Desigualdades e a Abolição Inconclusa INEQUALITIES AND THE UNFINISHED ABOLITION* Resumo Propõe-se aqui uma leitura de O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco, no entendimento de que ele é um dos primeiros intérpretes/atores políticos do Brasil a conceder à escravidão um estatuto central, em sua análise, não apenas da formação histórica do País, mas também dos destinos sociais e políticos da Nação. O foco está na indicação não só do papel central da escravidão na formação da sociedade brasileira, como também dos efeitos de sua existência sobre todas as dimensões da vida social. Há um componente racial na pobreza que se radica nessa construção histórica do negro e do dependente de qualquer cor como “imprestáveis” para as exigências da ordem moderna. Há um componente ético no encaminhamento do problema da exclusão social no País que demanda assumir o caráter historicamente produzido da pobreza e sua incorporação numa cultura de naturalização das desigualdades, de nãoreconhecimento do subalterno como igual, tanto jurídica quanto socialmente Palavras-chave ABOLICIONISMO – ESCRAVIDÃO E DESIGUALDADES – ABOLIÇÃO INCONCLUSA. JOANILDO A. BURITY Fundação Joaquim Nabuco/ Recife [email protected] Abstract This article provides a reading of Joaquim Nabuco’s Abolitionism, from the standpoint that he was one of the first interpreters and political actors in Brazil that granted central attention to the theme of slavery, not only in his analysis of the historical formation of the country, but also of the social and political future of the nation. The focus highlights not only the central role of slavery in the formation of Brazilian society, but also the effects of its existence on all dimensions of social life. There is a racial component in poverty that has its origins in this historical construction of the black man and of the dependent of any color as “unsuitable” for the demands of modern order. There is an ethical component in the way of the problem of social exclusion in the country should be tackled that calls for the recognition of the historically produced character of poverty and its incorporation in a culture of naturalization of inequalities, of a non-recognition of the subaltern as legally and socially equal. Keywords ABOLITIONISM – SLAVERY AND INEQUALITIES – UNFINISHED ABOLITION. * Este texto é uma versão revisada da apresentação feita na mesa redonda “A Abolição Inconclusa”, organizada pelo Instituto de Pesquisas Sociais da Fundação Joaquim Nabuco (Pernambuco, jun./04), como parte das comemorações de 155 anos do nascimento de seu patrono. O autor agradece ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnologia pela bolsa de pesquisa que permitiu a produção deste trabalho. Impulso, Piracicaba, 17(43): 21-31, 2006 Imp43_miolo_k.pdf 21 Black 21 7/22/2006 6:26:41 PM A grande questão para a democracia brasileira não é a monarquia, é a escravidão. JOAQUIM NABUCO, 1878 E ste trabalho pretende incluir-se no espírito do panfleto político, escrito de propaganda, chamado O Abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco, emulando-lhe a estratégia discursiva básica: aliar a indignação e a determinação políticas – território da ética e da tomada de posição como gesto político – com a utilização de conhecimentos disponíveis, sistematizados e colocados a serviço de uma causa. É preciso que assim se faça, notadamente numa circunstância como a que deu origem a este artigo, por um motivo fundamental: a Abolição continua inconclusa. E o que quer que se diga sobre ela, remontando à sua conjuntura original ou às décadas imediatamente seguintes, terá de ser dito sobre o hoje, sobre as repercussões da Abolição que ainda nos alcançam. Talvez devêssemos dizer desde logo: a Abolição foi abortada, encerrando-se no momento mesmo de sua consumação jurídica, e fazendo do abolicionismo como projeto um misto de realização e farsa, votado ao esquecimento, seja de suas bandeiras mais exigentes de inclusão social, seja dos efeitos duradouros da escravidão que precisariam ser enfrentados. Além disso, O Abolicionismo, ao mesmo tempo em que reconhece as conquistas da luta contra a escravidão, por meio do relato de suas etapas, não se congratula com os avanços parciais como pontos de chegada, nem se ilude com a distância a ser cumprida. O LEGADO DO ABOLICIONISMO NABUQUEANO: A CENTRALIDADE DA ESCRAVIDÃO Nabuco é um dos primeiros intérpretes – e atores políticos – do Brasil a conceder ao tema da escravidão um estatuto central, em sua análise não apenas da formação histórica do País, mas também dos destinos sociais e políticos da Nação.1 Nisso, ele está em poucas companhias em seu próprio tempo, e mesmo na geração seguinte, pós-abolição, quando somente teremos semelhante visibilidade na obra de Gilberto Freyre. Num trabalho que servirá de referência central ao argumento aqui apresentado, Jessé Souza comenta que a importância da instituição da escravidão entre nós é curiosamente descurada por grande parte das principais interpretações do Brasil, focalizadas na investigação das condições e nos entraves ao transplante da modernização capitalista e democrático-liberal européia. Segundo ele, este aspecto não deixa de ser sintomático, afinal trata-se da única instituição que logrou, em uma nação tão jovem, quase 400 anos de longevidade e uma penetração, ainda que sob formas peculiares em cada região, que abrangeu 1 Cf. MELO, 2000; e CARVALHO, 2000. 