Comissão Nacional Justiça e Paz
O ELOGIO DO BEM COMUM
NUMA CULTURA DE RAIZ
INDIVIDUALISTA - CONTRIBUTOS
DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
II Seminário sobre Doutrina Social da Igreja
Organização:
Comissão Nacional Justiça e Paz
e Faculdade de Teologia da Universidade
Católica Portuguesa
Lisboa
Junho de 2008
1
2
Índice
1. Manuela Silva | Nota de Apresentação ............................................... 5
2. Manuel Carmo Ferreira | O Elogio do Bem Comum .......................... 7
3. Alfredo Bruto da Costa | O Bem Comum
– Notas avulsas para uma intervenção oral ........................................ 19
4. Maria Eduarda Ribeiro | Bem Comum
– Interrogações pertinentes.................................................................. 23
5. José Manuel Pereira de Almeida | Perspectivas de Futuro ............... 25
6. Pontifícia Academia das Ciências Sociais | Sociedade Civil
e Bem Comum ...................................................................................... 29
3
4
Nota de Apresentação
MANUELA SILVA
Com o propósito de levar a reflexão sobre o tema do bem comum a
um público mais vasto, reúnem-se neste Caderno os textos correspondentes às intervenções principais feitas no Seminário que teve lugar em Lisboa, em 21 de Junho 2008, sobre o tema “O elogio do bem comum”.
A conferência de abertura, a cargo do Prof. Manuel Carmo Ferreira,
é publicada na íntegra, assim como o texto do Padre José Manuel Pereira
de Almeida. Já os restantes textos são apontamentos para as intervenções
orais dos seus respectivos autores. Lamentamos não ter podido dispor do
registo do comentário feito pelo Prof. Jerónimo Trigo.
Inclui-se, também, uma nota de referência à última sessão plenária
da Pontifícia Academia de Ciências Sociais (Maio 2008) que se debruçou
sobre o bem comum no pensamento da Doutrina Social da Igreja e na
actualidade.
Tema central do Pensamento Social da Igreja, a noção de bem comum está intimamente ligada ao valor conferido à pessoa humana, na
sua dupla vertente de singularidade/individualidade e de dimensão relacional, componente esta intrínseca à sua existência.
Sendo, porém, tema tão nucleador no discernimento da vida pessoal
e da organização das sociedades, como se explica que ande tão ausente
do nosso quotidiano, do discurso público e do debate político em particular?
Só vejo uma razão: é que a aplicação sincera de um tal conceito obrigaria a mudar radicalmente os nossos critérios existenciais e as nossas
opções em matéria de organização de vida colectiva. Na economia, como
na política…
5
6
O Elogio do Bem Comum
MANUEL CARMO FERREIRA
1. Bem comum é uma expressão que evoca imediatamente o pensamento social cristão, que o identifica de modo directo e nuclear, desde
que foi adoptada pelos Padres latinos da Igreja, nomeadamente Santo
Ambrósio e Santo Agostinho, para depois ser reflexivamente elaborada
por São Tomás e retomada com acentuada continuidade pelos Papas na
abordagem de temática ético-política e socioeconómica, vindo a ganhar
novas dimensões na actualidade, sobretudo a partir da encíclica Mater et
Magistra de João XXIII. Documenta esta centralidade e persistência uma
obra imprescindível para a abordagem destas matérias, o Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, editado pelo Conselho Pontifício “Justiça e
Paz”, em 2004, uma referência constante neste breve ensaio, obra na qual
o conceito ocorre de modo significativo em 106 dos seus 583 parágrafos1.
A noção de ‘bem comum’ não é assimilável aos conceitos, por vezes
indiscriminadamente confundidos de “bem público “ou de“ interesse
colectivo“, ou ainda de “utilidade pública“; a sua adequada compreensão salvaguarda justamente uma especificidade que advém do modo
próprio como equaciona a ordenação da vida social, o plano dos fins por
que se orienta e dos pressupostos de ordem ética e antropológica que
regem a existência em comum. De facto, no conceito de bem comum cruzam-se a ética e a política, a economia e o direito, enquanto dimensões do
humano, esferas focadas no seu plano de legitimação e problematizadas
quanto às finalidades que prosseguem e o tipo de convivência humana
que instauram, bem como às razões justificativas que invocam, às relações que estabelecem e às instituições a que dão corpo, do patamar interpessoal à sociedade global. Critério de legitimação, o recurso à perspectiva do ‘bem comum‘ responde de um modo muito próprio à necessidade
————————
1
Compendio della Dottrina Sociale della Chiesa, Roma, Libreria Editrice Vaticana, 2004;
trad. port. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, São João do Estoril, Principia,
2005.
7
de justificação em última instância das exigências do poder, das formas
de apropriação dos bens da terra e das energias humanas, das organizações e sistemas socioeconómicos, das relações internacionais e seus organismos, da fundamentação do direito; é ainda nessa perspectiva que as
decisões, quer individuais quer de grupos, podem encontrar um princípio
de consistência contra a arbitrariedade e de justiça contra a iniquidade. O
‘bem comum‘ reveste então a natureza de um imperativo; ele tem simultaneamente um carácter normativo – designa uma acção a cumprir – e
crítico – permite o discernimento de orientações assumidas e de razões
invocadas.
Compreende-se, por conseguinte, que o recurso ao conceito de ‘bem
comum‘ seja indissociavelmente acompanhado de uma tensão permanentemente em aberto entre o indivíduo e o todo, o privado e o colectivo,
o singular e o universal, a comunidade e a personalidade.
