PASOLINI de Abel Ferrara _ 21 de Maio de 2015 sinopse Roma, Novembro de 1975. Pier Paolo Pasolini, cineasta, poeta e escritor conhecido internacionalmente, é um símbolo de luta contra o que está socialmente estabelecido. Os seus escritos originam escândalo e os filmes são perseguidos ou mal entendidos. Pasolini é, simultaneamente, objecto de admiração, estranheza e repúdio. No último dia da sua vida, o cineasta encontra a mãe e, mais tarde, os amigos mais próximos. À noite, decide sair. Na madrugada seguinte, é encontrado brutalmente assassinado numa praia em Ostia, nos arredores da cidade, alegadamente por Giuseppe Pelosi, um jovem prostituto de 17 anos. Com assinatura do aclamado realizador Abel Ferrara ("Polícia Sem Lei", "Os Viciosos", "Chelsea Hotel"), um filme que, nas palavras do actor Willem Dafoe (que o protagoniza), pretende "estar dentro da cabeça de Pasolini". Título original: Pasolini (Itália / França / Bélgica, 2014, 86 min.) Realizador: Abel Ferrara Interpretação: Willem Dafoe, Riccardo Scamarcio, Ninetto Davoli, Maria de Medeiros Argumento: Maurizio Braucci, Abel Ferrara Fotografia: Stefano Falivene Produção: Thierry Lounas Estreia: 1 de Janeiro de 2015 Distribuição: Leopardo Filmes Classificação: M/16 «[…] Abel Ferrara – ele que, já se sabe, marra sempre de frente – lançou-se aqui noutro biopic ‘sem género’ (tal como o é “Welcome to New York”, vago retrato de Dominique Strauss-Kahn ainda por estrear em sala). ‘Sem género’, em primeiro lugar, porque se afasta radicalmente do endeusamento para se preocupar com os factos, pessoas, gestos banais do quotidiano que jogam com o efeito de um documentário: Pasolini no aconchego do lar acabado de desembarcar de um avião, em casa da mãe, a almoçar na companhia da sua atriz-fétiche, Laura Betti (papel muito feliz de Maria de Medeiros, já agora), ou a partir, após o jantar (era o que fazia sempre que podia), em busca de mais um engate com jovens moços do proletariado romano – e tudo filmado com um rigor factual assinalável, impermeável a polémicas. Todas estas cenas são de uma humanidade desarmante, nem sempre comum ao cinema de Ferrara. Filme biográfico afastado dos cânones, também porque Ferrara, próximo dos amigos mais chegados de Pasolini (a sua família, Ninetto Davoli, que surge num curto papel; aliás, Ferrara ficou tão próximo que a roupa que Dafoe veste no filme era do próprio Pasolini…), não só aposta num gesto de desmistificação (veja-se a leitura, afinal tão acidental e tão possível, que aqui se dá da morte do poeta) como desvia o filme para o seu terreno habitual: aquele em que a crueldade do destino é o que mais conta. […] “Pasolini” é fiel à essência que o italiano representa na arte do século XX, sem deixar de ser uma assinatura de Ferrara por inteiro, livre e sem medo.» Francisco Ferreira, Expresso Cineclube de Joane 1 de 5 Filmes, desejos e fantasmas de Pasolini João Lopes, Cinemax Figura essencial na história do moderno cinema italiano, Pier Paolo Pasolini (1922-1975) surge, agora, como personagem central de um filme assinado pelo americano Abel Ferrara — um retrato notável, centrado numa magnífica interpretação de Willem Dafoe. Escusado será dizer que nunca seria simples revisitar, em filme, a vida de uma personalidade tão fascinante, e também tão cheia de contrastes, como Pier Paolo Pasolini (1922-1975). O autor de filmes como "O Evangelho Segundo São Mateus" (1964), "Decameron" (1971) ou "Salò ou os 120 Dias de Sodoma" (1975) foi, afinal, um criador tão ousado no plano temático como inventivo no domínio das linguagens — e, convém não esquecer, como cineasta, mas também enquanto escritor. Ao