A EDUCAÇÃO POLÍTICA DO MARAJÓ NO ROMANCE: DALCÍDIO JURANDIR E WALTER BENJAMIN DESDE UMA LEITURA TEOLÓGICA Antonio Carlos Teles da Silva1 Resumo Este artigo propõe uma releitura da região a partir do olhar do romancista marajoara Dalcídio Jurandir (1909-1979) e perceber a convergência entre sua percepção e o pensamento crítico de Walter Benjamin (1892-1940). Propomos reler a história da Amazônia e mais especificamente do Marajó à contrapelo, ou a partir dos seus avessos e com isso nos identificamos com a principal intuição da teologia Latino-Americana de opção preferencial pelos pobres e marginalizados. Tal releitura se coloca como fundamental tanto para o pensar teológico, como para a educação política e a cultura comprometidas com a cidadania ética, com preservação ambiental e defesa das tradições culturais historicamente invisibilizadas. Palavras chaves: Dalcídio Jurandir, Walter Benjamin, Amazônia, Marajó. Abstract This article proposes a rereading of the region from the look of the novelist marajoara Dalcídio Jurandir (1909-1979) and realize the convergence between their perception and critical thinking of Walter Benjamin (1892-1940). We propose to re-read the history of the Amazon and more specifically the Marajó contrapelo, or from their averse and thus identify with the main intuition of theology Latin American preferential option for the poor and marginalized. This reinterpretation arises as fundamental both for theological thinking, as for the political education and culture committed to ethical citizenship with environmental preservation and defense of cultural traditions historically rendered invisible. Keywords: Dalcídio Jurandir, Walter Benjamin, Amazônia, Marajó 1 Pós doutorando em Ciências da Religião na Universidade Estadual do Pará. Introdução Afirma-se que a única possibilidade de salvação da Amazônia é pela via da cultura, da educação e da tecnologia. O pano de fundo do avassalador processo de devastação é o desconhecimento, a ignorância elaborada e construída a partir de interesses externos à região. A sociedade nacional ainda identifica a Amazônia como o império do natural e do exótico, onde a cultura e a civilização são elementos estranhos a serem introduzidos num interminável processo de adequação do espaço aos interesses exploratórios. Exemplos evidentes já se encontram nos escritos de Euclides da Cunha (1866-1906) que identifica a Amazônia como espaço sem cultura e sem história, visão implementada pragmaticamente pelos governos militares e que permanece como identidade hegemônica de quem olha a região pelos olhos do capital neoliberal. A Amazônia se resume a ser um grande almoxarifado destinado apenas a suprir o mundo das matérias primas de que necessita. Este artigo propõe uma releitura da região a partir do olhar do romancista marajoara Dalcídio Jurandir (1909-1979) e perceber a convergência entre sua percepção e o pensamento crítico de Walter Benjamin (1892-1940). Propomos reler a história da Amazônia e mais especificamente do Marajó à contrapelo, ou a partir dos seus avessos e com isso nos identificamos com a principal intuição da teologia Latino-Americana de opção preferencial pelos pobres e marginalizados. Tal releitura se coloca como fundamental tanto para o pensar teológico, como para a educação e a cultura comprometidas com a cidadania ética, com preservação ambiental e defesa das tradições culturais historicamente invisibilizadas. O Olhar dos excluídos A Teologia Latino Americana contribuiu de forma decisiva para a inversão na perspectiva do olhar sobre a relação entre a teologia e a realidade. Percebeu-se a hegemonia de uma teologia construída a partir de lugares socialmente privilegiados, ou a existência de um discurso teológico determinantemente europeizado. Desde a conquista, a visão de mundo que se implantou foi condicionada pelo catolicismo ibérico. Em relação às missões protestantes a partir de meados do século XIX não foi diferente: o movimento missionário trouxe consigo a cultura civilizacional norte americana. A religião também se impõe como forma de domínio e hegemonia dos que tem poder. Como uma de suas intuições fundamentais, a Teologia da Libertação elaborou um discurso a partir da condição em que vivem os pobres e marginalizados, que constituem a maioria das populações que, em geral, vivem nas áreas periféricas do mundo, como África e América Latina. A essa perspectiva teológica chamamos de opção preferencial pelos pobres e marginalizados. Trata-se de uma perspectiva que busca a compreensão da Palavra de Deus a partir da realidade concreta de sofrimento dos seres humanos, cujas vidas são marcadas pela exclusão. Opção preferencial toma aqui sentido solidário, de sentir as dores e angústias, e ao mesmo tempo de inserção na luta a favor de condições de vida digna para os que sofrem. Dessa forma, a Teologia da Libertação rompeu com os limites da simples elaboração discursiva e se tornou uma reflexão militante. Seu sentido maior está justamente na mobilização das consciências a favor das transformações históricas em nome da fé no Deus de justiça. Porém, devemos nos perguntar ainda até que ponto o discurso teológico libertador latino americano tem sido de fato a voz dos pobres ou ainda se ressente dos condicionamentos de ser apenas um discurso sobre os pobres. Até que ponto nosso discurso teológico continua sendo reflexo de um lugar