Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú
ISSN 2318-566X
O PROCESSO LEGISLATIVO MUNICIPAL E A INICIATIVA DE LEI. DA
ORGANIZAÇÃO
ADMINISTRATIVA
MUNICIPAL.
O
CASO
DO
ALVARÁ
CONDICIONADO NA CIDADE DE SÃO PAULO.
Jamile Gonçalves Calissi1
RESUMO
O presente artigo propõe uma análise sobre o processo legislativo municipal e a
iniciativa de lei, investigando o caso do alvará condicionado da cidade de São Paulo,
lei municipal com vício de iniciativa e que fere direito fundamental de acessibilidade.
A questão foi analisada segundo critérios internacionais deduzindo-se que o texto
normativo municipal fere direitos fundamentais a partir da ótica de controle de
constitucionalidade e controle de convencionalidade.
PALAVRAS-CHAVE
Processo legislativo municipal. Iniciativa de lei. Direitos fundamentais.
ABSTRACT
This article proposes an analysis about the legislative process and the initiative of
municipal law, investigating the case of the license condition of São Paulo, bylaw
initiative with addiction and that hurts fundamental right of access. The issue was
1
Doutoranda em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru, área de
concentração em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos. Mestrado em Direito Constitucional
pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru, como bolsista integral CAPES, área de concentração em
Sistema Constitucional de Garantia de Direitos. Graduação em Direito pelas Faculdades Integradas
de Jaú – Fundação Educacional Dr. Raul Bauab. MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio
Vargas. Professora das Faculdades Integradas de Jaú – Fundação Educacional Dr. Raul Bauab.
Servidora Pública.
currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5100816232667133
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analyzed according to international criterion deducting the normative text municipal
hurts fundamental rights from the perspective of judicial control and conventionality.
KEYWORDS
Municipal legislative process. An initiative law. Fundamental rights.
1 DO VÍCIO DE INICIATIVA DE LEI
O processo legislativo, também denominado de procedimento
legislativo, traduz-se por um conjunto complexo de atos coordenados e
subseqüentes para a produção normativa. É, nos dizeres de Nelson de Sousa
Sampaio:
uma espécie do gênero amplo do direito processual, pelo qual o direito
regula a sua própria criação, estabelecendo as normas que presidem
à produção de outras normas, sejam normas gerais ou
individualizadas (SAMPAIO, 1996, pág. 28)
É composto por uma fase introdutória denominada iniciativa,
outra fase constitutiva que compreende a deliberação e a sanção e, por fim, a fase
complementar de promulgação e publicação (FERREIRA FILHO, 2001, pág. 206).
É possível, ilustrar, então, o processo legislativo compreendendo
a iniciativa (embora seja considerada por alguns estudiosos como uma fase
meramente introdutória e não pertencente ao corpo do projeto) emenda, votação,
sanção ou veto, promulgação e publicação.
Nos termos do artigo 59 da Constituição Federal, imperiosa a
obtenção, através do processo legislativo, das seguintes espécies normativas:
emendas constitucionais, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas,
medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.
Regras pertinentes ao processo em comento devem ser
seguidas, sob pena de vício formal que poderá ocasionar a inconstitucionalidade do
ato normativo.
De grande importância, a iniciativa é elemento indispensável
para assegurar o correto desenvolvimento formal desse processo e, na
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eventualidade de sua não observação segundo os parâmetros constitucionais,
deflagra-se o chamado vício formal de iniciativa (vício formal subjetivo).
A instrumentalização do processo legislativo comum está
prevista no artigo 61 da Constituição Federal, quando das disposições da
elaboração das leis ordinárias e leis complementares2.
Em observação ao disposto no artigo 61 supramencionado, a
iniciativa geral é parlamentar (atribuição típica) porque concedida aos membros do
Congresso Nacional.
Contudo, essa iniciativa também pode ser concedida a órgãos
ou entes que não integram o Congresso Nacional. Tal iniciativa, chamada
extraparlamentar, é concedida, assim, ao Chefe do Executivo, aos Tribunais do
Poder Judiciário, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, neste último
caso, chamada de iniciativa popular.
José Afonso da Silva preceitua didaticamente quatro tipos de
iniciativas no âmbito do procedimento legislativo municipal: concorrente, exclusiva,
vinculada e popular (SILVA, 1997, págs. 107-109).
A
primeira,
denominada
concorrente,
pertence
tanto
a
Vereadores quanto ao Chefe do Poder Executivo e refere-se a matérias carentes de
regulamentação.
2
Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara
dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo
Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos
casos previstos nesta Constituição.
§ 1º - São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;
II - disponham sobre:
a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua
remuneração;
b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da
administração dos Territórios;
c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e
aposentadoria;
d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a
organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI;
f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade,
remuneração, reforma e transferência para a reserva.
§ 2º - A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei
subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com
não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.
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A segunda iniciativa é a exclusiva, conferida especificamente a
um órgão, agente ou pessoa. É, geralmente, matéria reservada à Mesa da Câmara e
ao Prefeito.
O terceiro tipo de iniciativa é a vinculada, referente àquela em
que o titular, em um determinado momento, possui a iniciativa sobre determinada
matéria.