2. O conceito de ‘bem comum‘ tem uma matriz filosófica que subsiste na sua adopção pelo pensamento social cristão. Este privilegiar do
ponto de vista da Filosofia na introdução à doutrina cristã ganhou novos
contornos no recente pontificado de João Paulo II, através da sua encíclica Fides et Ratio que consagra um diálogo de séculos, nem sempre pacífico nem liberto de ambiguidades.
No capítulo do pensamento social, como noutros em que está em
causa uma antropologia fundamental, na complexidade dos seus aspectos, a intervenção da Filosofia é suportada por três motivos: em primeiro
lugar, na felicíssima expressão de Paulo VI, no seu discurso nas Nações
Unidas, “a Igreja é perita em humanidade“ e, para um cabal desempenho de um tal papel, na compreensão da experiência e das realidades
que ao homem dizem respeito, não pode dispensar o contributo específico da Filosofia e das Ciências Humanas, numa função instrumental de
informação, sem dúvida, mas sobretudo também estruturante dos conceitos basilares e dos pressupostos sistemáticos, propiciadora da compreensão da sua dialecticidade intrínseca; em segundo lugar, o Cristianismo,
para a constituição do seu corpo doutrinal, partiu, historicamente, de um
encontro com as filosofias com que se deparou como oferecendo os preambula fidei, mais do que de outras experiências religiosas, no reconhecimento de que o puro exercício racional questionava pertinentemente o
essencial; em terceiro lugar, como lembra Bento XVI em Spe salvi, nos
primórdios do Cristianismo, a figura de Cristo aparece nos sarcófagos
8
interpretada sobretudo através de duas imagens, a do pastor, como é mais
comum e familiar, mas igualmente pela do filosofo, não como académico
mas sim como ícone da sabedoria da vida, como mestre da arte de viver,
e de morrer, dando a razão do caminho a percorrer.
“Bem comum” representa deste modo a apropriação cristã de um
conceito que tem a sua origem em Platão, em que surge assimilado ao de
justiça no duplo sentido de dar a cada um o que é seu e de articular na
universalidade da lei o lugar próprio do indivíduo, conceito que ganha
todo o seu relevo com Aristóteles, o qual, no livro III da Política, nos dá o
primeiro “tratado” da sua dimensão política. Em Aristóteles o “bem comum” é idêntico, no significado e na função, ao conceito de “vida boa”,
horizonte último em que se recapitulam os dinamismos da existência humana, tanto individual como colectiva, que a configuram e realizam
numa ordem de excelência e de plenitude, “ vida boa “ que, enquanto
forma de um todo existencial, aparece definida do seguinte modo na
Gaudium et Spes, nº 26: « O conjunto de condições da vida social que
permitem quer aos grupos, quer a cada um dos membros, atingir a sua
própria perfeição de um modo mais total e mais fácil […], e que dizem
respeito a toda a família humana ».
São, por conseguinte, traços marcantes da ‘vida boa’ a universalidade dos seus destinatários e a reciprocidade entre todos e cada um, numa
interacção sem exclusão.
Socialidade e personalidade aparecem, deste modo, como constituindo a polarização integrativa que mais fundamente caracteriza o conceito. O que faz problema no ‘bem comum’ não será tanto a dimensão de
‘bem‘, assumido de um ponto de vista formal como aquilo que satisfaz, o
que cumula o desejo humano de ser e de viver, mas a nota de ‘comum’:
conceito essencialmente correlacional, exige uma atenção sem falhas à
pluralidade dos sujeitos e às condições históricas da sua existência. Hegel, tomando parte num debate que tem na sua época toda uma outra
expressão, embora não de todo estranha à problemática do ‘bem comum’
enunciará a síntese, procurada ainda nas controvérsias contemporâneas
que acentuam ora o todo ora o indivíduo: «ao promover o meu objectivo
promovo o universal e este, por sua vez, promove o meu objectivo»2.
————————
2
Linhas de fundo da filosofia do direito, § 186.
9
É nesta tensão mal resolvida que se instala a perversão do recurso ao
bem comum como instância legitimante do sacrifício do singular, perversão emergente nas formas totalitárias de regulação da coexistência humana. Pio XI, refutando a pretensão nazi condensada na fórmula “O
justo é o que é útil ao povo“, na Carta encíclica Mit brennender Sorge.
Dirigida ao povo alemão: «Esta proposição ignora que o verdadeiro bem
comum se determina e se reconhece em última instância a partir da natureza do ser humano com o seu equilíbrio entre o direito pessoal e o vínculo social tanto como a partir do fim determinado da sociedade pela mesma natureza humana».
3. O conceito de “bem comum” desaparece da filosofia política e
social a partir do século XVII, no contexto de uma cultura de raiz individualista que não tem cessado de se acentuar até aos nossos dias. Em termos ético-políticos a primazia passa a caber à reivindicação dos ‘direitos
humanos’, lugar para onde se transfere a ordem de justificação ética da
vida colectiva.