22 Imp43_miolo_k.pdf 22 Black Impulso, Piracicaba, 17(43): 21-31, 2006 7/22/2006 6:26:42 PM toda a extensão de uma enorme massa territorial. Foram os interesses organicamente articulados à escravidão que permitiram a manutenção da unidade do vasto território brasileiro e foi também a escravidão (...) que determinou, inclusive, o modo de vida peculiar do homem livre no Brasil.2 regime a que estão sujeitos; e por último, o espírito, o princípio vital que anima a instituição toda, sobretudo no momento em que ela entra a recear pela posse imemorial em que se acha investida, espírito que há sido em toda a história dos países de escravos a causa do seu atraso e da sua ruína.6 Nas primeiras páginas de O Abolicionismo, Nabuco ressalta que a abolição seria apenas a tarefa imediata do movimento, cuja responsabilidade muito mais exigente consistiria em reverter os efeitos de mais de três séculos de escravidão na sociedade brasileira.3 Uma indicação das dificuldades de longo prazo já estava dada na própria atitude da elite política do País, de não enfrentar a escravidão e, mesmo reconhecendo sua imoralidade e ineficiência econômica, não promover sua extinção imediata, propagandeando medidas legais incrementais, de longo prazo, como sinal do fim da escravidão, que, no entanto, persistia praticamente intocada.4 Na ausência dessa vontade política de enfrentar o drama da escravidão, ficava o horizonte de longo prazo para o sucesso do movimento e os riscos de ser por isso abortado: “enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos”.5 O texto ressalta a abrangência e a profundidade que a instituição da escravidão deixou no ethos da sociedade, em todas as dimensões: A indicação aqui, corroborada por Souza em seu trabalho, é de que na escravidão e no seu legado deveria ser buscada a singularidade da maneira como a sociedade brasileira formou-se e tornou-se moderna. O recurso à explicação por meio da continuidade orgânica entre Brasil e Portugal, ou do hibridismo cultural do encontro de raças, bem forjou o mito da nacionalidade, mas tais representações são historicamente falsas. A grande vantagem de Nabuco foi, escrevendo o manifesto num país que liderara as lutas abolicionistas desde o século XVIII, recolher ao mesmo tempo a inspiração ética que marcava o movimento britânico (cujo berço esteve nos movimentos de reavivamento evangélico da segunda metade do século XVIII em diante7), assinalar a diferença estrutural da posição dos negros na formação histórica da sociedade brasileira e não se deixar influenciar pelas teorias científicas racistas já espalhadas, à época, pela Europa continental.8 A relativa “desatualização” de Nabuco quanto às teorias em moda permitiu-lhe apreciar devidamente a indissociabilidade dos destinos dos negros e da liberdade para todos no Brasil. Disso é evidência seu hegelianismo explícito, ao considerar as identidades de senhores e escravos como mutuamente dependentes: Assim como a palavra abolicionismo, a palavra escravidão é tomada neste livro em sentido lato. Esta não significa somente a relação do escravo para com o senhor; significa muito mais: a soma do poderio, influência, capital e clientela dos senhores todos; o feudalismo, estabelecido no interior; a dependência em que o comércio, a religião, a pobreza, a indústria, o Parlamento, a Coroa, o Estado, enfim, se acham perante o poder agregado da minoria aristocrática, em cujas senzalas milhares de entes humanos vivem embrutecidos e moralmente mutilados pelo próprio 2 3 4 5 SOUZA, 2003, p. 103. Cf. NABUCO, 2000, p. 4. Ibid., p. 15-18 e 51-56. NABUCO, 2000, p. 4; cf. também p. 84-88. No Brasil, a questão não é, como nas colônias européias, um movimento de generosidade em favor de uma classe de homens vítimas de uma opressão injusta a grande distância das nossas praias. A raça negra não é, tampouco, para nós, uma raça inferior, alheia à comunhão, ou isolada desta, e cujo bem-estar nos afete como o de qualquer tribo indígena maltratada pelos invasores europeus. Para nós, a raça negra é um elemento de considerável importância nacional, estreitamente ligada por infinitas 6 7 8 Ibid., p. 5. Cf. NOLL, 1994; e HEMPTON, 1994. Cf. MELO, 2000; e CARVALHO, 2000. 