A Via Sacra de Cândido Portinari na Igreja de São Francisco da Pampulha
Marco Elizio de Paiva*
O significado, tanto formal quanto simbólico, da “Via Sacra” de Cândido Portinari, pintada
em 14 painéis para a Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha, entre 1944 a 1945,
e restaurada em 1991 pelo Centro de Conservação de Bens Culturais Móveis da UFMG,
não pode ser desvinculada do contexto geral do projeto decorativo da igreja e nem
tampouco das preocupações sociais de Portinari, na época em que produzia
paralelamente os grandes quadros da série “Retirantes”, documentos expressivos da
angústia do pós-guerra. A “Via Sacra” é em síntese, ou melhor, dizendo, em escala
menor, o documento mais notável de como Portinari participou do movimento muralista,
estilo desenvolvido no México desde 1921 e único movimento artístico do século XX que
fundiu o compromisso político e o caráter genuinamente popular. Ela é, também, um rico
documento da impressão poderosa do estilo de Picasso sobre Portinari, além de
demonstrativo do entendimento dos clássicos traduzidos em modernidade como nenhum
outro artista brasileiro soube fazer.
Foto Maria Lucia Dornas
Detalhe - Jesus cai pela segunda vez
As exposições desta “Via Sacra” fora de Belo Horizonte (dois painéis em 1951, na
1ª Bienal de São Paulo; todos os painéis na exposição do artista, em 1953, no
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; todos os painéis em 1963, na mostra
do artista em Milão na Itália) produziram uma farta documentação crítica que nos
auxilia hoje a entender a preocupação da época em defender a originalidade do
artista. Mário de Andrade, por exemplo, havia considerado que Portinari “jamais
imita e sequer se apoia num exclusivo exemplo alheio para criar.” Gilberto Amado
reconheceu, em 1953, que o artista aceitava tendências, escolas e influências e
admitia-as todas; no entanto, se preocupou em defender o pintor ao afirmar: “mas
supera-as todas, portinarizando-as, de sorte que cada Portinari é um Portinari
mesmo.” Como podemos ver, havia na época uma preocupação em salvaguardar
a criatividade daquele que era o orgulho nacional, o “pintor de exportação.” Hoje
porém, num contexto crítico mais aberto e investigador, nós não devemos ver
estas influências como enfraquecimentos do potencial criativo do gênio. Elas são,
muitas vezes, positivas e esclarecedoras do poder da obra em documentar o
tempo de sua criação e a personalidade de seu criador. Observando certos
aspectos criativos, as influências externas na obra de grandes artistas não anulam
e nem diminuem sua importância. A própria obra de Picasso deve muitíssimo ao
primitivismo africano, ao arcaismo mediterrâneo, a El Greco, a Cèzanne e,
principalmente, à espontaneidade poética de Henri Rousseau.
Foto Maria Lucia Dornas
Detalhe – Verônica enxuga a face de Jesus
Sabemos, pelo próprio filho de Portinari, que o artista “lutava em 1944 para
superar a influência de Picasso”, o que com certeza deveria ser ainda o efeito do
impacto da visão da magnífica Guernica, pintada em 1937, que ele havia
conhecido em 1939 em Nova Iorque. No entanto, não acredito que fosse
necessário “lutar para superar influências”. Essas defesas das originalidades de
Portinari por parte de Mário de Andrade, Gilberto Amado, ou mesmo pelo próprio
artista, são desnecessárias. Devemos reconhecer estas influências, detectá-las
no exato momento de suas assimilações para, finalmente, identificarmos em suas
transformações o potencial criativo nascido desta comunhão. Aí então estaremos
revelando a verdadeira essência do gênio de Portinari pelo entendimento do
processo de seu estilo.
Foto Maria Lucia Dornas
Detalhe – Jesus fala às mulheres de Jerusalém
O muralismo mexicano conseguiu unir arte e revolução com muito mais sucesso
que o construtivismo russo. Seu rompimento com a pintura elitista dos museus
ambicionava criar um novo objetivo para a arte, em direção ao espírito do povo,
criando uma linguagem compreensível pela cultura popular. É certo que Portinari
não ficou insensível a essas idéias nas décadas de 30 e 40; porém, adequou-as
ao seu interesse plástico e pictural. Mesmo se considerarmos que, no conjunto
decorativo da Pampulha, a temática religiosa foi tratada dentro de deformações
expressivas para facilitar a compreensão popular do drama representado,
devemos concordar que o artista “não foi um eco retardado do movimento
mexicano”, como observou Mário Pedrosa, pois “nunca sacrificou as exigências
plásticas ao elemento que nele foi externo ao assunto”. Estas “exigências
plásticas”, principalmente advindas da Guernica de Picasso, são a divisão
composicional e a fusão de planos interligados por linhas que, em Picasso, são
angulosas e estridentes e, em Portinari, são sinuosas e barrocas, agregadas ao
expressionismo do empaste. Em comum, a Guernica e os painéis da Pampulha
(inclusive os azulejos externos e internos e o mural principal) têm o jogo plástico
que reforça a mensagem do assunto. “Formas quase geométricas à força de
serem duras, que estremecem na dimensão do sentimento”, no dizer de Romero
Brest. É, sem dúvida, essa picturalidade expressionista que diferencia Portinari da
socialização da arte levada adiante pela didática formal dos muralistas mexicanos.
