Terra sem lei prostituição, drogas e violência na maior obra do PAC Por Maria Laura Neves (texto) e André Vieira (fotos) Uma mãe tem 13 anos e está grávida de 4 meses. Outra, de 43, mudou o filho de estado para afastá-lo do tráfico. Uma mulher viu o marido ser morto a tiros no quarto onde dormiam. as cicatrizes na vida dessas três mulheres têm uma origem em comum: a chegada de 20 mil trabalhadores, quase todos homens, ao vilarejo de Jaci Paraná, no município de porto velho para a construção das usinas hidrelétricas de jirau e Santo Antônio, a maior obra do programa de aceleração do crescimento (PAC) do governo federal. A falta de preparo e de planejamento para receber esses migrantes fez com que a população do sul da floresta amazônica — em especial as mulheres — arcasse com os custos do progresso. Jaci, em tupi, quer dizer “deusa-lua”, entidade protetora dos amantes e da reprodução. Paraná quer dizer grande rio. Jaci Paraná é o nome de um pequeno, pobre e empoeirado vilarejo de Porto Velho, onde a deusa indígena deve estar tendo bastante trabalho. Jaci é o maior bordel a céu aberto de Rondônia e talvez um dos maiores do país. Tudo em Jaci gira em torno da prostituição. São 44 pequenos cabarés construídos em casas feitas de tábuas de madeira e telhas de fibra. É mais do que a soma de todos os mercados, padarias e farmácias da região. A qualquer hora, do dia ou da noite, garotas de programa se exibem na porta dos bares, vestidas em pequenos shorts jeans e tops apertados, deixando as gordurinhas da barriga à vista. Elas começaram a chegar de vários estados do país há três anos, pouco antes da construção das usinas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio. Juntas, as obras empregam 35 mil trabalhadores, na grande maioria homens, e formam a maior obra do PAC, o principal projeto de desenvolvimento de infraestrutura do governo federal. A partir daí, Jaci virou a promessa do novo Eldorado brasileiro, a terra das oportunidades — para homens e mulheres. A sexta-feira seguinte ao dia 5 é a data mais aguardada do mês em Jaci Paraná — a 30 quilômetros de Jirau e 90 de Santo Antônio, a vila virou o polo dormitório dos trabalhadores. É quando os funcionários das obras vão para os bares festejar as folgas do fim de semana com o pagamento no bolso. Jogam sinuca e carteado, fumam, tomam cerveja e gastam boa parte do salário em fichas de jukebox, que toca forró, brega e sertanejo em um volume que torna impossível qualquer conversa. Os hits são “Madri”, de Fernando e Sorocaba, e as músicas da banda Calcinha Preta. Durante o dia, é possível encontrar homens vestidos com o uniforme de trabalho, circulando nos bordéis. À noite, “os amigos” (como são chamados pelas prostitutas) chegam nos bares de sorriso no rosto, banho tomado, cabelo penteado, calça jeans, camiseta e, quase sempre, boné. Os cabarés e as ruas de terra ficam lotados de homens, na maioria das vezes jovens. As meninas chegam a fazer 15 programas na mesma noite e ganhar R$ 1 mil em algumas horas de trabalho. Elas dividem os ganhos com as cafetinas, donas dos bares, que, em geral, são mulheres mais velhas com longa experiência na profissão. A maioria delas veio de uma mesma cidade, Sapezal, em Mato Grosso, onde há uma corrutela (como os locais costumam chamar a área onde ficam os bordéis) famosa. Muitas garotas acompanharam suas chefes na busca pelos salários das obras do PAC. Outras vieram do Acre, do Maranhão e do próprio estado de Rondônia. Quase sempre viajam de carona com pouco ou nenhum dinheiro e pagam a viagem aos caminhoneiros em serviços. Os bares costumam ter de duas a quatro funcionárias fixas: a gerente e as outras ajudantes, que moram em cubículos de madeira nos fundos dos cabarés, na beira da estrada. Os quartos são precários, construídos, muitas vezes, sobre as fossas. O mau cheiro é permanente. É parte do trabalho das prostitutas fazer com que os clientes consumam durante o máximo de tempo possível antes do programa. Elas conversam, sorriem, fumam, dançam, sentam no colo