O contexto é o de uma afirmação do direito absoluto do indivíduo,
reduzindo-se a sociedade a uma atomística, de um indivíduo identificado
como “possuidor“, com a inerente sagração da propriedade e a liberdade,
pura afirmação da individualidade, é concebida, no interior da ideologia
dominante, o liberalismo, como auto-gravitação e confinamento, como o
erguer de barreiras de segurança, traços tão bem expressos no axioma,
repetido por todos hoje sem consciência do que arrasta com ele de modo
implícito, de que « a minha liberdade termina onde começa a dos outros»,
como se a liberdade fosse esse levantar muro contra muro e a segregação
se visse erigida em princípio. Todo este movimento que reivindica a supremacia da esfera individual acaba por desvalorizar a razão como instância universal, remete o bem comum para o campo dos ideais vazios e
promove o desejo a motivação legitimante.
A perspectiva do bem comum abre para uma visão completamente
diferente: só o que aproxima liberta e a máxima comunidade é, ao mesmo
tempo, a suprema liberdade. Mas esta visão é substituída pelo utilitarismo como sistema doutrinário, grosseiramente condensado na fórmula “a
maior felicidade para o maior número”.
As linhas de força da mentalidade moderna, por outro lado, e não
acidentalmente, desembocam numa “teologia do mercado“, para nos
socorrermos de uma impressiva e muito adequada expressão do Prof.
10
Adriano Moreira, de um mercado com os seus atributos de omnisciência
e omnipotência, ultima ratio e referência determinante do ordenamento
social.
A refutação contemporânea do utilitarismo conduziu, por sua vez, a
uma prioridade do justo sobre o bem. Insistir no ‘bem comum’ significa
procurar ver a reversibilidade destes dois conceitos, aceitando a sugestão
do autor que de forma mais sistemática e inovadora critica as posições
utilitaristas: «The just draws the limit, the good shows the point» (O justo
estabelece o limite, o bem indica o que está em questão)3, assim recuperando, no seio de um liberalismo repensado, a exigência do bem comum
na esfera político-social como o intento imperativo de todos para que a
cada um seja prestado o tratamento justo4.
4. Os dois grandes esteios de uma visão cristã do bem comum e que
constituem, a um tempo, fundamento e programa de intervenção na história são: a) a tese do destino universal dos bens e b) a comunhão que se
procura tornar presença real.
a) O destino universal dos bens da terra é uma afirmação que faz
parte da tradição permanente do Cristianismo, que exalta os pobres e
adverte com severidade os ricos, como acontece exemplarmente logo no
início na Epístola de São Tiago que, por sua vez, se articula com os Profetas da antiga aliança, nomeadamente Amós, e com a literatura sapiencial.
Dessa tradição, dois testemunhos textuais apenas:
De uma carta de Santo Ambrósio, arcebispo de Milão no século IV:
«A terra foi criada para o bem comum e para todos; porque vos arrogais,
ó ricos, a sua posse como direito próprio? A natureza não conhece ricos,
ela que a todos concebe como pobres. Não é dos teus bens que tu dás aos
pobres, é uma pequenina parcela do que lhes pertence que tu lhes restituis, porque é um bem comum dado para uso de todos que tu usurpas só
para ti»5.
Um segundo testemunho é-nos dado pelo Decreto de Graciano, citado no nº 69 de Gaudium et Spes: «Dá de comer ao que morre de fome,
porque, se não lhe deste de comer, mataste-o»6.
————————
3
Justice as Fairness, Cambridge (Mass. ), Harvard University Press, 2001, p. 141.
4
Collected Papers, Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1999, p. 622.
5
Cf. expressões semelhantes em De Nabuthae 1,2 , De officiis ministrorum I, 132 e 135, In
Ps.118, Sermo 8, 22.
6
Decreto de Gaciano, cap. XXI, dist. LXXXVI.
11
São múltiplos os níveis de sentido daquela usurpação e correspondente exigência de restituição, como são várias e dissimuladas as modalidades deste homicídio, das relações entre indivíduos às relações entre
os povos e à ordenação da comunidade mundial, da responsabilidade
individual ao papel dos responsáveis da nações e à acção (e omissão) dos
organismos internacionais. E em causa estão essencialmente as formas de
apropriação dos bens e as estratégias de distribuição, geradoras de uma
irremediável exclusão.
Muitos são os modos de privação imposta, mas a mais radical é o
estreitamento do horizonte dos possíveis e a denegação da esperança,
fechando o futuro. Uma forma insidiosa de dissimulá-la é socorrer-se de
uma “caridade” compensadora; por isso o Concílio Vaticano II alerta com
suma a clareza para que não «se ofereça como dom da caridade aquilo
que já é devido a título de justiça»7.
b) Ao lado da doutrina sobre o destino universal dos bens surge
como eixo fundamental a comunhão que o bem simultaneamente significa e realiza. O Cardeal Ratzinger escreveu uma página, admirável pela
profundidade e riqueza de implicações da abordagem, em O Caminho
Pascal acerca dessa koinonía (communio), chabuah em hebraico, sobre
esse fazer comunidade, sublinhando que a palavra nunca é utilizada no
Antigo Testamento para designar a relação entre Deus e o homem, mas
para significar exclusivamente o relacionamento instituído entre pessoas
humanas, a pertença inclusiva a um todo de companheiros, os que comem do mesmo pão8.
Para a filosofia grega, de Platão ao estoicismo e ao pensamento helenístico, a koinonía entre os seres humanos é preocupação centralíssima.
Lemos, por exemplo, em Aristóteles: «O bem em política [teoria e prática
de ordenamento da vida social] é a justiça que consiste no interesse comum […] e a justiça é constituída por uma certa igualdade»9. Platão fora
já bastante preciso ao determinar como objectivo da Política a preocupação, não com o interesse individual, mas com o interesse comum, insistindo em que não é na satisfação das necessidades que reside o telos, o fim
————————
7
Dec. Apostolicam Actuositatem, nº 8.
