A EDUCAÇÃO POLÍTICA DO MARAJÓ NO ROMANCE: DALCÍDIO JURANDIR E WALTER
BENJAMIN DESDE UMA LEITURA TEOLÓGICA
Antonio Carlos Teles da Silva1
Resumo
Este artigo propõe uma releitura da região a partir do olhar do romancista marajoara Dalcídio
Jurandir (1909-1979) e perceber a convergência entre sua percepção e o pensamento crítico de
Walter Benjamin (1892-1940). Propomos reler a história da Amazônia e mais especificamente do
Marajó à contrapelo, ou a partir dos seus avessos e com isso nos identificamos com a principal
intuição da teologia Latino-Americana de opção preferencial pelos pobres e marginalizados. Tal
releitura se coloca como fundamental tanto para o pensar teológico, como para a educação política e
a cultura comprometidas com a cidadania ética, com preservação ambiental e defesa das tradições
culturais historicamente invisibilizadas.
Palavras chaves: Dalcídio Jurandir, Walter Benjamin, Amazônia, Marajó.
Abstract
This article proposes a rereading of the region from the look of the novelist marajoara Dalcídio
Jurandir (1909-1979) and realize the convergence between their perception and critical thinking of
Walter Benjamin (1892-1940). We propose to re-read the history of the Amazon and more
specifically the Marajó contrapelo, or from their averse and thus identify with the main intuition of
theology Latin American preferential option for the poor and marginalized. This reinterpretation
arises as fundamental both for theological thinking, as for the political education and culture
committed to ethical citizenship with environmental preservation and defense of cultural traditions
historically rendered invisible.
Keywords: Dalcídio Jurandir, Walter Benjamin, Amazônia, Marajó
1
Pós doutorando em Ciências da Religião na Universidade Estadual do Pará.
Introdução
Afirma-se que a única possibilidade de salvação da Amazônia é pela via da cultura, da
educação e da tecnologia. O pano de fundo do avassalador processo de devastação é o
desconhecimento, a ignorância elaborada e construída a partir de interesses externos à região. A
sociedade nacional ainda identifica a Amazônia como o império do natural e do exótico, onde a
cultura e a civilização são elementos estranhos a serem introduzidos num interminável processo de
adequação do espaço aos interesses exploratórios. Exemplos evidentes já se encontram nos escritos
de Euclides da Cunha (1866-1906) que identifica a Amazônia como espaço sem cultura e sem
história, visão implementada pragmaticamente pelos governos militares e que permanece como
identidade hegemônica de quem olha a região pelos olhos do capital neoliberal. A Amazônia se
resume a ser um grande almoxarifado destinado apenas a suprir o mundo das matérias primas de
que necessita.
Este artigo propõe uma releitura da região a partir do olhar do romancista marajoara
Dalcídio Jurandir (1909-1979) e perceber a convergência entre sua percepção e o pensamento
crítico de Walter Benjamin (1892-1940). Propomos reler a história da Amazônia e mais
especificamente do Marajó à contrapelo, ou a partir dos seus avessos e com isso nos identificamos
com a principal intuição da teologia Latino-Americana de opção preferencial pelos pobres e
marginalizados. Tal releitura se coloca como fundamental tanto para o pensar teológico, como para
a educação e a cultura comprometidas com a cidadania ética, com preservação ambiental e defesa
das tradições culturais historicamente invisibilizadas.
O Olhar dos excluídos
A Teologia Latino Americana contribuiu de forma decisiva para a inversão na perspectiva do
olhar sobre a relação entre a teologia e a realidade. Percebeu-se a hegemonia de uma teologia
construída a partir de lugares socialmente privilegiados, ou a existência de um discurso teológico
determinantemente europeizado. Desde a conquista, a visão de mundo que se implantou foi
condicionada pelo catolicismo ibérico. Em relação às missões protestantes a partir de meados do
século XIX não foi diferente: o movimento missionário trouxe consigo a cultura civilizacional norte
americana. A religião também se impõe como forma de domínio e hegemonia dos que tem poder.
Como uma de suas intuições fundamentais, a Teologia da Libertação elaborou um discurso a
partir da condição em que vivem os pobres e marginalizados, que constituem a maioria das
populações que, em geral, vivem nas áreas periféricas do mundo, como África e América Latina. A
essa perspectiva teológica chamamos de opção preferencial pelos pobres e marginalizados. Trata-se
de uma perspectiva que busca a compreensão da Palavra de Deus a partir da realidade concreta de
sofrimento dos seres humanos, cujas vidas são marcadas pela exclusão.
Opção preferencial toma aqui sentido solidário, de sentir as dores e angústias, e ao mesmo
tempo de inserção na luta a favor de condições de vida digna para os que sofrem. Dessa forma, a
Teologia da Libertação rompeu com os limites da simples elaboração discursiva e se tornou uma
reflexão militante. Seu sentido maior está justamente na mobilização das consciências a favor das
transformações históricas em nome da fé no Deus de justiça.
Porém, devemos nos perguntar ainda até que ponto o discurso teológico libertador latino
americano tem sido de fato a voz dos pobres ou ainda se ressente dos condicionamentos de ser
apenas um discurso sobre os pobres. Até que ponto nosso discurso teológico continua sendo reflexo
de um lugar socialmente privilegiado? Convém nos questionarmos até que ponto nos limitamos a
construir um discurso teológico sobre o pobres e oprimidos, mas ainda não conseguimos ouvir e
atentar devidamente para a voz dos pobres e oprimidos, em sua subjetividade e individualidade
íntima.