23 Impulso, Piracicaba, 17(43): 21-31, 2006 Imp43_miolo_k.pdf 23 Black 7/22/2006 6:26:42 PM relações orgânicas à nossa constituição, parte integrante do povo brasileiro. Por outro lado, a emancipação não significa tão somente a termo da injustiça de que o escravo é mártir, mas também a eliminação simultânea dos dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor.9 Diante das gritantes desigualdade, violência e, já à época, irracionalidade econômica da escravidão, muitos, como hoje em dia, ocultavam seu descompromisso com admissões da nobreza da causa, que estaria moralmente ganha, de reconhecimento patente por todos, não havendo necessidade de um movimento organizado para pleitear o fim da escravidão. A despeito da aparente adesão à causa, de fato nenhuma conseqüência prática decorria desses álibis ou convergências retóricas com as demandas abolicionistas. Nabuco aponta a irrelevância desses assentimentos, pela sua inconseqüência, e sua coonestação do status quo. Mas o modo como ele caracteriza o movimento, sua estratégia e seu programa, não é livre de ambigüidades. Ao delinear o mandato que legitimaria o “partido abolicionista” como conferido inconscientemente pelos “escravos” e pelos “ingênuos”, o caráter passivo da participação dos negros torna-se patente. Negando o paternalismo, ao declarar que o compromisso com os escravos não provinha de “motivos de humanidade, compaixão e defesa generosa do fraco e do oprimido”, “não é principalmente o sentimento religioso”, “também não é o espírito de caridade ou filantropia”, define o abolicionismo como um movimento político, mas não prevê neste a militância negra.10 Embora se saiba que negros e mulatos livres tiveram participação ativa, os escravos e seus descendentes já livres eram mais destinatários do que co-participantes na obra abolicionista. O programa político é decididamente transformador – “reconstruir o Brasil sobre o trabalho livre e a união das raças na liberdade”. Isso significava propor a integração dos negros à sociedade livre, como “elemento permanente de 9 10 NABUCO, 2000, p. 10. Ibid., p. 9. 24 Imp43_miolo_k.pdf 24 Black população”, “parte homogênea da sociedade”. Mas nada se diz sobre que papel os próprios negros teriam em sua própria libertação, antes, durante e depois da Abolição.11 Além do mais, como movimento político, e em chave tipicamente liberal, o lugar das ações não parece estar “na rua”, mas no Estado. Nabuco deposita suas esperanças precisamente nas instituições políticas, no governo, que apesar de serem a “única força capaz de destruir” a escravidão,12 permaneciam relutantes e resistentes à “opinião pública”. No Estado, e não nas fazendas, nos quilombos, entre os negros, é que a Abolição seria decidida: A emancipação há de ser feita, entre nós, por uma lei que tenha os requisitos, externos e internos, de todas as outras. É assim, no Parlamento e não em fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar, ou perder, a causa da liberdade. Em semelhante luta, a violência, o crime, o desencadeamento de ódios acalentados, só pode ser prejudicial ao lado que tem por si o direito, a justiça, a procuração dos oprimidos e os votos da humanidade toda.13 O que nos interessa mais de perto, nessa leitura do texto de Nabuco, é a indicação não só do papel central da escravidão na formação da sociedade brasileira, mas também dos efeitos de sua existência sobre todas as dimensões da vida social. Aí, dizemos, com Souza, reside uma contribuição decisiva de Nabuco. Os capítulos XIII a XV de O Abolicionismo eloqüentemente ressaltam tal ponto. 11 Ibid., p. 9. É preciso juntar-se a isso a dupla idéia de uma menor aspereza da escravidão no Brasil, comparada à dos Estados Unidos, e a pretensão de conciliar as classes, e não de “instilar no coração do oprimido um ódio que ele não sente”, para entender melhor o caráter político do movimento: não tanto social, mas situado nos marcos institucionais da política (cf. ibid., p. 9-10 e 12). Segundo Nabuco, a “propaganda abolicionista, com efeito, não se dirige aos escravos. Seria uma covardia, inepta e criminosa, e, além disso um suicídio político para o partido abolicionista, incitar à insurreição, ou ao crime, homens sem defesa” (ibid., p. 12). O realismo político dessa posição, dados os estreitíssimos espaços de participação popular na política imperial, é compreensível. Mas a ambigüidade de uma mudança que desiste de contar com a participação dos mais diretamente implicados nela é marca da tradição política brasileira, ainda quando descreve bandeiras transformadoras. 12 Ibid., p. 90. 13 Ibid., p. 12. Impulso, Piracicaba, 17(43): 21-31, 2006 7/22/2006 6:26:42 PM Começando por temas familiares, como o elemento demográfico – o crescimento paulatino dos afrodescendentes na composição étnicoracial da sociedade brasileira – e a famosa mistura de raças, o argumento já rapidamente se amplia, ao incluir os brancos como igualmente afetados pela escravidão.14 A violência, o arbítrio, a exploração não apenas dos negros, mas também das negras (“a parte mais produtiva da propriedade escrava”, num comentário de fazendeiros do Piraí, em 1871) e a corrupção da família somam-se a influências culturais africanas sobre os próprios brancos, trazidas pela mistura e pela proximidade, que não são vistas em chave positiva (misticismo, sincretismo religioso, doenças, mau uso da língua portuguesa, atraso cultural/intelectual etc.).15 Estas últimas, porém, parece não serem um mal em si e, não fosse a