socialmente privilegiado? Convém nos questionarmos até que ponto nos limitamos a construir um discurso teológico sobre o pobres e oprimidos, mas ainda não conseguimos ouvir e atentar devidamente para a voz dos pobres e oprimidos, em sua subjetividade e individualidade íntima. Pensamos, a partir da obra de Dalcídio Jurandir2, um fazer teológico que seja “fazer-se pobre com os pobres”, como tematiza o escritor marajoara. E essa condição de caboclo ele assume: Eu digo tão simplesmente: é a farinha d’água dos meus beijús. Sou também de lá, sempre fiz questão de não arredar pé de minha origem e para isso, ou melhor, para enterrar o pé mais fundo, pude encontrar uma filiação ideológica que me dá razão. Os temas dos meus romances vêm do meio daquela quantidade de gente das canoas, dos vaqueiros, dos colhedores de açaí.3 Uma das mais evidentes caracterizações da obra de Dalcídio Jurandir é sua capacidade de fazer-se entender como caboclo, e dessa forma também fazer entender as angústias e sofrimentos de seu povo. Ao evidenciar a condição em que vivem os marginalizados através de seus romances, Dalcídio lhes concede voz. Os romances podem ser lidos a partir da perspectiva do sofrimento, e dessa forma ser não apenas um discurso sobre os pobres, mas efetivamente a voz do próprio pobre com sua condição exposta de forma crua, humana e solidária. O sofrimento dos personagens retratados por Dalcídio, particularmente nos seus primeiros três romances, utilizados neste trabalho, se insere nas condições sócio econômicas pelas quais passa a Amazônia no período de decadência do ciclo da borracha. “O autor traça um painel da Amazônia decaída após o auge do ciclo da borracha e nos revela as fantasmagorias desse ciclo econômico na região”4. A concentração de riquezas provocadas pelo ciclo do látex e pela concentração agrária constitui uma situação na qual a grande maioria da população se encontra destinada à pobreza e a mais absoluta falta de perspectiva. 2 Romancista amazônida do Marajó, autor do ciclo “Extremo Norte”. 3 JURANDIR, D. Um Escritor no Purgatório. Asas da Palavra, n.4, p.28 a 30, 1996, à p. 29. 4 FURTADO, Marli Tereza. Universo Derruído e Corrosão do Herói em Dalcídio Jurandir. Campinas, SP. UNICAMP. Instituto de Estudos da Linguagem. 2002, p. 97. As narrativas dos romances deixam transparecer que as riquezas produzidas pelo látex tiveram o caráter ilusório e efêmero. Grandes fortunas foram construídas pelos chamados “Barões da Borracha”, enquanto acirrou-se o nível de exploração do trabalhador seringueiro. A chegada do progresso e da modernidade em nada alterou o quadro de concentração agrária, pelo contrário, exacerbou em muito as desigualdades. As grandes fazendas do Marajó, por exemplo, continuaram como verdadeiros feudos sob domínio violento dos coronéis. A elite que se constituiu ante o rápido enriquecimento demonstra absoluta ignorância sobre o funcionamento do mercado capitalista assentado sobre a competitividade acirrada e a dependência estrutural das zonas periféricas. Marly Furtado descreve essa fase de deslumbramento da elite paraense com o fausto da borracha. O senão dessa elite amazônica assenta-se aí. O Palácio de Cristal foi construído para ser desmontado, porque representante de um capitalismo consolidado que constrói para mais tarde derruir; já as catedrais culturais, construídas para emparelhar sociedades, apesar de sólidas, não representavam um capitalismo consolidado, tanto que, ignorante de suas regras, essa burguesia local não tomou precauções contra a competição e esboroou-se em meio a seu deslumbramento.5 A decadência do ciclo da borracha produziu um desmascaramento do artificialismo criado ante “a ilusão do fausto”6. “Uma Amazônia derruída, sem perspectivas, atônita ante a derrocada de um ciclo econômico que ergueu palácios, teatros, palacetes; que deu ares europeus às altas temperaturas locais”7. Dalcídio retrata o universo humano oculto sob a riqueza ilusória, e mergulha profundamente nos efeitos nefastos dessa elitização artificial sobre o povo caboclo das beiras dos rios. A chegada das relações capitalistas na Amazônia traz consigo uma cultura de consumo, e a proposta de um estilo de vida imitativo. A compulsão à imitação da cultura europeia, especialmente francesa, com seus produtos e modismos inicia o processo de construção de um conceito distorcido de progresso e civilização, cujas práticas se estabelecem como grosseiro arremedo da cultura europeia. Dalcídio Jurandir expressa consciência do caráter ilusório e do papel desagregador que a modernidade passou a exercer na Amazônia. Em seus romances está explícita, de forma contundente, a crítica mordaz às elites urbanas e agrárias, que representam o sistema que explora os pobres e produz sofrimento. Podemos afirmar seguramente que a obra de Dalcídio Jurandir constitui um olhar da realidade a partir da perspectiva das vitimas desse sistema dominante. O escritor marajoara ultrapassa a mera descrição, ousando conceder voz e visibilidade às vitimas. Ao invés de meros espectadores passivos ante as tragédias diárias, os personagens são elevados pelo trabalho narrativo à condição de protagonistas. O sofrimento vai além do lamento impotente e se transforma em instrumento de escancaramento de uma situação histórica concreta e 5 FURTADO, 2002, p. 99. 