Finalmente, a quarta espécie de iniciativa, chamada popular,
reservada ao eleitorado municipal, na proporção de 5% (cinco por cento), nos
termos do artigo 30, XIII da Constituição Federal. Esta última espécie de iniciativa
tem por base a conscientização de que a democracia brasileira não é meramente
representativa, mas tem sua face também participativa.
De maneira semelhante, Luiz Alberto David Araújo e Vidal
Serrano Nunes Júnior dão as suas contribuições para o tema.
Segundo os autores, são três as formas de iniciativa, a saber:
concorrente (comum ou geral), compartilhada entre o Poder Legislativo, o Presidente
da República e a população, reservada (exclusiva ou privativa), quando a
Constituição determina especificamente a capacidade de iniciativa, e a vinculada,
pertencente a mais de uma pessoa que tem o dever de ofertar o projeto de lei no
momento e prazo determinados (ARAUJO; NUNES JUNIOR, pág. 400).
Oportuno mencionar que a Constituição Federal preconiza a
iniciativa geral que compete concorrentemente ao Presidente da República,
Deputados e Senadores, qualquer comissão das Casas do Congresso Nacional e a
todos os cidadãos (FERREIRA FILHO, 1988, pág. 61-62).
Embora exista uma compreensão doutrinária de que de fato
ninguém possua realmente a chamada iniciativa geral3, há que se considerar a sua
existência para trabalhar com a sua exceção que está contida exatamente nas
hipóteses de iniciativa reservada, que “consiste na reserva de iniciativa sobre certas
matérias em favor de um órgão determinado” (FERREIRA FILHO, 1998, pág. 61).
3
“Em face das reservas de iniciativa adiante examinadas, rigorosamente falando, no Direito brasileiro ninguém
possui realmente iniciativa geral. A designação vale simplesmente na medida em que significa poder propor
direito novo sobre qualquer matéria (exceto as reservadas), já que os titulares de iniciativa reservada, salvo o
Presidente da República, apenas possuem iniciativa para a matéria que lhes foi reservada.” FERREIRA FILHO
2001, pág. 202.
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Neste ínterim, é possível citar como de iniciativa reservada, a do
Chefe do Executivo para as matérias dos artigos 61, § 1 e 166, I, II e III, a do
Supremo Tribunal Federal para a lei complementar referente ao Estatuto da
Magistratura do artigo 93, a do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais
Superiores, contida no artigo 96, II, para a criação e extinção de cargos de seus
membros, fixação dos respectivos vencimentos, alteração do número de membros
dos tribunais inferiores, criação ou extinção destes tribunais, alteração da
organização e divisão judiciária e, por fim, a do Procurador-Geral da República para
a criação e extinção de cargos e serviços auxiliares, previsto no artigo 127, § 2.
Em âmbito municipal, quanto ao processo legislativo, guardadas
as diferenças peculiares, é possível compreender as espécies normativas
enunciadas no artigo 59 da Constituição Federal como aplicáveis também na
atuação desse ente federativo e, por isso mesmo, imperioso guardar respeito ao
disposto na Constituição Federal, por força do chamado princípio da simetria com o
centro, que busca a harmonização das regras insertas na Constituição com as
legislações infraconstitucionais, cabendo ao Município observar o que dispõe o
artigo 61 da Constituição, acrescentando a isso a conformação com os aspectos
locais estabelecidos pela Lei Orgânica.
Consoante o princípio fundamental da predominância de
interesse, a divisão de competências entre os entes federativos segue uma
sistemática horizontal, estabelecendo distinções na atuação da União, Estadosmembros e Municípios.
A autonomia municipal, o seu ser-federativo, assenta-se sobre
quatro pilares: capacidade de auto-organização, capacidade de autogoverno,
capacidade de legislação própria, capacidade de auto-administração (SANTANA,
1998, pág. 47).
Soma-se a esses pilares, dentro da abordagem de competências
constitucionais, o critério de interesse local (aquilo que é pertencente ao interesse
municipal e deve preponderar em relação às competências da União e do Estadomembro), pelo qual é regido o município no tocante à sua competência legislativa,
ficando ele com a possibilidade de conformação de seus poderes inerentes à sua
autonomia para dispor sobre aquilo que lhe é de interesse, formando uma área de
competências materiais privativas suplementares, nos termos do artigo 30, I, da
Constituição Federal.
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Dessa forma, é possível a percepção que, embora a atribuição
típica da Câmara dos Vereadores seja a normativa, no que concerne ao
procedimento legislativo municipal que tem o interesse local como um dos seus
vértices, existem matérias reservadas exclusivamente à atuação do Poder
Executivo.
Conquanto seja função da Câmara legislar, esse seu poder não é ilimitado ou
absoluto. Na elaboração das leis, há de atender, em primeiro lugar, à sua
competência, restrita aos assuntos de peculiar interesse do Município; e, em
segundo, às normas constitucionais e legais superiores, a fim de que não
legisle além de sua competência ou de modo ilegal ou inconstitucional. A lei
deve ser elaborada, não só com atendimento de requisitos de substância,
como também de forma, para que se erija em norma legal, no duplo sentido
formal e material (MEIRELLES, 2006, pág. 642).