Pensamos, a partir da obra de Dalcídio Jurandir2, um fazer teológico que seja “fazer-se pobre
com os pobres”, como tematiza o escritor marajoara. E essa condição de caboclo ele assume:
Eu digo tão simplesmente: é a farinha d’água dos meus beijús. Sou também de lá, sempre
fiz questão de não arredar pé de minha origem e para isso, ou melhor, para enterrar o pé
mais fundo, pude encontrar uma filiação ideológica que me dá razão. Os temas dos meus
romances vêm do meio daquela quantidade de gente das canoas, dos vaqueiros, dos
colhedores de açaí.3
Uma das mais evidentes caracterizações da obra de Dalcídio Jurandir é sua capacidade de
fazer-se entender como caboclo, e dessa forma também fazer entender as angústias e sofrimentos de
seu povo. Ao evidenciar a condição em que vivem os marginalizados através de seus romances,
Dalcídio lhes concede voz. Os romances podem ser lidos a partir da perspectiva do sofrimento, e
dessa forma ser não apenas um discurso sobre os pobres, mas efetivamente a voz do próprio pobre
com sua condição exposta de forma crua, humana e solidária.
O sofrimento dos personagens retratados por Dalcídio, particularmente nos seus primeiros
três romances, utilizados neste trabalho, se insere nas condições sócio econômicas pelas quais passa
a Amazônia no período de decadência do ciclo da borracha. “O autor traça um painel da Amazônia
decaída após o auge do ciclo da borracha e nos revela as fantasmagorias desse ciclo econômico na
região”4. A concentração de riquezas provocadas pelo ciclo do látex e pela concentração agrária
constitui uma situação na qual a grande maioria da população se encontra destinada à pobreza e a
mais absoluta falta de perspectiva.
2 Romancista amazônida do Marajó, autor do ciclo “Extremo Norte”.
3 JURANDIR, D. Um Escritor no Purgatório. Asas da Palavra, n.4, p.28 a 30, 1996, à p. 29.
4 FURTADO, Marli Tereza. Universo Derruído e Corrosão do Herói em Dalcídio Jurandir. Campinas, SP.
UNICAMP. Instituto de Estudos da Linguagem. 2002, p. 97.
As narrativas dos romances deixam transparecer que as riquezas produzidas pelo látex
tiveram o caráter ilusório e efêmero. Grandes fortunas foram construídas pelos chamados “Barões
da Borracha”, enquanto acirrou-se o nível de exploração do trabalhador seringueiro. A chegada do
progresso e da modernidade em nada alterou o quadro de concentração agrária, pelo contrário,
exacerbou em muito as desigualdades. As grandes fazendas do Marajó, por exemplo, continuaram
como verdadeiros feudos sob domínio violento dos coronéis.
A elite que se constituiu ante o rápido enriquecimento demonstra absoluta ignorância sobre o
funcionamento do mercado capitalista assentado sobre a competitividade acirrada e a dependência
estrutural das zonas periféricas. Marly Furtado descreve essa fase de deslumbramento da elite
paraense com o fausto da borracha.
O senão dessa elite amazônica assenta-se aí. O Palácio de Cristal foi construído para ser
desmontado, porque representante de um capitalismo consolidado que constrói para mais
tarde derruir; já as catedrais culturais, construídas para emparelhar sociedades, apesar de
sólidas, não representavam um capitalismo consolidado, tanto que, ignorante de suas
regras, essa burguesia local não tomou precauções contra a competição e esboroou-se em
meio a seu deslumbramento.5
A decadência do ciclo da borracha produziu um desmascaramento do artificialismo criado
ante “a ilusão do fausto”6. “Uma Amazônia derruída, sem perspectivas, atônita ante a derrocada de
um ciclo econômico que ergueu palácios, teatros, palacetes; que deu ares europeus às altas
temperaturas locais”7. Dalcídio retrata o universo humano oculto sob a riqueza ilusória, e mergulha
profundamente nos efeitos nefastos dessa elitização artificial sobre o povo caboclo das beiras dos
rios.
A chegada das relações capitalistas na Amazônia traz consigo uma cultura de consumo, e a
proposta de um estilo de vida imitativo. A compulsão à imitação da cultura europeia, especialmente
francesa, com seus produtos e modismos inicia o processo de construção de um conceito distorcido
de progresso e civilização, cujas práticas se estabelecem como grosseiro arremedo da cultura
europeia. Dalcídio Jurandir expressa consciência do caráter ilusório e do papel desagregador que a
modernidade passou a exercer na Amazônia. Em seus romances está explícita, de forma
contundente, a crítica mordaz às elites urbanas e agrárias, que representam o sistema que explora os
pobres e produz sofrimento. Podemos afirmar seguramente que a obra de Dalcídio Jurandir constitui
um olhar da realidade a partir da perspectiva das vitimas desse sistema dominante.
O escritor marajoara ultrapassa a mera descrição, ousando conceder voz e visibilidade às
vitimas. Ao invés de meros espectadores passivos ante as tragédias diárias, os personagens são
elevados pelo trabalho narrativo à condição de protagonistas. O sofrimento vai além do lamento
impotente e se transforma em instrumento de escancaramento de uma situação histórica concreta e
5 FURTADO, 2002, p. 99.
6 Título do livro de Ednea Mascarenhas Dias sobre a decadência do Ciclo da Borracha na Amazônia
7 FURTADO, 2002, p. 12.
de denúncia contra os opressores.