6 Título do livro de Ednea Mascarenhas Dias sobre a decadência do Ciclo da Borracha na Amazônia 7 FURTADO, 2002, p. 12. de denúncia contra os opressores. Do ponto de vista político, as terras do Marajó tornaram-se domínio das oligarquias latifundiárias, criadoras de gado, em geral, descendentes dos portugueses que dominavam a Amazônia desde o período colonial. Sua hegemonia e poder político foram abalados durante a revolução Cabana (1835-1840), mas permaneceram como classe dominante após a revolta ser sufocada pelo governo central do Padre Antônio Feijó. Os grandes proprietários de terras do Marajó, assim como as oligarquias cafeeiras no sudeste, ou as charqueadoras no sul, por exemplo, representavam o controle político despótico, pela violência e intimidação. Os “currais eleitorais” controlados pelos coronéis se ligavam a oligarquias estaduais e regionais, que por sua vez apoiavam as oligarquias que governavam o país. Descendentes de índios e de escravos principalmente, compõem a massa secundarizada historicamente, que se tornou maioria absoluta da população Amazônica. Tal quadro histórico com seus agravantes e aviltamentos muito mais profundos, devido principalmente à distância e isolamento da Amazônia ao restante do país. A desigualdade é tida como um fatalismo do destino, do qual não há como escapar, dessa forma naturalizando-se a miséria e o sofrimento. Desse universo humano sofrido e sem perspectivas, Dalcídio retira a matéria prima para seus romances. Os dramas humanos, ao mesmo tempo em que denunciam uma condição de sofrimento e injustiça, também elaboram um olhar desse universo a partir dos seus avessos e contradições. Dessa forma, o olhar dalcidiano se identifica com o olhar de Walter Benjamin em rever a história a partir de seus reversos, como também se renova ante a intuição de um olhar teológico sobre o universo humano amazônico, que terá que necessariamente priorizar o que foi social e historicamente invisibilizado. A memória dos vencidos: a história a contrapelo A leitura dos romances de Dalcídio Jurandir dentro do contexto histórico e das condições sócio econômicas da Amazônia após o ciclo da borracha e a presença explícita desses determinantes no percurso dos personagens, demonstra o entrelaçamento entre as condições de existência humana e a história. Os romances não têm preocupações historiográficas, mas o autor não abre mão de um diálogo intenso com o processo histórico que determina as condições materiais concretas em que vive o povo do Marajó. Trata-se de um diálogo questionador, no qual o autor marajoara se identifica com a percepção de Walter Benjamin8 (1892-1940), em contestar as versões oficiais que se caracterizam pela empatia com os vencedores, com a história dos dominadores. Há uma teimosia explícita no 8 Crítico literário, filósofo e sociólogo judeu/alemão, ligado à Escola de Frankfurt. “caboclo” Dalcídio, de, a seu modo, também “escovar a história a contrapelo”9. A historiografia predominante no século XIX e por boa parte do século XX, por sua metodologia e interesses, adequou-se aos propósitos “dos que estão interessados em escrever a história dos vencedores e em secundarizar e esconder a história dos vencidos”10. A partir de meados do século XX evidenciou-se o questionamento aos procedimentos que excluíam a história dos esquecidos, e passou-se o buscar de forma sistemática a inclusão dos grupos minoritários e oprimidos. Da mesma forma, o direcionamento das pesquisas começou a apontar para temas relativos ao cotidiano, às mentalidades e experiências localizadas de diferentes grupos. Esse redirecionamento implicou em focalizar a atenção na memória coletiva dos grupos, acessíveis pela utilização de metodologias alternativas às ideias de continuidade e progresso e à compreensão do futuro como mero relacionamento entre causa e efeito, que dominavam a história oficial, e a inclusão de métodos até então secundários, como, por exemplo, a história oral. Os novos procedimentos também passaram a incluir o diálogo intenso com outros campos de conhecimentos e inclusão de conceitos oriundos da sociologia, da antropologia, da psicanálise, entre outros, o que não apenas estendeu o alcance científico das pesquisas por sua configuração interdisciplinar, como, na prática, propiciou que emergissem as histórias de diversos grupos até então omitidos, cuja narratividade passou a ter visibilidade, como a história dos trabalhadores, dos indígenas, das mulheres, dos negros, e de vários outros grupos. Walter Benjamin empreende a tarefa de rever a história a partir dos seus avessos, ou como resgate dos que foram esquecidos e omitidos. Esta reflexão está inserida no movimento intelectual mais amplo da chamada Escola de Frankfurt. Seu pensamento representa uma tensão criativa entre o romantismo alemão, o marxismo revolucionário e o messianismo judaico, o que inclui sua preocupação metafísica e aponta para sua concepção messiânica da história. Por isso a subjetividade tem um lugar importante em sua visão da história: Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. 11 No mesmo direcionamento crítico de desvendar o que está o invisibilizado no funcionamento da sociedade, há a concordância sobre o papel dos mecanismos de manipulação ideológica, como mascaradores das contradições, camuflando os antagonismos, criando uma ilusão de harmonia. No cerne do pensamento crítico está a percepção de que as próprias leis que regem o fazer histórico são também parte da história, portanto condicionadas. Em meio a divergências e intenso debate com pensadores como Theodor Adorno e Max 9 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 225. 