8
Il Cammino Pasquale, Milano, Ancora Editrice, 2000; trad. port. O Caminho Pascal, S.
João do Estoril, Lucerna, 2006, pp. 136-137.
9
Política 1282b 17-19.
12
último, da comunidade política, a sua razão de ser, mas a justiça que, por
intermédio da lei, origina e dá forma à igualdade de todos. Justiça é então
a designação adequada de ‘bem comum’, pois se impõe como a condição
cardinal da vida boa e dela se gera também um novo plano de ordenação
jurídica que atenda à universalidade de que os seres humanos são capazes e a que estão destinados como seu interesse comum, tornarem-se cidadãos de uma cidade abrangente única, sujeitos a e sujeitos de um direito cosmopolita.
A comunhão não é apenas o espaço próprio da igualdade, mas também o da liberdade que só a lei instaura e o direito protege.
A koinonía dos cristãos vai, todavia, mais longe; ela é comunidade
pascal, a companhia de Jesus que uma palavra sempre de novo institui –
Tomai, comei e bebei – porto de chegada e plenificação do intercâmbio
humano, num dar e receber que realiza o encontro de Deus com o homem
no Verbo encarnado.
A dupla matriz da posição da koinonía como efectivo bem comum
supremo, a filosófica grega e a evangélica, desemboca na proposta de
uma política da amizade e numa visão da história como uma reconciliação sempre em aberto de irmãos desavindos, uma vez que a conflitualidade é inextirpável, dada a “sociabilidade insociável” (Kant) que marca os
seres humanos como um destino, e a sombra do crime primordial de Caim
se projecta até aos confins do tempo. A transição de uma lógica da necessidade para uma lógica da gratuitidade e do dom será a outra vertente
deste programa.
Tal como o destino universal dos bens, também esta koinonía é susceptível de múltiplos registos, das relações interpessoais à sociedade
mundial.
5. Para uma intervenção lúcida e eficaz no tecido social em concreto
importa ter presentes os actuais obstáculos maiores a um respeito consequente do direito universal ao uso dos bens da terra e do trabalho do homem e à instauração de uma comunidade de irmãos em todos os planos
da convivência humana, na prossecução do ‘bem comum’ que não se
apresenta desligado das condições materiais e dos dinamismos socioculturais, pois consubstancia-o uma historicidade intrínseca.
O inventário dessas ameaças mais estruturais no mundo contemporâneo está em grande parte feito no corpo doutrinário que a Igreja foi
constituindo a partir da sua consciência das condições e dos factores que
13
inviabilizam a justiça e comprometem a comunhão, e ele está analiticamente recolhido na publicação do Conselho Pontifício “Justiça e Paz”
logo de início referida, pelo que me vou limitar a seguir os traços descritivos mais salientes, salvaguardando, porém, que este é um trabalho
sempre por retomar, para corresponder com fidelidade e pertinência
aos novos desafios emergentes e à dinâmica histórica. De forma esquemática:
– A oportunidade e a remuneração do trabalho, na teia complexa dos
seus modos e funções, continua a ser em qualquer sistema socioeconómico a via concreta e o critério de reconhecimento da autenticidade da justiça no acesso ao uso comum dos bens. A limitação que se pretenda introduzir pela liberdade da negociação contratual não tem legitimidade,
dada a desigualdade, por vezes dramática, das partes em presença e a
complexidade actual das relações de trabalho, e porque a exigência da
justiça é anterior e superior à liberdade de contrato.
– Escândalo é o termo adequado para a resignação perante o
desemprego,“verdadeira calamidade social”, e para o crescimento da
precariedade do emprego, como também o aumento da pobreza quer
entre as nações quer das clivagens na distribuição dos bens no seio dos
povos. O pleno emprego surge como imperativo de qualquer ordenamento económico que pretenda uma legitimação ética e queira prosseguir a
paz social: jovens, mulheres, menos especializados, menos jovens, deficientes, imigrados, refugiados, ex-reclusos, analfabetos, toda uma imensa mole ameaçada de marginalização e de exclusão, expropriada de um
futuro, de um projecto de vida próprio, quando ao mesmo tempo floresce
a mais despudorada especulação.
– O mercado livre não se pode pretender isento da sua função de
meio e converter-se no seu próprio fim, encontrando em si o princípio de
autolegitimação. A contemporânea hegemonia avassaladora do mercado,
da sua lógica interna assumida como modelo integral de racionalidade,
instalam-no no lugar de justificação última de decisões determinantes da
vida, do plano individual ao da sociedade mundial. Os dinamismos do
mercado não podem obstar à constituição de uma democracia económica
nem ignorar que há bens inalienáveis nas comunidades humanas que
não dependem do mercado: nem tudo tem preço!
– As finanças públicas só deixam de ser extorsão e saque, só estão
orientadas para o bem comum, se respeitarem os critérios fundamentais
que o mencionado Compêndio especifica: o pagamento dos impostos
14
como concretização do dever de solidariedade, a racionalidade e equidade na imposição da tributação, o rigor, integridade e transparência na
administração e do destino dado aos recursos públicos10.
– A corrupção política nos diversos patamares de gestão da coisa
pública que é destruidora do princípio da confiança que está na base de
toda a vida em comum bem ordenada e que introduz na representatividade democrática um efeito de distorção.