Do ponto de vista político, as terras do Marajó tornaram-se domínio das oligarquias
latifundiárias, criadoras de gado, em geral, descendentes dos portugueses que dominavam a
Amazônia desde o período colonial. Sua hegemonia e poder político foram abalados durante a
revolução Cabana (1835-1840), mas permaneceram como classe dominante após a revolta ser
sufocada pelo governo central do Padre Antônio Feijó. Os grandes proprietários de terras do
Marajó, assim como as oligarquias cafeeiras no sudeste, ou as charqueadoras no sul, por exemplo,
representavam o controle político despótico, pela violência e intimidação. Os “currais eleitorais”
controlados pelos coronéis se ligavam a oligarquias estaduais e regionais, que por sua vez apoiavam
as oligarquias que governavam o país.
Descendentes de índios e de escravos principalmente, compõem a massa secundarizada
historicamente, que se tornou maioria absoluta da população Amazônica. Tal quadro histórico com
seus agravantes e aviltamentos muito mais profundos, devido principalmente à distância e
isolamento da Amazônia ao restante do país. A desigualdade é tida como um fatalismo do destino,
do qual não há como escapar, dessa forma naturalizando-se a miséria e o sofrimento.
Desse universo humano sofrido e sem perspectivas, Dalcídio retira a matéria prima para seus
romances. Os dramas humanos, ao mesmo tempo em que denunciam uma condição de sofrimento e
injustiça, também elaboram um olhar desse universo a partir dos seus avessos e contradições. Dessa
forma, o olhar dalcidiano se identifica com o olhar de Walter Benjamin em rever a história a partir
de seus reversos, como também se renova ante a intuição de um olhar teológico sobre o universo
humano amazônico, que terá que necessariamente priorizar o que foi social e historicamente
invisibilizado.
A memória dos vencidos: a história a contrapelo
A leitura dos romances de Dalcídio Jurandir dentro do contexto histórico e das condições
sócio econômicas da Amazônia após o ciclo da borracha e a presença explícita desses determinantes
no percurso dos personagens, demonstra o entrelaçamento entre as condições de existência humana
e a história. Os romances não têm preocupações historiográficas, mas o autor não abre mão de um
diálogo intenso com o processo histórico que determina as condições materiais concretas em que
vive o povo do Marajó.
Trata-se de um diálogo questionador, no qual o autor marajoara se identifica com a
percepção de Walter Benjamin8 (1892-1940), em contestar as versões oficiais que se caracterizam
pela empatia com os vencedores, com a história dos dominadores. Há uma teimosia explícita no
8 Crítico literário, filósofo e sociólogo judeu/alemão, ligado à Escola de Frankfurt.
“caboclo” Dalcídio, de, a seu modo, também “escovar a história a contrapelo”9.
A historiografia predominante no século XIX e por boa parte do século XX, por sua
metodologia e interesses, adequou-se aos propósitos “dos que estão interessados em escrever a
história dos vencedores e em secundarizar e esconder a história dos vencidos”10. A partir de meados
do século XX evidenciou-se o questionamento aos procedimentos que excluíam a história dos
esquecidos, e passou-se o buscar de forma sistemática a inclusão dos grupos minoritários e
oprimidos. Da mesma forma, o direcionamento das pesquisas começou a apontar para temas
relativos ao cotidiano, às mentalidades e experiências localizadas de diferentes grupos. Esse
redirecionamento implicou em focalizar a atenção na memória coletiva dos grupos, acessíveis pela
utilização de metodologias alternativas às ideias de continuidade e progresso e à compreensão do
futuro como mero relacionamento entre causa e efeito, que dominavam a história oficial, e a
inclusão de métodos até então secundários, como, por exemplo, a história oral.
Os novos procedimentos também passaram a incluir o diálogo intenso com outros campos
de conhecimentos e inclusão de conceitos oriundos da sociologia, da antropologia, da psicanálise,
entre outros, o que não apenas estendeu o alcance científico das pesquisas por sua configuração
interdisciplinar, como, na prática, propiciou que emergissem as histórias de diversos grupos até
então omitidos, cuja narratividade passou a ter visibilidade, como a história dos trabalhadores, dos
indígenas, das mulheres, dos negros, e de vários outros grupos.
Walter Benjamin empreende a tarefa de rever a história a partir dos seus avessos, ou como resgate
dos que foram esquecidos e omitidos. Esta reflexão está inserida no movimento intelectual mais
amplo da chamada Escola de Frankfurt. Seu pensamento representa uma tensão criativa entre o
romantismo alemão, o marxismo revolucionário e o messianismo judaico, o que inclui sua
preocupação metafísica e aponta para sua concepção messiânica da história. Por isso a subjetividade
tem um lugar importante em sua visão da história:
Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos
atribuídos ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da
coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. 11
No mesmo direcionamento crítico de desvendar o que está o invisibilizado no
funcionamento da sociedade, há a concordância sobre o papel dos mecanismos de manipulação
ideológica, como mascaradores das contradições, camuflando os antagonismos, criando uma ilusão
de harmonia. No cerne do pensamento crítico está a percepção de que as próprias leis que regem o
fazer histórico são também parte da história, portanto condicionadas.
Em meio a divergências e intenso debate com pensadores como Theodor Adorno e Max
9 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1985, p. 225.
10 CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Editorial Quarteto. 2001, p. 49-59.
11 BENJAMIN, 1985, p. 224.
Horkheimer, Benjamin aponta algumas convergências fundamentais no plano teórico, como por
exemplo, a firme recusa ao determinismo histórico materialista de crença no progresso, que
considera ingenuidade, ou seja, a visão da história como processo contínuo e ascendente em direção
a um futuro de perfeição garantido pelo progresso da ciência e pelo desenvolvimento tecnológico.
Para Benjamin, esta concepção tem efeito desmobilizador sobre a consciência dos trabalhadores,
por retirar destes o lugar de sujeitos da história, substituindo a prática pela fé no progresso.
