CORPO E SUPORTE AO VAZIO CONTEMPORÂNEO1
LUÍS HENRIQUE DE OLIVEIRA DALÓ2
No mês de maio de 2009 foi realizado no SESC-Pinheiros, pelo Grupo Cena 11
de Dança, de Florianópolis, um experimento artístico intitulado “Sim Ações Integradas
de Consentimento para Ocupação e Resistência – Ação # 2 – Platéia Teste”. Tratava-se
de uma proposta na qual o público, sobre o palco, deveria interagir com a apresentação
e, ao fim, expor suas impressões para os artistas. Nada era sabido previamente quanto
ao que aconteceria. Não sabíamos o que seria apresentado, nem o Grupo sabia o que
viria do público, a quem foi dada total liberdade.
Os bailarinos entraram em cena de cabeça baixa, de modo que não se viam seus
rostos. Davam passos lentos e pesados, fazendo, de mãos dadas, uma espécie de arrastão
nas pessoas que, bem aos poucos, se espremiam contra a parede ou escapavam pelos
vãos encontrados entre os artistas. O clima desse início durou toda a apresentaçãoexperimento, repleta de movimentos inertes, automáticos, repetitivos e sem interação
com o público.
Mesclo aqui meu ponto de vista dessa experiência com as impressões dadas ao
fim da apresentação por quem ali estava: sentimentos de vazio e morte davam lugar à
raiva ou compaixão pelos artistas (ou “personagens”), que chegavam a cair inertes no
chão, às vezes de frente, como árvore que tomba sem resistência. Uns raros momentos
assim impactantes quebravam a monotonia reinante, como se um susto viesse em
resposta à pergunta que pairava insistente: onde está a vida? Desejos de fazer algo
estapafúrdio que rompesse tal morbidez foram despertados, embora ninguém os tenha
posto em ação. Tímidas tentativas de interação não foram correspondidas pelos artistas,
que seguiam em isolamento. Era como andar na cidade: metrópole cheia de gente só,
mergulhada no mesmo. Parecia estar diante de algo morto, mas ao mesmo tempo se
estava diante de uma provocação… Os rostos dos bailarinos, quando se deram a ver,
propunham uma ambiguidade: rostos vivos, mas sem expressão. Mortos-vivos? Vivosmortos? Desejo e receio de tocar, segurar, romper, violar, cuidar, abraçar, dançar.
Essas são algumas imagens construídas pelo público do experimento do qual
participei. Outro aconteceu na mesma noite, logo em seguida – com proposta idêntica,
1
O presente texto é um recorte de um dos capítulos da dissertação de mestrado “A escrita dos estadoslimite como um recurso de ampliação da escuta psicanalítica”, defendida em 2012 no IPUSP.
2
Psicólogo e mestre em psicologia pela USP, membro da Gesto Psicanálise.
tendo mudado somente o público – e me foi relatado por uma participante impactada:
diante da liberdade da proposta, um pequeno grupo que integrava esse segundo público
reagiu com violência desde o início do experimento, agredindo os bailarinos,
imobilizando-os. Algumas dessas pessoas se penduravam em seus braços com tal
violência que poderiam tê-los quebrado. Os corpos dos artistas em risco, mas a proposta
seguiu até o fim.
Havia assistido há alguns anos, em 2004, a uma apresentação desse mesmo
grupo (Cena 11), onde já me pareceram que os limites entre público e bailarinos eram
ali testados, embora se guardasse a distância palco-platéia3. Um bailarino interagia
brevemente com outro até ser deixado só. Então, despencava de frente, inerte. Diversos
corpos abandonados, como se perdessem a vida de repente, ou como se fossem lançados
ao vazio, despencavam em silêncio até o estampido bruto do encontro com o chão. Cada
cena, que culminava em um som impactante, remexia o vazio que jaz nos confins dos
espectadores, que reagiam a ela das formas mais diversas e particulares. Nessa
apresentação de 2004, era entre os bailarinos que se encenavam manipulações dos
corpos seguidos de seus descartes; o nome da peça e sua proposta faziam referência aos
experimentos skinnerianos, abrindo a cena a um campo onde já não está em pauta a
intersubjetividade, mas a relação entre um sujeito que manipula e um objeto a ser
explorado. Já na apresentação-experimento de 2009, éramos nós (o público) a nos
confrontarmos com os sentimentos que vêm à tona diante da transformação do outro em
objeto a manipular – a proposta incluía, inclusive, o consentimento para isso –, ao
mesmo tempo em que era nítido sermos nós – a “plateia teste” – os que estávamos
sendo experimentados. Embaralhavam-se de tal maneira os lugares de sujeito e de
objeto, que, em certa medida, já não encontrávamos mais nem um nem outro.
