DIREITO TRIBUTÁRIO
E POLÍTICAS PÚBLICAS
Coordenador
José Marcos Domingues
Autores
André Brugni de Aguiar
Diogo Ferraz Lemos Tavares
Gustavo do Amaral Martins
Carlos da Costa e Silva Filho
Hermano Antonio do Cabo Notaroberto Barbosa
José Marcos Domingues
2008
© Os autores
PREFÁCIO
Revisão Fábio Luiz de Carvalho e Lilian de Carvalho
ISBN 978-85-98848-82-2
Diretor responsável Marcelo Magalhães Peixoto
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Misabel Abreu Machado Derzi
Professora dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito
da UFMG
Professora Titular de Direito Financeiro e Tributário das Faculdades Milton
Campos
Membro do Grupo de Pesquisa Europeu de Finanças Públicas (Gerfip), Paris I
Presidente da Associação Brasileira de Direito Tributário (Abradt)
Consultora
Advogada
Esta obra, coordenada pelo Professor Titular de Direito Financeiro
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, José Marcos Domingues
de Oliveira, reúne seis artigos independentes que tratam de desafiante assunto, verdadeira vexata quaestio do direito tributário brasileiro, as
contribuições de intervenção no domínio econômico e a extrafiscalidade. Tentam estabelecer limites à extrafiscalidade, em alguns casos, ou
demonstrar, em outros, os novos campos em que podem atuar as contribuições. Todos eles, de maneira geral, abordam a mudança do Paradigma do Estado do Bem Estar Social para um Estado Regulador.
Os trabalhos, no melhor desempenho da pesquisa de pós-graduação, configuram a maturação intelectual que se vai consolidando, ao
longo do tempo, de um grupo de jovens mestrandos, que atuam dentro
da mesma linha de pesquisa, guiados e orientados de modo inovador.
Encerrando o leque das meditações do grupo, o artigo do Prof. José Marcos Domingues levanta as principais questões relativas às contribuições
especiais, sua freqüente tredestinação, e analisa o orçamento anual como
instrumento jurídico, e não mera peça política.
Como toda investigação que se aprofunda, nela se abrem novas
perguntas, postas no contexto contemporâneo, questões que, não obstante, arrastam o afloramento de outras velhas questões da dogmática
jurídica e da filosofia do direito, como pano de fundo, eternamente debatidas e insuficientemente resolvidas. Destaquemos apenas a mais antiga,
da qual se podem desprender outros problemas conexos.
A primeira delas faz ressurgir na mente do leitor, em diferentes
roupagens, o problema das relações entre o saber jurídico e o saber polí3
tico-econômico e sociológico, ou seja, o sistema e a dogmática jurídica e
o seu ambiente (outros sistemas e ciências). Tal questionamento ressurge, fortemente, quando se coloca a questão dos fins, dos resultados, das
conseqüências das normas jurídicas. De um lado, Hans Kelsen, Niklas
Luhmann e Max Weber dão ao problema uma solução separatista, como
realça Alberto Febbrajo (ver prefácio em: LUHMANN, Niklas. Sistema
Giuridico e Dogmatica Giuridica, 2. ed. Trad. Alberto Febbrajo. Bologna:
Mulino, 1978, p. 8), em contraste com as teses de Eugen Ehrlich e Theodor Geiger, que preconizam a investigação do output do sistema.
Os artigos aqui reunidos não se empenham novamente nessa rica
discussão, em que, recorrentemente, se envolvem escolas diversas, desde
a jurisprudência dos conceitos em oposição à jurisprudência dos interesses de Jhering, passando pela natureza da coisa de Esser, pela interpretação teleológica, pelo social engineering, enfim, pelo sincretismo dos fins
jurídicos, sociais e políticos da norma.
Como se sabe, a obra de Hans Kelsen se volta contra o sincretismo
dos métodos sociológico e jurídico, pois a “dogmática jurídica é restrita
ao mundo do dever ser (Sollen) e o seu fim é a compreensão das normas”
(Tra Metodo Juridico e Sociologico. Trad. It. G. Calabrò, Napoli, 1974, p.
41). Em Max Weber, também não se podem fundir os métodos jurídico
e sociológico, pois os objetos de cada um são heterogêneos e, estando em
planos diferentes, não podem entrar em contato (Economia e Sociedade,
v.1. P. Rossi: Milano, 1968, p. 310).
Contrapondo-se a uma visão sincretista, sociologia/direito/econonomia, com que autores, como Eugen Ehrlich e Theodor Geiger, preconizaram a ingerência do saber sociológico - como direito vivo - no saber
jurídico, Niklas Luhmann insurge-se contra a racionalidade teleológica,
que pesquisa os efeitos (o output) do sistema. Para ele, o ordenamento
jurídico é um sistema (na verdade, um subsistema), que se distingue em
limites rígidos de seu ambiente (os demais sistemas), de modo que a
dogmática jurídica está orientada em direção ao input do sistema normativo (às fontes positivas, oficiais de criação das normas), e não direcionada pelo output do sistema, ou seja, pelos efeitos sociais/econômicos
que tal sistema produz. Ele entende que, em uma sociedade complexa,
uma dogmática jurídica impermeável, dirigida por critérios autônomos
de racionalidade, separados daqueles da pesquisa sociológica, exerce
uma função insubstituível, verdadeiramente relevante.
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Para Niklas Luhmann, a orientação de toda dogmática, em particular da jurídica, volta-se ao input do sistema normativo e “comporta, de
fato, uma perspectiva temporal, uma orientação ao passado, a normas
já estabelecidas, orientação que é profundamente diversa de uma orientação output do sistema normativo, ou seja, aos efeitos que esse produz
no futuro, orientação que é tipicamente assumida pela pesquisa sociológica”, como observa Alberto Febbrajo (ver prefácio em: LUHMANN,
Niklas. Sistema Giuridico e Dogmatica Giuridica. Trad. Alberto Febbrajo,
2. ed. Bologna: Mulino, 1978, p.18).