Sua estética, suas deformações expressivas, não se enraízam na cultura popular
e, portanto, não se desvinculam do espírito mais legítimo do expressionismo
europeu.
Foto Maria Lucia Dornas
Detalhe – Jesus é retirado da cruz
Picasso foi, sem dúvida, uma fonte mais marcante que a de Orozco, Siqueiros ou
Rivera. Portinari, na “Via Sacra”, superou suas raízes acadêmicas com o
entendimento do caráter plástico da pintura de Picasso. Ele desarticulou as
figuras, descobriu luzes no fosco da têmpera e, como afirma Germain Bazin,
pintou formas que “parecem construídas pela pá de pedreiro no reboco do muro.”
Este empaste violento ressalta o vigor do desenho e nunca pode ser entendido
desligado dele. Não há, em nenhum momento da obra do mestre brasileiro, outro
exemplo melhor de como desenho e pintura devem se fundir. Aliás, os nítidos
esboços a lápis, visíveis a olho nu, deixados assim pelo artista, comprovam a
intenção da obra em ser um misto de desenho e pintura, articulados na
consciência do modernismo. Podemos ver ainda uma ligação simbólica entre este
modo plástico expressionista e a intenção da angústia patética do tema. Um é
usado como reforço do outro. Portinari conseguiu adequar sabiamente, nesta
obra, a expressão plástica da forma ao conteúdo angustioso do drama
representado, sem cair na banalidade. Diante disto, a grande semelhança de
alguns personagens do drama portinaresco com aqueles da obra de Picasso fica
então em plano secundário. Muito mais importante é o conhecimento, por parte
dele, dos poderes expressivos do automatismo surrealista e, ao mesmo tempo, a
segurança em transpor para o moderno sua admiração pelos clássicos,
principalmente os primitivos renascentistas italianos.
Foto Maria Lucia Dornas
Detalhe – Jesus fala às mulheres de Jerusalém
Deriva do automatismo aquele caráter propositalmente apressado, à maneira de
“croquis”, que percorre todas as figuras humanas dos 14 painéis da “Via Sacra”.
Porém, por mais fluídica e espontânea que seja a definição dos detalhes, o
conjunto sempre nos remete, ora à solenidade estatuesca de Masaccio ou Piero
della Francesca, ora às composições equilibradas em rigor geométrico de Giotto e
Paolo Uccello. A força do drama ganha imensamente com esta definição. Não há
espaço para o sentimentalismo em razão da crueza patética do modelado e o
teatro da angústia no tema da paixão não se torna afetado em razão da
solenidade clássica das composições. O resultado foi tão notável que o próprio
artista não se superaria em obras futuras. Nem mesmo nos grandes murais da
igreja, parte inseparável da compreensão do todo, existe esta unidade expressiva
que articula uma tão variada gama de influências diferentes.
Foto Maria Lucia Dornas
Detalhe – Jesus cai pela segunda vez
O fundo dos murais, por exemplo, seja na sinuosidade das linhas escuras da
azulejaria externa (que até podem ser um eco do desenho sinuoso da própria
igreja) ou na geometria do mural interno, não sugerem tão fortemente a unidade
“ideológica” que existe, com certeza, na “Via Sacra”. Nela, as nuanças mais claras
do colorido geral que definem as estruturas geométricas do fundo, criam um
elemento distante dos tons picasseanos para ser uma alusão bem evidente às
esculturas arquitetônicas e paisagísticas que Niemeyer e Burle Marx deveriam
estar discutindo para o projeto Pampulha. Podemos afirmar que a “Via Sacra” da
Pampulha é a mais significativa obra de Portinari por ser a confluência de toda a
sensibilidade do artista; mas ela é também o melhor esforço brasileiro em dialogar
com o modernismo internacional.
1997
*
Marco Elizio de Paiva é historiador da arte formado pela Escola Guignard e Universidade Católica de Minas
Gerais. Pós-graduou-se em arte contemporânea pela University of Texas at Austin nos Estados Unidos e é
professor adjunto de História da Arte Moderna e Contemporânea da Escola de Belas Artes da Universidade
Federal de Minas Gerais desde 1978. Atualmente coordena o Curso de Especialização em História da Arte
da PUC-Minas.
Veja aqui todas as fotos da Via Sacra de Portinari na Igreja S. Francisco de Assis
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