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rem koolhaas
entrevista 39
Texto Gabriel Kogan
Fotos Paulo Giandalia
pensador do nosso tempo
em entrevista exclusiva à bamboo,
o arquiteto rem koolhaas se revela
um colecionador de histórias e um
questionador das cidades e do
planejamento urbano
Em sua breve passagem por São Paulo, o
arquiteto holandês Rem Koolhaas – eleito
pela Time, em 2008, uma das cem pessoas
mais influentes do mundo e prêmio Pritzker
em 2000 – nos concedeu uma entrevista
longa e exclusiva no lobby do hotel em
que estava hospedado. Seu escritório, o
OMA, tem sedes em Rotterdam, Nova York,
Pequim e Hong Kong. Além disso, Koolhaas
é professor de Harvard, onde coordena um
núcleo de pesquisas urbanas.
B Manter também o uso?
Assumidamente amante da arquitetura
moderna brasileira, na entrevista, partiu de
uma discussão sobre o (recém-demolido)
edifício paulistano São Vito e a apropriação
da arquitetura moderna pelos pobres para
falar sobre São Paulo, além de Brasília,
da Holanda, de Rotterdam e da Cidade
de Lagos, sobre economia, revoluções,
alienação e outros assuntos.
RK Eu já vi esse edifício no Rio de Janeiro.
Um sócio que eu tive foi assassinado lá. Ele
foi tirar fotos e foi morto. Ele era meu sócio
em 1980 e estávamos comemorando o fato
de que tínhamos conseguido nosso primeiro
projeto. Ele veio então para o Rio e resolveu
tirar fotos desse prédio. Foi assassinado
São Vito
B Sr. Koolhaas, meu avô foi o arquiteto do
Edifício São Vito, o lugar do seu primeiro
projeto aqui no Brasil.
RK Eu gostaria de ver o prédio. Ele ainda
está lá?
B Não. Foi demolido pela atual prefeitura
sob o pretexto de revitalização da área.
Como você enxerga a demolição, doze
anos depois do seu projeto aqui, numa
perspectiva urbanística?
RK Primeiramente, eu achava o edifício
esplêndido e, em segundo lugar, sempre
tive interesse pela relação entre pobreza e
arquitetura moderna. Achava profundamente
emocionante as pessoas pobres terem se
apropriado do prédio. Eu sei que isso trouxe
também muitas coisas negativas por lá, mas
era em si uma situação interessante. Eu
tentei propor um elevador, tentei fazer alguma
coisa para que ele pudesse, ao mesmo
tempo, ser mantido e também habitado
por aquelas pessoas. Acho que esse é um
assunto realmente crucial – precisamos
encontrar uma maneira de integrar pessoas
à cidade. Nesse meio-tempo, eu me envolvi
com a questão de preservação do patrimônio
e fiz uma exposição sobre isso na Bienal de
Veneza, o que era justamente um argumento,
absurdo ou não, para que esse tipo de
edifício não fosse sacrificado pelos valores
da classe média. Para que pudessem ser
mantidos no seu estado mais puro.
RK Sim. Também o uso e também a relação
desses prédios com as pessoas pobres.
B Existe outro caso histórico no Brasil,
similar ao São Vito: o Pedregulho, no Rio,
uma habitação social que era uma resposta
para muitos problemas urbanos e foi forçada
a se destruir. Esse edifício foi pensado
também para pessoas muito pobres.
São Paulo e a Economia de Mercado
B Algumas vezes, dizia-se que o São Vito
era um prédio anacrônico com aquela torre
gigantesca. Você acha que essa crítica cabe
melhor ao edifício ou às políticas urbanas
que o demoliram?
RK Eu diria nem tanto a política, mas a
cultura em que vivemos. Eu acho que a
cultura da economia de mercado é, em
alguns aspectos, muito tolerante, mas em
outros, extremamente intolerante. Ela é
muito intolerante para intenções sociais e
muito intolerante com o pobre. Parece-me,
então, que é mais a intolerância do mercado
que está ameaçando esses prédios – mais
do que a política atrasada ou não. Eu não
conheço suficientemente a política daqui
para concluir, mas acho que todo o mundo
sofre, globalmente, de um mesmo fenômeno que nós adotamos, querendo ou não,
sabendo ou não: os valores da economia de
mercado. E isso significa que, de repente,
descobrimos que uma série de ambições
sociais não são mais sustentáveis.