E complementa Luhmann que, se a tarefa da dogmática é “tornar
operativas as questões da justiça em cada um dos campos singulares do
direito”, ou seja, controlar e viabilizar as soluções dos conflitos por meio
da simplificação da alta complexidade, então, a dogmática deveria estar
em posição de formular conceitos socialmente adequados. Em tais conceitos, a dogmática jurídica poderia encontrar sustentação sem necessidade de se considerarem as conseqüências. Socialmente adequados, por
sua vez, não significa que os conceitos jurídicos seriam, em definitivo,
conceitos sociológicos, ou deveriam reproduzir adequadamente a sociedade. O que estaria em contraste com o sentido da diferenciação, que
diz respeito aos sistemas e às suas funções. Nesse contexto, a adequação
significa apenas que, no sistema jurídico, pode-se “realizar-se a transformação conceitual dos problemas”.
Ora, sem se envolver diretamente em tais questões metodológicas e
mesmo filosóficas, os trabalhos de pesquisa e reflexão que esta obra encerra não preconizam – apesar dos títulos contidos em alguns desses artigos, que podem induzir o sentido inverso – uma investigação sociológica
ou econômica dos fins possíveis das normas tributárias, como técnica
de operar o direito tributário. Previstos os fins – constitucionalmente
postos –, enquadram-nos quer do ponto de vista do direito econômico, do direito financeiro, quer constitucional. Em especial, no ensaio do
Prof. José Marcos Domingues, os problemas – como fins – são levados
para dentro do sistema e transformados estruturalmente em conceitos
jurídicos e mesmo em lógica deôntica (fato gerador complementar ou
acessório), que a norma tributária reflete. Enfim, nesta obra, percorrese o caminho inverso, o da juridicização, postos de lado os mecanismos
utilizados pela jurisprudência, que tomaram a direção contrária, ou seja:
nas decisões judiciais consolidadas, primeiro deu-se a projeção dos atos
sociais ou de intervenção do Estado, que a rigor são pressupostos fáticos
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das normas reguladoras das contribuições, em fins, estranhos à norma
tributária; depois, projetou-se a sua inclusão em dotações orçamentárias, convenientemente politizadas. Em contrapartida, a dogmática jurídica, em seus institutos e modelos conceituais, não estava preparada para
abrigar a complexidade das contribuições, por meio de conceitos socialmente adequados, como diria Niklas Luhmann. Essa falha pretende-se
suprir nesta linha de pesquisa.
O primeiro artigo, escrito por André Brugni de Aguiar, tem como
título Parafiscalidade, regulação e Estado na economia globalizada. O autor criticou a ausência de vinculação ou a sua incorporação ao orçamento geral para tributos de natureza parafiscal. E defendeu o argumento de
que as contribuições parafiscais, com as mudanças no paradigma estatal,
passaram a ter outras finalidades. Vejamos pequeno trecho do argumento:
Assim é possível falar em um novo papel do Estado e da tributação em
uma economia globalizada, este será o de compatibilizar o global e o local,
em que a desoneração e desregulação para atender à competitividade no
mercado internacional coexistam com a manutenção de estruturas necessárias à implementação de Políticas Públicas segundo as peculiaridades de
cada nação – com reflexos em seu sistema tributário - ou, em alguns casos,
do segmento econômico. [...] Viu-se que a parafiscalidade esteve historicamente ligada à idéia de troca e, subseqüentemente, às de intervenção e solidariedade. Em nossos dias, possivelmente estará cada vez mais associada
à idéia de autonomia da regulação econômica e social, onde ela ainda não
seja capaz de exercer-se por iniciativa espontânea da sociedade civil em
níveis condizentes com os objetivos públicos essenciais, ou em que o conflito de interesses torne pouco recomendável a autogestão.
Ou seja, se antes a parafiscalidade estava ligada à idéia de financiamento da intervenção direta do Estado na economia e na promoção de
políticas públicas, hoje estaria mais ligada à idéia de regulação.
O segundo artigo tem como título A capacidade contributiva na
tributação extrafiscal, do mestrando Diogo Ferraz Lemos Tavares. Nesse
artigo, o autor retomou de forma breve, mas informativa, os conceitos e
os fundamentos da capacidade contributiva. Argumentou que ela deve
ser respeitada ao estabelecerem-se tributações extrafiscais e devem coexistir, não admitindo as doutrinas que argumentam em sentido oposto.
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Faltaram, nesse artigo, obras mais clássicas de direito tributário, como
a de Aliomar Baleeiro, porém, tem vasto suporte bibliográfico. De fato,
o princípio da capacidade contributiva é princípio que fundamenta outros, suportando vários que dele se depreendem ou que lhe são meros
corolários.
O terceiro artigo, escrito por Gustavo do Amaral Martins, intitulado Mercado e tributação: os tributos, suas relações com a ordem econômica e a necessidade de considerá-la na interpretação e aplicação do sistema
tributário, questiona: será possível interpretar e aplicar o sistema tributário sem considerar os reflexos sobre a ordem econômica? O argumento
básico do autor é o de que, ao se deparar com uma controvérsia judicial,
o Poder Judiciário ou até mesmo as instâncias administrativas devem
considerar os efeitos econômicos da tributação e verificar se esses efeitos
não afrontam outros princípios de direito econômico, como a livre concorrência. Vejamos trecho do autor:
A tributação surgiu primeiramente com fins arrecadatórios. Contudo,
desde suas mais remotas origens o uso para fins não arrecadatórios sempre esteve presente. No mundo atual, para além de efeitos intencionais no
plano fiscal e extrafiscal, os tributos têm fortes efeitos extrafiscais, efeitos
que se dão sobre o mercado. A tributação não pode ser compreendida
sem que sejam consideradas as questões do mercado. Por decorrência, o
sistema tributário não pode ser compreendido sem que seja considerada
a ordem econômica, pois submetidos ambos à Constituição Econômica.