10 CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Editorial Quarteto. 2001, p. 49-59. 11 BENJAMIN, 1985, p. 224. Horkheimer, Benjamin aponta algumas convergências fundamentais no plano teórico, como por exemplo, a firme recusa ao determinismo histórico materialista de crença no progresso, que considera ingenuidade, ou seja, a visão da história como processo contínuo e ascendente em direção a um futuro de perfeição garantido pelo progresso da ciência e pelo desenvolvimento tecnológico. Para Benjamin, esta concepção tem efeito desmobilizador sobre a consciência dos trabalhadores, por retirar destes o lugar de sujeitos da história, substituindo a prática pela fé no progresso. Este determinismo histórico corresponde integralmente aos interesses hegemônicos, por se identificar, por empatia (acedia), com tudo aquilo que prevaleceu no passado, com todos aqueles que conquistaram e impuseram sua versão dos fatos e acontecimentos, com os vitoriosos e dominadores de todos os tempos. Aqui está implícita não somente uma rejeição ao historicismo, mas uma crítica à cultura que resulta dessa visão da história. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos de bens culturais. [...] Nunca houve um monumento da cultura que não fosse um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta da barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. (tese 7).12 Para Benjamin, não é possível aceitar a história como um simples resultado previsível de um desenvolvimento necessário. Em resposta a esta visão comprometida ideologicamente com os vitoriosos, elabora o tema político da história dos vencidos, retomando alguns temas do messianismo judaico e do materialismo dialético. Como inspiração, recorre a um quadro, Angelus Novus, de Paul Klee, que ele assim descreve: Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo, que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada e suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única contínua, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irreversivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (Tese 9)13 Um importante exemplo prático do método adotado por Benjamin de interpretar e compreender a história a partir do ponto de vista dos vencidos é uma pequena resenha de uma biografia francesa de Bartolomé de Las Casas, uma crítica publicada em 1929 à obra de Marcel Brion Bertolomé de Las Casas, Pére des Indiens. Nesta resenha, Benjamin solidariza-se com os povos americanos conquistados, descrevendo os sacrifícios impostos pela conquista; “transformou o mundo recém-conquistado em uma câmara de torturas [...] não podemos representar sem horror”.14 Um elemento importante na concepção histórica tradicional, fortemente criticada por Benjamin é a sua linearidade ascendente, sacralizadora das visões hegemônicas. Dessa forma temos que a história 12 BENJAMIN, 1985, p. 225. 13 BENJAMIN, 1995, p. 226 14 Apud LÖWY, 2005, p. 10 não é um movimento contínuo e linear. Mas traz como marca indelével a presença de rupturas, nas quais o determinante é a intervenção do sujeito, que rompe com o conformismo fatalista e assume o protagonismo de seu presente e futuro. O sentido da história vem, portanto, da ação dos seres humanos e não pode ser compreendido a priori, como se estivesse inteiramente definido antes de os sujeitos humanos impetrarem sua ação. É notório, portanto, no pensamento crítico de Benjamin, a marca da alteridade. O outro, enquanto omitido pelas histórias oficiais, derrotado pelos poderes hegemônicos, desperta sentimentos de solidariedade e a necessidade de olhar a realidade a partir de seu ponto de vista, numa negação de qualquer egoísmo interpretativo. O outro também é portador de uma voz que deve ser ouvida. Nesse sentido, é necessário reconhecermos em Benjamin o papel sempre atualizador da memória. Fazer justiça para com a memória dos oprimidos significa tomá-la como um ato de abertura cordial ao outro, recusando toda interpretação narcísica e egocêntrica da história. Esta percepção de Benjamin concede-lhe uma profunda relevância teológica. Da mesma forma, este sentido de alteridade encontramos explícito nos romances de Dalcídio, em seu trabalho de reelaboração da memória dos pequenos, reconstruindo a própria identidade desses outros omitidos pelas versões hegemônicas. Dentro dos objetivos propostos neste trabalho, é necessário anotar as afinidades eletivas (termo weberiano) entre o pensamento de Benjamin e a elaboração, duas décadas depois, da Teologia da Libertação. Ao mesmo tempo, o estabelecimento de um horizonte utópico, possível pela recuperação do protagonismo do sujeito oprimido, torna essa relação inevitável. A convergência entre essa filosofia da história e a teologia compõe o pano de fundo para as elaborações teológicas libertadoras. Os avessos do Marajó de Dalcídio Jurandir Os romances de Dalcído Jurandir não têm a intencionalidade da ciência histórica ou a pretensão de retratar fielmente um momento histórico. O que se verifica é que suas narrativas, alimentadas pela memória, estão intimamente entrelaçadas com as condições histórico-sociais, particularmente com a história do Pará, permitindo um vislumbre das condições dessa sociedade no período retratado pelos romances, as primeiras décadas do século XX. “A possibilidade de escrita da história a partir da obra literária está nessa relação de temporalidade e nas palavras, imagens da realidade social trazida pelo autor para nós, contemporâneos”.15 Tal período é marcado pelas tensões sociais de um momento de ruptura e transição. 