abordar a figura de Pasolini, o americano Abel Ferrara resiste a qualquer caracterização banalmente biográfica, muito menos determinista. Aliás, o seu "Pasolini" começa por se distinguir pelo arco temporal que escolhe — trata-se de revisitar apenas o derradeiro dia de vida do cineasta (2 de Novembro de 1975), quando foi assassinado numa praia de Ostia, nos arredores de Roma. Não estamos, assim, perante uma "evocação" tradicional. Por um lado, o filme mostra-nos um Pasolini empenhado no lançamento daquele que seria o seu derradeiro filme ("Salò"), ao mesmo tempo que se mantém uma voz activa na discussão da situação política em Itália; por outro lado, através da contaminação de diversos elementos (em particular a escrita de um argumento que deixaria inacabado), deparamos com um criador reflectido no espelho dos seus fantasmas, afinal discutindo sempre os sentidos da sua intervenção pública. Para a vibração emocional dos resultados, é obviamente essencial a composição de Willem Dafoe. Ferrara dirige-o muito para além de qualquer lógica "ilustrativa", pedindo-lhe antes a definição de uma personagem envolvida num turbilhão de desejos e ideias que, em última instância, nos conduzem à discussão do próprio lugar social do artista. Nesta perspectiva, para além da sua visão dialéctica de Pasolini, o filme "Pasolini" pode ser também uma sugestiva porta de entrada no seu universo literário e cinematográfico. Ferrara & Pasolini Entrevista a Abel Ferrara por João Lopes No seu Pasolini, Abel Ferrara encena um cineasta marcado pela história trágica de Itália: o filme foi feito logo após Welcome to New York (ainda por estrear entre nós), inspirado no escândalo de Dominique Strauss-Kahn — esta entrevista com Ferrara foi publicada no Diário de Notícias (31 Dezembro), com o título '“Nem os melhores amigos de Pasolini sabiam como ele era”'. Será que podemos dizer que o seu Pasolini é uma personagem à procura de algum tipo de redenção? Não sei. Para mim, e também para o Willem Dafoe, tratava-se de tentar perceber o que estava a acontecer na cabeça de Pasolini. Em boa verdade, gostava de saber como é que Pasolini definiria a palavra “redenção”. Pode dizer-se que ele foi o centro de toda uma paisagem criativa em que sempre soube encontrar o equilíbrio entre o trabalho e a família, garantindo a si próprio o tempo que precisava para escrever, para fazer filmes. Mais do que isso: o tempo para escapar a tudo Cineclube de Joane 2 de 5 isso e procurar aquilo que sentia necessidade de procurar. Em particular procurando as “razões” (entre aspas) do seu prazer — podia não ser o prazer dos outros, mas era o seu. E é preciso não esquecermos que ele viveu a tragédia da Itália: a ascensão do fascismo, a invasão dos nazis e depois, num certo sentido, a invasão dos americanos e dos exércitos aliados — foram, afinal, momentos que conduziram à libertação de Itália. Seguiu-se a tomada do poder pelos democratacristãos, uma “era dourada” (de novo entre aspas) de progresso e daquilo que para ele era o maior flagelo, ou seja, o consumismo. Creio que, de certa maneira, como intelectual, como homem de acção, ele se sentia responsável por tudo isso — como tinha sido possível o país ter chegado ao que chegou? Através dele, acabamos por rever também a história de Itália. É uma realidade que ele não pode nem quer evitar. Quando se vive dessa maneira, no fim de tudo isso há qualquer coisa de destino, de “karma” — acabou morto numa praia... Pasolini sabia a vida que vivia. Na sua derradeira entrevista, foi ele próprio que o disse: “Tenho de pagar pelas consequências das minhas acções e vou até ao inferno, se for preciso”. Voltando