Esta realidade, contudo, não vem sendo enfrentada, ainda que para dela
discordar, seja pela ampla maioria da doutrina nacional, seja pelos acórdãos mais significativos do STF”. À primeira vista, o autor parece preconizar uma interpretação econômica do Direito Tributário, além da teleológica. Mas investigar as conseqüências econômicas e sociais é de todo
impossível, pois há conseqüências imediatas, mediatas e remotas, enfim,
conseqüências das conseqüências em cadeia infinita. Há ainda diferentes
escolas e teorias econômicas, a partir das quais poder-se-ia enfocar certo
acontecimento. Percebe-se, no entanto, que o autor refere-se à ordem econômica constitucional e os princípios, por ele invocados, pertencem quer
ao Direito Econômico, quer ao Direito Constitucional Tributário. Enfim,
os chamados fins econômicos, a rigor, são princípios jurídicos. É o que se
dá com a livre concorrência, expressa no art. 170, IV, da Constituição e
transformada em norma impositiva, explicitada pela Emenda Constitu-
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cional nº 42/03, que a introduziu no art. 146-A, a saber: “Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação com o objetivo de
prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de
a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo”.
O quarto artigo, de autoria de Carlos da Costa e Silva Filho, tem
como título Outorga onerosa do direito de construir: instrumento de política pública no contexto da fiscalidade ambiental. O artigo trata primeiramente da idéia da efetivação da utilização dos tributos ambientais por
parte do Poder Público. Como tributação ambiental, o autor entende ser
a aptidão das espécies tributárias, segundo os moldes previstos no ordenamento jurídico brasileiro, para tratar da proteção da qualidade ambiental. Encara o direito ambiental como um direito transversal que se
deve utilizar, inclusive, do direito tributário, para a consecução dos seus
objetivos. Demonstra que os tributos ambientais não corresponderiam à
sanção por ato ilícito, pois visariam somente desestimular práticas ambientais perversas. Sem desconhecer os problemas do chamado tributo
ambiental, propõe uma reordenação dos institutos jurídicos e uma virada positiva no sentido de resguardar o meio ambiente. Por fim, analisa a natureza jurídica das outorgas onerosas do direito de construir.
Considera uma espécie de tributo ambiental, lastreado no princípio da
função social da propriedade, reconhecendo que esse entendimento jurídico, sobre sua natureza tributária, atrai para si a pecha de inconstitucionalidade no atual direito positivo brasileiro. Afirma que tais tributos
ambientais demandariam tratamento diferenciado dentro do quadro da
atividade tributária do Estado.
O quinto artigo trata da questão dos incentivos fiscais. Com o título Regulação econômica e tributação: o papel dos incentivos fiscais, o
mestrando Hermano Antônio de Cabo Notaroberto Barbosa argumenta
que:
[...] da mesma forma que o exercício do poder de tributar, que se traduz
na faculdade política de instituição ou majoração de tributos, está sujeito
a limitações, também o poder de não tributar, representado pela possibilidade da concessão de incentivos fiscais, não é livremente exercido.
Partindo do pressuposto de que a regulação econômica – ou o seu
não exercício – tem fundamento em razões de ordem política, econômi8
ca e filosófica, historicamente alocadas, argumenta o autor que qualquer
modalidade de intervenção estatal na economia deve ser constitucionalmente orientada. Para o autor, a concessão de incentivos fiscais encontra-se sujeita, além dos parâmetros constitucionais a serem observados,
a limites formais – competência, procedimento etc. -, materiais – relativo
ao conteúdo -, orçamentários – normais complementares que estabelecem os requisitos da renúncia - e concorrências – a depender da análise
do caso em concreto.
O último artigo contido neste livro, como já foi realçado, é de autoria do Professor José Marcos Domingues e intitulado O desvio de finalidade das contribuições e seu controle tributário e orçamentário no direito
brasileiro. Dois principais argumentos são desenvolvidos, a saber:
1) no caso das contribuições, todas elas com destinação específica,
a tredestinação, configurada também pelo contingenciamento de
verbas a fim de adequar o orçamento aos princípios da austeridade
fiscal, deveria suspender a sua exigibilidade; e
2) o orçamento não é mera peça política, e sim jurídica, devendo
ter caráter impositivo, de sorte que toda a arrecadação de tributos
acabe consumida nas respectivas finalidades constitucionais.
O Prof. José Marcos Domingues, cuja visão doutrinária aproximase da nossa, assim pontifica:
Vê-se, assim, que a destinação específica das contribuições qualifica juridicamente esses tributos, integrando-se aos respectivos fatos geradores
principais, como fato gerador acessório. A finalidade específica se afigura,
assim, verdadeira condição de legitimidade concreta das contribuições, ou
seja, a finalidade específica é justificadora da sua instituição.
O autor é bem contundente ao criticar o posicionamento brando
adotado pelo STF e faz críticas fortes à teoria do orçamento como lei
formal. Analisando a posição de Lobo Torres, afirma:
Esse autor, data vênia, cedendo a uma interpretação literal do direito constitucional positivo brasileiro, dado o pretenso desaparecimento do princípio da anualidade tributária e sua dita vantajosa substituição pela anterioridade dos tributos, também considera que o orçamento é apenas lei
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formal que apenas prevê receitas e autoriza despesas, não tendo significado jurídico quanto à receita pública em geral, especialmente em relação à
receita tributária.
É impressionante o fato de que os contribuintes, embora disponham de um estatuto fortíssimo, consagrado em direitos e garantias previstos na Constituição, dificilmente igualáveis nas cartas constitucionais
de outros países, vivam no seio de uma outra realidade, continuamente
em mutação e imprevisível, em que as contribuições, por eles pagas, não
têm o destino a que estão afetadas pela própria Constituição. Após décadas de disputas e lutas entre as pretensões fazendárias e os contribuintes,
com o advento da Constituição de 1988, fica definitivamente expandido
o conceito de tributo, para nele ficarem abrigadas as diferentes espécies
(impostos, taxas, contribuições em geral e empréstimos compulsórios).