escravidão, poderiam ter sido “contornadas”. A escravidão teria não somente impedido os negros de desenvolver valores de disciplina e auto-estima, mas também estimulou o abuso (sexual, do trabalho, dos favores) por parte dos brancos, estendendo-se como prática social entre os subalternos.16 Ela teria retardado o próprio desenvolvimento das “classes” (profissionais, de status etc.), nivelando todos por baixo. Assim, o “problema que nós queremos resolver é o de fazer desse composto de senhor e escravo um cidadão”.17 Também o desenvolvimento econômico era bloqueado pelas relações sociais escravistas e pelo uso do Estado como alavanca e garantia da produção agrícola apoiada na mão-de-obra escrava, além de estimular a fixação de representantes de oligarquias decadentes e de pobres livres com chances de ascensão social no “emprego público”, como garantia de status e de renda.18 Mesmo “a Igreja”, como força moral em defesa da dignidade humana – que Nabuco contrastava, em várias partes de seu escrito, ao papel por ela assumido na luta contra a escravidão na Europa e nos 14 15 16 17 18 Ibid., p. 59. Ibid., p. 61. Ibid., p. 62 e 72. Ibid., p. 73. Ibid., p. 74-78. Estados Unidos, ainda que naqueles casos se tratasse mais do protestantismo –, tornara-se no Brasil umbilicalmente ligada à justificação da escravidão, inclusive possuindo escravos.19 Efeitos semelhantes de abastardamento teriam se produzido no sentimento de patriotismo, na atuação da imprensa, na educação (pública), na produção política liberal e republicana, na própria vida das instituições políticas. O predomínio do “regime social” da escravidão teria inibido o próprio surgimento de uma opinião pública nacional, “a consciência nacional, esclarecida, moralizada, honesta, e patriótica”, podando o influxo de idéias novas.20 Nessas condições, não é de estranhar que a escravidão estimule a passividade, a corrupção, a deferência diante do poder: Um povo que se habitua a ela não dá valor à liberdade, nem aprende a governar-se a si mesmo. Daí a abdicação geral das funções cívicas, o indiferentismo político, o desamor pelo exercício obscuro e anônimo da responsabilidade pessoal, sem a qual nenhum povo é livre, porque um povo livre é somente um agregado de unidades livres: causas que deram em resultado a supremacia do elemento permanente e perpétuo, isto é, a Monarquia.21 A CENTRALIDADE DA ESCRAVIDÃO E A NATURALIZAÇÃO DAS DESIGUALDADES NO BRASIL Tal leitura é retomada em Gilberto Freyre. Também nele, com ambigüidades como as de Nabuco, a escravidão é vista como marca fundamental da formação social brasileira. Souza explica que há duas teorias em movimento, na obra de Gilberto – uma trabalha com base no tema da escravidão e no seu impacto na formação da identidade nacional; outra focaliza o papel do português e do hibridismo cultural como cernes da singularidade brasileira. A segunda é a base da ideologia oficial que, com o decisivo aporte freyreano, sacramentou a consolidação do Estado nacional brasileiro, na década de 1930. A primeira abre pistas importantíssimas para compreender os destinos da tendência quase inquebrantável à multipli19 20 21 Ibid., p. 78-79. Ibid., p. 79-81. Ibid., p. 81. 25 Impulso, Piracicaba, 17(43): 21-31, 2006 Imp43_miolo_k.pdf 25 Black 7/22/2006 6:26:43 PM cação e ao aprofundamento das desigualdades sociais no Brasil, a despeito de todo e qualquer processo vivido de modernização e desenvolvimento econômico. Para Freyre, a especificidade da escravidão no Brasil liga-se ao modelo muçulmano, que permite o acesso a bens e vantagens, na dependência da identificação do dominado com os valores do seu senhor, e ao caráter sadomasoquista das relações entre um e outro. A possibilidade de os filhos naturais ou ilegítimos terem igualdade de tratamento com os filhos brancos, caso aceitassem a fé, os rituais e os costumes do pai, relaciona-se com o modelo muçulmano poligâmico de família e de escravidão.22 Lendo esse estrato do pensamento freyreano, que, apesar de explícito e até central à explicação da singularidade brasileira, é subsumido pela temática da mestiçagem ou do sincretismo cultural, Souza ressalta: “é precisamente a herança cultural moura na forma da escravidão que parece ter sido o elemento decisivo da singularidade da sociedade escravocrata colonial e, portanto, da semente da forma singular que a dependência pessoal assumiu entre nós”23 e que iria cobrar do modelo de modernização europeu uma adaptação e refração. A família como unidade básica e o sadomasoquismo como vínculo social predominante fundamentam uma ordem caracterizada pelo “caráter autárquico do domínio senhorial condicionado pela ausência de instituições acima do senhor territorial imediato”, sujeita aos humores deste e marcada pela violência.24 As inclinações do patriarca ou de seus representantes “autorizados” serviam de base para decidir o que quer que fosse, atingindo de seus próprios filhos e mulher a escravos e outros bens, incluindo dependentes ou agregados livres. A “proximidade” ou “intimidade” da relação do