Como exemplo elucidativo e, em simetria com a Constituição
Federal (artigo 61, § 1, II, b), aponta-se a organização da Administração Municipal,
sendo tal competência deflagradora de restrição ao preceito constitucional da
iniciativa das leis, reservando-se ao Poder Executivo a iniciativa para tratar de
assuntos diretamente relacionados ao exercício de atribuições e competências que
impliquem a organização das funções administrativas.
São, portanto, as leis de iniciativa exclusiva do Prefeito.
Leis de iniciativa exclusiva do prefeito são aquelas em que só a ele cabe o
envio do projeto à Câmara. Nessa categoria estão as que disponham sobre a
criação, estruturação e atribuição das secretarias, órgãos e entidades da
Administração Pública Municipal; a criação de cargos, funções ou empregos
públicos na Administração direta e autárquica fixação e aumento de sua
remuneração; o regime jurídico dos servidores municipais; e o plano
plurianual, as diretrizes orçamentárias, os orçamentos anuais, créditos
suplementares e especiais (MEIRELLES, 2006, pág. 733).
Outrossim, a reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder
Executivo em assuntos pertinentes à “organização administrativa e judiciária,
matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos
Territórios” (g. n.) guarda relação com o exercício da atribuição constitucional de
administrar a “res pública”, em atenção à separação dos órgão do Poder do artigo 2º
da Constituição Federal e, em âmbito municipal, com a conceituação ampla da
autonomia deste ente dentro da Federação brasileira.
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Pertence ao espírito da garantia institucional da administração autônoma do
município, que certos traços típicos – feitos no desenvolvimento histórico
característicos e essenciais – devem ser protegidos, por este modo e
garantia, contra uma remoção levada a cabo pelo legislador ordinário. Em
conseqüência, não tem o legislador mão livre no que se refere à organização
e ao círculo material de eficácia dos municípios nem tampouco tocante à
organização da fiscalização do Estado, se é que a garantia tem, afinal de
contas, um conteúdo (SCHMITT apud BONAVIDES, 2001, pág. 321).
Observando pertinência com o artigo 61 da Constituição, no
tocante às matérias de iniciativa reservada ao Presidente da República, é possível,
então, afirmar que são matérias de iniciativa reservada ao Prefeito Municipal as que
disponham sobre: criação, extinção e transformação de cargos, funções ou
empregos públicos na Administração direta e autárquica ou aumento de sua
remuneração; organização administrativa, matéria orçamentária e remuneração;
servidores municipais, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e
aposentadoria (SILVA, 1997, pág. 108).
A organização administrativa, âmbito reservado ao Poder
Executivo, em sentido amplo, compõe-se de um órgão de governo que exerce a
função política e dos órgãos e pessoas que exercem função administrativa.
A administração pública brasileira adotou o modelo formal, ou
seja, é administração pública juridicamente tudo aquilo que a lei assim considera,
não havendo necessidade de diagnosticar a atividade exercida.
É por isso que faz parte da estrutura administrativa as empresas
públicas e as sociedades de economia mista que, na sua maioria, são entidades que
integram a administração formalmente, apesar de não exercerem funções
administrativas típicas de Estado.
Por
outro
lado,
existem
atividades
preponderantemente
administrativas, desenvolvidas no seio do órgão público e que fazem parte da
organização administrativa do ente federado. É o caso, por exemplo, de situações
atinentes ao fornecimento de serviços públicos que, apartadas desta elaboração de
simetria constitucional, vêm expressamente previstas no artigo 30, V, da
Constituição Federal, como competência legislativa suplementar do município.
Em âmbito municipal, essas atividades só poderão ser objetos
de lei se esta for proposta pelo Chefe do Poder Executivo, sob pena de vício formal,
já que a iniciativa reservada consagra a independência de cada órgão do Poder para
dispor sobre assuntos afetos diretamente a seu interesse.
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Assim, questões referentes ao expediente interno de órgão do
Poder Executivo deverão ser enfrentadas por este.
No município de São Paulo, houve um Projeto de Lei de nº
189/2010, de autoria da Câmara de Vereadores de São Paulo, convertido na Lei nº
15.499 de 7 de dezembro de 2011, sancionada pelo Prefeito Municipal, propondo a
criação do denominado Alvará Condicionado.
O Alvará Condicionado consiste em uma espécie de licença
provisória de funcionamento que permite que o comércio, indústria e serviço
instalados irregularmente possam continuar em funcionamento até obterem a
regularização definitiva.
Existem alguns requisitos para obter o Alvará Condicionado,
como por exemplo, a metragem do imóvel que não pode ser superior a 1.500 m²e,
embora os responsáveis pela sua criação aleguem a desburocratização da atividade
do pequeno e médio empreendedor, o certo é que tal Lei, além de aparentar ser um
instrumento de índole eleitoreira tendo em vista a época de sua aprovação, véspera
de ano eleitoral, também é inconstitucional por vício formal de iniciativa.
O Projeto de Lei referendado que deu origem à Lei 15.499/11
teve autoria originária na Câmara dos Vereadores.