Este determinismo histórico corresponde integralmente aos interesses hegemônicos, por se
identificar, por empatia (acedia), com tudo aquilo que prevaleceu no passado, com todos aqueles
que conquistaram e impuseram sua versão dos fatos e acontecimentos, com os vitoriosos e
dominadores de todos os tempos. Aqui está implícita não somente uma rejeição ao historicismo,
mas uma crítica à cultura que resulta dessa visão da história.
Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de
hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados
no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos de bens culturais. [...]
Nunca houve um monumento da cultura que não fosse um monumento da barbárie. E,
assim como a cultura não é isenta da barbárie, não o é, tampouco, o processo de
transmissão da cultura. (tese 7).12
Para Benjamin, não é possível aceitar a história como um simples resultado previsível de um
desenvolvimento necessário. Em resposta a esta visão comprometida ideologicamente com os
vitoriosos, elabora o tema político da história dos vencidos, retomando alguns temas do
messianismo judaico e do materialismo dialético. Como inspiração, recorre a um quadro, Angelus
Novus, de Paul Klee, que ele assim descreve:
Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo, que ele encara fixamente. Seus
olhos estão escancarados, sua boca dilatada e suas asas abertas. O anjo da história deve ter
esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de
acontecimentos, ele vê uma catástrofe única contínua, que acumula incansavelmente ruína
sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e
juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com
tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irreversivelmente
para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu.
Essa tempestade é o que chamamos progresso. (Tese 9)13
Um importante exemplo prático do método adotado por Benjamin de interpretar e
compreender a história a partir do ponto de vista dos vencidos é uma pequena resenha de uma
biografia francesa de Bartolomé de Las Casas, uma crítica publicada em 1929 à obra de Marcel
Brion Bertolomé de Las Casas, Pére des Indiens. Nesta resenha, Benjamin solidariza-se com os
povos americanos conquistados, descrevendo os sacrifícios impostos pela conquista; “transformou o
mundo recém-conquistado em uma câmara de torturas [...] não podemos representar sem horror”.14
Um elemento importante na concepção histórica tradicional, fortemente criticada por Benjamin é a
sua linearidade ascendente, sacralizadora das visões hegemônicas. Dessa forma temos que a história
12 BENJAMIN, 1985, p. 225.
13 BENJAMIN, 1995, p. 226
14 Apud LÖWY, 2005, p. 10
não é um movimento contínuo e linear. Mas traz como marca indelével a presença de rupturas, nas
quais o determinante é a intervenção do sujeito, que rompe com o conformismo fatalista e assume o
protagonismo de seu presente e futuro. O sentido da história vem, portanto, da ação dos seres
humanos e não pode ser compreendido a priori, como se estivesse inteiramente definido antes de os
sujeitos humanos impetrarem sua ação.
É notório, portanto, no pensamento crítico de Benjamin, a marca da alteridade. O outro,
enquanto omitido pelas histórias oficiais, derrotado pelos poderes hegemônicos, desperta
sentimentos de solidariedade e a necessidade de olhar a realidade a partir de seu ponto de vista,
numa negação de qualquer egoísmo interpretativo. O outro também é portador de uma voz que deve
ser ouvida.
Nesse sentido, é necessário reconhecermos em Benjamin o papel sempre atualizador da
memória. Fazer justiça para com a memória dos oprimidos significa tomá-la como um ato de
abertura cordial ao outro, recusando toda interpretação narcísica e egocêntrica da história. Esta
percepção de Benjamin concede-lhe uma profunda relevância teológica. Da mesma forma, este
sentido de alteridade encontramos explícito nos romances de Dalcídio, em seu trabalho de
reelaboração da memória dos pequenos, reconstruindo a própria identidade desses outros omitidos
pelas versões hegemônicas.
Dentro dos objetivos propostos neste trabalho, é necessário anotar as afinidades eletivas
(termo weberiano) entre o pensamento de Benjamin e a elaboração, duas décadas depois, da
Teologia da Libertação. Ao mesmo tempo, o estabelecimento de um horizonte utópico, possível pela
recuperação do protagonismo do sujeito oprimido, torna essa relação inevitável. A convergência
entre essa filosofia da história e a teologia compõe o pano de fundo para as elaborações teológicas
libertadoras.
Os avessos do Marajó de Dalcídio Jurandir
Os romances de Dalcído Jurandir não têm a intencionalidade da ciência histórica ou a
pretensão de retratar fielmente um momento histórico. O que se verifica é que suas narrativas,
alimentadas pela memória, estão intimamente entrelaçadas com as condições histórico-sociais,
particularmente com a história do Pará, permitindo um vislumbre das condições dessa sociedade no
período retratado pelos romances, as primeiras décadas do século XX. “A possibilidade de escrita
da história a partir da obra literária está nessa relação de temporalidade e nas palavras, imagens da
realidade social trazida pelo autor para nós, contemporâneos”.15 Tal período é marcado pelas
tensões sociais de um momento de ruptura e transição.
15 MARIN, Rosa E. A. Marajó: tableaux de uma sociedade pós-escravista. In: LEITE, Marcos (Org.) Leituras
Dalcidianas. Belém: UNAMA, 2006, p. 95.
Há uma relação dialética entre a cultura e a barbárie, mediante a qual os vencedores
constroem seus monumentos, que “devem sua existência não somente ao esforço dos grandes
gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos” (Tese 7). 16 São
recorrentes nos romances de Dalcídio, as descrições dos monumentos erigidos em Belém durante o
ilusório fausto da borracha. O afrancesamento do centro da cidade, o Teatro da Paz, os monumentos
históricos, constituem um esplendor construído à custa do trabalho semi escravo de caboclos
seringueiros, vaqueiros, pescadores. Na visão dos caboclos era o esplendor de um mundo estranho e
inacessível, a quem pertenciam somente os barões da borracha e os poderosos senhores de terra do
Marajó.