patriarca com seus inferiores estava sujeita a toda sorte de instabilidade e distribuía-se particularisticamente.25 Como conseqüência, vai-se forjando uma sociedade constitutivamente sadomasoquista, “em que a dor alheia, o não reconhecimento da alteridade e a perversão do prazer transforma-se [sic] em objetivo máximo das relações interpessoais”.26 Sem limites ao seu poder, nem por parte do Estado (justiça, polícia, representantes do poder colonial) nem de qualquer força moral autônoma (ao contrário do papel da religião nesse processo, em vários contextos de surgimento da modernidade ocidental, o catolicismo no Brasil era uma extensão da casa grande),27 o hibridismo das relações sociais entre brancos e negros, livres e escravos, jamais implicava igualdade entre culturas e raças.28 A própria vida dos livres vinculava-se a tal ordem, na figura do “dependente” ou “agregado”, “ralé” da sociedade escravocrata, que, segundo Souza – e aqui já nos aproximamos do programa possível de uma “segunda abolição” –, define traços fundamentais do problema da desigualdade no Brasil contemporâneo. Dependentes ou agregados, apesar de livres, são seres humanos “dispensáveis, na medida em que não exercem papéis fundamentais para as funções produtivas essenciais e que conseguem sobreviver nos interstícios e nas ocupações marginais da ordem produtiva”.29 A escravidão, portanto, é um dos elementos definidores do lugar “dispensável” dos dependentes e, por extensão, do não-reconhecimento de sua dignidade, também negado aos escravos. Outro componente fundamental de tal situação é a violência, articulada com base num código de virilidade que não segue regras de autocontrole, mas vai até onde for preciso para impor a vontade ou “limpar a honra”. Espelhada no próprio comportamento dos senhores, a extensão de tal código aos dependentes é uma das indicações da sombra da escravidão na forma hierarquizada, mas opaca, que vincula o senhor de terra e seus agregados. A conseqüência dessa realidade é a im26 22 23 24 25 Cf. SOUZA, 2003, p. 114. Ibid., p. 112. Ibid., p. 114-115. Ibid., p. 120-121. 26 Imp43_miolo_k.pdf 26 Black Ibid., p. 115. Cf. NABUCO, 2000, p. 9; PAIVA, 2003, p. 71-111; e CAWARDINE, 1994. 28 SOUZA, 2003, p. 117. 29 Ibid., p. 122. 27 Impulso, Piracicaba, 17(43): 21-31, 2006 7/22/2006 6:26:43 PM possibilidade de conceber qualquer relação social como impessoal – e, por tabela, tornar estranha e incompreensível, para não dizer inaceitável, as idéias de Estado, de lei, de autoridade impessoal. O dilema brasileiro, à luz da história aqui narrada, e ainda segundo Souza, não é o da permanência de resquícios de poder pessoal na ordem moderna construída a partir do século XIX. Não é personalismo, não é patrimonialismo, não é persistência da pré-modernidade. O dilema é como a ordem impessoal do capitalismo, que finalmente se impõe em definitivo nos anos de 1930, com o getulismo, se assenta sobre uma naturalização da desigualdade, por impor as instituições do mundo moderno – Estado, mercado, individualismo, impessoalidade, competição, cidadania – como “produtos prontos”, sem ser precedidos pela disseminação de uma compreensão moral das relações sociais legitimadoras tanto da delimitação do poder pessoal dos dominantes quanto da generalização de um tipo humano “básico”, considerado uma referência de reconhecimento social e uma exigência ao pleno funcionamento da ordem competitiva. A “europeização” da identidade brasileira foi se dando já a partir do início do século XIX, com a vinda da família real ao Brasil – “chegada” do Estado, introdução de novas ocupações, predomínio da vida urbana sobre a rural, visibilização das mulheres no espaço privado (com paulatina reversão da total sujeição e isolamento a que estavam submetidas), crescente prestígio social do conhecimento e do talento individual – até sua virtual conclusão na década de 1930, com a adoção do corporativismo, a inclusão dos segmentos médios e a incorporação subordinada dos trabalhadores urbanos.30 Nisso tudo, e já a partir da Abolição, em 1888, o “dado essencial de todo o processo de desagregação da ordem servil e senhorial foi, como nota corretamente Florestan, o abandono do liberto à própria sorte (ou azar). Os antigos senhores, na sua imensa maioria, o Estado, a Igreja, ou qualquer outra instituição, jamais se interessaram pelo destino do liberto”.31 Resistindo a novamente ingressar em atividades degradantes, desqualificados para a disciplina fabril emergente e faltando-lhes a ânsia por riquezas, ignorados literalmente pela sociedade livre, construiu-se para os negros libertos um cenário de exclusão bem analisado por clássicos como Freyre e Florestan. As entrevistas realizadas por este último, para o seu A Integração do Negro na Sociedade de Classes (1978), aponta para um processo de auto-anulação e de desagregação familiar, que se reflete “no egoísmo e na instrumentalização do outro, seja o ‘outro’ a mulher ou o mais jovem e indefeso, uma situação de sobrevivência tão agreste que mina, por dentro, qualquer vínculo de