A reação não se faz demorar. Essa reação se consolida em vários aspectos: a) em primeiro lugar, inicia-se um outro procedimento por meio do
qual a União, para suprir os próprios cofres de novos recursos, pratica
sistemáticos desvios, tredestinações ou simples não-aplicação do produto arrecadado com as contribuições. Esse novo longo caminho culmina
com a centralização da arrecadação na Receita Federal, por via da qual
poderão ser desviados pelo menos 20% de toda a arrecadação proveniente das contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico, legitimados pelas normas do artigo 76 do ADCT; b) tais desvios
restaram autorizados pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,
fundamentados na tese do finalismo, segundo a qual as ações do Estado
a serem financiadas por meio das contribuições (atos de política social,
de intervenção no domínio econômico ou relativos a categorias profissionais) seriam causa final, estranha à estrutura da norma tributária. De
acordo com essa posição doutrinária, uma vez paga a contribuição, estaria extinta a relação jurídico-tributária, restando apenas uma situação
superveniente, de desvio dos recursos, de caráter financeiro, situação
que não enseja a repetição do indébito.
Examinemos, então, a doutrina da causa final, que tem servido à
legitimação do abuso e ao descumprimento de grandes princípios constitucionais.
Já com Platão, na Grécia antiga, o finalismo, introduzido por Anaxágoras, é doutrina que coloca a finalidade como causa total da organização do mundo. E, especialmente em Aristóteles, tudo aquilo que é por
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natureza existe para um fim. Ele distinguiu, como se sabe, entre causa
material, causa formal, causa eficiente e causa final, as causas possíveis,
por meio das quais se atinge o conhecimento, a ciência.
Entretanto, segundo Nicola Abbagnano, o finalismo foi erradicado
da ciência moderna e a causa final passaria a ser completamente desprezada na explicação do mundo natural.
E Bacon excluía explicitamente da investigação experimental a consideração do fim (Nov. Org., II, 2). Dizia: ´A investigação das causas finais é
estéril: assim como uma virgem, consagrada a Deus, nada gera´. Por sua
vez Galilei (Op.,VII, p.80) e Descartes (Princ. Phil., III, 3) eliminaram da
ciência a consideração da causa final e Spinoza contrapôs a necessidade
com que as coisas provêm da natureza divina ao finalismo, que considerou
um preconceito, contrário à ordem do mundo e à perfeição de Deus (Et.,
I,36, Ap.). (Cf. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000,
p. 460).
E conclui:
[...] o finalismo, hoje considerado inútil em todos os campos de explicação
científica, permanece como característica das correntes metafísicas que
consideram modesta demais para a filosofia a tarefa de criticar os valores
para corrigi-los ou conservá-los, propondo-se a tarefa de demonstrar que
os valores são garantidos pela própria estrutura do mundo onde o homem vive e que eles constituem o fim dessa estrutura. O finalismo perdeu
completamente o caráter científico que possuía originariamente na Grécia
antiga e permanece apenas como uma das tantas esperanças ou ilusões às
quais o homem recorre na falta de procedimentos eficazes ou em substituição deles.
De fato, Descartes, ao fundar a ciência moderna, afastou a busca
da causa final de suas investigações. Assim dispôs o 28º princípio filosófico: “Que não é necessário examinar para qual fim Deus fez cada coisa,
mas somente por qual meio Ele quis que ela fosse produzida”. E assim
o explica:
Nós não nos deteremos também para examinar os fins com que Deus se
propôs a criar o mundo, e nós afastaremos inteiramente de nossa filosofia
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a pesquisa das causas finais; pois nós não devemos presumir tanto de nós
mesmos, mas apenas acreditar que Deus quis que fizéssemos parte de seus
conselhos: mas, considerando-O como o autor de todas as coisas, nós nos
ocuparemos somente em encontrar, pela faculdade de raciocinar que Ele
colocou em nós, como aquelas coisas, que nós percebemos pela intermediação de nossos sentidos, puderam ser produzidas; e nós estaremos seguros, por meio de alguns de seus atributos dos quais Ele quis que nós tivéssemos algum conhecimento, de que o que nós perceberemos, claramente
e distintamente, por pertencer à natureza dessas coisas, tem a perfeição de
ser verdadeiro. (Cf. Princípio nº 28. RENÉ DESCARTES. Les Principes de
la Philosophie. In : Oeuvres et Lettres. Ed. Gallimard. Bibliothèque de la
Plêiade. 2004, p. 583-4.)
Se o finalismo assumirá nova roupagem nas modalidades de plano
e objetivo, aí não será considerado causa, mas resultado e, ao contrário,
se, nas ciências do espírito, é reintegrado como motivo ou motivação,
converte-se em causalidade, vista do interior, ou seja, causa ou condição
de uma escolha.
Ora, não apenas o finalismo foi abandonado pelos cientistas (exceto
metafísicos, em certos contextos), como ainda a própria causa perdeu a
sua força. Mesmo nas ciências chamadas da natureza, ou explicativas, a
teoria da causa, com que Newton concebeu a sua própria teoria, reforçada em Kant, não é suficiente, nem simples (causas, concausas, contracausas, efeitos antropomórficos, etc.). A ela acresceram-se a física quântica e a teoria das probabilidades. Heisenberg, trabalhando o princípio
da indeterminação, e Heinchenbach, a teoria da probabilidade (1949),
entre tantos outros, afiançaram que não é possível uma única asserção
sobre a realidade e uma nova terminologia passa a inspirar os estudos
científicos, como constância estatística, probabilidade, condição e condicionamento.
No mundo jurídico, a dogmática também sentiria os efeitos desse
contexto.