Camareira do Teatro da Paz! Pasmava Cachoeira. Os conterrâneos de D. Rosália achavam
demasiado, até mesmo irritante que ela chegasse a ser camareira do maior teatro do Norte
do Brasil! [...]
- Fui camareira do Teatro da Paz. Conheci o maestro Carlos Gomes, artistas de Portugal.
Vesti Lucíola Simões. Ela só não me levou para Lisboa por causa do Saraiva. Saraiva não
deixou. (Chove, p. 202).
Os grandes monumentos culturais do fausto gumífero foram construídos com o suor, o
sacrifício e o sangue da população cabocla da Amazônia. As memórias dos vencedores são
monumentos que beneficiam as classes dominantes atuais. Escovar a contrapelo a história dessa
cultura significa reler os monumentos e as tradições a partir da perspectiva dos excluídos, caboclos
seringueiros, pescadores, vaqueiros, prostitutas das beiras dos rios e tantos outros, nominados por
Dalcídio como “arraia miúda”.
A organização da sociedade, particularmente no Marajó reflete os condicionamentos de uma
sociedade pós-escravista. Os resquícios das relações escravistas estão bem refletidos na maneira
como os coronéis mantinham à seu serviço, por exemplo, as negras, tendo-as como amas de leite de
seus filhos, tecedoras de redes, amantes e geradoras de seus inúmeros “afilhados”. Para Rosa Marin,
o processo de desestruturação da sociedade escravista é ainda incompleto17, o que se reflete nas
revoltas mudas elaboradas pelo escritor, como por exemplo, no sentimento intimo da tecedora de
redes: “Daí por diante, as redes de siá Felismina eram feitas também com os fios de suas lágrimas,
numa revolta contra os brancos. Com esse ódio tecia as redes para o branco ter amor, ter sossego”
(Marajó, p. 49).
O escritor insiste em frisar o nível de desigualdade e a diferença entre os dois mundos. Os
ricos fazendeiros, cujas propriedades dominam as vastidões dos campos, têm vivência com o
mundo urbano rico nas grandes cidades como Belém e no Rio de Janeiro. Em fazendas como
Marinatambalo, são descritos os resquícios do luxo e da ostentação em que seus proprietários se
encastelavam. Também são frequentes as citações de suas viagens ao exterior e de seus filhos sendo
educados na Europa. São mundos absolutamente diferentes convivendo lado a lado, cuja
16 BENJAMIN, 1995, p. 225.
17 Cf. MARIN, 2006, p. 97.
legitimidade se estabelece como natural e eterna.
Em Três Casas e um Rio, o menino Alfredo, em torno dos onze anos de idade, tem sua
primeira percepção das diferenças entre as classes sociais e das opções que teria que tomar em
relação isso. Aqui temos um entrelaçamento entre personagem e autor, que se concretiza nas opções
e lutas ideológicas assumidas pelo escritor: a visão da sociedade dividida em classes com interesses
divergentes e conflitantes.
Pela primeira vez, em Alfredo, se fazia mais ou menos clara a presença de uma luta surda,
muitas vezes disfarçada, mas irreparável, entre as pessoas ricas, tão poucas e as pessoas
pobres que eram sem conta. Até então se julgava ao lado das pessoas ricas, inclinado a ser
uma delas ou pelo menos protegido, porque seu pai, embora pobre, servia ao intendente.
Sua mãe mostrava-lhe uma realidade inesperada, acima de suas soluções de menino, da
magia do seu faz-de-conta e o lançava entre os moleques, quase seus semelhantes agora.
Ficaria entre os pobres, ao lado dos tios negros ou do lado dos ricos recebendo do Dr.
Bezerra promessas e promessas até o fim?
Franzia a testa, pôs-se a torcer as pestanas, sucumbido. Esse conflito mergulhou em sua
consciência como uma semente, que deveria germinar muito tempo depois. (Três Casas, p.
169)
A realidade de sofrimento do povo pobre do Marajó deve ser compreendida também como
consequência da estrutura de desigualdade e concentração fundiária, que marca as relações sócio
econômicas em toda a Amazônia e particularmente da Ilha do Marajó desde o período colonial. Em
Chove nos Campos de Cachoeira, Dalcídio Jurandir faz uma aguda crítica a essa situação,
descrevendo o inicio da concentração fundiária em Cachoeira do Ararí. Sua linguagem é irônica ao
chamar as terras apropriadas dos pequenos proprietários e cercadas pelo Dr. Casemiro Lustosa de
“Bem Comum”.
Dr. Casemiro Lustosa é o novo proprietário dos campos de Cachoeira. Com ele os pobres
não podem mais tirar lenha, a cerca já foi levantada e de arame farpado. [...] veio com gana
de comprar todos os campos da redondeza e cercou-os com arame farpado. Eram os campos
onde o povo podia tirar sua lenha, o seu muruci, um ou outro ovo de camaleão, fazer seu
passeio. Tudo agora tem um dono só. A vila não pode mais se estender para os campos
porque na cerca tem uma tabuleta com letras pintadas pelo Raul com uma negra mão
indicando:
BEM COMUM
Propriedade do Dr. Casemiro Lustosa (Chove, p. 390)
A questão das tabuletas proibitivas de acessos às terras do Dr. Lustosa se torna emblemática
em relação aos hábitos simples da população de Cachoeira, que jamais vira delimitações sobre os
campos. Dalcídio dá relevo à controvérsia que envolve Raul, um pintor de cruzes para o cemitério e
o tipógrafo Rodolfo. Ambos acordam resistência contra as tabuletas resultando na terminante
negação de Raul em escrever novas tabuletas. A resistência, mesmo que tímida, já está presente
como semente de inconformismo.
