Jornal do Comércio - Porto Alegre
7
Rio Grande do Sul tem dificuldade para avançar na catalogação de dados
No Rio Grande do Sul, o avanço do cadastramento ficou emperrado por mais de um ano. Até junho, os gaúchos documentaram
414,9 mil hectares, ou seja, apenas
2,04% de um total passível de mais
de 20 milhões de hectares. A morosidade observada até então pode
ser explicada por duas incongruências entre o novo registro junto ao
Ministério da Agricultura e Abastecimento e o que está disposto na legislação estadual. Em primeiro lugar, a lei gaúcha prevê espaços de
banhado como Área de Preservação Permanente (APP). Os produtores deveriam, portanto, informar
a presença desses espaços em seus
domínios. Por outro lado, as regras
não previam uma definição de banhado, o que gerava insegurança
durante a catalogação dos dados.
Outra característica ambiental
tampouco estava contemplada no
CAR: o Bioma Pampa. Apesar de a
maioria dos imóveis rurais estarem
situados em regiões de Mata Atlântica, o Pampa ocupa 67% do território gaúcho e possui características
ecológicas bem específicas. Além
disso, a legislação federal considera como consolidada toda extensão
onde houve ocupação humana ou
atividade agrosilvopastoril. As zonas de pecuária, inclusive a tradicional em campo nativo, se encaixam nesse dispositivo e passam
a ter um tratamento específico de
proteção ambiental. Mas, ao mesmo tempo, a legislação exige a identificação de territórios remanescentes de vegetação nativa.
Na visão de entidades produtivas, estava posta a controvérsia,
uma vez que o decreto presidencial
leva em conta a classificação de vegetações nativas que existem apenas na Mata Atlântica, e não con-
sidera outros biomas. “Ficamos na
dúvida se o que temos como campo nativo também seria considerado como vegetação nativa no CAR”,
argumenta o assessor de Desenvolvimento Sustentável da Federação
da Agricultura do Rio Grande do
Sul (Farsul), Eduardo Condorelli.
Para ele, surgia aí a dificuldade.
“Se é área rural consolidada, como
pode ser vegetação nativa ao mesmo tempo?”, questiona. Por isso, os
produtores rurais gaúchos foram
orientados a aguardar uma definição do governo sobre o assunto antes de efetivarem seu cadastro.
A resposta chegou em junho,
quando restavam cerca de 11 meses
para o fim do prazo. O governador
José Ivo Sartori e a ministra da Agricultura, Kátia Abreu, assinaram um
decreto instituindo um código de
referência. Pelo texto, fica entendido que os campos de pecuária são
TIAGO FRANCISCO/SISTEMA FARSUL/DIVULGAÇÃO/JC
Condorelli diz que controvérsia entre as normas foi o principal empecilho
áreas consolidadas. Cria-se, dessa
maneira, uma especificidade na declaração estadual. O Bioma Pampa
passa a ter dois tipos de área rural
consolidada: aquelas forjadas pela
conversão do solo, ou seja, intro-
dução de lavoura, e as constituídas
pela atividade pastoril. A declaração em separado deve destravar o
processo, mas ainda gera polêmica
quanto aos mecanismos de proteção ambiental do Pampa.
Para ecologistas, decreto estadual atrapalha conservação do Pampa
O documento assinado pelo governador José Ivo Sartori, que instituiu um código de referência, é alvo
de crítica de ecologistas responsáveis pelo livro Campos Sulinos,
publicação que agrega o conhecimento científico existente sobre a
região. Os pesquisadores consideram o decreto uma forma de permitir a expansão da fronteira agrícola
SERGIO BAVARESCO/FZB/DIVULGAÇÃO/JC
Lobo-guará é uma das espécies do Bioma Pampa ameaçadas de extinção
na região do Bioma Pampa. “O texto saiu nesse formato para liquidar
com a obrigação de Reserva Legal
no Pampa”, defende o pós-doutorando em Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(Ufrgs) Eduardo Vélez.
No fim da semana passada, o
Ministério Público ingressou com
uma ação civil pública contra o
Estado do Rio Grande do Sul com
o objetivo de assegurar a proteção
jurídica do Bioma Pampa. O conflito envolve uma série de conceitos – principalmente, os de Reserva Legal, Área de Preservação
Permanente (APP) e Área Consolidada – e sucessivas alterações nas
leis de proteção ambiental. Os
agricultores precisam delimitar
20% de Reserva Legal, espaço
onde é necessário manter a vegetação nativa. O segundo desconto na área de produção intensiva
pode se dar por uma APP – encostas de grande declividade, faixas próximas a arroios etc - caso
exista uma dessas características
na propriedade. Com o novo Código Florestal, foi criado também
o conceito de Área Consolidada,
com objetivo de isentar sistemas
produtivos estabelecidos há décadas, em que a aplicação dos critérios de APP causariam transtornos econômicos. Nesses locais, se
houve supressão da vegetação nativa até julho de 2008, tornam-se
Áreas Consolidadas.