– Um processo de globalização que se revela iníquo ao repartir injustamente os seus resultados positivos e uma livre circulação de capitais
sem regulamentação que distancia os países em termos de desenvolvimento económico-social: «Os povos pobres ficam sempre pobres e os ricos tornam-se cada vez mais ricos», como denunciou a seu tempo Paulo
VI, distanciamento que, desde então, apenas se tem agravado.
– A devastação do planeta, a exaustão dos recursos, uma cultura de
desperdício e de usura, a redução da biodiversidade e a genética ao serviço da exploração económica.
– Forma particularmente gravosa e ‘pecado social por excelência’,
no dizer de João Paulo II, é constituída pela privação de direitos fundamentais da pessoa, crime contra a humanidade, não tanto no sentido da
colectividade da espécie, mas na irredutível unicidade de cada ser humano, na propriedade de ser ele mesmo e realizar em todas as suas dimensões a capacidade de ser humano.
6. O confronto com os obstáculos à consecução do bem comum obriga a uma atenção vígil no que diz respeito às condições actuais de efectivação desse mesmo bem. Sumariando:
A prossecução do bem comum é, hoje, indissociável da globalização;
ele tem uma dimensão internacional omniabrangente que foi posta em
relevo pela primeira vez por João XXIII, na encíclica Mater et Magistra,
ao referir-se a um commune cunctarum gentium bonum e que exige, por
conseguinte, uma solidariedade universal dos povos. Como fundamento
de legitimidade das decisões, a perspectiva do bem comum cumprirá
uma tríplice função: crítica (da insuficiência, inconsistência e parcialidade de posições), pragmática, de regulação social (em que tem de contar
também com aqueles que não se podem pronunciar e com as gerações
————————
10
Compêndio, nº 355
15
futuras) e constituinte do universalizável dos valores e da experiência
humana.
Múltiplas são as condições do estabelecimento de uma recta orientação segundo o bem comum. Em primeiro lugar o reconhecimento do pluralismo social nas suas diferentes facetas, não apenas como um facto irrecusável, mas sobretudo como constituindo ele mesmo um bem enquanto
diferenciação programática de iniciativas, projectos, associações e instituições. Em segundo lugar, a atenção às mudanças da sociedade e da
cultura, o reconhecimento de uma historicidade que determina a identificação e apreciação dos bens sociais.
Duas exigências viabilizam a satisfação destas condições: a participação e a co-responsabilização. Fazendo convergir esta dupla exigência,
compreende-se que o pensamento social católico insista no princípio de
subsidiariedade, criado por ele e hoje recolhido em textos fundamentais
da ordem jurídica internacional: confiar a protagonização da intervenção
sociopolítica em todos os patamares de organização aos seus agentes
mais directamente afectados.
Um outro aspecto que pode vir a assumir um papel determinante,
doutrinal e praticamente, é a assimilação do bem comum aos direitos humanos, contrariando uma visão que se fixa na sua polarização: a universalidade, indivisibilidade e interdependência destes são garantia de protecção do bem humano, de cada ser humano e da humanidade como um
todo em devir. Os direitos humanos são, numa sugestiva expressão de
Kant, “a menina dos olhos de Deus”, de um Deus que diz, pelas palavras
de Isaías, «Olhai que vos tenho tatuados na palma das minhas mãos»
(Is.49, 16). É o reconhecimento desses direitos que permite a conjunção
do bem e do justo e que tem de constituir a força impulsionadora que
conduza à criação ou à reforma de instituições que, no plano mundial,
sejam capazes de os fazer respeitar.
Para além do direito internacional actual, parece necessário aceder-se a uma nova forma do Direito que, ultrapassando a, hoje, tão questionável soberania das nações, possa vir a dar expressão à soberania da
humanidade como sujeito do seu próprio destino, de modo a fazer valer o
princípio de jurisdição universal. Poderíamos designá-lo como “direito
cosmopolita”, conforme a proposta de Kant, o qual enuncia como um dos
seus princípios a “hospitalidade”, o acolhimento na reciprocidade, versão
positiva do “Nunca mais a guerra!” de Paulo VI nas Nações Unidas, para
que o ser humano se torne capaz de ir ao encontro do outro homem, fra16
ternalmente, enfrentando-o como promessa e não como ameaça, na solicitude e no cuidar.
Aos cristãos caberá sempre converter em programa de acção o desígnio do Senhor da História, que reúne para Si um povo de todos os extremos da terra pois, de acordo com as palavras de São Tomás, «O ser
humano é ele próprio providência para si e para os outros» – sibi et aliis
providens11 .
————————.
11
Suma Theol. I-IIae, q. 91, a. 2.
17
18
O Bem Comum
Notas avulsas para uma intervenção oral
ALFREDO BRUTO DA COSTA
1. A noção de bem comum radica na antropologia cristã, na compreensão do ser humano como individual e social, sendo que a dimensão
social tem sido menos desenvolvida quer na cultura das sociedades de
tradição cristã, quer na pregação, se não mesmo no próprio pensamento
teológico.
2. O Deus de que o homem e a mulher são imagem não é um Deus
solitário. É um Deus-Comunhão. É desse Deus comunhão, que tem a dimensão relacional como constitutiva, é desse Deus que somos imagem.
3. Na encíclica Spe salvi, diz Bento XVI: “Como cristãos, não basta
perguntarmo-nos: como posso salvar-me a mim mesmo? Deveremos antes perguntar-nos: o que posso fazer a fim de que os outros sejam salvos
e nasça também para eles a estrela da esperança? Então terei feito também o máximo pela minha salvação pessoal” (Spe salvi, 48).