Tal autoria, no entanto, segundo os propósitos da simetria
constitucional, usurpa iniciativa de propositura de Lei reservada ao Chefe do Poder
Executivo Municipal.
Desta feita, importante a análise dos dispositivos legais
relacionados ao caso.
A Lei Orgânica do Município de São Paulo guarda corretamente
a simetria constitucional e dispõe em seu artigo 37 sobre a iniciativa de propositura
de lei do Prefeito Municipal para a “organização administrativa, serviços públicos e
matéria orçamentária”4.
4
Art. 37 - A iniciativa das leis cabe a qualquer membro ou Comissão permanente da Câmara Municipal, ao
Prefeito e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Lei Orgânica.
§ 1º - Compete exclusivamente à Câmara Municipal a iniciativa das leis que disponham sobre os Conselhos de
Representantes, previstos na seção VIII deste capítulo.
§ 2º - São de iniciativa privativa do Prefeito as leis que disponham sobre:
I - criação, extinção ou transformação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta,
autárquica e fundacional;
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O Regimento Interno da Câmara dos Vereadores do Município
de São Paulo também prevê a matéria no artigo 2355.
Ora, as matérias de iniciativa reservada existem para fortalecer a
independência dos órgãos do Poder!
No caso em tela, cabe somente ao Chefe do Poder Executivo a
propositura de lei sobre questões internas à administração e funcionamento do
órgão municipal, pois é ele o gestor administrativo do ente federativo.
E a criação de uma espécie de Alvará de Funcionamento,
concedido no âmbito do órgão administrativo municipal, através de uma Secretaria
de Negócios Tributários é algo deveras específico para ser tratado por quem não
tem o pleno conhecimento do funcionamento interno do órgão.
Assim, a usurpação de iniciativa é clara e, se levada a cabo,
prejudicial ao município, que terá uma lei regulamentando uma atividade
administrativa específica proposta por um órgão (neste caso a Câmara de
Vereadores) que desconhece pormenorizadamente as peculiaridades do sistema.
Além do mais, não há que se falar neste caso específico em
convalidação do projeto de lei com vício de iniciativa em função da sanção do Poder
Executivo.
O Supremo Tribunal Federal, no passado, em sua Súmula nº 5,
teve um posicionamento que hoje não mais é seguido: “A sanção do projeto supre a
falta de iniciativa do Poder Executivo”.
Contudo, como mencionado, esse entendimento não prevalece
mais.
Não é possível acatar tranquilamente a tese de superação de
usurpação da iniciativa através do sancionamento da lei.
Em posicionamento seguro, Manoel Gonçalves Ferreira Filho
discorre sobre o assunto.
II - fixação ou aumento de remuneração dos servidores;
III - servidores públicos, municipais, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;
IV - organização administrativa, serviços públicos e matéria orçamentária;
V - desafetação, aquisição, alienação e concessão de bens imóveis municipais. (g.n.)
5
Art. 235 - Será privativa do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei mencionados no parágrafo 2º do artigo 37 e
incisos I, II e III do artigo 137 da Lei Orgânica do Município.
Parágrafo único - Ressalvado o disposto na Constituição da República, aos projetos de iniciativa do Prefeito não
serão admitidas emendas que aumentem a despesa prevista nem as que alterem a criação de cargos.
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Para o autor, é pacífico o entendimento da supremacia da
Constituição Federal. E esta supremacia ocasiona conseqüências importantes, como
rigidez, por exemplo. Assim, qualquer ato derivado da Constituição tem sua validade
ligada à sua concordância com os preceitos desta, em relação a requisitos formais e
materiais. Sob a ótica do entendimento desse autor, a admissão da convalidação do
vício de iniciativa equivale à admissão de um ato nulo (FERREIRA FILHO, 2001,
pág. 213).
E isso não pode ser sustentado em um Estado de Direito cujo
princípio da independência e harmonia entre os Órgãos do Poder é direcionador e
interlocutor de um ordenamento jurídico composto de instituições democráticas.
E o próprio Supremo Tribunal Federal já corrigiu aquele
entendimento6.
Embora improvável, ainda que reste alguma dúvida quanto à
usurpação de iniciativa aqui discutida, a Constituição Paulista, em perfeita
consonância com a Constituição Federal, também prevê a reserva de iniciativa,
corroborando com a presente tese de incompatibilidade vertical e afronta ao
princípio da independência e harmonia ente os Órgãos do Poder.
Senão, vejamos.
A Constituição do Estado de São Paulo dispõe em seu artigo 5º
que os órgãos do Poder são independentes e harmônicos entre si 7 , disposição
seguida pelo artigo 478.
6
A sanção do projeto de lei não convalida o vício de inconstitucionalidade resultante da usurpação do poder de
iniciativa. A ulterior aquiescência do chefe do Poder Executivo, mediante sanção do projeto de lei, ainda
quando dele seja a prerrogativa usurpada, não tem o condão de sanar o vício radical da inconstitucionalidade.
Insubsistência da Súmula 5/STF. Doutrina. Precedentes. (ADI 2.867, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 312-2003, Plenário, DJ de 9-2-2007.)