deles, antes de chegar ao objetivo final. Os preços em Jaci, aliás, estão inflacionados: uma cerveja de garrafa custa R$ 5, uma sandália rasteirinha, R$ 80. Alguns clientes frequentam os cabarés apenas como bar. “Tem homem que quer só conversar. Eles vieram de longe e ficam muito sozinhos. Tenho até de pedir pra eles irem embora”, diz Cláudia*, uma morena de cabelos compridos, sorriso doce e olhos grandes. Ela tem 24 anos, está grávida de cinco meses e pede para não ser identificada — a família não sabe o que ela faz exatamente em Jaci. Ela diz que recebe R$ 3 mil mensais pelo trabalho como gerente do bar e como prostituta, e mora de graça em um quarto de dois metros quadrados nos fundos do boteco, onde nos recebeu. Assim que entramos no quartinho, um amigo que nao notou nossa presença a puxou pelo braço para a cama. Ela rispidamente tirou a mão dele e ordenou que saísse. Ele obedeceu rapidamente e ela, sorrindo, mas sem coragem de nos olhar nos olhos, esticou uma pequena fronha limpa em cima do colchão sujo e florido, onde dorme e trabalha. Mãe de três filhos, dois meninos de 8 e 6 anos e uma menina de 3, ela saiu pela primeira vez de Porto Velho há três meses em busca dos ganhos de Jaci, famosos na região. Diz que faz programas para sustentar “os meninos” e sonha com um emprego na usina. O pai dos filhos mais velhos morreu assassinado há cinco anos. “Até hoje não sei o motivo. Ele trabalhava numa fazenda por aqui. Atiraram quando ele tava saindo pela porteira, de carro”, diz, com lágrimas nos olhos. “É o amor da minha vida. Tu quer saber se sinto saudade dele? Ôxi, até hoje. Mas gosto de falar disso, não”. Viúva, Cláudia se apaixonou pelo professor de biologia da escola, com quem foi morar. Ele largou a mulher para ficar com a aluna e tiveram uma filha. “Digo que estudei, não digo que casei. Larguei a escola por causa da bebê, mas durante todo o tempo que fiquei com ele só fazia estudar. Fiz curso de digitação, de recepcionista.” A paixão acabou, ele voltou para a ex-mulher e os cursos não ajudaram Cláudia a encontrar um emprego na cidade. Foi quando ela engravidou de um novo namorado. Ele contestou a paternidade e o namoro acabou. Cláudia deixou os três filhos com a irmã e mudou-se para Jaci. No começo de maio, quando a visitamos pela última vez, ela nos contou que o pai do bebê renegado foi procurá-la no bordel. Deu um pequeno par de brincos e disse que sentia saudade. “Eu acho que gosto dele, mas não vou voltar agora só porque ele quer. Mas, olhe, tem que gostar muito para vir me procurar nesse fim de mundo, tem não?”. Dentro dos cabarés, as cafetinas não costumam aceitar prostitutas menores de idade. Nas ruas, no entanto, é possível encontrar adolescentes circulando em trajes justinhos durante toda a noite. Elas se concentram na boate do “reggae”, que apesar do nome toca funk, e na “Esquina do Geladão”, onde há DJ e pista de dança. Nesses lugares, elas bebem e dançam sensualmente rodeadas por homens. “A prostituição infantil em Jaci é muito sutil. Não é ostensiva. Os homens presenteiam as meninas com um tênis, um celular e isso é suficiente para que consigam dormir com elas”, diz a delegada Noelle Xavier, da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente de Porto Velho. Muitas vezes os pais das garotas são coniventes, segundo Noelle, pois a miséria é o principal motivador da prostituição infantil no vilarejo. “Já teve pai que veio tirar a filha da escola dizendo que estudo não dá dinheiro e levou a menina para os bares”, diz Tarcísio Inácio Ramalho, vice-diretor da escola estadual Maria de Nazaré dos Santos, onde estudam os adolescentes de Jaci. Além da prostituição, o tráfico também acontece à luz do dia, principalmente nos bordéis, onde as próprias prostitutas vendem maconha, cocaína e crack. Traficantes também rondam a corrutela de moto. O vilarejo fica a 140 quilômetros da fronteira com a Bolívia. Essa proximidade colocou Jaci dentro da rota de entrada da pasta de coca no país. “O consumo de drogas, que já era alto, ficou ainda maior