A FILOSOFIA NA HISTÓRIA DA IDADE MÉDIA
RESENHA DO LIVRO DE KURT FLASCH
1. Para Kurt Flasch, professor de filosofia medieval, no seu livro Introduction à la
philosophie médiévale (1987), as melhores referências sobre a filosofia na história
medieval começam no chamado período carolíngio. Quer dizer, com Carlos Magno (Rei
dos Francos desde 786 e depois imperador na Europa Ocidental até sua morte: 742 –
814) e a construção do Sacro Império Romano-germano, desde o início do século IX,
portanto, que unificou politicamente boa parte da Europa.
2. Como grande imperador, Carlos Magno quis ser mais do que um conquistador de
territórios e povos; quis também imprimir algum conhecimento junto às cortes de
povos bárbaros que passaram a fazer parte do grande império, o primeiro com uma
administração política e militar unificados desde a queda do império romano no
Ocidente.
3. Paradoxalmente, como grande e surpreendente contradição, Carlos Magno era
analfabeto – já idoso ele teria sem sucesso tentado aprender a ler e escrever
corretamente. Mas, como em outros casos raros, teve a intuição de que seu papel
como imperador seria maior se houvesse investimento em bens espirituais, do saber,
da arte, da cultura. Foi o que fez, dentro dos limites da época, “idade das trevas”, com
o predomínio da barbárie, claro, sobre as cinzas do que restou do império romano, em
alguns poucos feudos ou cidades saqueadas. Por exemplo, Carlos Magno unificou o
poder político na cidade de Aix-la-Chapelle, hoje Aachen, na Alemanha; implantou uma
política pedagógica e eclesiástica sob o comando de Alcuino de York (Monge e
professor, criador da chamada escola palatina, quer dizer, relacionada com o palácio
de Carlos Magno, sua sede: 735 -804), de grande importância para a vida cultural e
intelectual da época. Para Kurt Flasch, Alcuino de York é um dos pioneiros ou
precursores da filosofia na história da Idade Média.
4. De se notar que o cristianismo já era nesse período da história a religião dominante,
tendo vencido todos os tipos de paganismos. Mais ainda, representava a concepção
mais aperfeiçoada de uma visão de mundo e de uma consciência de si mesmo. Havia
por trás disso tudo não só a preocupação de pregar o Antigo e o Novo Testamento,
mas também uma concepção temporal de poder, que se mostrou vitoriosa, como se
sabe. As referências teológicas vinham dos chamados “Pais da Igreja”, que discutiram
a doutrina cristã desde pelo menos o século II d. C., e cujo personagem mais
importante, de maior destaque, é sem dúvida o Bispo de Hipona, Santo Agostinho
(Autor de A Cidade de Deus e precursor da autobiografia com suas famosas Confissões:
354 – 430).
5. Não se pode separar, na Idade Média, a filosofia da teologia. Os grandes
pensadores da época tinham necessariamente fortes vínculos com a Igreja de Roma,
que detinha a fonte do saber. Na verdade, os fundamentos canônicos da Igreja
Católica Romana foram construídos sobre grandes debates que relacionavam a
doutrina cristã dos Evangelhos, sobretudo, com a filosofia grega, pagã ou politeísta,
com o que restava dessa, com a decadência do império romano. Debates travados
pelos Pais da Igreja: dentre os principais, destacam-se Atanásio de Alexandria,
Gregório de Nazianzo, João Crisóstomo, Ambrósio de Milão e Agostinho de Hipona,
dos séculos III ao V. Um caso singular, no debate teológico – filosófico, que merece
destaque é o da filosofia grega do estoicismo, que na prática poderia até ser
comparado com uma espécie de cristianismo primitivo. Bom, o que caracteriza boa
parte da história da filosofia da Idade Média são as questões relacionadas com a
divindade cristã: a prova da existência de Deus; os debates sobre a Trindade (Pai, Filho
e Espírito Santo); a ética cristã de humildade e piedade; e também a relação entre o
poder espiritual (o papel do papa e dos eclesiásticos) com o poder temporal
(imperador, reis e senhores feudais).
6. Questões como a liberdade individual e diferenças entre as doutrinas de Roma
(cristandade ocidental) e bizantina (A Igreja Ortodoxa do Oriente) passam a ser
discutidas desde João Escoto Erígena (Yohannes Scottus: 800 – 876), que é a referência
mais notável. Aqui já na segunda metade do século IX. Para ele “Deus é amor” e não
somente o “Pai”, característica da sua “teologia negativa”. Neste século, impregnado
pelo pensamento de Santo Agostinho, as reflexões de Erígena estavam tão deslocadas
que passavam quase despercebidas.
7. Interessante no livro de Kurt Flasch é que a evolução do pensamento filosófico na
história da Idade Média não se dissocia da evolução econômica, material, tecnológica
da sociedade. Ao contrário, a partir do ano 1050, aí já no século XI, houve uma
melhora nos métodos de exploração, a agricultura conhece melhores rendimentos, as
colheitas tornam-se abundantes e a curva demográfica cresce (... des récoltes
devenant plus abundants, la courbe demográphique monta.).
8. Do final do século XI ao século XII, acompanhando a dinâmica da sociedade, há mais
debates sobre a doutrina cristã do ponto de vista dialético, quer dizer trabalhando o
pensamento sem provar as contradições de sentido ou semântica e de conteúdo das
palavras, conceitos ou categorias. Claro, a dialética da Idade Média é a mesma coisa
que lógica formal, ciência da lógica. Destacam-se Berengário de Tour (999 – 1088),
Anselmo de Cantuária (1033 – 1109) e Abelardo (Pedro Abelardo: 1079 – 1142). O
primeiro é referência para a discussão em torno da Eucaristia (“Este é o meu corpo...”).