solidariedade, desde o mais básico da família até o comunitário e associativo mais geral”.32 No entanto, é possível dizer mais do que isso: a exclusão social não se restringe ao preconceito de cor. O abandono e a inadaptação atingem negros e brancos pobres. O caráter da marginalidade que atualmente condena milhões de brasileiros à pobreza, à insegurança, à dispensabilidade econômica e à falta de perspectivas de futuro está nessa construção histórica da articulação do negro e do dependente de qualquer cor, rural ou urbano, como “imprestáveis” às exigências da ordem moderna.33 Essa exclusão é inteiramente moderna, e não um resquício do passado. Mas, ao mesmo tempo, suas raízes se projetam sobre a centralidade da instituição da escravidão no Brasil e sobre o “esquecimento” deliberado de seu impacto e seus condicionamentos à formação de uma compreensão do lugar da “ralé” na vida nacional e na cidadania. Para tanto, os dados contemporâneos são mais do que eloqüentes e, de todos os pontos de vista, confirmam a incompletude da Abolição e a resiliência dos padrões de (não) reconhecimento do outro, que dão o tom das nossas brutais desigualdades. Números divulgados em 2003, apoiados em informações do IBGE ou de pesquisas es31 30 Ibid., p. 137-148; CARVALHO, 1997; e VIANNA & CARVALHO, 1999. 32 33 SOUZA, 2003, p. 154. Ibid., p. 158. Ibid., p. 161. 27 Impulso, Piracicaba, 17(43): 21-31, 2006 Imp43_miolo_k.pdf 27 Black 7/22/2006 6:26:43 PM pobre como não-gente e não-cidadão é a marca distintiva da especificidade brasileira em face das chamadas sociedades avançadas.36 Não somos menos modernos que os ditos países avançados, mas o somos condenando pelo menos um terço da população à marginalidade mais abjeta, sem que pessoalmente se tenha de dizer que o “desejemos” ou sem nos sentir responsáveis por esse quadro, ou por decisões anteriores que nos chegam como herança maldita, para usar um jargão corrente da política nacional, que só nos caberia “reconhecer”. Mas, ao nos mostrar indiferentes ou mesmo compartilhar a ideologia “espontânea” que descarta milhões como essencialmente desiguais e não-necessários, ao legitimar a precariedade da situação dessas pessoas como azar ou merecimento (culpando-os por sua situação), ao “tocar as coisas” como se nada pudéssemos fazer ou como se “eles” (o Estado, os ricos, os políticos, as elites etc.) tivessem de resolver o que nos declaramos impotentes para tanto, contribuímos, ainda que passivamente, para o reforço da exclusão e sancionamos a violência, por mais que nos “horrorizemos” com o que “os outros” fazem – os incluídos contra os excluídos ou os excluídos entre si. Não se trata de atitudes pessoais retrógradas que teriam sobrevivido ao passado. No dizer de Souza, no pecíficas, apontam o sistemático viés que liga afrodescendentes e pobres de qualquer cor no elo fraco das relações sociais no País. Em relação à mortalidade infantil, os filhos de mulheres negras têm 47% mais chances de morrer nos primeiros anos de vida (sendo a taxa de 22,9% para mães brancas e 33,7% para negras e pardas). Há também, nos dados referidos, um recorte regional, sempre em detrimento dos filhos de mães negras, mas opondo o Nordeste (48,2 % para filhos destas e 38,5% para os de brancas) e o Sudeste (28,3% para filhos de negras e 18,5% para os de brancas).34 A desigualdade torna-se ainda mais gritante no item renda. Tomando-se como indicadores salários, aposentadoria, programas sociais e aplicações financeiras, 74,1% da renda nacional ficam com os brasileiros brancos (sendo que 50% dessa renda são apropriados pelos homens brancos). Dos 25,9% da renda apropriados pelos negros, 4% ficam entre os pretos e 21,9% entre os pardos. Isso está em clara desproporção com a presença dos brancos na população, que é de 53,8%, em geral, e 53,1% dos que possuem rendimentos. A expectativa de vida dos negros, por sua vez, segundo dados da Fundação Nacional de Saúde divulgados em agosto de 2004, é seis anos menor que a dos brancos (74 anos), além do que aqueles têm 50% a mais de chance de morrer de aids, acidentes ou violência.35 Em todos esses números, a desigualdade de renda articula-se fortemente a componentes de raça e gênero: as mulheres e os negros estão sistematicamente em desvantagem, que se reproduz em cascata, ou seja, as mulheres negras pobres aparecem entre as mais violentamente vitimizadas. Retomando o tema da europeização, podese dizer que a associação do brasileiro pobre com o “não-europeu” lhe confere um valor intrínseco de inferioridade e de irrelevância, “menos gente” do que os integrados, e isso se dá independentemente de qualquer intencionalidade – é um traço estrutural da ordem impessoal que se implantou aqui. A generalização do não-reconhecimento do Nossa modernidade construiu-se, assim, pela adaptação dos modelos externos à matriz moral da escravidão. UMA NOVA ABOLIÇÃO? Os dados são eloqüentes e multiplicam-se nas notícias de jornais, nas publicações especializadas e nos encontros cada vez mais freqüentes para discutir os temas da pobreza, desigualdade e discri- 34 36 35 Cf. ESCÓSSIA, 2003. Cf. BBC BRASIL, 2004. 