Lustosa falou que necessitava de novas tabuletas, havia comprado novas terras, estendendo
a propriedade. Novas tabuletas para evitar as invasões. Era necessário educar o povo. Se
bem que povo não soubesse ler...mas uma tabuleta significava sempre proibição. O valor da
alfabetização estava também em saber as leis, ler as tabuletas que proíbem... (Três Casas, p.
45)
Em Marajó, encontramos a descrição da violência cruel envolvida no processo de
apropriação de terras. A cobiça dos fazendeiros ia além do domínio de simples territórios, mas
estendia-se ao controle sobre as pessoas; “Coronel queria ter povo na mão. Terra ele tinha que
enjoava. Queria terra que tivesse povo. Povo ficava agarrado a ele como turú18 dentro do pau...”
(Marajó, p. 35). O controle sobre terras e populações significava a ambição política, ou a garantia
dos votos de legitimação de seus domínios.
Devorara pequenas fazendas em Cachoeira, estreitando cada vez mais o cerco em torno das
últimas e teimosas pequenas propriedades que deixavam, enfim, de lutar com o grande
domínio rural. Marajó para Coronel Coutinho e alguns fazendeiros grandes era um mundo à
parte, privado, lhes pertencia totalmente. Qualquer pensamento para aliviar as condições do
vaqueiro e das fazendas, era como um ato de invasão à propriedade. (Marajó, p. 28)
Esse processo de concentração de terras inclui inevitavelmente a utilização de extrema
violência contra todos os que, de alguma formam, se opõem ou se tornam empecilhos ao total
controle econômico e político exercido pelos fazendeiros. Em Três Casas e um Rio, Dalcidio
descreve, solidário, o sofrimento e revolta da menina Andressa, cuja família foi perseguida e morta
pelos Menezes, donos da Fazenda Marinatambalo, cujas atrocidades cometidas contra pequenos
proprietários e opositores se tornaram lendárias.
O Reino de Marinatambalo levantou fama de luxo, esbanjamento e de crueldade também.
Dr. Menezes tinha um irmão, o Edgar, administrador da fazenda, que amarrava os vaqueiros
nos troncos, marcava-os com a sua marca, surrava-os com as cordas com que amansava os
poldros, matava os caçadores e ladrões do seu pomar, tudo em meio dos pavilhões de caça,
jardim zoológico, moinhos de vento, fábrica de doces, carruagem, gasômetro, naturalistas,
etc. (Três Casas, p. 219).
Encontrou-o mariscando com o filho, o maiorzinho, disse-lhe que saísse do igarapé. O
caboclo fez-lhe ver umas tantas verdades. O que bastou para que Edgar de cima de seu
cavalo, de repente, armar o laço e apanhar João Bolacha pela cintura e arrastá-lo num golpe
doido pelo aterroado.
Estava o homem botando sangue pela boca, arrebentado, quando o fazendeiro parou no
meio do campo. Saltou e deu um tiro bem no meio do peito de João Bolacha. E o que fazer
com o curumim que corria aos gritos e caiu em cima do cadáver do pai? Era tudo solidão. O
menino a quem chamava?
Contavam que Edgar Menezes o enterrou nalgum retiro de Marinatambalo. (Três Casas, p.
339-340)
D. Marciana, zeladora da falida fazenda, enumera outras vítimas dos fazendeiros, como
fantasmas que consegue ver na solidão da fazenda em decadência:
Eu vejo com esses olhos. Não tenho cara de mentir. Dou com a língua neles. Pergunto se é
o Dias que morreu de uma bala de rifle no vazio. Se é o Pedro Navegante que perdeu a
fazendinha e se findou amarrado num tucumanzeiro. Se é o finado Armando Pessoa que
mataram e botaram os grãos dele na boca, depois de cadáver. Se são os Bolachas, se são as
moças infelicitadas, outros, outros. (Três Casas, p. 254)
Na cosmovisão cabocla, os fantasmas estavam presentes nos lugares onde sofreram suas
agonias, e estes de Marinatambalo clamavam pela vingança de suas mortes. “As almas queriam
vingar-se. Toda riqueza será feita à custa de tanta malvadeza? As almas não sabiam que seus patrões
estavam mortos.” (Três Casas, p. 256).
A decadência da fazenda como resultado das crueldades cometidas, se torna um dos fios
condutores da compreensão de Três Casas e um Rio. Andressa, menina adolescente, filha de João
Bolacha, toma uma atitude ousada: rouba comida e leva aos presos na cadeia, pois os presos eram
18 Larva encontrada dentro dos troncos de árvores caídos à beira dos rios. Também serve como alimentação para os
caboclos ribeirinhos.
acusados de roubo de gado nas grandes fazendas. Também rouba as chaves da cadeia e as joga no
rio (Três Casas, p. 171-172). Ao longo de todo o romance Andressa se torna uma voz acusadora
sobre os fazendeiros, clamando a perda da família, morta por Edgar Menezes, reclamando pelo
paradeiro do corpo do irmão pequeno, também possivelmente morto. Ao final do romance, os ossos
do menino são encontrados pelo herdeiro da fazenda falida, Edmundo Menezes, escondidos atrás de
um fogão em Marinatambalo.
