H. 2008.) D. Adélia reforça essa idéia de utilizar a fiação como renda familiar abordada acima, através de sua descrição a seguir: Agente fazia rede, fazia os punhos de rede, tecia o pano, fazia rede, rede a gente vendia. Vendia rédia, trançava rédia uma linha que fiava como lã, como linha, vendia, vendia assim, vendia bacheiro, tecido trabalhado na grade, fiava na roda e tecia na grade (FREITAS, A. 2008). Na memória das fiandeiras outro aspecto que perpassa todas as entrevistas é que o produto da fiação como roupas, cobertores e lençóis eram para o consumo da própria família, bem como para a produção de peças para o enxoval do casamento das filhas, conforme o trecho a seguir: Todas as mulheres, toda a fazenda, todas as mulheres eram fiandeiras, todo mundo vivia de pano de algodão (...) Quando eu fiquei moça já ia arranjar enxovão pro casamento já tinha que fiar fazer minha roupa de cama (OLIVEIRA, A. 2008). Além disso, na confecção de roupas e principalmente de cobertores, as fiandeiras utilizavam além do algodão a lã, sendo que em algumas fazendas além do plantio de algodão, havia a criação de ovelhas. Essa prática pode ser compreendido no relato a seguir: Trabalhei muito com fiação criei meus filhos todos com cobertor de lã agente criava o carneiro cortava a lã tecia e fazia aquelas cobertas iguais um cobertor né, quente de mais (...) tecia fazia coberta de, o tecido de cortia com a lã com a linha de algodão e tampava com a lã e fazia aquele tecido de dado, fazia aqueles tecidos mais bonitos de vários modelos de flores de quadro tampava com lã (FREITAS, A. 2008). Nas reminiscências das fiandeiras também o relato dos momentos dos trabalhos coletivos, momento em que as fiandeiras se reuniam na casa de outra para uma produção em maior escala. Esses momentos ocorriam principalmente no período de casamentos. Esses encontros eram os “Mutirões das fiandeiras”. No relato de Dona Adélia esses momentos ficaram assim representados: quando a gente fazia mutirão e reunia com as fiandeiras, fiava numa casa outra hora fiava tudo para aquela dona da casa, que as fiandeiras ajuntavam fiava tudo, aqueles que fiavam naquele dia, eram tudo para a dona da casa para a dona do mutirão, ai outro dia fazia na casa da outra e juntava e fiava lá (FREITAS, A. 2008) No trecho a seguir D. Ana fortalece essa lembrança do Mutirão das fiandeiras que ocorriam nas fazendas Nos juntava pra fiar, ficava a semana toda cardando algodão preparando tudinho e ia pra, os mutirões e as mulheres iam pra roda fiava o dia todinho, juntava 15 – 20 rodas trabalhando o dia todo, e depois tal dia era na sua casa, tal dia era lá fazia o mutirão de fiar (OLIVEIRA, A. 2008). Cabe ressaltar que a arte de fiar para as fiandeiras representava não só trabalho, mas também um lazer, por isso esta atividade era embalada por músicas. A música era entoada principalmente quando as fiandeiras se reuniam para realizarem os mutirões, como pode ser percebida na entrevista de Dona Hilda: Tinha o mutirão das fiandeiras quando falava hoje o mutirão e lá na casa da comadre Maria, e comadre né, ai agente ia carda algodão ai eles cardava muitos dias as vezes agente ia lá ajudar ai quando era o dia do mutirão ai todo mundo saia sedo com as rodas nas costas a pé por que as vez não era muito longe ne ai ia com as rodas nas costas, levava quando chegava lá e fiava o dia inteirinhos ai de tarde era o baile (OLIVEIRA, H. 2008.) Contudo, essas fiandeiras que começaram suas vidas nas fazendas, ao mudarem para Jataí apresentaram algumas dificuldades para o desenvolvimento desta arte, como a falta de algodão, incentivo familiar e de tempo para exerce – lá. Nos porões da memória, D. Ana relembra esse momento: É fui deixando, deixando já não encontrava mais algodão, já não plantava não tinha roça, e precisava comprar também então não deu pra mim continuar, também não enteressava mais a esse negócios de algodão acabou assim acabou o uso ninguém usa mais né e vai ficando distante pra mim tecer o pano que tinha que ir pra fazenda era muito difícil (...) É fui deixando, deixando já não encontrava mais algodão, já não plantava não tinha roça, e precisava comprar também então não deu pra mim continuar (OLIVEIRA, A. 2008). No trecho de outra entrevista, todavia, ressalta como outro impedimento, a falta de tempo para o exercício da fiação Logo que eu mudei pra cá eu fiz o curso de enfermagem e já fui convidada para trabalhar ai eu já fui trabalhar de enfermeira então eu já não fiei deixei as coisas guardadas (...) mesmo se eu tivesse o algodão, eu acho que eu tinha tempo de fiar né (OLIVEIRA, H. 2008). Além