No mesmo sentido: ADI 2.305, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 30-6-2011, Plenário, DJE de 5-8-2011; AI
348.800, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 5-10-2009, DJE de 20-10-2009; ADI
2.113, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 4-3-2009, Plenário, DJE de 21-8-2009; ADI 1.963-MC, Rel. Min.
Maurício Corrêa, julgamento em 18-3-1999, Plenário, DJ de 7-5-1999; ADI 1.070, Rel. Min. Sepúlveda Pertence,
julgamento em 29-3-2001, Plenário, DJ de 25-5-2001.
7
“São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”
8
Artigo 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;
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Na observância ao princípio da independência e harmonia ente
os Órgãos do Poder, imprescindível constatar que ao Poder Legislativo não cabe a
administração da cidade, tarefa esta reservada ao Poder Executivo.
A hipótese em comento é claramente de administração ordinária,
e o papel no Legislativo neste caso é apenas o de estabelecimento de normas
gerais, e nunca delimitação de atos pontuais e específicos, sob pena de ingerência.
Assim,
imperioso
o
reconhecimento
de
usurpação
de
competência e violação ao princípio da separação dos órgãos do Poder.
2. O PROBLEMA A PARTIR DA ÓTICA INTERNACIONAL E O DESRESPEITO
AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Classicamente, o Direito Internacional pautou-se pelo estudo e
desenvolvimento de duas doutrinas principais, a dualista e a monista.
A teoria dualista caracteriza-se basicamente por considerar
direito interno e direito internacional realidades e sistemas absolutamente distintos.
Formulada primeiramente por Carl Heinrich Triepel em 1899,
mas só denominada assim por Alfred Verdross em 1914, essa teoria seria mais tarde
adotada pelos italianos, sobretudo por Dionísio Anzilotti que, em 1905 fez algumas
alterações na teoria original concebendo a possibilidade de, em alguns casos, o
direito internacional ser aplicado internamente sem a devida alteração (ARIOSI,
2.000, pág. 62).
A segunda teoria, denominada monista, tem como característica
básica o fato de não contemplar duas ordens distintas, porque considera que o
direito internacional e o direito interno não são ordens jurídicas autônomas. Por isso,
essa teoria dividiu-se em duas posições: uma que defende a primazia do direito
interno e outra que defende a primazia do direito internacional.
Quanto à primeira facção, que contempla a primazia do direito
interno, segundo Celso Duvivier de Albuquerque Mello:
O monismo com primazia do direito interno tem as suas raízes no
hegelianismo, que considera o Estado como tendo uma soberania absoluta,
não estando, em conseqüência, sujeito a nenhum sistema jurídico que não
tenha emanado de sua própria vontade(MELLO, 1997, pág. 105).
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Encontrando
adeptos
na
França,
na
Alemanha
e,
posteriormente, na Rússia, essa doutrina, além de adotar o direito internacional
como algo meramente discricionário, teve seu nacionalismo extremado pelos
nazistas, que a utilizaram manipulando-a de acordo com os seus interesses.
A segunda modalidade monista teve como maior precursor Hans
Kelsen para quem a primazia do direito internacional encontrava justificativa em sua
própria tese de norma fundamental.
Para ele, uma norma encontra seu fundamento na norma
imediatamente superior, em uma sucessão que sugere a figura de uma pirâmide,
tendo em seu topo a norma fundamental (ou Grundnorm). Por influência de Alfred
Verdross, Kelsen acabou por concluir que essa norma fundamental nada mais seria
do que o próprio direito internacional representado pela pact sunt servanda (MELLO,
1997, pág. 106).
É possível considerar, assim, que a diferença prática entre as
duas correntes, a dualista e a monista, sustenta-se no fato de que na primeira a
ratificação, após a aprovação legislativa, só irradia efeitos externos, necessitando de
um ato presidencial, um decreto, para que gere efeitos no ordenamento interno;
enquanto que para a segunda corrente, a simples ratificação presidencial, após a
aprovação legislativa, por si só já basta para gerar efeitos externos e internos.
Por fim, vale transcrever, inteiramente, crítica proferida por José
Francisco Rezek que bem sintetiza a existência das correntes antes apresentadas, a
dualista e a monista, com suas duas vertentes:
Nenhuma das três linhas de pensamento é invulnerável a critica, e muito já
escreveram os partidários de cada uma delas no sentido de desautorizar as
demais. Perceberíamos, contudo, que cada uma das três proposições pode
ser valorizada em seu mérito, se admitíssemos que procuram descrever o
mesmo fenômeno visto de diferentes ângulos. Os dualistas, com efeito,
enfatizam a diversidade das fontes de produção das normas jurídicas,
lembrando sempre os limites de validade de todo direito nacional, e
observando que a norma do direito das gentes não opera no interior de
qualquer Estado senão quando este, havendo-a aceito, promove-lhe a
introdução no plano doméstico. Os monistas kelsenianos voltam-se para a
perspectiva ideal de que se instaure um dia a ordem única, e denunciam,
desde logo, à luz da realidade, o erro da idéia de que o Estado soberano
tenha podido outrora, ou possa hoje, sobreviver numa situação de
hostilidade ou indiferença frente ao conjunto de princípios e normas que
compõem o direito das gentes. Os monistas da linha nacionalista dão relevo
especial à soberania de cada Estado e à descentralização da sociedade
internacional. Propendem, destarte, ao culto da constituição, estimando que
no seu texto, ao qual nenhum outro pode sobrepor-se na hora presente, há
de encontrar-se notícia do exato grau de prestígio a ser atribuído às normas
internacionais escritas e costumeiras(REZEK, 2.000, pág. 05).