15 MARIN, Rosa E. A. Marajó: tableaux de uma sociedade pós-escravista. In: LEITE, Marcos (Org.) Leituras Dalcidianas. Belém: UNAMA, 2006, p. 95. Há uma relação dialética entre a cultura e a barbárie, mediante a qual os vencedores constroem seus monumentos, que “devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos” (Tese 7). 16 São recorrentes nos romances de Dalcídio, as descrições dos monumentos erigidos em Belém durante o ilusório fausto da borracha. O afrancesamento do centro da cidade, o Teatro da Paz, os monumentos históricos, constituem um esplendor construído à custa do trabalho semi escravo de caboclos seringueiros, vaqueiros, pescadores. Na visão dos caboclos era o esplendor de um mundo estranho e inacessível, a quem pertenciam somente os barões da borracha e os poderosos senhores de terra do Marajó. Camareira do Teatro da Paz! Pasmava Cachoeira. Os conterrâneos de D. Rosália achavam demasiado, até mesmo irritante que ela chegasse a ser camareira do maior teatro do Norte do Brasil! [...] - Fui camareira do Teatro da Paz. Conheci o maestro Carlos Gomes, artistas de Portugal. Vesti Lucíola Simões. Ela só não me levou para Lisboa por causa do Saraiva. Saraiva não deixou. (Chove, p. 202). Os grandes monumentos culturais do fausto gumífero foram construídos com o suor, o sacrifício e o sangue da população cabocla da Amazônia. As memórias dos vencedores são monumentos que beneficiam as classes dominantes atuais. Escovar a contrapelo a história dessa cultura significa reler os monumentos e as tradições a partir da perspectiva dos excluídos, caboclos seringueiros, pescadores, vaqueiros, prostitutas das beiras dos rios e tantos outros, nominados por Dalcídio como “arraia miúda”. A organização da sociedade, particularmente no Marajó reflete os condicionamentos de uma sociedade pós-escravista. Os resquícios das relações escravistas estão bem refletidos na maneira como os coronéis mantinham à seu serviço, por exemplo, as negras, tendo-as como amas de leite de seus filhos, tecedoras de redes, amantes e geradoras de seus inúmeros “afilhados”. Para Rosa Marin, o processo de desestruturação da sociedade escravista é ainda incompleto17, o que se reflete nas revoltas mudas elaboradas pelo escritor, como por exemplo, no sentimento intimo da tecedora de redes: “Daí por diante, as redes de siá Felismina eram feitas também com os fios de suas lágrimas, numa revolta contra os brancos. Com esse ódio tecia as redes para o branco ter amor, ter sossego” (Marajó, p. 49). O escritor insiste em frisar o nível de desigualdade e a diferença entre os dois mundos. Os ricos fazendeiros, cujas propriedades dominam as vastidões dos campos, têm vivência com o mundo urbano rico nas grandes cidades como Belém e no Rio de Janeiro. Em fazendas como Marinatambalo, são descritos os resquícios do luxo e da ostentação em que seus proprietários se encastelavam. Também são frequentes as citações de suas viagens ao exterior e de seus filhos sendo educados na Europa. São mundos absolutamente diferentes convivendo lado a lado, cuja 16 BENJAMIN, 1995, p. 225. 17 Cf. MARIN, 2006, p. 97. legitimidade se estabelece como natural e eterna. Em Três Casas e um Rio, o menino Alfredo, em torno dos onze anos de idade, tem sua primeira percepção das diferenças entre as classes sociais e das opções que teria que tomar em relação isso. Aqui temos um entrelaçamento entre personagem e autor, que se concretiza nas opções e lutas ideológicas assumidas pelo escritor: a visão da sociedade dividida em classes com interesses divergentes e conflitantes. Pela primeira vez, em Alfredo, se fazia mais ou menos clara a presença de uma luta surda, muitas vezes disfarçada, mas irreparável, entre as pessoas ricas, tão poucas e as pessoas pobres que eram sem conta. Até então se julgava ao lado das pessoas ricas, inclinado a ser uma delas ou pelo menos protegido, porque seu pai, embora pobre, servia ao intendente. Sua mãe mostrava-lhe uma realidade inesperada, acima de suas soluções de menino, da magia do seu faz-de-conta e o lançava entre os moleques, quase seus semelhantes agora. Ficaria entre os pobres, ao lado dos tios negros ou do lado dos ricos recebendo do Dr. Bezerra promessas e promessas até o fim? Franzia a testa, pôs-se a torcer as pestanas, sucumbido. Esse conflito mergulhou em sua consciência como uma semente, que deveria germinar muito tempo depois. (Três Casas, p. 169) A realidade de sofrimento do povo pobre do Marajó deve ser compreendida também como consequência da estrutura de desigualdade e concentração fundiária, que marca as relações sócio econômicas em toda a Amazônia e particularmente da Ilha do Marajó desde o período colonial. Em Chove nos Campos de Cachoeira, Dalcídio Jurandir faz uma aguda crítica a essa situação, descrevendo o inicio da concentração fundiária em Cachoeira do Ararí. Sua linguagem é irônica ao chamar as terras apropriadas dos pequenos proprietários e cercadas pelo Dr. Casemiro Lustosa de “Bem Comum”. Dr. Casemiro Lustosa é o novo proprietário