Poderia ser o caso da pecuária
no Pampa, assim como estabelece
o decreto. Acontece que, segundo
os biólogos, não houve supressão
da vegetação nativa nessa região.
“É possível dizer que houve modificação da estrutura pela presença do gado, mas as espécies são as
mesmas”, explica Vélez. Segundo
o pesquisador, o objetivo é enquadrar o Bioma nos artigos 67 e 68 da
lei, aqueles que apontam exceções
para a necessidade de presença de
Reserva Legal. “O decreto é contraditório ao afirmar que áreas com
ocupação pastoril em que se manteve parte da vegetação nativa são
consolidadas por supressão da vegetação nativa”, reclama.
Para a comunidade científica,
a agricultura não pode ser a atividade majoritária no Pampa. A pecuária, por outro lado, é vista como
opção sustentável para esse tipo
de biodiversidade, pois consegue
manter espécies de plantas, mamíferos, aves e repteis. Além disso, especialistas alertam que a expansão das lavouras poderia, por
exemplo, provocar aumento das
emissões de carbono e colocaria
em risco diversas espécies de animais nativos, como o lobo-guará.
Regularização Ambiental deve ajudar a promover rearranjo produtivo
Se os esforços para realizar o cadastramento de todos os imóveis rurais é do tamanho do Brasil, a tarefa não termina nesse
ponto. Em seguida, cada estado será responsável por construir seu Programa de Regularização Ambiental (PRA). Levando em conta a especificidade de cada bioma, os PRAs
devem orientar o produtor sobre como será
realizada a recomposição, caso essa seja necessária. Caberá aos órgãos estaduais o apoio
técnico e a facilitação do crédito para que a
atividade de restauração seja feita, além da
definição de sanções para quem não cumprir os termos de compromisso.
No último levantamento do Serviço Florestal Brasileiro, Paraná, São Paulo, Rondônia e Bahia apresentaram seus PRAs, mas
apenas o governo baiano detalhou as regras
a ponto de permitir que o produtor partisse
para a recomposição imediatamente. Antes,
parte das informações prestadas no CAR precisam ser verificadas. O próprio sistema faz
uma triagem inicial, indicando, por exemplo, quando há duas propriedades sobrepostas. Entretanto, uma espécie de checagem de
campo, outra atribuição estadual, será feita
em casos de inconformidade.
O PRA será construído a partir de outro
ato normativo, como aconteceu com o decreto do CAR, no qual as especificidades do
ambiente gaúcho serão contempladas. Para
casos de checagem de informações, o governo conta com uma equipe com profissionais
das secretarias do Meio Ambiente e da Agricultura, que pode necessitar de ajustes e reforços, de acordo com a secretária adjunta
de Meio Ambiente, Mara Patrícia Möllmann.
“Entretanto, teremos uma visão do todo, que
facilitará o planejamento e a antevisão das
consequências das atividades e empreendimentos, podendo tornar mais simples a concessão de licenças e autorizações”, completa.
A expectativa é que os Programas de Regularização Ambiental provoquem um rearranjo produtivo em propriedades com débito
ambiental, uma vez que o agricultor perceberá se está fazendo bom ou mau uso dos
recursos. “Com a recuperação dos passivos,
melhora todo o sistema de produção: vai ter
mais água disponível, mais insetos predadores e uma paisagem cênica”, explica o assistente técnico do Núcleo de Produção Vegetal
da Emater, Dirceu Slongo. Enquanto isso, a
exploração para plantio vai acontecer em
áreas mais recomendadas por conta de diversos fatores, como o relevo.
Em uma escala maior, municípios, estados e governo federal terão melhores condições de visualizar suas bacias hidrográficas
e locais de vegetação nativa. Desse diagnóstico mais amplo, podem emanar políticas de
gestão territorial, de abastecimento de água
em grandes cidades e de manutenção do solo
para evitar assoreamento dos rios. “O cadastro vai ser fundamental para guiar e delinear
como serão feitos esses esforços de recuperação de florestas por meio dos PRAs, para
que possamos recompor a provisão desses
recursos ambientais”, destaca o diretor sênior de Política e Estratégia Institucional da
Conservação Internacional (CI-Brasil), Cristiano Vilardo.
Download

Regularização Ambiental deve ajudar a promover rearranjo