Missunga, jovem herdeiro do Coronel Coutinho, da fazenda Paricatuba, em Ponta de Pedras,
Dalcídio aprofunda a visão sobre as condições de extrema desigualdade em Marajó. O rapaz vive
na fazendo do pai devido ao vazio e enfado em que se tornou sua vida de jovem rico na cidade
grande, como fracasso nos estudos e na vida amorosa (Marajó, p. 29). Carrega consigo a imagem de
uma infância destruída e a angústia existencial de um personagem não resolvido e dividido entre
dois mundos, cindido entre a possibilidade do novo e “o mundo sólido e bárbaro que precisava
conservar.” (Marajó, p. 311). Seu sentimento de inutilidade refletia-se no enfado pelo presente e na
interminável rememoração da infância e dos sonhos perdidos. O presente se tornou um remoer
constante do sentimento de vazio em relação ao futuro. “Missunga preso ao seu mundo, desovando
na solidão o seu pensamento desasado e miúdo. Rico e inútil, sem saber coisíssima; não dava para
nada. Para nada.” (Marajó, p. 52).
A permanência do mundo velho, do mundo sólido e bárbaro, em Missunga, afirmada pelo
narrador, revela, por outro lado, um fracasso existencial do personagem de mudar situações
sociais a partir de uma espécie de voluntarismo social: as estruturas anquilosadas perduram
contra o indivíduo.19
O herdeiro único do Coronel Coutinho tinha consciência de que sua boemia, seus luxos e
ostentações na cidade grande, eram sustentados pela exploração dos caboclos e vaqueiros de seu
pai. “Na cidade, longe da vila, quanta noite de champanhe, espremido do suor e do sangue daqueles
caboclos, dos vaqueiros que fediam a couro e a lama ouvindo os tambores do Espírito Santo”.
(Marajó, p. 18)
A partir desse dilema íntimo é possível compreendermos o fracasso do empreendimento
“Felicidade”. Após a morte de um casal de idosos, velhos parentes agregados, o Coronel Coutinho
ausenta-se em viagem de descanso a Minas Gerais. Aproveitando-se da situação, Missunga apossase das terras onde moravam os velhos e inicia a implantação de um projeto inovador como
contestação aos modos arcaicos adotados pelo pai. Sugestivamente chama o novo empreendimento
de “Felicidade”. Contrata trabalhadores que chegam com suas famílias, passando a abrigá-los em
barracas precárias à beira do Igarapé. Manda abater cabeças de gado para alimentação dos
trabalhadores e dirige pessoalmente os trabalhos de derrubada da mata. É flagrante sua total
19 HOLANDA, Silvio. Mito e Sociedade em Dalcídio Jurandir. In: LEITE, Marcos. (Org.) Leituras Dalcidianas.
Belém: UNAMA, 2006, p. 140.
inexperiência e as dificuldades para resolver os problemas práticos que começam a surgir.
Faltavam sementes, disseram os roceiros. Tinha de mandar buscar sementes em Belém.
Onde? Quem tinha? O governo? Algodão! Algodão! Poderia depois chamar D. Felismina
para armar os teares de rede, já via uma fábrica de fiação apitando em Paricatuba, um navio
no porto esperando cargas de frutas para a América do Norte. Caboclos do Muaná
apareceram pedindo trabalho. Traziam famílias. Queriam carne fresca, quinino e
calomelano. (Marajó, p. 125- 126).
Sua contestação se concentra nos métodos utilizados pelo antigo administrador, José
Raimundo, o qual considera como um feitor de escravos. Planeja demiti-lo e a partir do sucesso de
“Felicidade”, implantar a nova gestão sobre todas as terras do pai.
Tinha mesmo uma excelente oportunidade para tomar conta de todas as fazendas, [...]
Aumentaria o ordenado dos vaqueiros. Fundaria uma fábrica de laticínios. Uma
charqueada. Contrataria um técnico suíço, seus queijos ganhariam prêmios nas exposições.
Mais fácil que plantar algodão, abrir roçado. (Marajó, p. 157).
Com o acúmulo dos problemas práticos, Missunga passa a ser dominado pela inquietação. A
chegada ininterrupta de mais pessoas, atraídas por trabalho e pela comida distribuída, se transforma
numa apreensão crescente. “Já não era o medo do mato que o dominava, mas o medo do povo”
(Marajó, p. 148). Sentimentos até então desconhecidos passam a brotar no seu íntimo, como a
incapacidade de convívio mais próximo com a miséria como aquela que se lhe apresentava. O
sentimento do fracasso aos poucos se instalava como inevitável.
Isso lhe dava maior fadiga, vagas repulsas, não sabia ir ao encontro daquelas vozes, ter o
ímpeto de caminhar para o povo que já acreditava nele. Também tentava reprimir certa
irritação ao sentir que, de qualquer modo, o povo já se instalava ali com a maior
naturalidade, como se ele fosse obrigado a servi-lo, e dar-lhe trabalho, carne e remédio. Até
diziam que ele fazia tudo aquilo por ordem do governo. Contavam mais: aplicava apenas
metade da verba que o governo lhe dera para montar a colônia agrícola. Isso o divertia e o
irritava. [...] Criara para si mesmo um problema estúpido que o desmascarava, obrigava-o a
conhecer-se melhor, a descobrir dentro de si fraqueza e medos que ignorava. (Marajó, p.
148-149)
Há um simbolismo fatalista implícito nesse episódio. Dalcídio expressa sua compreensão da
realidade do Marajó e da Amazônia. Há uma visão implícita em relação à história e à sociedade, na
qual a dominação e a desigualdade são regras básicas. Sob essa premissa, sua percepção do
processo de modernização na Amazônia é pessimista. A modernidade no Marajó significa o fracasso
de um futuro que não se realizou, um processo que desde o começo esteve fadado à incompletude, a
nunca se realizar integralmente. A desigualdade continuará ser perpetuada sob o poder dos ricos e a
exploração dos pobres.