B O centro de São Paulo perde população
enquanto a construção do metrô é de
apenas 2,5km por ano, o que é ridículo para
o tamanho da cidade. Estamos lidando com
uma espécie de “desmanhattanização” das
cidades, especialmente no terceiro mundo,
com cidades menos densas e com menos
transporte público?
RK Sim. Eu acho que isso é parte domesmo
fenômeno porque a economia de mercado
é o oposto das políticas públicas. Assim,
o transporte público é simplesmente
A partir da discussão sobre
a apropriação popular
do demolido São Vito,
no centro de São Paulo,
Koolhaas avalia a relação da
sociedade com as cidades
em constante crescimento.
Veja mais
oma.eu
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rem koolhaas
incompatível, em longo prazo, com os
valores íntimos da economia de mercado.
Eu não sou pessimista, mas estamos em
um momento interessante. Ronald Regan
veio em 1980, isso significa que tivemos 30
anos de economia de mercado em todas as
partes. É possível agora enxergarmos quão
fortes são as contradições sobre tudo isso.
Você vê em todas as partes, seja na Holanda
ou no Brasil, que as pessoas estão lutando
porque, de repente, não há mais dinheiro e
o setor público deveria ser muito mais ativo,
mas está se tornando menos poderoso. De
alguma forma, as pessoas vão começar a
lutar pela condição pública de volta.
B Então isso não é um privilégio nosso, é
um movimento global?
RK Exatamente, não é único.
B Em São Paulo, a ONU já falou em um
déficit habitacional de 5 milhões de pessoas
(equivalente a 1/3 da população holandesa).
Como a arquitetura ou qualquer conhecimento urbanístico pode lidar com isso?
RK Eu não estive no Brasil por 12 anos,
então não sei. Mas na Holanda existe o
mesmo fenômeno. Era exatamente sobre
isso que eu estava falando; de alguma
forma, o setor público deve avançar e
descobrir um tipo diferente de economia.
B Na Holanda você se refere especificamente aos imigrantes?
RK Não apenas aos imigrantes. As pessoas
locais também enfrentam dificuldades. Claro
que na Holanda é muito diferente porque
não existe o mesmo tipo de pressão, não há
desespero. Basicamente, todo mundo que
quer viver na cidade vive na cidade. Aqui me
parece que ainda existe um desespero das
pessoas para se estabelecer nas cidades
porque essas cidades têm potencial de
lançá-las a alguma outra condição.
Urbanismo Histórico x Cidade Global
B Para você existe algum antagonismo entre
um urbanismo histórico – humanista e cheio
de vida – e a cidade global tradicional?
RK Eu diria que, cada vez menos eu sou
um entusiasta da cidade global. Em uma
breve caminhada aqui perto de manhã eu
vi um grande número de coisas negativas.
As semelhanças são enlouquecedoras, mas
talvez mais do que nunca o uso ostensivo
da segurança para manter a cidade seja
claramente um absurdo, ou está atingindo
proporções absurdas.
B Como os muros?
RK Os muros são estarrecedores. Isso
parece que piorou nos últimos anos.
Paisagem Holandesa
B A transformação da paisagem holandesa
– desde o século 17 ou mesmo antes – é
uma necessidade, é essencial para a vida
lá. Esse elemento é forte para a arquitetura
holandesa? Para a sua arquitetura? Como
você vê essa transformação da terra?
RK Essa questão nos desvenda uma
situação trágica. Isto é o século 17 [desenhando uma pequena e antiga casa urbana].
Isto é a década de 1960 [desenhando um
grande bloco moderno]. Daí a economia de
mercado veio e... temos isso [desenhando
um bloco baixo e horizontal com a palavra
Ikea dentro]. Esta é a história da Holanda.
Então, na verdade, você está certo: havia
uma incrível inteligência sobre como fazer
as coisas e isso era uma necessidade. Essa
situação do século 17 é muito interessante
porque cada um depende da inteligência
do outro, então é algo bastante coletivo. Na
década de 1960 havia, obviamente, o ápice
do Estado de Bem-Estar Social e, depois,
veio o mercado e agora estamos aqui. Na
Holanda, a média da altura dos edifícios
na década de 1960 era algo em torno de 6
andares e agora é 1,5 andar.
Nós nos tornamos estúpidos, não há
dúvida. Basicamente, cada cidade na
Holanda tem seu tipo de construção e sua
periferia local. Nós praticamente arruinamos
a ideia de uma cidade linear circular e do
coração verde no centro [um sistema de
cidades conectadas que inclui Amsterdam,
Haia e Rotterdam chamado Ramstad]. Mais
do que isso, arruinamos particularmente
essa metodologia de vivermos juntos.