à palavra “redenção”... Como é que podemos definir redenção? Talvez no sentido de não desistirmos de acreditar que o Bem é possível contra o Mal. Para além de todas as diferenças de história e contexto, a questão também surge a propósito da personagem de Devereaux (Gérard Depardieu), em Welcome to New York, quando diz “sei que não vou mudar”. E, no caso dele, sem qualquer hipótese de redenção. Devereaux é alguém que não vai, obviamente, sentar-se e dizer: “O problema talvez seja eu...” Centrando-se no derradeiro dia de vida de Pasolini, o seu filme evoca Salò ou os 120 Dias de Sodoma, um objecto cinematográfico que lhe valeu muitos ataques; houve quem considerasse que a “transposição” da obra do Marquês de Sade para o fascismo italiano não fazia sentido. Eram acusações deslocadas e absurdas. Ele viveu durante o fascismo, o irmão era um “partisan” que foi assassinado... Pasolini deixou uma obra visionária, de uma clareza admirável e, ao mesmo tempo, com um invulgar poder de abstracção. Aliás, Salò é quase um documentário. O que é que as pessoas pensam que os fascistas fizeram? Assassinaram seis milhões de pessoas! Quase se pode dizer que vemos Pasolini mais como escritor do que como cineasta. Qual foi a importância dos seus escritos na elaboração do filme? Foi essencial, em particular a leitura dos derradeiros trabalhos. Num certo sentido, foi mesmo importante que fossem trabalhos inacabados, confrontando-nos com interrogações dramáticas — por exemplo, até onde poderia ter ido um livro como Petróleo? E o argumento que ele não concluiu? Nessa perspectiva, Pasolini não se apresenta como um filme biográfico. Afinal de contas, que sabemos sobre ele? É o tipo de pessoa que nem sequer os melhores amigos sabiam como ele era. E sabiam que não sabiam — é esse o belíssimo mistério de Pier Paolo. Cineclube de Joane 3 de 5 E quanto a si, aceita definir-se como um cineasta independente? É preciso ser independente, no sentido em que é importante pôr em cada filme a nossa individualidade, a nossa visão — a minha maneira é... a minha maneira, não há ninguém como eu. Há algum cineasta ou cineastas que siga, em particular? Não sigo ninguém, estou ocupado a fazer os meus filmes. Houve uma altura da minha vida em que via filmes e mais filmes, como um viciado. Esse período acabou: ando a fazer filmes, não a vê-los. Não vejo televisão, embora acompanhe a minha equipa de futebol, os New York Jets. E leio. E toco guitarra. Entretanto, Welcome to New York continua inédito nos EUA. É uma batalha que estamos a travar, porque não estou disposto a abdicar do direito à montagem final. E ninguém vai tocar na “porcaria” do meu filme! A cabeça de Dafoe, o corpo de Depardieu Câmara Escura, 24 de Novembro de 2014 No Festival de Cannes, em Maio, quando apresentou Welcome to New York, inspirado em (mais do que filme “sobre”…) Dominique Strauss-Kahn (que no filme se chama Devereaux), o realizador Abel Ferrara aproximara essa figura da de Pier Paolo Pasolini, personagem do seu Pasolini, que apresentaria no Festival de Veneza em Setembro: a “blasfémia” como forma de ambas não se poderem conter, não poderem negar angústias e pulsões sob pena de se negarem a si próprias; como expressão vital, percurso de quem “prescindiu dos espelhos e dos reflexos, como num filme de vampiros”, dizia Ferrara. Muito excitante, então, confrontar os dois filmes. Natural, também, a ânsia de ver a solidão do universo ficcional de Ferrara ser o habitat de figuras do chamado mundo real – como se tivessem a energia, a verdade, das criações da tal ficção com vampiros. Pasolini é um dos cineastas da formação de Ferrara, um dos seus