4. Viver com os outros: o desejo de viver com os outros é o fundamento do bem comum. Para nós, cristãos, o viver-com-os-outros completa-se, como se sabe, no viver-para-os-outros.
5. O contexto em que vivemos é particularmente propício a promover a consciência individual, com prejuízo da consciência social.
6. Essa hipertrofia do individualismo facilmente resvala para o
egoísmo.
7. O contexto é sócio-económico e cultural, talvez nesta sequência
temporal.
8. Toda a vida económica está polarizada numa espécie de «luta
pela sobrevivência», quer ao nível das empresas (concorrência sem mecanismos de promoção da justiça), quer ao nível dos indivíduos (competição no ensino, no emprego, na carreira profissional, etc.), quer ainda ao
nível do consumo (cultura consumista, padrão de felicidade baseado no
ter e no parecer, gasta-se mais do que se tem, etc.).
19
9. Nada disto é superficial ou conjuntural. Tudo isto é estrutural e
está profundamente enraizado na cultura, nos comportamentos, nas aspirações e nas motivações das pessoas, dos grupos e das instituições.
10. E é isso que esgota ou quase esgota toda a energia vital que temos em nós.
11. Num contexto assim, a noção de bem comum está forçosamente
esbatida, se não eliminada de todo, da filosofia política dominante, da
opinião pública em geral e da opinião pública eclesial em particular.
12. Trata-se, pois, de reintroduzir a noção no pensamento político
português, o que exige:
a. re-conceptualizá-la em profundidade, e
b. definir uma estratégia de disseminação desta conceptualização.
13. O bem comum tem a ver com as finalidades, com os processos e
com os meios.
14. Acontece que todo ou a maior parte do discurso político se centra nos meios e processos: crescimento económico, défice público, investimento, etc. São realidades importantes, mas só por si não dizem muito.
Podem até coincidir com o agravamento das injustiças e o prejuízo do
bem comum.
15. A perspectiva das finalidades da actividade humana, seja económica, política ou outra, é portanto fundamental na perspectiva do bem
comum.
16. A noção do bem comum aplica-se a todos níveis de organização
social: família, empresa, país, Europa, bem comum mundial. Não estamos habituados a pensar a esses níveis.
17. Quando se fala em bem comum da empresa, é-se obrigado a
definir a finalidade da empresa, nos objectivos, na organização, nos processos, na estrutura do poder de decisão. Torna-se claro se a empresa
existe só para produzir lucros ou se também tem outras finalidades, porventura mais importantes. Ecoando o pensamento de Pio XI, João XXIII
refere como princípios: “o regresso do mundo económico à ordem moral
e a subordinação da busca dos lucros, individuais ou de grupos, às exigências do bem comum.” (João XXIII, MM, 37).
18. Do bem comum mundial ninguém fala. O papa João XXIII falou
e definiu na Mater et Magistra e na Pacem in Terris.
19. Lê-se na Pacem in Terris: “O bem comum universal levanta hoje
problemas de dimensão mundial que não podem ser enfrentados e resolvidos adequadamente senão por poderes públicos que possuam autori20
dade, estruturas e meios de idênticas proporções, isto é, de poderes públicos que estejam em condições de agir de modo eficiente no plano
mundial. Portanto, é a própria ordem moral que exige a instituição de
alguma autoridade pública universal” (PT, 136. Sublinhados meus).
20. Naturalmente, essa autoridade tem de ser legítima. Temos hoje
o G7 ou G8 sem qualquer legitimidade e que, todavia pode tomar decisões que afectam o mundo inteiro.
21. Um outro ponto que gostaria de relevar é o de que hoje a noção
de bem comum tem de dar relevo, além do mais, à sua relação com os
direitos humanos.
22. A este respeito, João XXIII dirá na Pacem in Terris:
“Hoje em dia se crê que o bem comum consiste sobretudo no respeito aos direitos e deveres da pessoa humana. Oriente-se, pois, o empenho
dos poderes públicos sobretudo no sentido de que esses direitos sejam
reconhecidos, respeitados, harmonizados, tutelados e promovidos tornando-se assim mais fácil o cumprimento dos respectivos deveres. “A função
primordial de qualquer poder público é defender os direitos invioláveis
da pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos seus deveres”. (Cf.Pio
XII).
“Por isso mesmo, se a autoridade não reconhecer os direitos da
pessoa, ou os violar, não só perde ela a sua razão de ser como também
as suas injunções perdem a força de obrigar em consciência” (Cf.Pio XI)
(PT, 60-61).
23. Por fim, e talvez devesse começar por aqui, a noção de bem comum tem relação íntima com o princípio fundamental da Doutrina Social
da Igreja do destino universal dos bens da terra (outro tema que merece
uma sessão própria), princípio que tem precedência em relação ao princípio da propriedade privada e ao princípio da livre concorrência (ver
Paulo VI, PP).
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Bem Comum – Interrogações pertinentes
MARIA EDUARDA RIBEIRO
De acordo com a definição mais geralmente utilizada, o bem comum
é o conjunto das condições sociais que permite, tanto aos grupos como a
cada um dos seus membros, atingir a sua perfeição.
Cada vez mais, esta definição é entendida como cobrindo os direitos
e deveres da humanidade. Cada grupo deve ter em conta as necessidades e legítimas aspirações dos outros grupos e, sobretudo, o bem comum
do conjunto da família humana.