Lembremo-nos de que houve época em que todos os tributos eram
concebidos segundo sua causa final, a saber: os impostos se diferenciavam
dos demais por se destinarem ao custeio das despesas gerais. Já as taxas
teriam como fim o financiamento de certos serviços públicos; por sua vez,
a contribuição de melhoria teria como causa final, o custeio de obras públicas. A causa final passou, assim, a dirigir os conceitos nucleares do direi12
to tributário. Também não eram raros os juristas que investigavam a causa dos tributos, adentrando o mundo da causalidade e suas intrincadas
possibilidades (formais, materiais, eficientes e finais). Gilberto de Ulhôa
Canto nos dá desse fenômeno um excelente relato. Mais recentemente,
retornam em alguns textos doutrinários a busca da causa e da motivação
na teoria das contribuições especiais.
Qual o melhor caminho? Voltemos a Foucault, que disse: “Por trás
de todo o saber, de todo o conhecimento, o que está em jogo é uma luta
de poder [...]”. Igualmente, Tércio Sampaio Ferraz Jr. (Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação. São Paulo: Atlas, 1989, p.
40-45) alerta para o problema referindo-se aos enfoques zetético e dogmático do direito.
Para isso, lembremo-nos de que toda a ciência jurídica – não apenas do direito tributário –, por influência das correntes filosóficas dominantes, experimentou conceder maior ou menor relevância ao causalismo, ao finalismo, aos conceitos ou tipos esvaziados de valores ou mais ou
menos axiologicamente carregados. O que importa é que, naqueles ramos jurídicos, como no direito penal, em que deve imperar a segurança
inerente ao Estado de Direito, essa batalha travou-se dentro da própria
norma penal, ou ainda dentro do próprio ramo jurídico em questão, sem
prejuízo das liberdades fundamentais. E ainda se trava dentro do próprio
direito penal. Ao contrário, no direito tributário, as teorias causal, de
motivação e justificação, ou o finalismo, colocaram questões da mais alta
relevância em campo estranho à norma tributária. Nas contribuições, as
ações do Estado a serem por elas custeadas ou são identificadas a motivações, prévia fundamentação política que leva o legislador às decisões
contidas na norma tributária, ou são identificadas à destinação legal do
produto arrecadado, um posteriori financeiro, superveniente à aplicação
da norma tributária. Enfim, os direitos e garantias dos contribuintes e do
cidadão, de modo geral, fogem a todo o controle dogmático do direito
tributário: ou se colocam em posição prévia ou posterior à atuação da
norma tributária.
Assim, o causalismo e o finalismo na ciência do direito penal (não
na filosofia) atuaram antes nos requisitos ou elementos do delito, enfim, nos pressupostos da punibilidade, ora reduzindo a causa eficiente ao
tipo, ou a uma questão de subsunção ao tipo, ora absorvendo-se a causalidade intelectualizada à ação típica, por meio do finalismo. O que não se
fez foi a expulsão da causa eficiente ou final, motivação ou justificação,
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por mais complexa que seja a questão, para fora do direito penal, como
se fez no direito tributário.
No direito civil, não menos árduas são as batalhas entre causalistas
e anticausalistas. Francisco Amaral relata que a causa, mesmo quando
não mencionada expressamente pelo legislador (modo de nosso Código
Civil) como elemento integrante da teoria do negócio jurídico, permanece viva na discussão de alguns juristas, como requisito de validade.
Por exemplo, a função social dos contratos impulsiona a discussão como
justificação capaz de validar ou não um negócio jurídico. E identifica a
causa eficiente do negócio jurídico ao fato jurídico ou ao contrato. (Cf. Direito Civil. Introdução, 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 429-436).
Tal modo de enfocar o tema, sem dúvida, aproxima a doutrina civilista
do mesmo tratamento dado por Beling, no direito penal, à causa típica
(no direito tributário, ao fato gerador). Na verdade, a causa típica de Beling suprime a teoria da causa em sua forma pura, porque reduz a cadeia
causal a problemas de subsunção e de interpretação.
Ora, a grande diferenciação está em que, quer no direito civil, quer
no direito penal, as teorias da causa eficiente ou da causa final não projetam os importantes elementos do delito ou do negócio jurídico para
campos estranhos ao direito penal ou civil, ao contrário dos efeitos do
causalismo ou finalismo no direito tributário. Essa revisão vale para lembrar que, se quisermos, poderemos transformar todas as espécies tributárias em finalísticas, no sentido extratributário. Tudo vai depender da
ideologia dominante. O finalismo colocará os atos estatais, que determinadas espécies tributárias visam custear, hoje identificadas como fatos
geradores, como despesas públicas (despesas com serviços públicos específicos e divisíveis, nas taxas; despesas com obras públicas na contribuição de melhoria; despesas com outros serviços e atividades estatais
nas contribuições especiais; despesas com guerra e calamidade pública
nos empréstimos compulsórios) como resultado integrante da norma
financeira (não tributária) e projetará as garantias do contribuinte em
campo estranho ao direito tributário, de tal forma que, uma vez pago o
tributo, não sendo prestado o serviço (nas taxas), nem sendo realizada
a obra pública na contribuição de melhoria, ou não sendo efetivados os
atos estatais sociais ou de intervenção nas contribuições especiais, não
poderá o contribuinte reaver do Estado as importâncias indevidamente
pagas. Observe-se que, freqüentemente, o legislador, por razões de praticidade, determina primeiro o recolhimento do tributo – nas taxas, por
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exemplo, – para, em seguida, prestar o serviço, que deu ensejo à cobrança.