Podemos considerar que a cena artística de vanguarda antecipa o movimento de
simbolização que urge em seu tempo. A palavra francesa avant-guarde originalmente
nomeia o batalhão do exército que abre caminho; mas, como abrir caminho no vazio,
dar-lhe expressão? No contexto da arte contemporânea,
pode-se dizer que a arte tem materializado o vazio vivido no
cotidiano, apresentando-o ao espectador sem muitos retoques,
aprofundando o sentimento de perda de ilusões, e deixando em aberto,
3
A coreografia então apresentada chamava-se “SKR-Procedimento 1”; algumas cenas em forma de
trailer podem ser vistas pelo YouTube: http://www.youtube.com/watch?v=qIA0eJ86sF4.
no campo da recepção estética, o caminho para a elaboração subjetiva.
(FRAYZE-PEREIRA, 2008, p. 134)
Assim materializado e radicalmente exposto, o vazio ganha corpo. E um corpo
em cena, em exposição, ainda que esteja a expressar a inexpressão, pulsa, demanda
trabalho do olhar.
A violência vivida no experimento artístico acima descrito fez-me relembrar
uma situação ocorrida na 28ª Bienal de São Paulo, um ano antes, em 2008. Essa
exposição impunha uma experiência com o vazio, em função da proposta de se manter
um pavilhão inteiro, enorme, desocupado. Ficou conhecida, aliás, como “Bienal do
Vazio”, ainda que o título da mostra fosse “Em Vivo Contato”.
Um dia, de súbito, esse espaço vazio foi completamente pichado. Para muitos,
uma violência, um limite transpassado, espaço arrasado. Para outros, mais uma forma de
expressar-se de acordo com a proposta de se estar “em vivo contato”, tão autêntica
quanto as demais. Mas destaco aqui o fato de que a reação institucional da Bienal foi a
de tratar o acontecido como uma questão policial, perdendo talvez uma oportunidade de
se implicar com a radicalidade de sua própria proposta artística.
Nos dois contextos artísticos aqui tratados, o que vemos repetir-se de modos
diversos é a violência do apagamento: seja quando um grupo interrompe os movimentos
dos bailarinos, seja quando os pichadores impregnam de tinta as paredes vazias, seja a
força de contenção policial, ou até mesmo o trabalho das faxineiras a esfregar litros de
produtos de limpeza, ao fim do dia, para apagar os rastros daquela situação. Tais
repetições suscitam questões, e para nos aproximarmos psicanaliticamente delas, a meu
ver, podemos tomar o conceito de pulsão de morte entranhado no de sublimação.
Em “O Eu e o Id”, Freud (1923/2011) propõe a ideia de que um caminho talvez
geral da sublimação seja o de transformação da libido sexual objetal em libido narcísica,
quando o Eu se oferece como objeto de amor ao Id. Uma relação ideal Eu-Id, impelida
pelos imperativos do Super-eu, poderíamos estritamente comparar ao desfecho do mito
de Narciso, ao fundir-se no lago de sua própria imagem. Freud propõe que a
identificação com um ideal “tem o caráter de uma dessexualização, ou mesmo
sublimação” (p.69), o que leva a uma disjunção das pulsões que antes se encontravam
amalgamadas. “O componente erótico não tem mais força, após a sublimação, de
vincular toda a destrutividade a ele combinada, e esta é liberada como pendor à agressão
e à destruição.” (p. 68-69)
Seria possível pegarmos impulso nessas ideias para buscar encontrar esse
processo sublimatório mortífero nas expressões artísticas contemporâneas, que seriam
então expressões das pulsões de morte desintrincadas de Eros e dos processos de ligação
que efetua. No entanto, penso que no campo das artes, de um modo especial, a
“aplicação” da teoria psicanalítica como um discurso unilateral é estéreo. Ao contrário,
aliás, a complexidade desse campo convoca o pensamento clínico e faz a teoria
psicanalítica trabalhar.