ícones. Fala dele como um adolescente fala do ídolo rock que trata por “tu”. Pasolini é filme de fã. Dafoe veste-se com as roupas de Pier Paolo, emprestadas por Ninetto Davoli, amigo e actor do poeta/cineasta (Teorema, Decameron, Os Contos de Cantuária…). A cerimónia tem como memorabilia as palavras, o pensamento de Pasolini. “A arte narrativa está morta, estamos no período de luto”, dizia Pier Paolo. O fã Abel oferece ao ídolo (“He was the Teacher we are the students”, vai dizendo Ferrara nas entrevistas) a prova de que aprendeu a lição, querendo ficar bem perante o mestre. Um filme sobre Pier Paolo? Um filme para Pier Paolo: um compósito, substituindo o tradicional biopic, que tem por base a recriação da última entrevista de Pasolini, a Furio Colombo, onde sintetizou um totalitarismo emergente, o consumismo, a destruição de uma humanidade Cineclube de Joane 4 de 5 ancestral. Adorna-se esse centro com a visualização de passagens de Petróleo, o romance póstumo de Pasolini, e com a imaginação do que poderia ter sido o filme que deixou por fazer, PornoTeoKolossal, que teria participações de Ninetto Davoli e Eduardo De Filippo (piscadela de olho: é Davoli que agora interpreta De Filippo; suplemento de emoção na homenagem: Adriana Asti, actriz em Accatone, interpreta a figura da mãe de Pasolini, tão amada pelo filho). Pasolini, nas intenções de Ferrara/Dafoe, habita o pensamento de Pier Paolo. É um filme sobre uma thinking head, figura sem corpo, sem sexualidade (mesmo que haja “reconstituição” das cenas que levaram ao crime, Óstia, 2 de Novembro de 1975), figura sem escândalo. Se Dafoe é um impressionante duplo, é sobretudo um invólucro para um pensamento – perante o qual Ferrara aparece dócil, reverente, desse pensamento fazendo consensual resumo. Em Welcome to New York Abel teve à disposição o corpo, e os uivos, de Depardieu. Gerard: uma afirmação escandalosa. Agora sim: Devereaux/D.S.K (Depardieu?) é uma criação do universo de Ferrara, como o Harvey Keitel de Polícia sem Lei. À thinking head opõe-se o corpo uivante. Mais bonito ainda: permite-se que um corpo continue a contar a sua história e a sua memória – e através dele, continuarmos a nossa. As imagens de Devereaux/Depardieu nu são um inapelável presente daquilo que se vislumbrou no corpo nu entre os arranha-céus de Manhattan no Adeus Macho (1978), de Marco Ferreri: Depardieu jovem, quatro anos depois de se ter imposto à produção de Les Valseuses (1974), de Bertrand Blier, como se disso dependesse a vida (e dependia, percebe-se na autobiografia que publicou, Ça C’est Fait Comme Ça), energia imparável condenada à solidão, ao anacronismo, porque o mundo estava a acabar - isto é, o casal, tal como o conhecemos. O seu Devereaux de Welcome to New York é o presente da viagem do instinto iniciada pelo voyou de Château-roux, delinquente, iletrado, quase autista, que encontrou nos textos e no cinema, em Peter Handke, Duras ou Pialat, a possibilidade de ler, falar, de se dizer. Não há redenção que salve Devereaux. Não há sentimento de culpa que páre Depardieu, escreve em Ça C’est Fait Comme Ça, isso seria deixar de respirar. O cinema apocalítico de Ferreri, companheiro de escândalo, nos 70s, de Pasolini, construiu-se na expectativa de destruição de um mundo — e empurrou esse mundo para a destruição. Em A Última Mulher (1976), Ornella Mutti desafiava Depardieu a inventar algo de novo para a “família” (Depardieu cortava o pénis). Talvez se possa dizer que Welcome to New York, ou Devereaux (Depardieu) e Simone (Jacqueline Bisset) – ou DSK e Anne Sinclair –, continua esse desastre, a história de amor. Cineclube de Joane 5 de 5