Segundo o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, “o bem comum
é a dimensão social e comunitária do bem moral”.
Nesta ordem de ideias, compõe-se de três elementos essenciais: o
respeito pela pessoa humana e dos seus direitos fundamentais; o bem-estar social e o desenvolvimento, que devem ser acessíveis a cada um,
para que possam aceder a uma vida verdadeiramente humana (alimentação, vestuário, saúde, educação, trabalho, cultura, etc.); a paz, fundada
sobre o direito à legítima defesa pessoal e colectiva.
A concretização do bem comum, que exige a utilização de meios e
instrumentos que respondam convenientemente aos diferentes tempos
históricos, pressupõe sempre uma renovação das mentalidades e a realização de vastas transformações sociais, que permitam atingir o bem comum historicamente realizável.
O bem comum é difícil de alcançar, porque exige uma capacidade
de busca constante do bem de outrem como se fosse próprio.
Porque o bem comum interessa afinal a todos, podemo-nos perguntar por que, nos nossos dias, tem sido cada vez menos objecto de
debate?
Pessoalmente apenas sou capaz de avançar para algumas perguntas, que têm precisamente a ver com as dificuldades que surgem, hoje em
dia, na obtenção de algum consenso à volta da noção de bem comum.
A nível nacional, podemos verificar que as sociedades são cada vez
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mais complexas e diversificadas, para já não falar de fenómenos de fragmentação e segmentação que irrompem com frequência. Assim sendo:
• Como descobrir pontos de convergência em relação aos diferentes
grupos, com interesses por vezes opostos, como é característico das sociedades contemporâneas?
• Quando as desigualdades aumentam, como se verifica na actual
fase da vida económica, será possível tornar efectivos os Direitos Humanos?
• Como alcançar uma efectiva harmonização, com justiça, entre os
diferentes interesses sectoriais?
• Como chegar a um consenso sobre a forma como devem ser, por
exemplo, repartidas as responsabilidades face ao ambiente, entre as diferentes gerações?
Passando da esfera nacional para a internacional:
• Como atingir o bem comum, entre as nações, tendo em conta os
problemas actuais de competitividade acrescida entre as várias economias e a exigência da satisfação de necessidades básicas de muitos países
em vias de desenvolvimento?
Face aos problemas com que se debatem as sociedades, podemos
afirmar que a defesa do bem comum é hoje tão urgente como há alguns
anos atrás. Esta defesa só é, no entanto, eficaz, se conseguir detectar
onde se encontram os obstáculos à sua realização e os meios mais adequados à respectiva concretização. Torna-se então necessário ser capaz
de inovar, sob o ponto de vista social, para responder aos desafios postos
pelo tempo actual.
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Perspectivas de Futuro
JOSÉ MANUEL PEREIRA DE ALMEIDA
A minha primeira palavra é para saudar o José Dias que, embora
sem tomar parte neste Seminário (o seu estado de saúde não lhe permite
estar aqui connosco), está particularmente presente através do livro publicado há meses, Em nome de Jesus Cristo12, onde, ao tratar do ‘bem
comum’, chama a atenção para a história e o significado desta expressão13, pondo-nos de sobreaviso acerca de possíveis equívocos. Recordome de que, para falar desses equívocos, utilizei já, em debates como este,
a imagem – aliás não original14 – do “grande bolo”, chamando a atenção
para o «privilégio do “eu”» e para a sua lógica no agir concreto15.
Agradeço a brilhante exposição do Manuel Carmo Ferreira e os comentários que se lhe seguiram; creio que o acento teológico foi então
posto em evidência pelo P. Jerónimo Trigo.
Gostaria, contudo, de sublinhar que «a Eucaristia anuncia e torna
presente a possibilidade (e, consequentemente, a exigência) de passarmos do pão da contenda (da lógica da posse, da divisão, da morte) ao
pão partilhado (uma fraternidade interpretada como tendencial comu-
————————.
12
JOSÉ DIAS DA SILVA, Em nome de Jesus Cristo. Uma formação básica em Doutrina Social da
Igreja, Prior Velho 2007, Paulinas Editora.
13
Idem, 51-54.
14
Devo-a a Sergio Bastianel, às suas aulas na Gregoriana e aos debates que, com ele, um
pequeno grupo internacional mantém, desde o final dos anos 80.
15
Um desses debates foi promovido pelo Departamento da Comunicação e da Cultura do
Patriarcado de Lisboa, a 2 de Abril de 2004: «Portugal. Pensar o Futuro», Vida Católica,
3ª. Série, 6, 16 (2004) 253-344. Cito da minha intervenção (p.304): «Há uma maneira de
conceber o bem comum como se fosse um grande bolo do qual queremos tirar para nós a
maior fatia, contribuindo o menos possível. E essa ideia é exactamente contrária do sentido do bem comum, do ponto de vista radical, quer dizer, na raiz. Em todas estas circunstâncias […] o privilégio do “eu” continua a ser central […]. E, em vez de […] uma cultura
do bem, estamos de facto, com esta capa, a facilitar a cultura do útil […]. Ora, o sentido
real do bem comum, o sentido de fundo, é o de uma tendencial comunhão […]. É uma
experiência real de fraternidade.