depois da chegada das usinas”, diz a conselheira tutelar Ângela Fortes. Joana*, 43 anos, mora em Jaci e é mãe de três jovens. Ela conta que tirou seu filho da cidade depois de ele ter se envolvido com drogas, no ano passado. “Não sei direito o que ele consumia, acho que era maconha porque ele fumava e tinha um cheiro bem forte. Meu filho disse que era a própria polícia quem vendia. Numa vingança, os policiais invadiram minha casa e disseram que encontraram uma quantidade enorme de droga no quarto dele. Meu mundo caiu. Criei meus filhos sozinha, o pai deles foi assassinado em uma briga com traficantes. Quando soube que meu filho estava envolvido, vi o filme se repetir na minha cabeça. Ele foi preso, mas depois inocentado na investigação. Não tive coragem de trazê-lo de volta. Mandei meu menino para casa de parentes em outro estado.” Enquanto o tráfico é a grande ameaça aos rapazes, a gravidez na adolescência é um dos principais problemas das meninas de Jaci. Nos primeiros três meses do ano, 33 meninas com menos de 18 anos começaram o pré-natal no posto de saúde de Jaci. Boa parte delas engravidou dos funcionários das usinas. Em meio à pobreza, os trabalhadores das firmas representam uma possibilidade de ascensão social. Mariane* tem 13 anos e está grávida de 4 meses. Mudou-se para Jaci há um ano com a mãe, Lúcia*, e três irmãos. Lúcia buscava um emprego no comércio. Quando a família chegou, a mãe começou a trabalhar todos os dias da semana, das 5 h às 14 h, num restaurante e, das 15 h às 22 h, em outro, e Mariane ficava em casa com os irmãos. Foi quando conheceu o pai do seu filho, funcionário da usina, e morador da sua rua. Perdeu a virgindade e engravidou aos 12 anos. “Ele ficou assustado quando soube que eu estava grávida. Não falou nada”, diz Mariane, que abandonou a escola porque anda muito sonolenta em função da gravidez. “Eu também fiquei assustada, mas nunca pensei em tirar.” Mariane diz que menstruou pela primeira vez aos 10 anos e parou de brincar de boneca no ano passado. Os médicos que a atenderam no hospital de Porto Velho instruíram Lúcia sobre as medidas que ela poderia tomar caso quisesse denunciar o pai do bebê por abuso de menor. “Eu não quis que ele fosse preso, não. Se ele fez o filho, vai ter de assumir”, afirma Lúcia. Desde que foi confirmada a gravidez, o sustento de Mariane, que ainda mora com a mãe, ficou por conta do pai do bebê. “Jaci Paraná é um Velho Oeste” é uma frase que se ouve com frequência na região. Se lá a noite começa barulhenta e animada, à medida que a madrugada chega, um clima de tensão toma conta das ruas e dos bordéis. Os cabarés fecham as portas à meia-noite — horário em que começam a sair as brigas entre a clientela exaltada. Os moradores, que quase não saem às ruas depois que escurece, não ficam sequer na janela de casa, como em qualquer cidade do interior. A primeira delegacia do vilarejo foi inaugurada na última semana de abril, no distrito de Nova Mutum, a 15 quilômetros de Jaci. Ou seja: quem não tem carro tem de caminhar duas horas para chegar até lá. A delegacia não tinha telefone até o fechamento desta edição e só funcionava pela manhã. A delegada responsável também não tem celular, segundo informações da Direção Geral da Polícia Civil de Rondônia. O aumento populacional (moradores falam em 20 mil novos habitantes na vila que antes comportava 4 mil) trouxe mais violência para Jaci. São histórias de assalto à mão armada à luz do dia, brigas com facadas durante a noite. Além do tráfico, os conflitos de terra têm gerado mortes violentas no vilarejo. Com o anúncio da chegada das usinas, o valor dos terrenos subiu. Segundo moradores, um lote de 400 metros quadrados valia R$ 100 há dez anos. Hoje vale R$ 10.000. Como boa parte dos terrenos de Jaci não possui documentação, instaurou-se uma briga pelas terras sem dono — ou com mais de um dono. As disputas, em Jaci, costumam ser resolvidas na ponta da faca ou com balas de revólver. Foi em uma briga por causa de terras que Silvia de Alcântara, 25 anos, moradora