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Pois bem. Até o advento da emenda constitucional nº 45, no
Brasil havia a discussão acerca do status de um tratado internacional de direitos
humanos. Uma vez incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro, dúvidas
pairavam quanto a sua natureza de norma constitucional ou infraconstitucional.
Seguindo a procedibilidade inerente a um dualismo moderado, a
internalização de qualquer tratado internacional exigia a aprovação ad referendum
do Congresso Nacional, e não fazia isso por meio de lei (se assim fosse, seria um
dualismo extremado), antes disso, procedia-se através de decreto legislativo,
concentrando-se as críticas justamente nesse instrumento, pelo qual seria
impossível, através dele, atribuir status constitucional a um tratado internacional de
direitos humanos.
Com a emenda constitucional nº 45, foi introduzido o § 3º no
artigo 5º da Constituição Federal objetivando estabelecer, em definitivo, o status
formal e material de norma constitucional para aqueles tratados que, sendo de
direitos humanos, deverão observar o quorum de emenda constitucional.
Após esse advento, além de se estabelecer a natureza
constitucional de alguns tratados internacionais, inevitavelmente, criou-se um novo
sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, com o nascimento da teoria da
dupla compatibilidade vertical material (MAZZUOLI, 2011).
Ou seja, os tratados internacionais de direitos humanos,
aprovados com quorum de emenda à Constituição, são, além de materialmente,
também formalmente equiparados a normas constitucionais e, portanto, poderão ser
paradigmas de controle das normas infraconstitucionais (MENDES, 2005, pág. 239).
A
dupla
compatibilidade
vertical
traduz-se,
então,
na
necessidade de toda lei infraconstitucional guardar concordância com a Constituição
e, agora, com o tratado internacional de direitos humanos devidamente
internalizado. A lei que for contrária ao tratado internacional, enquanto não alterada,
terá vigência, mas não validade, configurando-se naquilo que o Ministro Gilmar
Mendes chama de “efeito paralisante”9.
9
Termo cunhado pelo Ministro Gilmar Mendes no Recurso Extraordinário 466.343-1 ao indicar à época a
supralegalidade dos tratados internacionais que não adentrassem o ordenamento jurídico brasileiro seguindo a
formalidade do § 3º do artigo 5º da Constituição Federal, momento em que o STF entendeu que com a adoção
da tese da supralegalidade, todas as leis que não guardassem compatibilidade com as normas supralegais,
deveriam ser expurgadas do sistema, por restarem derrogadas.
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Desta feita, possível elaborar o entendimento sobre o que seja o
controle de convencionalidade10.
Na definição de convencionalidade, este teoria tem como
corolário a concepção de quatro espécies de controle, a saber, controle de
legalidade, controle de supra legalidade, controle de constitucionalidade e,
finalmente, o controle de convencionalidade
O controle de convencionalidade não requer autorização
internacional. Uma vez vigente no ordenamento jurídico brasileiro o tratado
internacional de direitos humanos, os juízes e tribunais podem promover um controle
difuso compatibilizando as leis com o conteúdo do tratado.
Importante ressaltar que, pela tese defendida por Valério de
Oliveira Mazzuoli, os tratados e convenções de direitos humanos que ingressaram
no ordenamento jurídico brasileiro antes da emenda constitucional nº 45 ou que
ingressaram após esta emenda, mas não observaram a formalidade de quorum
qualificado (submetendo-se, portanto, à internalização preconizada pelo § 2º do
artigo 5º da Constituição), são considerados normas com status constitucional e os
tratados e convenções de direitos humanos adotantes do procedimento especial do
§ 3º do artigo 5º da Constituição são considerados equiparados a emenda
constitucional. Na prática isso significa dizer que ambos possuem grau hierárquico
de norma constitucional e, portanto, condicionam todo o ordenamento jurídico no
tocante ao controle de convencionalidade; contudo, no caso dos tratados e
convenções internalizados pelo procedimento especial, haverá a irradiação como
parâmetro para o controle difuso e concentrado de convencionalidade.
E mais, no controle de convencionalidade concentrado, feito
diretamente no STF, os mecanismos serão a ADI,a ADECON e a ADPF.
Enfim, absolutamente possível, então, levantar-se a necessidade
de análise da questão de acessibilidade em comento, considerando-se tanto a
convencionalidade difusa quanto a concentrada.
A Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com
deficiência, por sua vez, foi o primeiro tratado internacional assinado pelo Brasil
após a inserção do § 3º do artigo 5º da Constituição Federal. Sua assinatura e
10
Os conceitos a respeito do tema foram enfrentados pelo STF no RE n° 466.343/SP e HC 87.585/TO, a respeito
da posição hierárquica dos tratados e convenções incorporados ao nosso ordenamento que versem sobre
direitos humanos.