Na contribuição de melhoria, a realização da obra pública (da qual
resulta a valorização do imóvel do contribuinte) é hipótese, pressuposto,
fato gerador. Não se trata de mera finalidade. Muitas tentativas já se fizeram para cobrar a contribuição de melhoria antes de realizada a obra,
pois a simples notícia de sua realização pode desencadear uma valorização imobiliária. Tais tentativas foram corretamente repelidas pela doutrina e pela jurisprudência. Imaginemos milhares de prefeituras a cobrar
contribuição de melhoria para financiamento de obra futura. Pago o tributo pelo contribuinte e desviados os recursos para outros fins, como é
costume acontecer em nosso País, certamente a teoria finalista, que definisse o tributo como exação destinada a custear obras públicas, não seria
suficiente para demonstrar o direito à devolução dos recursos pagos, já
que o fenômeno de sua aplicação, à luz da jurisprudência, é questão financeira ou orçamentária superveniente.
Apesar do esforço inegável em eleger critérios confiáveis de controle das contribuições especiais, sobretudo das contribuições de intervenção no domínio econômico (Cf. SCAFF, Fernando Facury. Para além
dos direitos fundamentais do contribuinte. In: SCHOUERI, Luis Eduardo (Coord.). Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2003; FERRAZ, Roberto. A Inconstitucionalidade dinâmica da Cide-combustíveis
– a CIDE está inconstitucional? In: Grandes Questões Atuais de Direito
Tributário. São Paulo: Dialética, 2005; GRECO, Marco Aurélio. A destinação dos recursos decorrentes da contribuição de intervenção no domínio econômico – CIDE sobre combustíveis. In: Revista Dialética de
Direito Tributário, v. 104. São Paulo: Dialética, entre outros), a doutrina
não tem logrado êxito em traçar um caminho seguro que possa garantir
a cobrança correta e a aplicação efetiva e integral dos recursos arrecadados nas finalidades – sociais, de intervenção ou corporativas - autorizadas pela Constituição Federal. Lembre-se ainda Marco Aurélio Greco
que, a par de negar o caráter tributário às contribuições, somente admite ver reconhecidas a tredestinação e a não-aplicação institucionalizadas
dos recursos por meio de elementos ou aspectos estranhos à estrutura
da norma tributária, ou seja, por meio da análise da execução da lei de
diretrizes e da lei orçamentária, segundo critérios que extrai da lei de
responsabilidade fiscal (Lei Complementar nº 101/00), o que supõe o
decurso mínimo de quatro a dois exercícios financeiros contados a partir
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da arrecadação. Tal modo de solucionar o problema pode levar ao reconhecimento da inconstitucionalidade da contribuição inaplicada nas
finalidades constitucionalmente previstas, segundo o autor citado, apenas em relação a exercícios futuros, não sendo possível a devolução do
produto até então arrecadado por duas razões, a saber, porque a correta
ou incorreta aplicação dos recursos é evento superveniente à incidência
da norma (pois é evento estranho à norma tributária) e, ainda, porque,
com o pagamento, dilui-se o vínculo entre o montante individual pago e
a inaplicação parcial do conjunto dos recursos (Cf. Em busca do controle
sobre as CIDE´S, op. cit).
Entendemos, hoje, que esse modelo teórico, que insiste nos fins,
projetados para fora da norma tributária, não é suficiente, pois as ações
do Estado, a serem financiadas por meio das contribuições mantêm-se
estranhas à estrutura da norma tributária, como mera causa final.
É necessário um retorno à teoria de Geraldo Ataliba (como prega
Luciano Camargos em tese de doutorado pela UFMG, no prelo), que
inseriu as contribuições entre os tributos vinculados a uma atuação estatal (ver: Hipótese de Incidência Tributária, 3. ed. São Paulo: Malheiros,
1993). Previu, porém, como critério de diferenciação das contribuições,
a circunstância intermediária, exatamente o aspecto da norma que faz a
mediação entre a atuação estatal e o contribuinte, ou seja, o aspecto da
hipótese de incidência que, indireta e mediatamente, impõe a referibilidade ao obrigado, definindo o grupo de sujeitos passivos atingidos pela
ação estatal. Na conseqüência, refletem-se os dois núcleos da hipótese,
a saber, não se pode arrecadar mais de todos os contribuintes envolvidos do que o custo da atuação estatal. (Nesse ponto, residindo a única
diferença que apontamos em relação à teoria de Geraldo Ataliba, pois
a hipótese de incidência teria dois núcleos substanciais, um deles chamado de circunstância intermediária). Seja como for, é decididamente
relevante resgatar as lições de Geraldo Ataliba, como, aliás, já tinha observado José Marcos Domingues e também Eduardo Maneira (Cf. Base
de Cálculo Presumida. Tese de Doutorado. Belo Horizonte: UFMG, 2002,
no prelo).
Disso resulta a importância da posição constante do artigo do Prof.
José Marcos Domingues. As ações estatais que as contribuições visam
financiar devem estar no pressuposto da norma tributária, integrar a sua
hipótese de incidência, de tal modo que, uma vez pago o tributo, mas
16
identificada a tredestinação ou a não-aplicação dos recursos, estaremos
em face de tributos sem causa, sendo devida a repetição do indébito.
Michel Foucault demonstrou, com sabedoria, que o conhecimento não apenas é influenciado pelo poder, mas é nele informado. Afirma
que:
[...] com Platão, se inicia um grande mito ocidental: o de que há
antinomia entre saber e poder... Esse grande mito precisa ser liquidado. Foi esse mito que Nietzsche começou a demolir ao mostrar,
em numerosos textos já citados, que por trás de todo o saber, de
todo o conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O
poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber. (Cf. A Verdade e as Formas Jurídicas. trad. Roberto Cabral de
Melo Machado e outro. Caderno PUC n. 16, 4. ed. Rio de Janeiro,
1979, p. 17).
Tem razão Foucault. As conquistas do cidadão em face do poder de
tributar podem ser acompanhadas por meio da análise de fatos históricos, delineados no tempo e no espaço, mas também por meio da investigação dos conceitos jurídicos, firmados na dogmática, sua evolução, seus
efeitos e conseqüências.