28 Imp43_miolo_k.pdf 28 Black contexto impessoal moderno, também no periférico, são redes invisíveis de crenças compartilhadas pré-reflexivamente acerca do valor relativo de indivíduos e grupos, ancorados [sic] institucionalmente e reproduzidos [sic] cotidianamente pela ideologia simbólica subpolítica incrustada nas práticas do dia a dia que determinam, agora, seu lugar social.37 37 Cf. SOUZA, 2003, p. 170-180. Ibid., p. 182. Impulso, Piracicaba, 17(43): 21-31, 2006 7/22/2006 6:26:43 PM minação racial. Mas pouco impacto tal divulgação consegue, diante da notável parcimônia com que as elites políticas e intelectuais têm encaminhado soluções aos problemas do reconhecimento social dos negros e pobres no Brasil. À luz do volume de programas, projetos e iniciativas voltadas ao crescimento econômico e à geração de emprego e renda há mais de uma década, sem impactos significativos sobre os três aspectos citados anteriormente, é preciso admitir que há uma especificidade – particularmente sob a forma de uma renitente inércia – na variável étnico-racial. Isso demanda não subordiná-la a outros campos de intervenção, como se fora sempre uma questão secundária ou subsidiária, que se resolveria por conseqüência de ações e mudanças em outras áreas. Em seu manifesto por uma nova abolição, Buarque elenca bandeiras como luta contra a corrupção, quebra do corporativismo (como cultura, não como arranjo institucional), igualdade republicana, universalização da justiça, definição de um padrão geral de qualidade de vida (segurança, civilidade, perspectiva de futuro, estabilidade monetária, geração de empregos, melhoria da malha de estradas, equilíbrio ambiental, controle do endividamento dos brasileiros), equacionamento da nossa integração global com soberania e identidade, incorporação dos avanços tecnológicos com ética e inclusão dos pobres, aumento da produção sem desequilibrar o meio-ambiente e promoção de um pacto social pela erradicação da pobreza. Seu diagnóstico se assenta na idéia de que, como há 100 anos, “nossos pobres continuam escravos, na luta e na espera de uma segunda abolição”.38 Buarque ressalta sobretudo a necessidade de uma “mudança na lógica”, uma “revolução do olhar”, afastando-nos dos modelos centrados nas idéias de crescimento econômico e definição material da pobreza (como ausência ou insuficiência de renda), para por o acento no caráter ético tanto da apartação social existente entre integrados e não-integrados, ricos e pobres, brancos e negros, quanto do modelo de sociedade que queremos.39 38 39 BUARQUE, 1999, p. 17. Ibid., p. 31-53. Em outras palavras, alocação de recursos não será suficiente para inverter o problema da desigualdade no País, pois já está mais do que demonstrado que eles existem, não havendo, no entanto, a decisão de utilizá-los. Também não é apenas uma questão de incompreensão de elites míopes ou de egoísmo. Há um componente ético no encaminhamento do problema da exclusão social no Brasil – que é mais do que miséria – e que demanda assumir o caráter historicamente produzido da pobreza e sua incorporação numa cultura de naturalização das desigualdades, de não-reconhecimento do subalterno como igual, tanto jurídica como socialmente. Comparando o caso da reunificação alemã no final dos anos de 1980, Buarque aponta que não se realizará esse programa sem custos para os integrados. Lá, a decisão exigiu sacrifícios e transferência de renda dos habitantes ocidentais para os orientais, custou uma redução no padrão de vida dos alemães ocidentais: os investimentos antes concentrados no ocidente foram reorientados, os empregos antes elevados na parte ocidental tiveram que ser deslocados para a parte oriental, as aposentadorias e os salários dos ricos trabalhadores da República Federal foram reduzidos em benefício dos trabalhadores da República Democrática.40 Claro que havia condições materiais à reunificação, julgadas favoráveis pelos estrategistas ocidentais. Mas a decisão propriamente política de criá-las e fazê-las acontecer foi produto de um amplo debate ético-político, de o fato da separação por razões ideológicas nunca ter apagado os vínculos sociais, étnicos e político-culturais entre as duas metades da nação alemã, de a mobilização dos incluídos ser respondida por uma demanda dos não-incluídos. Mas o processo também não foi automático, nem sem traumas: gerou-se uma subnação dos orientais, julgada atrasada, pobre e desqualificada ao trabalho, desencadeou-se um clima de tensões racistas, de discriminação aberta e velada, uma sensação de carregar a carga dos outros “sem necessidade” e um ressentimento 40 Ibid., p. 26-27. 