Após o reconhecimento do fracasso do empreendimento, é do próprio administrador Manoel
Raimundo, a quem contestava, que ouve o conselho final: “Ponha esses projetos de lado e consiga
seu diploma menino. Em Marajó quem manda é a providência. Isso só melhora quando Deus
mandar”. (Marajó, p. 311). O fatalismo e a desesperança se implantam na consciência das pessoas
como regra básica e condição intransponível. Nessa falta de perspectiva o autor mergulha a alma,
sendo ao mesmo tempo constatação e inconformismo.
Personagem semelhante, encontramos em Três Casas e um Rio. Edmundo Menezes,
herdeiro da fazenda Marinatambalo, idealizou um sonho de retorno ao Marajó enquanto estudava na
Inglaterra. Somente quando chega ao Marajó descobre que o império fundiário construído por seu
pai havia desmoronado, afundado em dívidas. Sua decepção existencial mistura-se aos dramas
íntimos da solteirona Lucíola, que havia testemunhado o fausto dos tempos de prosperidade em
Marinatambalo. Toda sua cultura e formação europeia não impediram que se consumasse a
destruição dos sonhos, o desalento, o abandono e o suicídio em desespero de Lucíola, interpretados
pelo autor como o destino inevitável de uma riqueza contraída sobre a crueldade do sangue
derramado dos pobres. Seu drama íntimo desemboca ao final do livro, no sentimento de derrota,
perseguição e culpa como dívidas herdadas da crueldade de sua família no clamor das vítimas.
O fato é que, naquela noite, Edmundo, no seu búfalo, seguiu como se atravessasse a
extensão dos crimes e dos castigos de sua família. Sentia-se perseguido e sem saída,
ouvindo tropel e vozes. À noite, ventos se levantaram, o fedor do lago, o “não” de Lucíola
que subia como um clamor das vítimas, o acossavam. Seguiram-no os tambores do Espírito
Santo, abandonados no retiro onde os ossos do menino rangiam atrás do fogão, a febre dos
vaqueiros causada pela visão da princesa do lago, o afogado, coberto de peixes, saindo das
águas, perseguindo-o.
Os vaqueiros mortos deixavam de ser fantasmas [...]. Vinham com arpões e marcas de ferro
em brasa, traziam os búfalos selvagens, as piranhas, os jacarés e as onças, as cascavéis e o
Bezerro Mole contra os Meneses. (Três Casas, p. 373).
Considerações finais
Interessa-nos na percepção dalcidiana a interação dialética entre a realidade concreta das
estruturas da sociedade e a realidade humana íntima das subjetividades. Mesmo assumidamente
materialista dialético, como opção filosófica e ideológica, o autor detecta que as causas do
sofrimento humano estão incrustradas sim nas estruturas materiais e econômicas, mas não
exclusivamente nelas. Há uma dimensão humana, íntima e subjetiva, na qual o escritor insiste em
penetrar e tentar decifrar seus enigmas. Dessa forma, a percepção de Dalcídio tem a capacidade de
romper dicotomias e “articular dialeticamente introspecção e denúncia”.20
Teologicamente o quadro humano/conjuntural construído por Dalcídio exige uma decisão e
um posicionamento ético. A opção do escritor extrapola-se por seus personagens e ultrapassa em
muito uma postura meramente filosófica e ideológica. A opção explícita é, acima de tudo, pelo ser
humano massacrado e invisibilizado, cuja alteridade negada se traduz em dor e sofrimento. Já nestas
três primeiras obras, escritas durante as décadas de 1940 e 1950, Dalcídio antecipa algumas
intuições fundamentais da teologia latino-americana, como a opção preferencial pelos pobres.
Os pequenos e excluídos da sociedade, em seus sofrimentos e dramas são os personagens
preferenciais de Dalcídio. Ele próprio reconhece sua literatura como a serviço da gente pobre do
barranco, sua “arraia miúda”, dedica-lhes seu pequeno dom. O escritor não somente descreve suas
20 HOLANDA, 2006, p. 142.
agruras, mas faz uma opção existencial, toma partido em favor deles, solidariza-se a sua dor. Isso
significa, em grande medida, sentir o seu sentimento e tornar-se voz de denúncia contra as
estruturas que perpetuam a desigualdade e o sofrimento.
Bibliografia
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura.
São Paulo: Brasiliense, 1995.
CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Editorial Quarteto, 2001.
FURTADO, Marli Tereza. Universo Derruído e Corrosão do Herói em Dalcídio Jurandir.
Campinas: UNICAMP. Instituto de Estudos da Linguagem. 2002.
HOLANDA, Silvio. Mito e Sociedade em Dalcídio Jurandir. In: LEITE, Marcos. (org.) Leituras
Dalcidianas. Belém: UNAMA, 2006.
JURANDIR, Dalcídio. Um Escritor no Purgatório. Asas da Palavra, n.4. Belém: UNAMA, 1996.
___________ Chove nos Campos de Cachoeira. Edição Crítica. Rosa Assis (org.) Belém:
UNAMA, 1998.
___________ Marajó. 3ª Ed. Belém: Cejup, 1992.
___________ Três Casas e um Rio. 3ª Ed. Belém: Cejup, 1994.
LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de
história”. São Paulo: Boitempo, 2005.
MARIN, Rosa E. A. Marajó: tableaux de uma sociedade pós-escravista. In: LEITE, Marcos (org.)
Leituras Dalcidianas. Belém: UNAMA, 2006.
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