dos campos de Cachoeira. Com ele os pobres não podem mais tirar lenha, a cerca já foi levantada e de arame farpado. [...] veio com gana de comprar todos os campos da redondeza e cercou-os com arame farpado. Eram os campos onde o povo podia tirar sua lenha, o seu muruci, um ou outro ovo de camaleão, fazer seu passeio. Tudo agora tem um dono só. A vila não pode mais se estender para os campos porque na cerca tem uma tabuleta com letras pintadas pelo Raul com uma negra mão indicando: BEM COMUM Propriedade do Dr. Casemiro Lustosa (Chove, p. 390) A questão das tabuletas proibitivas de acessos às terras do Dr. Lustosa se torna emblemática em relação aos hábitos simples da população de Cachoeira, que jamais vira delimitações sobre os campos. Dalcídio dá relevo à controvérsia que envolve Raul, um pintor de cruzes para o cemitério e o tipógrafo Rodolfo. Ambos acordam resistência contra as tabuletas resultando na terminante negação de Raul em escrever novas tabuletas. A resistência, mesmo que tímida, já está presente como semente de inconformismo. Lustosa falou que necessitava de novas tabuletas, havia comprado novas terras, estendendo a propriedade. Novas tabuletas para evitar as invasões. Era necessário educar o povo. Se bem que povo não soubesse ler...mas uma tabuleta significava sempre proibição. O valor da alfabetização estava também em saber as leis, ler as tabuletas que proíbem... (Três Casas, p. 45) Em Marajó, encontramos a descrição da violência cruel envolvida no processo de apropriação de terras. A cobiça dos fazendeiros ia além do domínio de simples territórios, mas estendia-se ao controle sobre as pessoas; “Coronel queria ter povo na mão. Terra ele tinha que enjoava. Queria terra que tivesse povo. Povo ficava agarrado a ele como turú18 dentro do pau...” (Marajó, p. 35). O controle sobre terras e populações significava a ambição política, ou a garantia dos votos de legitimação de seus domínios. Devorara pequenas fazendas em Cachoeira, estreitando cada vez mais o cerco em torno das últimas e teimosas pequenas propriedades que deixavam, enfim, de lutar com o grande domínio rural. Marajó para Coronel Coutinho e alguns fazendeiros grandes era um mundo à parte, privado, lhes pertencia totalmente. Qualquer pensamento para aliviar as condições do vaqueiro e das fazendas, era como um ato de invasão à propriedade. (Marajó, p. 28) Esse processo de concentração de terras inclui inevitavelmente a utilização de extrema violência contra todos os que, de alguma formam, se opõem ou se tornam empecilhos ao total controle econômico e político exercido pelos fazendeiros. Em Três Casas e um Rio, Dalcidio descreve, solidário, o sofrimento e revolta da menina Andressa, cuja família foi perseguida e morta pelos Menezes, donos da Fazenda Marinatambalo, cujas atrocidades cometidas contra pequenos proprietários e opositores se tornaram lendárias. O Reino de Marinatambalo levantou fama de luxo, esbanjamento e de crueldade também. Dr. Menezes tinha um irmão, o Edgar, administrador da fazenda, que amarrava os vaqueiros nos troncos, marcava-os com a sua marca, surrava-os com as cordas com que amansava os poldros, matava os caçadores e ladrões do seu pomar, tudo em meio dos pavilhões de caça, jardim zoológico, moinhos de vento, fábrica de doces, carruagem, gasômetro, naturalistas, etc. (Três Casas, p. 219). Encontrou-o mariscando com o filho, o maiorzinho, disse-lhe que saísse do igarapé. O caboclo fez-lhe ver umas tantas verdades. O que bastou para que Edgar de cima de seu cavalo, de repente, armar o laço e apanhar João Bolacha pela cintura e arrastá-lo num golpe doido pelo aterroado. Estava o homem botando sangue pela boca, arrebentado, quando o fazendeiro parou no meio do campo. Saltou e deu um tiro bem no meio do peito de João Bolacha. E o que fazer com o curumim que corria aos gritos e caiu em cima do cadáver do pai? Era tudo solidão. O menino a quem chamava? Contavam que Edgar Menezes o enterrou nalgum retiro de Marinatambalo. (Três Casas, p. 339-340) D. Marciana, zeladora da falida fazenda, enumera outras vítimas dos fazendeiros, como fantasmas que consegue ver na solidão da fazenda em decadência: Eu vejo com esses olhos. Não tenho cara de mentir. Dou com a língua neles. Pergunto se é o Dias que morreu de uma bala de rifle no vazio. Se é o Pedro Navegante que perdeu a fazendinha e se findou amarrado num tucumanzeiro. Se é o finado Armando Pessoa que mataram e botaram os grãos dele na boca, depois de cadáver. Se são os Bolachas, se são as moças infelicitadas, outros, outros. (Três Casas, p. 254) Na cosmovisão cabocla, os fantasmas estavam presentes nos lugares onde sofreram suas agonias, e estes de Marinatambalo clamavam pela vingança de suas mortes. “As almas queriam vingar-se. Toda riqueza será feita à custa de tanta malvadeza? As almas não sabiam que seus patrões estavam mortos.” (Três Casas, p. 256). A decadência da fazenda como resultado das crueldades cometidas, se torna um dos fios condutores da compreensão de Três Casas e um Rio. Andressa, menina adolescente, filha de João Bolacha, toma uma atitude ousada: rouba comida e leva aos presos na cadeia, pois os presos eram 18 Larva encontrada dentro dos troncos de árvores caídos à beira dos rios. Também serve como alimentação para os caboclos ribeirinhos. acusados de roubo de gado nas grandes fazendas. Também rouba as chaves da cadeia e as joga