Esta a justa (e velada) indignação que permeia os artigos desta obra.
Tratam eles de rever conceitos e institutos da dogmática jurídica, de forma a torná-los socialmente adequados. Diz a Constituição que as contribuições nascem para custear a construção do Estado Democrático de
Direito, ou melhor, a atuação da União nessa construção. Se essa atuação
é colocada como mero resultado ou finalidade, estando fora do direito
tributário, não exigimos que ela ocorra, embora a contribuição possa ser
cobrada. E o direito tributário passa a funcionar assim, sem proteção da
confiança, sem obediência às promessas do legislador e da Constituição.
A norma tributária não funciona porque não a tornamos efetiva, porque
nós nos subordinamos a uma lógica deôntica ultrapassada, resquício dos
tempos autoritários.
É preciso lembrar a todo momento. Houve tempo em que todos os
tributos eram concebidos segundo sua causa final, a saber: os impostos se
diferenciavam dos demais por se destinarem ao custeio das despesas gerais.
Já as taxas teriam como fim o financiamento de certos serviços públicos;
por sua vez, a contribuição de melhoria teria como causa final o custeio
17
de obras públicas. A causa final passou, assim, a dirigir os conceitos nucleares do direito tributário. Mas essa época levou à extrema pobreza
os direitos e garantias dos contribuintes. Recentemente, com o retorno
do finalismo, não raramente travestido de motivação, até contribuições
destinadas ao custeio da aposentadoria daqueles contribuintes já aposentados foram legitimadas, embora dentro de um quadro sofisticado de
justificação [...] obrigações sem causa final são exatamente o fenômeno,
de extrema gravidade, com que somos obrigados a conviver, com sentimento de profundo retrocesso democrático. Enfim, nós abrimos um
setor de ilicitude justificada, que corre paralelamente. Nesse contexto,
não é possível esquecer as lições de Geraldo Ataliba, o grande mestre,
que pôs a lógica e a metodologia a serviço dos grandes princípios constitucionais.
Por tudo isso, é com grande satisfação que vejo nesta obra que
ora se publica grupos sérios de pesquisa, liderados pelo Prof. José Marcos Domingues, renovando a dogmática tradicional, e preparando novos
instrumentos técnicos com que realizar os desígnios constitucionais.
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APRESENTAÇÃO
Este livro é produto do grupo de pesquisa por mim coordenado na
Faculdade de Direito da Uerj, em 2007. Integraram-no os diletos orientandos no mestrado, Carlos Costa e Hermano Barbosa, e outros queridos pós-graduandos, André Brugni, Diogo Ferraz, os quais então conheci, e Gustavo Amaral, ex-aluno no bacharelado.
Nossas reuniões na faculdade foram momentos de debate profícuo e enriquecimento mútuo. As tertúlias acadêmicas prolongaram-se
por meio de encontros extraclasse e correios eletrônicos durante dois
semestres.
O tema geral do grupo de pesquisa foi Tributação e Políticas Públicas.
Não parece mais possível ao jurista, máxime ao tributarista, relegar
a outros domínios do conhecimento a análise do mérito das decisões estratégicas atinentes à atuação do sistema tributário.
É jurídica a apreciação dos limites do poder de tributar e do poder
de exonerar, sob pena de não se realizar o respectivo controle de legitimidade, que decorre de um contraste entre os fins preconizados e os
meios empregados.
A unicidade fundamental do fenômeno financeiro é uma realidade
desde sempre anotada e acatada pela melhor doutrina contemporânea.
Positivamente, ela confere com o texto da Magna Charta inglesa que, já
em 1215, postulava a razoável fixação dos impostos, com moderação, em
linguagem ampla, da qual se pode extrair não só a adequação do tributo
ao princípio da capacidade contributiva, como a respectiva pertinência
aos fins a que se destina.
A utilização do tributo como instrumento de realização dos programas de governo não deve ser olvidada, quer em face da teoria da extrafiscalidade, quer em virtude da própria letra dos Textos Constitucionais. Quer na versão italiana que determina que “o sistema tributário
é inspirado nos critérios de progressividade” (art. 53), quer na dicção
brasileira que ordena a tributação diferenciada da pequena empresa (art.
170, IX, e art.179), revela-se o propósito de promoção da igualdade, por
meio de políticas redistributivas e de pleno emprego, viabilizadas pela
justiça fiscal, a mesma que, por exemplo, impõe o combate ao latifúndio
por imposto mais gravoso.
19
Ademais, o custeio das ações de concepção e implementação de
políticas públicas deve ser orientado por um princípio de economicidade que rege tanto a legislação como a administração, o qual, a par da separação de poderes, determina que as respectivas provisões feitas pelos
órgãos competentes daquela sejam ordinariamente acatadas pelo governo na aplicação da lei orçamentária, pena de insinceridade fiscal e fraude
constitucional.
A publicação dos trabalhos do grupo de pesquisa reflete o compromisso da universidade com a produção do saber, por intermédio da
contribuição de seus integrantes, aos quais se junta um ensaio do seu
professor, com o orgulho de quem, ex-aluno da casa, vê, no empenho
de jovens juristas, a realização da missão de fomentar o espírito crítico,
razão maior de ser do ensino superior.
O percuciente prefácio com que a ilustre Professora Misabel Abreu
Machado Derzi brinda autores e leitores é motivo de satisfação e júbilo,
pois nos reconforta e anima a novas jornadas, ela que, liderança ímpar
no direito pátrio, provém das Gerais, terra do primeiro grito pela liberdade e cidadania fiscal brasileira.
Agradeço a Fernanda Greco Laureano, minha orientanda na graduação, que se desincumbiu da formatação dos trabalhos, consoante o
padrão editorial escolhido.
