Déjà vu − Cara, crise sem desdobramentos não é crise! Antônio Carlos Viard Exultam as pessoas de coração sensível, como se tivessem visto Branca de Neve casar-se com o príncipe, num filme de final feliz... Certo de que Branca de Neve será “feliz para sempre”, ao lado de seu consorte e dos muitos filhinhos que irão alegrar a vida do casal, Fernando Rodrigues, tronituante, anuncia em seu “blog” de 19/09/2008,: «Mercados se acalmam e românticos de Cuba ficam tristes Fernando Rodrigues, com seu ar seguro e afirmativo. O mundo não acabou. A crise nos mercados financeiros amainou. Os governos ricos inundaram o sistema com dinheiro. As bolsas terminaram a semana em alta». Os US$ 700 bilhões que o governo estadunidense pretende destinar à socialização das perdas do sistema financeiro daquele país são o “dote” da Branca de Neve. Doravante – conforme Tom, Vinícius e Fernando Rodrigues – tudo será só felicidade e até o amor irá doer em paz. Até agora, as melhores expectativas de Fernando Rodrigues ainda não se realizaram: as bolsas seguem erráticas, na expectativa de eventuais alterações que o Congresso dos EUA venha a aprovar no pacote. Não se trata apenas de um sonho mau, a ser esconjurado graças à vontade dos “tios‟” Bush Jr., Paulson e Bernanke. Conforme apontou Luiz Gonzaga Belluzzo, na Folha de S. Paulo de 21/09/2008: «Nicholas Brady, Eugene A. Ludwig e Paul Volker, figuras de proa do establishment financeiro americano, soltaram a voz em uníssono para recomendar medidas drásticas e urgentes para brecar o avanço da mais devastadora crise financeira desde a Grande Depressão dos anos 1930. „Na ausência de uma ação corajosa, as coisas podem piorar... As medidas de emergência já tomadas pelo Fed e pelo Tesouro, ainda que necessárias, são insuficientes para domar a crise‟». 2 Fica difícil acreditar quem possa ter mais razão: Brady, Ludwig e Volker, de um lado; Fernando Rodrigues de outro... Talvez seja prudente ficar com a trinca de financistas experientes, tanto mais porque – no caso de Rodrigues – o importante não eram os fatos, mas a oportunidade de dar uma paulada no quengo dessa turma de esquerda que, segundo ele, adoraria o soçobrar do “Novo Império”. O dote de Branca de Neve É de assustar, nessa crise, que ninguém saiba o exato tamanho do “dote”, em face das “alavancagens” que entre si fizeram as instituições financeiras internacionais, multiplicando o endividamento solidário. Somente o Lehman Brothers registrou, em 19/08/2008, dívidas de US$ 613 bilhões. Esse montante, somado ao apoio de US 85 bilhões já concedido à seguradora AIG, reduziria a nada os tais US$ 700 bilhões, cantados em prosa e verso pelos fâmulos de Bush Jr. Mais assustador, porém, é constatar a incapacidade – em particular dos formadores de opinião – de enxergar essa crise como sistêmica; como conseqüência inevitável de mais um ciclo de dominação das Finanças sobre a Produção, extinto na década de 1930 e reinaugurado graças ao conúbio entre Thatcher e Reagan, nos anos 1980. - Quem se lembra de Michael Milken, o “gênio” financeiro que inventou os “junk bonds” [lixo financeiro] ainda na década de 1980, foi condenado, preso e hoje preside uma fundação beneficente? - Por onde anda Nick Leeson, que levou à falência, em 1995, o secular Banco Barings, graças a um rombo de US$ 1,5 bilhão? - Ainda estarão presos os dirigentes da ENRO, das fraudulentas empresas ponto.com e das fajutas empresas de biotecnologia? - O que é feito Jérome Kerviel, que infligiu um prejuízo de € 4,9 bilhões à Société Generale? - Quem levou Greespan a sério, quando o irônico ex-presidente do FED fez da “exuberância irracional dos mercados” seu bordão? Em que pese a tranqüilizadora intervenção do governo estadunidense e ainda mais tranqüilizadora opinião de Fernando Rodrigues, ao menos quatro dúvidas impedirão que o mundo durma em paz: 3 1. os tais US$ 700 bilhões serão suficientes? O “buraco” parece ser muito maior1; 2. nessa hipótese, o teto da dívida pública dos EUA deverá superar US$ 12 trilhões de dólares, acima – portanto – do limite constante no pacote que Bush Jr. está a negociar com seu Congresso. Por maior que seja a economia dos EUA, US$ 12 trilhões perfazem um respeitável montante de dívida para as futuras gerações; 3. quem irá financiar o aumento continuado do endividamento, a taxas negativas de juros reais, ao se considerar a necessidade – a cada mês renovada – de cobrir os déficits público e de comércio exterior dos EUA? 4. tal financiamento será voluntário, ou compulsório, mediante as diversas formas de intimidação que possui a potência militar dominante, conforme já está a manifestar-se, por meio de pressões para que os demais países desenvolvidos criem mecanismos semelhantes? Esse último ponto desperta cuidados, caso alguém ainda se lembre da “conta” que os EUA apresentaram a seus aliados em 1991, por ocasião da I Guerra do Golfo: para expulsar os iraquianos do Cuaite2, conforme relata Giovanni Arrighi3, os estadunidenses arrecadaram – em 1991 – pouco mais de U$ 54 bilhões de seus aliados, contribuindo eles próprios com