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ratificação ocorreu em 2008, portanto, internalizado já com status de norma
constitucional.
Mas a história brasileira em relação à proteção de pessoas com
deficiência não é recente.
Para efetivar, entre outras coisas, direitos de acessibilidade,
foram editadas diversas leis.
A primeira lei é de 1989, Lei Federal nº 7.853, que assegurou
diversos direitos a referidas pessoas, tais como a inclusão no processo educativo,
ações preventivas e diferenciadas na área de saúde, reserva de mercado e
acessibilidade.
A reserva de mercado também foi objeto de lei própria, a Lei nº
8.112 de 1990 que determinou um percentual dos cargos públicos a serem
reservados para as pessoas com deficiência. Já a Lei nº 8.213 de 1991 assegurou o
direito ao trabalho nas empresas privadas, tomando por parâmetro o número de
empregados.
No ano 2.000, a Lei Federal nº 10.048 dispôs sobre a prioridade
no atendimento de forma geral e determinou a reserva de unidades habitacionais,
para facilitar o direito à casa própria das pessoas em comento.
A Lei Federal nº 8.899 de 1994 assegurou transporte gratuito
interestadual.
A Lei Federal nº 9.394, de 1996, dispôs sobre a educação
gratuita e de preferência na rede regular de ensino, bem como assegurou a
educação profissional e ensino superior.
A Lei Federal nº 9.656 de 1998 dispôs que não pode haver
impedimentos para que a pessoa com deficiência possa participar de plano ou
seguro privado de assistência à saúde.
A Lei Federal nº 10.098 de 2000 determinou que fosse
assegurada a acessibilidade das pessoas com deficiência ou com mobilidade
reduzida a prédios e locais públicos.
Dessa forma, é fácil constatar que, internamente, por força da
Convenção Interamericana para eliminação de todas as formas de discriminação
contra as pessoas portadoras de deficiência, aprovada em assembléia ocorrida na
Guatemala, em 1999, o Brasil há muito já se preocupa com as pessoas com
deficiência e, principalmente, com a questão da acessibilidade, mormente, a
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implementação de medidas assecuratórias de tais direitos ainda não são realidade
plena.
E, ainda, somente a partir da internalização da Convenção sobre
Pessoas com Deficiência é que o quadro brasileiro ganha proporções impensáveis
até então.
Cumpre esclarecer que na aprovação da Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência, todas as normas por ela apresentadas
passaram a integrar a própria Constituição Federal, devendo, portanto, recair sobre
elas o critério de eficácia e aplicabilidade nas normas constitucionais.
Assim, os princípios gerais, só para citar alguns poucos vetores,
acarretam efeitos vinculantes a toda a legislação infraconstitucional.
Ao estabelecer o respeito pela dignidade da pessoa com
deficiência, a autonomia individual, a liberdade, a independência, a não
discriminação, a plena e a efetiva participação e inclusão de tais cidadãos ou
cidadãs na sociedade e o respeito pela diferença e aceitação de tais pessoas, como
parte da diversidade humana e da humanidade, é imperioso concluir quea
Convenção estabeleceu vetores para a concreção da legislação ordinária
direcionando, assim, toda a política pública no tocante aos direitos das pessoas com
deficiência.
Desta feita, perceptível que a lei que estabelece o alvará
condicionado na cidade de São Paulo, é absolutamente incompatível com o texto da
Convenção e, consequentemente, incompatível com os padrões constitucionais
adotados pelo Brasil frente à comunidade internacional.
Isso
porque
ao
desburocratizar
a
abertura
de
um
estabelecimento, o Poder Público, omisso, deixou de cumprir com normas de
comando
internacional,
internalizadas em
nosso
ordenamento
com
status
constitucional.
O famigerado alvará condicionado, ao autorizar todos os
comerciantes paulistas irregulares de funcionarem, sem quaisquer preocupações
com as regras de acessibilidade, acaba por privar não somente grupo protegido pela
Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, mas amplia o
seu desrespeito a toda pessoa com mobilidade reduzida e alcança, também, os
idosos. Todos, portanto, parte de grupos vulneráveis com proteção já garantida pela
legislação brasileira.
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Em tempo, trata-se, pois, de afronta ao processo de afirmação
da acessibilidade como forma de garantia da integração social de pessoas com
deficiência, idosos ou portadores de mobilidade reduzida em geral, com direitos já,
em tese, consagrados pelas Leis 10.048 e 10.098 de 2000 e o decreto 5296/2004
estabelecem normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade no
Brasil.
As mencionadas normas, inclusive, estabeleceram prazos11 para
o cumprimento de suas disposições. E, infelizmente, ao arrepio dessas
determinações, o que se constata é a implementação de uma lei municipal
completamente contrária aos objetivos já estabelecidos há muito pelo Brasil.
E o desrespeito promovido pela Lei nº 15.499 também atinge
pilares da República Federativa do Brasil.
Os direitos fundamentais de igualdade e de liberdade, corolários
da ideologia constitucional brasileira, ao serem atingidos por tão tosca proposta
transversa
de
desrespeito
à
dignidade
da
pessoa
humana,
refletem
o
desproporcional intento “eleitoreiro” de alguns segmentos da sociedade brasileira.