José Marcos Domingues
Professor Titular de Direito Financeiroda Faculdade de Direito da Uerj
20
SUMÁRIO
PARAFISCALIDADE, REGULAÇÃO E ESTADO NA ECONOMIA
GLOBALIZADA
André Brugni de Aguiar
1. Introdução
2. Breve histórico da intervenção estatal na ordem econômica e social
3. Contribuições especiais
4. A parafiscalidade no Brasil
5. A discussão dos conceitos
6. Tributação e necessidades globais
7. Considerações finais
8. Bibliografia
A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA NA TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL
Diogo Ferraz Lemos Tavares
1. Introdução
2. O princípio da capacidade contributiva
3. A tributação extrafiscal
4. O suposto conflito entre a capacidade contributiva e a extrafiscalidade
5. O diálogo entre a capacidade contributiva e a extrafiscalidade:
possibilidades e limites de uma tributação extrafiscal
6. Conclusão
7. Bibliografia
MERCADO E TRIBUTAÇÃO: OS TRIBUTOS, SUAS RELAÇÕES COM
A ORDEM ECONÔMICA E A NECESSIDADE DE CONSIDERÁ-LA NA
INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO SISTEMA TRIBUTÁRIO
(ou será possível interpretar e aplicar o sistema tributário sem considerar os
reflexos sobre a ordem econômica?)
Gustavo do Amaral Martins
1. Introdução
2. Conceito de constituição econômica
3. Evolução da constituição econômica
4. Fiscalidade, extrafiscalidade e objetivos não-fiscais em tributos
arrecadatórios. A tributação e intervenção do Estado na economia
5. Posição da doutrina brasileira
6. Posicionamento do Supremo Tribunal Federal
7. Imaginando um exemplo
8. Considerações finais
9. Referências bibliográficas
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23
25
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143
144
21
DIREITO TRIBUTÁRIO E POLÍTICAS PÚBLICAS
OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CONSTRUIR: INSTRUMENTO DE
POLÍTICA PÚBLICA NO CONTEXTO DA FISCALIDADE AMBIENTAL
151
Carlos da Costa e Silva Filho
1. Introdução
151
2. O dilema da modernidade cientificista e o despertar da consciência
ecológica
152
3. Os bens públicos e o mercado: as externalidades
160
4. O princípio do poluidor-pagador (PPP)
170
5. A tributação ambiental
184
6. Meio ambiente urbano e a outorga onerosa do direito de construir
207
7. Considerações finais
230
8. Referências bibliográficas
231
REGULAÇÃO ECONÔMICA E TRIBUTAÇÃO: O PAPEL DOS
INCENTIVOS FISCAIS
Hermano Antonio do Cabo Notaroberto Barbosa
1. Introdução
2. Estado regulador e regulação econômica
3. Sistema Constitucional Tributário, neutralidade e extrafiscalidade:
a tributação como instrumento de regulação econômica
4. O papel dos incentivos fiscais
5. Conclusões
6. Referências bibliográficas
O DESVIO DE FINALIDADE DAS CONTRIBUIÇÕES E O SEU CONTROLE
TRIBUTÁRIO E ORÇAMENTÁRIO NO DIREITO BRASILEIRO
José Marcos Domingues de Oliveira
1. Introdução
2. As contribuições e as Cides
3. Finalidade e fato gerador das contribuições
4. Finalidade, tredestinação e inconstitucionalidade
5. A jurisprudência do STF
6. O direito de resistência e a defesa da constituição
7. O controle de constitucionalidade da lei orçamentária e da despesa
pública. Natureza jurídica do orçamento: teoria da lei formal e do ato
administrativo vs. teoria da lei material
8. Crítica à teoria do orçamento como lei formal
9. O Brasil e o orçamento contemporâneo
10. Os contingenciamentos de despesa. Cautela ou fraude constitucional?
11. Uma nova perspectiva de controle das contribuições – caráter
impositivo da despesa vinculada
12. Preservação da supremacia constitucional. Considerações finais
13. Bibliografia
22
PARAFISCALIDADE, REGULAÇÃO E ESTADO NA
ECONOMIA GLOBALIZADA
André Brugni de Aguiar
Fiscal de Rendas do Município do Rio de Janeiro
Bacharel em Direito pela Universidade Cândido Mendes
Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro
Mestrando em Direito da Cidade na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
237
1. Introdução
237
237
O termo parafiscalidade se prestou a interpretações diversas, no
tempo e no espaço. Ao ser usado pela primeira vez, em 1946, no famoso
Relatório Schumann,1 parafiscalité designava um conjunto de encargos
pecuniários de natureza variada, destinados a repartições públicas autônomas, a associações profissionais e ao custeio da satisfação de alguns
direitos sociais (FERNANDES, p. 66-67). Mas a simples aposição do prefixo para (no sentido de à margem de) a vocábulo que se originava do
latim fiscus (que significava cesto) já indicava a nota específica que, em
tese, seria comum a todas essas exações: não se incorporavam ao cesto do
orçamento geral do Estado.
A palavra parece estar hoje relativamente consolidada como indicativa do fenômeno da delegação da capacidade tributária ativa2, isto é,
das situações em que o ente criador da exação afeta a outro o poder de
arrecadá-la3 e fiscalizá-la, bem como o de dispor do respectivo produto, a
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299
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303
303
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341
343
347
1. Nome do ministro das Finanças da França que coordenou, à época, minucioso
levantamento sobre as exações vigentes em seu país.
2. Conforme assinala FONROUGE, Carlos M. Giuliani, (2001, p. 343), não se confunde o poder tributário e competência tributária, correspondendo esta à noção
de sujeição ativa: “El poder tributário, repetimos, es inherente al Estado [...] No
puede ser objeto de cesión o delegación [...] Lo que puede transferirse, según vimos,
es la llamada competência tributaria, o sea, el derecho a hacer efectiva la prestación.”
3. Há quem não considere a delegação das atividades de arrecadar e fiscalizar como
elemento do conceito, mas apenas a afetação da receita ao ente não-estatal: “Essa
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