de Jaci, foi baleada e perdeu o marido, o fazendeiro Adaíldo Araújo da Silva, 49. O casal dormia no quarto de casa quando dois pistoleiros encapuzados desceram de uma moto para matá-los. Do lado de fora da casa, um dos assassinos deu um tiro na janela em direção à cama onde eles estavam deitados, enquanto outro atirou na fechadura da porta da casa. Silvia rolou para o chão ao lado da cama. Ficou encolhida embaixo da janela, fora da mira do atirador. O pistoleiro passou o braço pelo vidro quebrado e deu mais de 20 disparos contra o marido dela, caído no chão do outro lado da cama. Ela ouviu tudo. Silvia levou um tiro na virilha. A filha dela, Gabriela, 6, tinha acabado de sair da cama do casal quando o crime aconteceu e ouviu os tiros do seu quarto. “Quando os disparos acabaram comecei a ouvir a Gabriela dizer: ‘Mamãe, mamãe’, mas não tive coragem de responder porque não sabia se os assassinos ainda estavam em casa. Depois de algum tempo de silêncio, levantei do chão e fui andando em um pé só até o quarto da Gabriela. Ela estava encolhida no canto da cama e me perguntou o que tinha acontecido. Respondi que bandidos haviam entrado em casa. Os policiais chegaram para me socorrer e ela ficou sozinha em casa. Foi quando viu o padrasto morto”, diz Silvia. A polícia a levou para o posto de saúde onde conversávamos com a enfermeira plantonista. Ela chegou com as pernas ensanguentadas e, naquele dia, não havia médico de plantão. Enquanto a enfermeira realizava os primeiros socorros, o irmão de Silvia chegou com Gabriela na garupa da moto. A menina chorava e tremia com as mãos juntas, num gesto de oração. Quando teve alta do hospital, Silvia mudou-se para Porto Velho e procura uma vaga para Gabriela na escola. Os habitantes de Jaci Paraná têm orgulho em dizer que são “filhos do distrito mais antigo de Rondônia”. Mas se entristecem ao constatar que a vila, palco de várias ondas migratórias, não se desenvolveu. Do final do século 19 até e metade do século 20, Porto Velho e Jaci Paraná receberam seringueiros durante o ciclo de exploração da borracha. Nos anos 70 e 80, foi a vez da exploração do garimpo atrair milhares de migrantes. A última grande promessa de desenvolvimento são as usinas do PAC, que devem começar a funcionar em 2012 e empregar muito menos gente do que as obras levaram para lá. Quando Jirau e Santo Antônio ficarem prontas, os homens e seus salários irão embora. Sobrarão as mulheres, as mães e as meninas com seus bebês. Que Jaci, a “deusa-lua”, fique com elas. O preço do avanço As usinas do Rio Madeira devem gerar energia para 20 milhões de casas no país, a partir de 2012. Jaci Paraná sofre influência das duas obras. De acordo com a legislação, os consórcios que estão construindo as usinas (Energia Sustentável do Brasil, de Jirau; e a Santo Antônio Energia, de Santo Antônio) têm de fazer investimentos na região para compensar danos sociais e ambientais das construções. O Ibama estipula os investimentos baseado nas demandas da população local quando concede a licença ambiental. Juntas, as empresas afirmaram destinar R$ 369 milhões a projetos de compensação social para a região. Em Jaci, ampliaram as escolas e o posto de saúde, construíram uma sede administrativa onde funciona o conselho tutelar e cederam instalações para a polícia. Também realizam campanhas de combate à exploração sexual, ao uso de drogas e à violência contra a mulher. Tais investimentos, no entanto, parecem insuficientes ou mal-aplicados. A ministra Maria do Rosário, dos Direitos Humanos, disse que o governo federal está preocupado com os problemas no entorno das usinas do rio Madeira. Afirmou que uma comissão ministerial foi criada para solucioná-los e evitar que se repitam na construção da usina de Belo Monte, no Pará. “O Brasil precisa de uma licença social, além da ambiental, que prepare as comunidades para receber grandes obras”, diz. Os investimentos deveriam, portanto, ser feitos antes do início da construção e da migração — e não concomitante à obra, como acontece hoje.