Merece destaque as lições de Luiz Alberto David Araujo quanto
à igualdade e os direitos das pessoas com deficiência:
O direito à igualdade surge como regra de equilíbrio dos direitos das
pessoas com deficiência. Toda e qualquer interpretação
constitucional que se faça, deve passar, obrigatoriamente, pelo
princípio da igualdade. Só é possível entendermos o tema da
proteção excepcional das pessoas com deficiência se entendermos
corretamente o princípio da igualdade.[...] A igualdade, desta forma,
deve ser a regra mestra de aplicação de todo o entendimento do
direito à inclusão das pessoas com deficiência. A igualdade formal
deve ser quebrada diante de situações que, logicamente, autorizam
tal ruptura. Assim, é razoável entender-se que a pessoa com
deficiência tem, pela sua própria condição, direito à quebra da
igualdade, em situações das quais participe com pessoas sem
deficiência. Assim sendo, o princípio da igualdade incidirá, permitindo
a quebra da isonomia e protegendo a pessoa com deficiência, desde
que a situação logicamente o autorize. Seria, portanto, lógico afirmar
que a pessoa com deficiência tem direito a um tratamento especial
dos serviços de saúde ou direito à acessibilidade. Todas as situações
quebram a igualdade (inicialmente entendida), mas apresentam
autorização lógica para tanto (ARAUJO, 2011).
11
Os prazos são: 2 de junho de 2007 para atendimento das edificações públicas e 2 de dezembro de 2008 para
o atendimento de edificações coletivas
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Em
sua
dimensão
objetiva
12
,
ressalta-se,
os
direitos
fundamentais exigem que os “poderes” constituídos respeitem e sigam as
orientações ideológicas propostas constitucionalmente (CLÉVE, 2003, pág. 19).
Assim, deve, pois, o Poder Público exercer suas funções sempre
objetivando proporcionar a maior eficácia possível aos direitos fundamentais, e
nunca o contrário.
3 CONCLUSÕES
1. O processo legislativo possui regras procedimentais que
comento devem ser seguidas, sob pena de vício formal que poderá ocasionar a
inconstitucionalidade do ato normativo.
2. A iniciativa é elemento indispensável para assegurar o correto
desenvolvimento formal desse processo e, na eventualidade de sua não observação
segundo os parâmetros constitucionais, deflagra-se o chamado vício formal de
iniciativa (vício formal subjetivo).
3. Em âmbito municipal, quanto ao processo legislativo,
guardadas as diferenças peculiares, é possível compreender as espécies normativas
enunciadas no artigo 59 da Constituição Federal como aplicáveis também na
atuação desse ente federativo e, por isso mesmo, imperioso guardar respeito ao
disposto na Constituição Federal, por força do chamado princípio da simetria com o
centro, que busca a harmonização das regras insertas na Constituição com as
legislações infraconstitucionais, cabendo ao Município observar o que dispõe o
artigo 61 da Constituição, acrescentando a isso a conformação com os aspectos
locais estabelecidos pela Lei Orgânica.
4. Embora a atribuição típica da Câmara dos Vereadores seja a
normativa, no que concerne ao procedimento legislativo municipal que tem o
interesse local como
um de seus vértices
existem matérias reservadas
exclusivamente à atuação do Poder Executivo.
5. É reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo
os assuntos pertinentes à organização administrativa e judiciária, matéria tributária e
orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios.
12
Há também a dimensão subjetiva que confere a existência de direitos inerentes à pessoa.
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6. O Alvará Condicionado, aprovado na cidade de São Paulo
pela Lei Municipal nº 15.499 de 7 de dezembro de 2011, consiste em uma espécie
de licença provisória de funcionamento que permite que o comércio, indústria e
serviço instalados irregularmente possam continuar em funcionamento até obterem
a regularização definitiva.
7. O Projeto de Lei que deu origem à Lei 15.499/11 teve autoria
originária na Câmara dos Vereadores e, no entanto, segundo os propósitos da
simetria constitucional, usurpa iniciativa de propositura de Lei reservada ao Chefe do
Poder Executivo Municipal.
8. A Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com
deficiência, por sua vez, foi o primeiro tratado internacional assinado pelo Brasil
após a inserção do § 3º do artigo 5º da Constituição Federal. Sua assinatura e
ratificação ocorreram em 2008, portanto, internalizado já com status de norma
constitucional.
9. A partir da aprovação da Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência, todas as normas por ela apresentadas passaram a
integrar a própria Constituição Federal, devendo, portanto, recair sobre elas o critério
de eficácia e aplicabilidade nas normas constitucionais.
10. A lei que estabelece o alvará condicionado é absolutamente
incompatível com o texto da Convenção e, consequentemente, incompatível com os
padrões constitucionais adotados pelo Brasil frente à comunidade internacional,
porque violadora de preceitos constitucionais, tais quais, o direito à igualdade, à
liberdade e ao princípio da dignidade da pessoa humana.
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___________ O Prefeito e o município. SP: Fundação Prefeito Faria Lima/CEPAM,
3º edição, 1984.
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5 O Processo Legislativo Municipal e a Iniciativa de Lei. Da