B E essas edificações do século 17 resultavam em cidades extremamente densas.
RK Extremamente densas. Agora a Holanda
se tornou um estranho paradoxo porque
tem o maior número de pessoas por km2,
mas suas cidades são menos densas do
que Londres. Então é algo realmente louco.
Sua questão: Existe algo sobre a tradição
Holandesa que faria da arquitetura de lá
particularmente competente ou capaz de
entrevista 41
lidar com esse tipo de coisa? Eu, infelizmente, preciso dizer que não. Como arquitetos,
tentamos várias vezes lidar com isso, no
entanto, sem sucesso.
Rotterdam
B Você nasceu em Rotterdam no final da
Segunda Guerra. Como era morar numa
cidade que era praticamente uma tábula
rasa urbana?
RK Eu nasci em 1944 e tive uma vida muito
excitante porque para uma criança é uma
maravilha habitar uma cidade destruída:
você pode brincar em qualquer lugar e pode
brincar com o perigo. Havia ruínas, bombas.
B Eu vi algumas fotos de Rotterdam no final
da guerra e era algo inacreditável.
RK Mas isso era também muito empolgante
para uma criança. Não havia nada. Havia,
de fato, pobreza de verdade. Eu acho que
uma das minhas forças como arquiteto é
que eu sei realmente o que é pobreza. Eu
quero dizer, não em um sentido abstrato.
Depois, de 1952 a 1956, eu fui para a
Indonésia, o que foi ainda mais animador.
Quando eu tinha 12 anos, voltei para a
Holanda e isso foi muito tedioso.
Cinema
B Você estudou cinema na Holanda?
RK Não estudei, mas tinha amigos que
frequentavam a escola de cinema, então
escrevi alguns roteiros. Em 1968, fui para
Londres e novamente foi empolgante.
Depois fui para Nova York, de 1972 a
1979. Eu fui procurado para uma Bienal
em 1980 e preciso admitir que aconteceu
algo totalmente independente de mim
que simplesmente fez dessas primeiras
experiências algo muito forte, uma espécie
de fundação para a carreira arquitetônica.
B Você se identifica particularmente com
alguma representação na história do
cinema? Em que aspecto especificamente?
RK Eu diria que a minha sensibilidade arquitetônica foi profundamente influenciada por
Fellini e Antonioni. Basicamente, Antonioni
nas formas de olhar para a modernização,
com seu olhar algumas vezes muito
animado, mas às vezes horrorizado. E Fellini
como uma espécie de mestre em mostrar a
coexistência de situações velhas e novas.
Brasília
B Você já foi a Brasília?
RK Não. É exatamente por isso que estou
aqui. Vou quarta-feira e fico lá por cinco dias.
B Muitas pessoas teriam morrido nos
canteiros de obras de Brasília. Você acha
que isso afeta a obra acabada da cidade?
RK Você sabe quantos morreram? Talvez
várias centenas, não? Se afeta? Sim, claro.
Estou parando de escrever sobre a cidade
porque todos estão escrevendo agora e eu
acho isso entediante. Estou me preparando
para escrever sobre o campo porque todo
mundo foi para a cidade. Sobre o que deixaram para trás, que é também um espaço
dinâmico ao qual ninguém presta atenção.
Mas este será meu último trabalho sobre a
cidade. Estou, portanto, tentando colecionar
histórias. Eu ouvi, de passagem, que Brasília
inspirou sentimentos místicos e religiosos;
Havia uma mulher, uma caminhoneira, que
começou um movimento religioso e fundou
uma cidade-satélite em que parte do território é de pistas de aterrisagem de óvnis. Toda
a racionalidade provocou esquisitices e eu
estou muito interessado em ver que tipo de
música a cidade inspirou.
fazendo agora uma cidade no Qatar que é
próxima de um novo aeroporto. Essa cidade
tem um zoneamento particular – é metade
aeroporto e metade cidade. Isso é, provavelmente, o mais próximo a que chegamos, em
tempos recentes, de planejar uma cidade.
Mas nada na escala de Brasília.
É muito claro que fazemos simplesmente
por causa de um plano de um governo.
É parte de uma modernização, mas não
tem ideologia nesse esforço. Existe, claro,
a esperança de contribuir com uma nova
condição do mundo árabe. Portanto, do
nosso lado, enxergamos como parte de
um esforço político; mas não há nenhum
compromisso explícito com algo remotamente utópico.