Ainda que mobilizem experiências que associamos às pulsões de morte,
devemos ter em conta que as manifestações dos artistas contemporâneos demandam
elaboração prévia, investimento libidinal, processos de ligação que justamente darão
suporte para que se deem os processos de desligamento e manifestações do vazio junto
ao público. Pode-se dizer, nesse sentido, que se trata do processo de composição de um
corpo onde se dará um segundo processo, pelo qual o que entra “em cena é justamente
a relação primordial do homem com tudo aquilo que nega a sua existência” (FRAYZEPEREIRA, 2011, p. 159), curtos-circuitos nos quais reconhecemos os efeitos das
pulsões de morte. É por meio desse suporte que se escancara a crise do sujeito e da
cultura contemporâneos. De modo análogo, em um processo de análise, o campo
transferencial é o suporte que revela um sujeito em crise.
Em um mundo onde o Outro é aluído, o esforço estético – descendo às
fundações do edifício simbólico – consiste em retraçar as fronteiras
frágeis do ser falante, ao mais próximo de seu alvorecer, dessa
“origem” sem fundo que é o recalque dito originário (KRISTEVA,
1980, p. 25, tradução nossa).
Em direção às “fundações do edifício simbólico”, parece ser este o caminho
aberto pelos artistas que avançam a guarda: o lugar simbólico “arte” se constitui como
um corpo onde o que não tem nome pode surgir e, quiçá, ser nomeado, nascer como
símbolo. O processo de constituição da obra acontece no artista, em seu domínio
particular; mas nesse segundo processo, quando emerge o que não tem nome, todos os
participantes do ato artístico estão implicados. Quer dizer, no momento de expressão do
vazio, no tempo da realização artística profundamente vinculada à sua recepção estética,
obra, artista e público encontram-se no mesmo barco.
O que surge aí é frequentemente abjeto – nem sujeito, nem objeto –, beira o
indigerível ao mesmo tempo em que atrai. Segundo Julia Kristeva (1980), o abjeto é
algo rejeitado do qual não nos separamos. Paradoxalmente, tão alheio e íntimo ao
sujeito, exerce sobre ele forças de atração e repulsão, problematizando radicalmente a
identidade, esfumaçando as fronteiras do Eu, colocando-o em xeque:
Um peso de sem-sentido que não tem nada de insignificante e que me
espreme. À borda da inexistência e da alucinação, de uma realidade
que, se a reconheço, me aniquila. O abjeto e a abjeção são, aí, meus
anteparos. Origens de minha cultura. (KRISTEVA, 1980, p. 10,
tradução nossa)
Análogos, nesse sentido de anteparos, ao sinal de angústia (Freud, 1926/1981),
são o abjeto e a abjeção sinais do encontro do sujeito com seus próprios limites, com o
limiar do humano. Quer dizer, trata-se de um conceito daquilo que se localiza à beira do
irrepresentável,
mas
cuja
representabilidade
é
latente,
pois
o
sujeito
é,
concomitantemente, atraído e repelido pelo abjeto; daí o curto-circuito; e daí a urgência
de ligar psiquicamente esse campo esfumaçado.
O público de arte contemporânea, ao viver experiências urgentes de
simbolização, é impelido a essa beira. E o corpo-suporte dessa experiência, tal como
acontece em um processo analítico, tanto pode servir de base para o nascimento de
traços simbólicos quanto pode, ao revés, ser alvo de ataques (as duas situações aqui
abordadas são exemplos disso). Contudo, talvez se possa destacar uma diferença entre
essas “situação-limite” no campo das artes e no campo psicanalítico. Em ambos, o
corpo que se oferece serve de sustentação para que surja uma experiência estética
estranho-íntima, que pode vir a ser ou não elaborada; mas, no segundo, o trabalho de
pensar e ligar psiquicamente essa experiência disruptiva que se instaura é, claramente, o
objetivo. Nesse sentido – agora entrelaçando os campos –, o pensamento clínico
psicanalítico pode contribuir quanto à perlaboração daquilo que a arte contemporânea
provoca, na medida em que a arte deve ser reconhecida como um âmbito
privilegiadamente capaz dessa provocação (embora não necessariamente obrigado a
lidar com o que resulta da provocação).