no rio (Três Casas, p. 171-172). Ao longo de todo o romance Andressa se torna uma voz acusadora sobre os fazendeiros, clamando a perda da família, morta por Edgar Menezes, reclamando pelo paradeiro do corpo do irmão pequeno, também possivelmente morto. Ao final do romance, os ossos do menino são encontrados pelo herdeiro da fazenda falida, Edmundo Menezes, escondidos atrás de um fogão em Marinatambalo. Missunga, jovem herdeiro do Coronel Coutinho, da fazenda Paricatuba, em Ponta de Pedras, Dalcídio aprofunda a visão sobre as condições de extrema desigualdade em Marajó. O rapaz vive na fazendo do pai devido ao vazio e enfado em que se tornou sua vida de jovem rico na cidade grande, como fracasso nos estudos e na vida amorosa (Marajó, p. 29). Carrega consigo a imagem de uma infância destruída e a angústia existencial de um personagem não resolvido e dividido entre dois mundos, cindido entre a possibilidade do novo e “o mundo sólido e bárbaro que precisava conservar.” (Marajó, p. 311). Seu sentimento de inutilidade refletia-se no enfado pelo presente e na interminável rememoração da infância e dos sonhos perdidos. O presente se tornou um remoer constante do sentimento de vazio em relação ao futuro. “Missunga preso ao seu mundo, desovando na solidão o seu pensamento desasado e miúdo. Rico e inútil, sem saber coisíssima; não dava para nada. Para nada.” (Marajó, p. 52). A permanência do mundo velho, do mundo sólido e bárbaro, em Missunga, afirmada pelo narrador, revela, por outro lado, um fracasso existencial do personagem de mudar situações sociais a partir de uma espécie de voluntarismo social: as estruturas anquilosadas perduram contra o indivíduo.19 O herdeiro único do Coronel Coutinho tinha consciência de que sua boemia, seus luxos e ostentações na cidade grande, eram sustentados pela exploração dos caboclos e vaqueiros de seu pai. “Na cidade, longe da vila, quanta noite de champanhe, espremido do suor e do sangue daqueles caboclos, dos vaqueiros que fediam a couro e a lama ouvindo os tambores do Espírito Santo”. (Marajó, p. 18) A partir desse dilema íntimo é possível compreendermos o fracasso do empreendimento “Felicidade”. Após a morte de um casal de idosos, velhos parentes agregados, o Coronel Coutinho ausenta-se em viagem de descanso a Minas Gerais. Aproveitando-se da situação, Missunga apossase das terras onde moravam os velhos e inicia a implantação de um projeto inovador como contestação aos modos arcaicos adotados pelo pai. Sugestivamente chama o novo empreendimento de “Felicidade”. Contrata trabalhadores que chegam com suas famílias, passando a abrigá-los em barracas precárias à beira do Igarapé. Manda abater cabeças de gado para alimentação dos trabalhadores e dirige pessoalmente os trabalhos de derrubada da mata. É flagrante sua total 19 HOLANDA, Silvio. Mito e Sociedade em Dalcídio Jurandir. In: LEITE, Marcos. (Org.) Leituras Dalcidianas. Belém: UNAMA, 2006, p. 140. inexperiência e as dificuldades para resolver os problemas práticos que começam a surgir. Faltavam sementes, disseram os roceiros. Tinha de mandar buscar sementes em Belém. Onde? Quem tinha? O governo? Algodão! Algodão! Poderia depois chamar D. Felismina para armar os teares de rede, já via uma fábrica de fiação apitando em Paricatuba, um navio no porto esperando cargas de frutas para a América do Norte. Caboclos do Muaná apareceram pedindo trabalho. Traziam famílias. Queriam carne fresca, quinino e calomelano. (Marajó, p. 125- 126). Sua contestação se concentra nos métodos utilizados pelo antigo administrador, José Raimundo, o qual considera como um feitor de escravos. Planeja demiti-lo e a partir do sucesso de “Felicidade”, implantar a nova gestão sobre todas as terras do pai. Tinha mesmo uma excelente oportunidade para tomar conta de todas as fazendas, [...] Aumentaria o ordenado dos vaqueiros. Fundaria uma fábrica de laticínios. Uma charqueada. Contrataria um técnico suíço, seus queijos ganhariam prêmios nas exposições. Mais fácil que plantar algodão, abrir roçado. (Marajó, p. 157). Com o acúmulo dos problemas práticos, Missunga passa a ser dominado pela inquietação. A chegada ininterrupta de mais pessoas, atraídas por trabalho e pela comida distribuída, se transforma numa apreensão crescente. “Já não era o medo do mato que o dominava, mas o medo do povo” (Marajó, p. 148). Sentimentos até então desconhecidos passam a brotar no seu íntimo, como a incapacidade de convívio mais próximo com a miséria como aquela que se lhe apresentava. O sentimento do fracasso aos poucos se instalava como inevitável. Isso lhe dava maior fadiga, vagas repulsas, não sabia ir ao encontro daquelas vozes, ter o ímpeto de caminhar para o povo que já acreditava nele. Também tentava reprimir certa irritação ao sentir que, de qualquer modo, o povo já se instalava ali com a maior naturalidade, como se ele fosse obrigado a servi-lo, e dar-lhe trabalho, carne e remédio. Até diziam que ele fazia tudo aquilo por ordem do governo. Contavam mais: aplicava apenas metade da verba que o governo lhe dera para montar a colônia agrícola. Isso o divertia e o irritava. [...] Criara para si mesmo um problema estúpido que o desmascarava, obrigava-o a conhecer-se melhor, a descobrir dentro de si fraqueza e medos que ignorava. (Marajó, p. 148-149) Há um simbolismo fatalista implícito nesse episódio. Dalcídio expressa sua compreensão da realidade