disso, outro fator que ajudou ao enfraquecimento desta arte foi o processo de urbanização muito acelerado no sudoeste goiano. A arte de fiar era praticada na maior parte nas fazendas, devido à produção de algodão. Entre as décadas de 1950 e 60 a população urbana de Jataí já correspondia a mais da metade de sua população total. Em 1980 essa população já correspondia a 80,37%. A partir dessas décadas citadas a população jataiense foi se tornando cada vez mais urbana, conforme nos mostra o gráfico abaixo: Fonte: Encontros e desencontros: estudo urbano de Jataí, 2005. Vilma de Fátima Machado em sua monografia, comenta sobre a instalação de indústrias do agro-negócio no sudoeste goiano, alterando a produtividade e o dia a dia rural conforme diz o trecho a seguir: A presença de grandes empresas agro-industriais na região sudoeste já era uma realidade na década de 1980, o que de certa forma gerou transformações no sistema produtivo da região na medida em que os pequenos agricultores procuravam adequar seus produtos às necessidades do mercado que se configurava (...) à medida que o acesso aos bens manufaturados vai sendo facilitado pela expansão urbana, o dia a dia da vida no campo também vai sendo alterado. (MACHADO, V. 2001, pág. 24). Além disso, outro fator de grande relevância para a debilitação da arte de fiar foi o grande desinteresse da juventude em trabalhar com essa arte, pois para eles o processo de fiar – colher o algodão, descaroçar, cardar e fiar – é muito trabalhoso e desperdício de tempo, consequentemente o número dessas artesãs vêm reduzindo na cidade e essa tradição vem se perdendo no tempo. Segundo D. Adélia “Eu acho que não teve continuidade nesse trabalho esse povo jovem né não teve esse interesse de mexer com essas coisas” (FREITAS, A. 2008). No entanto em outra entrevista, a arte de fiar não é colocada não só como um desinteresse para a juventude, mas também como uma atividade antiga Eles falam que isso e da antiguidade a isso não vai acima não, mexer com isso não, a hoje eu não vou mexer com fiar não, eu vou na loja e compra uma roupa pronta, hoje nem costuras ninguém não quer mais né só quer comprar roupa prontinha para vestir e pronto ninguém não quer saber disso não (OLIVEIRA, A. 2008). Devido esses fatores o MHJ – Museu Histórico de Jataí Francisco Honório Campos – na tentativa de preservação desse saber, promove há dez anos a Semana das Fiandeiras. A idéia de criação deste mutirão foi fruto dos esforços do Setor de Ação Educativa do Museu juntamente com a Direção deste. “A idéia foi discutida com o Conselho de Amigos do Museu e mediante sua aprovação foi realizado o projeto para a execução do que ficou sendo a primeira edição do Mutirão de Fiandeiras de Jataí” (MACHADO, V. 2001, pág. 12). Conforme a direção do Museu o Mutirão foi divulgado na mídia e teve boa aceitação entre as fiandeiras. Conforme a direção do Museu o Mutirão foi divulgado na mídia e teve boa aceitação entre as fiandeiras. A partir da primeira edição do evento o Museu montou um cadastro com o nome das fiandeiras da Cidade, que passaram a participar nos anos posteriores. Nas gavetas da memória de dona Hilda o início do Mutirão ficou assim representado: Eu vi na televisão. as pessoas eu vi umas amigas que era do tempo que eu morava na fazenda elas também moravam.., faziam mutirão e agente fiava junto. Ai eu vi na televisão eu falei eu vou lá e hoje e falou o dia ne no radio, o radio estava ligado. Era o último dia, eu fui era de tarde umas 4 e pouca, e 5 horas era o encerramento.Tinha o chá pra todo mundo que participou ai as meninas (do Museu) (...) também a Enimar já pegou o meu nome e endereço pra quando fosse no outro ano eu participar, mim convidou e eu continuei (OLIVEIRA, H. 2008) Na semana em que é comemorado a Semana das Fiandeiras, o Museu Histórico recebe um grande público escolar, principalmente da rede municipal de ensino. Para os visitantes é um local de reviver as tradições antigas, para o grupo de fiandeiras este evento é um local de lazer, reencontro com as antigas companheiras e, sobretudo um local de preservação cultural. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS MACHADO,V. F. Tramas no Museu: estratégias de preservação, memória e identidade. Monografia de Especialização. FCHF/UFG: Goiânia, 2001. Silva, M. R. Encontros e desencontros: estudo do espaço urbano de Jataí-GO. IESA/PPPGG/UFG: Goiânia, 2005. FONTES ORAIS Hilda Oliveira Moraes – Fiandeira (28 de março de 2008); Ana Joaquina de Oliveira – Fiandeira (14 de março de 2008); Adélia Conceição de Freitas – Fiandeira (28 de fevereiro de 2008).