Quer dizer, se “o vazio vivido no cotidiano” (FRAYZE-PEREIRA, 2008, p.
134) encontra no âmbito artístico um meio privilegiado de ganhar corpo, figurar-se,
“deixando em aberto, no campo da recepção estética, o caminho para a elaboração
subjetiva” (p. 134), também devemos admitir que tal elaboração pode vir a não
acontecer no momento da experiência artística; o caminho, então, pode se manter aberto
e essa experiência ser elaborada a posteriori, mas também essa trilha pode se fechar no
tempo da própria experiência estética. A angústia que o vazio provoca pode apenas
revelar o fracasso do símbolo diante da repetição.
De todo modo, não haveria elaboração possível até que um terreno esvaziado
ganhasse corpo, seja durante um processo psicanalítico – no tempo estranho-íntimo da
relação transferencial –, seja em uma obra de arte. No contexto da ação organizada
pelos pichadores, ainda que o lugar deles fosse ambíguo – artistas, público ou
performance? Invasores ou participantes lícitos?4 –, podemos questionar se a
“destruição da destruição” não leva novamente a um curto-circuito que retira de campo
a disposição para indagar, onde se arrisca esquecer o ato e, mais-além, seu próprio
esquecimento. Penso que debruçar-se sobre essa destruição seja um modo de a escuta
psicanalítica exercer seu papel antagonista em relação ao esquecimento, às pulsões de
desligamento.
O psicanalista se encontra, evidentemente, inserido e implicado nesse contexto
cultural permeado pelo vazio e pela angústia, então é possível considerá-lo em uma
posição análoga à do artista no que concerne à função política de “pensar o
impensável”, pôr em suspensão o tempo cotidiano do esquecimento e abrir frentes de
perlaboração em relação àquilo que pulsa nas entrelinhas de nosso tempo, sob formas de
desligamento e esvaziamento das fontes da vida na contemporaneidade. Superado quiçá
o tempo em que o analista explicava a arte por meio de suas teorias 5 – frequentemente
amputando a potência de ambas –, talvez possamos delinear agora uma frutífera e
contemporânea interlocução entre arte e psicanálise:
Se o artista dá corpo ao vazio, uma repetição pode suceder no tempo do contato
difuso com a obra, tal como vimos, por meio do esvaziamento do corpo-suporte, que
fica então desconectado de sua potência pensante. Como o que se passa nas situaçõeslimite na clínica, o tempo da experiência já não dá conta de ligá-la psiquicamente, sendo
necessário outro momento para isso. O analista, então, implicado nesse estado-limite
suscitado pela experiência artística, pode avançar a guarda aí imposta e abrir um campo
capaz de deixar surgir para então escutar a indigência de nosso tempo e seus
mecanismos de apagamento dessa escuta.
O trabalho do analista pode ser, nesse sentido, um modo de recobrar o caminho
de elaboração aberto e interrompido no tempo da recepção estética.
4
A edição seguinte da Bienal de São Paulo buscou integrar o mesmo grupo à exposição oficial.
A psicanálise aplicada à arte, a que Green (1994) considera “uma das doenças infantis da psicanálise”
(p. 14).
5
BIBLIOGRAFIA
FRAYZE-PEREIRA, J. Sobre a Perda da Simbolização: Arte e Inveja na Era do Vazio.
In: LOPES, A.; PESSOA, F. (Orgs.). Arte em Tempo Indigente. Vila Velha/ES: Museu
Vale, 2008. p. 124-145.
______. Arte e Inveja: relações entre amor e ódio, clínica e política na era do vazio. Ide,
São Paulo, v. 34, n. 52, p. 157-171, ago. 2011.
FREUD, S. (1926). Inhibición, Síntoma y Angustia. Tradução de Luis Lopez-Ballesteros
y de Torres. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras Completas, tomo 3).
GREEN, A. Revelações do inacabado. Tradução de Cleone Augusto Rodrigues. Rio de
Janeiro: Imago, 1994. 126 p.
KRISTEVA, J. Pouvoirs de l’horreur: essai sur abjection. Paris: Éditions Du Seuil,
1980. 247 p.
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No mês de maio de 2009 foi realizado no SESC-Pinheiros