do Marajó e da Amazônia. Há uma visão implícita em relação à história e à sociedade, na qual a dominação e a desigualdade são regras básicas. Sob essa premissa, sua percepção do processo de modernização na Amazônia é pessimista. A modernidade no Marajó significa o fracasso de um futuro que não se realizou, um processo que desde o começo esteve fadado à incompletude, a nunca se realizar integralmente. A desigualdade continuará ser perpetuada sob o poder dos ricos e a exploração dos pobres. Após o reconhecimento do fracasso do empreendimento, é do próprio administrador Manoel Raimundo, a quem contestava, que ouve o conselho final: “Ponha esses projetos de lado e consiga seu diploma menino. Em Marajó quem manda é a providência. Isso só melhora quando Deus mandar”. (Marajó, p. 311). O fatalismo e a desesperança se implantam na consciência das pessoas como regra básica e condição intransponível. Nessa falta de perspectiva o autor mergulha a alma, sendo ao mesmo tempo constatação e inconformismo. Personagem semelhante, encontramos em Três Casas e um Rio. Edmundo Menezes, herdeiro da fazenda Marinatambalo, idealizou um sonho de retorno ao Marajó enquanto estudava na Inglaterra. Somente quando chega ao Marajó descobre que o império fundiário construído por seu pai havia desmoronado, afundado em dívidas. Sua decepção existencial mistura-se aos dramas íntimos da solteirona Lucíola, que havia testemunhado o fausto dos tempos de prosperidade em Marinatambalo. Toda sua cultura e formação europeia não impediram que se consumasse a destruição dos sonhos, o desalento, o abandono e o suicídio em desespero de Lucíola, interpretados pelo autor como o destino inevitável de uma riqueza contraída sobre a crueldade do sangue derramado dos pobres. Seu drama íntimo desemboca ao final do livro, no sentimento de derrota, perseguição e culpa como dívidas herdadas da crueldade de sua família no clamor das vítimas. O fato é que, naquela noite, Edmundo, no seu búfalo, seguiu como se atravessasse a extensão dos crimes e dos castigos de sua família. Sentia-se perseguido e sem saída, ouvindo tropel e vozes. À noite, ventos se levantaram, o fedor do lago, o “não” de Lucíola que subia como um clamor das vítimas, o acossavam. Seguiram-no os tambores do Espírito Santo, abandonados no retiro onde os ossos do menino rangiam atrás do fogão, a febre dos vaqueiros causada pela visão da princesa do lago, o afogado, coberto de peixes, saindo das águas, perseguindo-o. Os vaqueiros mortos deixavam de ser fantasmas [...]. Vinham com arpões e marcas de ferro em brasa, traziam os búfalos selvagens, as piranhas, os jacarés e as onças, as cascavéis e o Bezerro Mole contra os Meneses. (Três Casas, p. 373). Considerações finais Interessa-nos na percepção dalcidiana a interação dialética entre a realidade concreta das estruturas da sociedade e a realidade humana íntima das subjetividades. Mesmo assumidamente materialista dialético, como opção filosófica e ideológica, o autor detecta que as causas do sofrimento humano estão incrustradas sim nas estruturas materiais e econômicas, mas não exclusivamente nelas. Há uma dimensão humana, íntima e subjetiva, na qual o escritor insiste em penetrar e tentar decifrar seus enigmas. Dessa forma, a percepção de Dalcídio tem a capacidade de romper dicotomias e “articular dialeticamente introspecção e denúncia”.20 Teologicamente o quadro humano/conjuntural construído por Dalcídio exige uma decisão e um posicionamento ético. A opção do escritor extrapola-se por seus personagens e ultrapassa em muito uma postura meramente filosófica e ideológica. A opção explícita é, acima de tudo, pelo ser humano massacrado e invisibilizado, cuja alteridade negada se traduz em dor e sofrimento. Já nestas três primeiras obras, escritas durante as décadas de 1940 e 1950, Dalcídio antecipa algumas intuições fundamentais da teologia latino-americana, como a opção preferencial pelos pobres. Os pequenos e excluídos da sociedade, em seus sofrimentos e dramas são os personagens preferenciais de Dalcídio. Ele próprio reconhece sua literatura como a serviço da gente pobre do barranco, sua “arraia miúda”, dedica-lhes seu pequeno dom. O escritor não somente descreve suas 20 HOLANDA, 2006, p. 142. agruras, mas faz uma opção existencial, toma partido em favor deles, solidariza-se a sua dor. Isso significa, em grande medida, sentir o seu sentimento e tornar-se voz de denúncia contra as estruturas que perpetuam a desigualdade e o sofrimento. Bibliografia BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1995. CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Editorial Quarteto, 2001. FURTADO, Marli Tereza. Universo Derruído e Corrosão do Herói em Dalcídio Jurandir. Campinas: UNICAMP. Instituto de Estudos da Linguagem. 2002. HOLANDA, Silvio. Mito e Sociedade em Dalcídio Jurandir. In: LEITE, Marcos. (org.) Leituras Dalcidianas. Belém: UNAMA, 2006. JURANDIR, Dalcídio. Um Escritor no Purgatório. Asas da Palavra, n.4. Belém: UNAMA, 1996. ___________ Chove nos Campos de Cachoeira. Edição Crítica. Rosa Assis (org.) Belém: UNAMA, 1998. ___________ Marajó. 3ª Ed. Belém: Cejup, 1992. ___________ Três Casas e um Rio. 3ª Ed. Belém: Cejup, 1994. LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005. MARIN, Rosa E. A. Marajó: tableaux de uma sociedade pós-escravista. In: LEITE, Marcos (org.) Leituras Dalcidianas. Belém: UNAMA, 2006.