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nhão)»16. E de acrescentar que «os cristãos são chamados a viver de tal
modo que anunciem esta realidade tornada presente e possível na vida
de Jesus, na experiência da comunhão como dom incondicional de Deus,
acolhido na nossa fragilidade como confiança. São chamados a viver de
tal modo que manifestem a novidade que os constitui: o Reino de Deus
sobre a terra, uma humanidade autêntica presente e possível»17. Este
anúncio corresponde a uma procura de consciência, uma busca interior,
em que os cristãos não se encontram separados dos não crentes; antes,
«pela fidelidade à consciência, os cristãos encontram-se unidos aos demais na procura da verdade e de, nessa verdade, resolver os numerosos
problemas morais que surgem, tanto na vida individual, como na comunidade social» (GS, n.16).
Uma última palavra acerca da actualidade do tema deste Seminário,
com duas referências bibliográficas e uma notícia. Apesar de partilhar o
palpite dos que acham que, hoje, a expressão ‘bem comum’ não está sempre, imediata e necessariamente conotada com a área “católica”, reconheço-lhe uma certa identidade… Daí estas referências. O colóquio da
Associação de teólogos para o estudo da moral (ATEM), realizado no
Quebeque em Agosto de 2005, revelando as contradições dos sistemas de
saúde europeus e extra-europeus, levou à publicação de uma reflexão
sobre ‘bem comum’ e sistemas de saúde18. Em colaboração com o serviço
da Conferência Episcopal Italiana para o projecto cultural, uma reflexão
sobre proximidade, participação e comunidade, numa primeira parte, e
uma outra sobre política, religião e ética pública, constituem um interessante livro sobre formas concretas de partilha19.
Agora a notícia: apresentei à Direcção da Faculdade de Teologia um
projecto para um grupo de estudos (a chamar-se, eventualmente, SRS 41,
como referência ao n. 41 da Sollicitudo rei socialis), sobre Doutrina Social
da Igreja como Teologia Moral, destinado a pessoas com interesse no
pensamento social cristão e que correspondam a uma das seguintes alíneas:
————————.
16
J. M. PEREIRA DE ALMEIDA, «Introdução» in M. L. MARINHO ANTUNES, Temas de Doutrina
Social da Igreja, Lisboa 2008, Ed. SAP, Caderno 8, 1.17 Ibidem.
18
AA. VV, Bien commun et systèmes de santé, Paris 2006, Cerf.
19
L. ALICI, ED., Forme del bene condiviso, Bologna 2007, il Mulino.
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a) tenham obtido aprovação na cadeira de Teologia Moral Social do
curso de Mestrado Integrado em Teologia;
b) tenham obtido aprovação na cadeira de Ética Social Cristã do
curso de Licenciatura em Ciências Religiosas;
c) tenham obtido aprovação no curso e-learning “Cuidar do Mundo:
Introdução à Doutrina Social da Igreja” da nossa Faculdade;
d) se encontrem a fazer pós-graduações em estudos sociais;
e) se encontrem entre os destinatários dos Seminários de DSI promovidos nestes dois anos pela Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) e
pela Faculdade de Teologia.
O Grupo de Estudos SRS 41 procurará investigar, a partir das competências e dos interesses dos membros, dimensões implicadas no âmbito
da ética teológica que se ocupa especificamente do “viver com os outros
na cidade” e correspondem ao pensamento social cristão.
Procurar-se-á estudar o que quer dizer secularidade e cidadania
(sermos discípulos de Jesus e vida social), estar atento à dimensão da
historicidade e ao contexto da fé em que se dá a decisão moral do crente.
A atenção estender-se-á ao âmbito político, às estruturas económicas, ao
desenvolvimento e distribuição dos recursos, à família, aos migrantes e à
resolução de conflitos. Reflectir-se-á na eficácia histórica do bem e do
mal, sublinhando o valor da relacionalidade.
No termo de algumas etapas, se o percurso for realizado com certa
coerência, poder-se-á chegar a produtos finais que assinalariam o andamento do grupo: um artigo, uma monografia, um pequeno volume (por
exemplo, um vocabulário de pensamento social cristão), um curso livre
(por exemplo, destinado a animadores de âmbito paroquial), uma acção
(promovida, por exemplo, em colaboração com a CNJP).
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Sociedade Civil e Bem Comum
A propósito do bem comum, a Pontifícia Academia das Ciências Sociais admite, na sua 14ª sessão plenária de Maio 2008, a urgência de reconhecer a eficácia da sociedade civil na criação de bens comuns.
Vale a pena registar algumas conclusões deste importante órgão:
«Se nos perguntarmos quantos bens comuns se produz a cada dia,
não por causa do benefício – do interesse económico –, não porque a lei o
mande, mas porque existe um acordo entre pessoas, porque existe um
interesse em intercambiar-se reciprocamente os bens, veremos que a
maior parte dos bens se produz deste modo; contudo, as nossas sociedades estão organizadas essencialmente sobre o poder do mercado e do
Estado».
«É necessário, portanto, prestar grande atenção a este mundo da
sociedade civil que produz bens comuns».
Trata-se de «uma união entre subsidiariedade e solidariedade, que
devem ser horizontais no sentido de regular as relações entre as pessoas
mas que devem ter também uma dimensão vertical na profundidade da
dignidade humana dirigida a produzir o bem comum, a regenerá-lo e a
conservá-lo».
O bem comum já não se identifica completamente com uma entidade supra-ordenada, antes supõe uma bem ordenada rede de solidariedades e convergências de que a sociedade civil não pode estar ausente.
Outubro 2008
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