apenas US$ 7 bilhões adicionais; quase a metade da doação aportada exclusivamente pelo Japão: US$ 13 bilhões. Quando da invasão do Iraque, os mesmos doadores prometeram aportar, em conjunto, cerca de US$ 5 bilhões, apenas ¼ da despesa dos EUA para iniciar a nova guerra. Segundo Arrighi, essa retração decorreu da percepção dos doadores a respeito do papel dos EUA, que teria transitado do fornecimento legítimo de proteção à “venda dessa proteção”, contra perigos que a própria nação dominante estava a criar. O sentimento, hoje generalizado, é o “temor geral do dano irreparável que as políticas norte-americanas poderiam causar ao resto do 1 Conforme noticiado por EFE/UOL, em 24/09/2008, o FMI estima as perdas em torno de US$ 1,3 trilhão, depois e uma estimativa preliminar de US$ 945 bilhões. 2 Esta é a grafia recomendada pela Academia Brasileira de Letras. 3 Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. S. Paulo: Boitempo, p. 268. 4 mundo4”. Para quem tiver vocação filosófica, talvez seja interessante pensar sobre a diferença entre “dominação” e “hegemonia”. Como o “sistema financeiro paralelo”, a que se refere Krugman, foi criado nos próprios EUA e de lá contaminou o resto do mundo, sobretudo a Europa, entende-se porque o Banco Central Europeu e dos demais países desenvolvidos resistam em assumir o papel de mera “correia de transmissão” do FED. Em 22/09/2008, lia-se no noticiário: Apesar de apoio, G-7 rejeita copiar plano dos EUA Da Redação Em São Paulo UOL - 22/09/2008 - 10h45 Os países-membros do G-7 (que reúne os países mais desenvolvidos) elogiaram as "extraordinárias" ações tomadas pelos EUA para liquidar os ativos ruins dos bancos. No entanto, disseram que não vão fazer um pacote similar, como os EUA estão pedindo. A justificativa, da qual foi porta-voz o ministro de finanças da Alemanha, é clara: «a situação nos outros países do G-7 é diferente da que existe nos Estados Unidos». Em linguagem não-diplomática, quem pariu Mateus que o embale... O receio, nas chancelarias dos demais integrantes do G-7, é que os EUA venham a adotar represálias unilaterais, em decorrência da falta de apoio. Isso porque, a despeito dos embasbacados de plantão, vão ser necessárias novas medidas, conforme dito pelo número 2 do FMI, John Lipsky, em 24/09/2008, de acordo com notícia EFE/UOL. Segundo Nouriel Roubini5, cujo nome dispensa apresentações, ainda estão por acertar suas contas – depois das sociedades imobiliárias, dos bancos de investimento e dos fundos mútuos de investimento – os ainda mais alavancados “hedge funds” (milhares deles, com muitos títulos reduzidos a pó) e, finalmente, o próprio setor real da economia, no qual empresas como a General Motors e a Chrysler estão muito mal das 4 5 Op. cit, p. 267. Vide blog no Nassif, de 22/09/2008 5 pernas. Empresas, aliás, cujo foco há muito deixou de ser a Produção para privilegiar a Finança. Perspectivas Ao contrário do que pensa Fernando Rodrigues, nem todos os que se encontram à esquerda de sua posição política são partidários do “quanto pior melhor”. E tampouco os que estão próximos de seu campo ideológico crêem que baste a vontade do executivo estadunidense para que tudo se resolva. Bush Jr. propôs, tão-somente, minorar as perdas dos “investidores”, mandando “ao raio que os parta” os mutuários que perderam suas casas. Henry Paulson, secretário do tesouro dos EUA, egresso do banco de investimento Goldman Sachs, bem que tentou beneficiar sua grei. Porém, diante de uma eleição presidencial tão próxima, os políticos estadunidenses não podem descurar-se daqueles que irão votar. Daí, a busca de um acordo envolvendo a Presidência com o Congresso dos EUA, capaz de justificar, junto aos eleitores, o socorro à irresponsável elite financeira dos EUA. Acordo que deverá incorporar a exigência da maioria democrata nas duas casas do Congresso estadunidense e que, bem explorado, poderá ser decisivo para a eleição de Obama. A despeito de quem for eleito nos EUA, o mundo permanece temeroso de reações imprevisíveis por parte da potência dominante. Tanto pode invadir a Venezuela, como bombardear a Coréia do Norte e, en passant, reduzir a pó os trilhões de dólares que o resto do mundo acumulou em títulos públicos dos EUA. Todo o cuidado é pouco. Aliás, não foi por acaso que os europeus delegaram aos alemães – que justa ou injustamente são considerados truculentos – o encargo de comunicar ao governo Bush Jr. que a Comunidade Européia não embarcaria no pacote recém-lançado. Se os ianques ficarem muito agressivos, Sarkozy antecipará a reunião do G-7 que, previamente, agendou para o fim deste ano. *** 6 Esse artigo é intrusivo. Não tinha sido planejado na série que o autor está a escrever, faz alguns meses, quando a crise ainda era uma perspectiva. O paroxismo que teve lugar na semana entre 15 e 19/09/2008 justificou – mil perdões – tal intrusão. Quanto a Fernando Rodrigues, entra aqui por falta do Bei de Tunis, o governante daquela cidade africana que Eça de Queirós desancava, de quando em vez, por falta de assunto e para divertir seus leitores.