29 Impulso, Piracicaba, 17(43): 21-31, 2006 Imp43_miolo_k.pdf 29 Black 7/22/2006 6:26:43 PM contra os excluídos. Foi a política, nesse contexto, o elemento de garantia de que o processo prosseguiria. A idéia de que se erradicará a pobreza, se reverterá a desigualdade brutal sem custos para os dominantes no Brasil, é uma falácia, que relembra também o tempo das lutas abolicionistas do século XIX: indenização dos proprietários, ausência de redistribuição de renda efetiva, responsabilização dos próprios pobres por sua integração (responsabilização atualmente também extensiva a esse espectro chamado pelas elites política e econômicas de sociedade [civil], obrigada a assumir funções que não competiriam mais ao Estado), ressentimento contra a violência ou a incompetência dos pobres etc. No trabalho de Buarque, como no de Nabuco, a (nova) abolição é apenas um passo, uma parte do programa mais amplo de promover igualdade de condições numa sociedade que se pretende democrática. Mas a maneira como a abolição é circunscrita, como “da pobreza”, pode levá-la ao destino temido por Nabuco quanto à abolição “da escravidão”. Corremos o risco, antecipado em Nabuco como em Buarque, de tal bandeira ser assumida na sua pura literalidade (erradicar a pobreza, abolir a escravidão), ao mesmo tempo em que se transfere para o longo prazo uma ação indolor e paulatina, responsabilidade a rigor de ninguém, por ser “do Brasil” ou “da sociedade”, de enfrentamento de outros desafios da inclusão – não apenas alçar à condição de cidadania social mais da metade dos brasileiros, mas fazê-lo alterando padrões socioculturais hierárquicos, discriminatórios ou violentos, que excluem milhões como desnecessários, inúteis, desclassificados, perigosos. Tal programa não se realizará apenas com economia. A tendência irreprimível no debate público em transformar a discussão sobre a inclusão num discurso acerca da alocação de recursos nos ameaça novamente a perder a oportunidade de enfrentar um dos pilares da desigualdade no Brasil: o não-reconhecimento social dos de baixo – pobres, negros, mulheres, índios e outras “minorias”. 30 Imp43_miolo_k.pdf 30 Black CONCLUSÃO Podemos retirar, da discussão aqui proposta, algumas implicações para um ainda não inteiramente articulado programa de um novo abolicionismo para o século XXI: • desvelar a lógica oculta da naturalização das desigualdades e da violência; • apontar a fragilidade e a falsidade da crença de que mais crescimento econômico será a saída para o problema secular da pobreza e da desigualdade; • insistir no estabelecimento do programa de construção de uma cidadania democrática e republicana de iguais e diferentes – iguais diante da lei e no acesso não-enviezado à esfera pública e aos recursos materiais e simbólicos a uma qualidade de vida em padrões mínimos aceitáveis para todos e para qualquer um; e diferentes em seus valores, crenças, idades, gêneros, etnias e mesmo nas visões sobre o que seria a sociedade brasileira de seus sonhos; • apontar a existência de recursos atuais para a erradicação da miséria absoluta e denunciar o descompromisso não só dos políticos, mas também de boa parte dos incluídos; • não reduzir o projeto de generalização da cidadania democrática a questões de alocações de recursos materiais, enfrentando as manifestações da desigualdade que afetam negros, mulheres, índios e pobres urbanos e rurais, e que precisam ser politizadas; • não estatizar esse programa, nem transferir à “sociedade civil” todo o protagonismo de sua realização: as parcerias público-privado e as redes de ONGs não bastam para concretizar tal projeto. Nenhuma idéia de homogeneidade nacional, ideológica, mas também nenhuma chance para afirmações corporativas, fragmentadas, predatórias, que assumem a diferença como privilégio, desconectada da igualdade e do reconhecimento do outro. Essa seria a legítima inspiração no “abolicionismo” de Nabuco, engajada numa nova “campanha abolicionista”, em organizar um novo “partido abolicionista”. Naturalmente, chamar isso de programa é muito boa vontade. São mais gestos de um Impulso, Piracicaba, 17(43): 21-31, 2006 7/22/2006 6:26:44 PM inconformismo que se desencantou de simplesmente ler na realidade os limites para a ação e que quer apostar nas possibilidades abertas por tomadas de posição mais ousadas. Pelo menos, como no próprio opúsculo de 1883, não se trata de um mero manifesto fundador, conclamando a existência um ator completamente novo: como Nabuco, que devota vários capítulos a uma história do abolicionismo no século XIX, já podemos narrar histórias e experiências concretas de compromisso com essa campanha, mesmo em meio às ambigüidades dos discursos antipobreza e antidesigualdade do Brasil pós-ditadura. Referências Bibliográficas BBC BRASIL.“Estudo inédito mostra dimensão da desigualdade racial no Brasil”.Folha Online. 13/ago./04. <http:// www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u34261.shtml>. Acesso: 19/ago./04. BEIGUELMAN, P. (org.). Joaquim Nabuco: política. São Paulo: Ática, 1982. BUARQUE, C. A Segunda Abolição: um manifesto-proposta para a erradicação da pobreza no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CARVALHO, J.M. de. “Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual”.Dados. Rio de Janeiro, v. 40, n.o 2, 1997. ______.“Saudade de Escravo”.Folha de S. 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