Lagos e o futuro
B Há alguns anos você disse que Lagos
era o futuro e depois, quando estava aqui,
falou que Lagos era muito semelhante a
São Paulo. Podemos ver São Paulo como o
futuro, com todo esse caos?
B Essas pequenas histórias que criam vida
onde não havia.
RK Não. Eu não sabia o que estava falando.
Lagos começou em uma espécie de ilha e
depois foi se expandido. Mas no começo
da década de 1960 havia ali um grupo de
engenheiros que construiu pontes, muita
infraestrutura. Quando eu estive lá pela
primeira vez a infraestrutura era quase sem
função e quase completamente invisível.
Isso talvez tenha sido em 1996.
Eu escrevi e pensei sobre Lagos como uma
espécie de “triunfo da auto-organização”.
Como eu já era pessimista sobre o potencial
do planejamento urbano, achei que a
auto-organização era a única opção. Porém,
quanto mais eu pensava sobre Lagos,
mais eu percebia que, na verdade, não
era propriamente auto-organização, mas
parte de uma crise e, além disso, a cidade
foi se formando nas condições que lhe
foram oferecidas por essas intervenções
infraestruturais.
RK Exatamente.
B E porque seria similar a São Paulo?
A utopia de construção de cidades
B Qual é a diferença entre construir uma
Waterfront City, em Dubai (que você quase
fez no OMA), e construir uma Brasília? Você
acha que está tocando essa utopia?
RK Estou, agora, tentando dizer que não
é similar. Eu acho que São Paulo talvez
nunca tenha tido essas intervenções. É mais
caótica e mais aleatória. Mas em Lagos,
você pode notar que houve um momento de
planejamento e ele foi largamente responsável por qualquer coerência que existia. Então
hoje eu não faria esse tipo de comparação.
Acho que eu estava animado com uma
discussão mais banal: como a África e o
B A bossa nova?
RK Eu conheço a bossa nova, mas me
contaram que cada superquadra da
cidade hospedava um tipo de burocracia
e uma dessas era a dos diplomatas que,
porque viajavam muito, tinham as melhores
informações sobre música. Aparentemente,
algumas bandas emergiram dali e, inspiradas pelo The Clash, formaram as primeiras
bandas punks de Brasília. Para mim isso é
muito interessante.
RK Não, obviamente, porque não há um
texto utópico, não há uma narrativa utópica.
A Waterfront City está em espera e pode
ficar em espera para sempre, mas estamos
Brasil eram um mesmo continente. Não era
uma comparação muito profunda.
Revolução, alienação e esclarecimento
B Como você enxerga os movimentos
contemporâneos da cidade para o futuro,
numa perspectiva de, digamos, 100 anos:
estamos caminhando para uma consciência
revolucionária, um esclarecimento lento ou
uma alienação total?
RK [Silêncio]. Sinceramente não sei. Vejo
sinais tanto de um esclarecimento muito
lento, quanto de uma total alienação. Neste
momento, eu não acredito que o esclarecimento vai vencer a alienação. Isso porque
eu acho que a economia de mercado está
cortando nossos braços no que se refere a
outras intervenções e soluções. As pessoas
estão vendo o horror. Se você vê alguma
coisa acontecendo mas não tem habilidade,
como em um sonho, você não tem a
possibilidade de evitar que isso aconteça.
B Nos livros, desde os Gregos até Marx,
lê-se que um ditador tirânico ou um governo
ruim nos conduziria a uma transformação
muito forte. Estamos assistindo a isso?
RK Eu não estou vendo isso. Você está?
Arquitetura Brasileira
B Você admira a arquitetura brasileira, não é?
RK Sim, claro. Mas neste momento eu não
sei o que todos os conceitos significam,
assim como não sei o que a arquitetura holandesa significa. Acho que é um momento
complexo porque somos realmente globais,
mas ainda é possível identificar o local. Eu
sempre tive interesse pelo Brasil, mas não
de forma muito detalhada recentemente.
B Existia um rumor de que você veio para
o Brasil antes de ser arquiteto e, por causa
disso, decidiu ser arquiteto. É verdade?
RK Não. Eu vi o país na Time com 14 anos
e eu não vim, mas gostaria de ter vindo.
Fiquei muito empolgado com Brasília.
Brasília e Niemeyer realmente me inspiraram
muito. Na época eu queria não apenas me
tornar arquiteto, mas especialmente um
arquiteto brasileiro. Muito utópico.
B Talvez isso não seja tão utópico e glamoroso hoje.
RK Bem [rindo]... Vamos ver...
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