O segundo, no argumento sobre a existência de Deus, de resto uma discussão
inevitável em toda Idade Média, inova nos argumentos da escolástica (método de
raciocínio) e gramática (método de exposição) da época.
Abelardo o mais conhecido e discutido até hoje.
Mas é principalmente
9. Mais do que a obra de Abelardo destaca-se sua vida, que gerou inúmeras biografias,
representações cênicas e até filmes. Como se diz no vulgar: uma figuraça! Nas
palavras de Flasch: “Sua produção científica, sua personalidade fora do comum, sua
história de amor com Heloisa, seus conflitos com os professores mais destacados, a
caça às bruxas por Bernardo de Clairvaux (1090 -1153) orquestrada contra ele, tudo
isso lhe assegura, antes como agora, uma atenção que se presta a novas
interpretações errôneas” (p. 94). Para completar, Abelardo teve um filho ilegítimo com
Heloísa que ele chamou de Astrolábio, o mesmo nome de um instrumento de
astronomia da época. Também, foi castrado por bandidos a mando do tio e tutor de
Heloisa, e ainda construiu um convento para enclausurar sua amada.
10. Muito antes disso tudo, desde o século V, a filosofia e teologia medieval não podia
ignorar Santo Agostinho. Era a máxima referência até que no século XIII surge Thomas
de Aquino (1225 – 1274), padre dominicano, filósofo, teólogo e expoente da
escolástica. Thomas de Aquino traz para a discussão filosófica e teológica os aportes
do grande filósofo da Antiguidade, Aristóteles (384 – 322 a. C.) para uma
fundamentação atualizada da doutrina cristã. Foi, por assim dizer, para usar uma
célebre expressão de Gaston Bachelard (1884 – 1962) um “corte epistemológico”
surpreendente. Foi mais ou menos uma ruptura com o idealismo em direção ao
pensante propriamente científico.
11. É impossível em qualquer história sobre esse período não relacionar o papel
daqueles que introduziram as obras e os comentários das obras de Aristóteles: AlGhazali (1058 – 1111), e Averrois (1126 – 1198). Trata-se da importância do mundo
árabe, de religião islâmica, sobre a Idade Média de religião cristã. Bem antes, ainda
marcando essa influência, Al-Farabi (872 -950) e Ibn Sina, conhecido no Ocidente como
Avicena (980 – 1037) já haviam tentado uma síntese das filosofias aristotélicas e
neoplatônicas, de Platão, outro grande filósofo da Antiguidade (427 – 347 a. C.). Mas é
sobretudo Al-Ghazali, que se mantem fiel ao Islã, apesar do pensamento lógico e
materialista de Aristóteles, e também Averrois, que será punido por uma posição que
diferencia religião de filosofia e ciência, que influenciará o pensamento medieval a
partir do século XIII.
12. A importância do retorno às obras de Aristóteles, em física, metafísica e política na
Idade Média é indiscutível. Foi a partir daí que se deu o grande salto para uma
concepção racional do mundo, abrindo caminho para o desenvolvimento do
pensamento científico.
13. Os comentários de Averrois sobre as obras de Aristóteles são conhecidos por todo
mundo culto da Idade Média. Representa o ponto de partida para o salto qualitativo
da filosofia na história ou da história da filosofia. Trata-se, para os pensadores
europeus do período, duma reflexão crítica sobre os novos aportes de conhecimentos
resgatados da Antiguidade pelo mundo árabe, situando Aristóteles dentro do contexto
da filosofia cristã. Superar, portanto, a interpretação de Averrois sobre Aristóteles, em
especial na obra Da Alma (De Anima, no título em latim), que desenvolve questões
relacionadas com a doutrina cristã, como a alma propriamente dita, a substância, o
intelecto e a finitude da matéria.
14. Alberto o Grande ou Magno (1193 1280) e Thomas de Aquino são apresentados no
livro de Kurt Flasch como os principais interlocutores ou debatedores da obra de
Averrois sobre Aristóteles. Ambos, pensadores e clérigos da Igreja Católica Romana.
Alberto Magno, segundo nosso autor, teria fracassado na sua polêmica contra o genial
Averrois. Mas, é inegável suas contribuições que o fizeram ser chamado de Alberto
Magno ou O Grande: 1) a teologia não deve intervir na pesquisa filosófica; 2) a questão
da alma sobre o corpo; 3) a individualidade do pensamento numa teoria coerente do
intelecto.
15. Doutor da Igreja é o título honorífico de Thomas de Aquino, que também foi
canonizado, tornado santo pouco depois da sua morte. Grande leitor de Aristóteles,
Thomas de Aquino tirou grande proveito pessoal da teoria política de Aristóteles, no
livro que escreveu em 1260, Do poder dos príncipes (De regime principum). Segundo
Flasch, Thomas de Aquino, no seu tratado, “quis explicar a função do rei e as razões
pelas quais o homem tem efetivamente necessidade de uma autoridade política” (p.
157). Mais importante ainda, a meu ver, é a conclusão de que Thomas de Aquino
formula um programa teológico e político. E que ele põe sua filosofia ao serviço de
uma monarquia pontifical, com o papa à testa, na qual o poder do papa ficava acima
do poder temporal dos imperadores e reis. Nesse sentido, ver, por exemplo, o
confronto alguns séculos depois entre a Igreja de Roma e o rei Henrique VIII da
Inglaterra.
16. No século XIV, praticamente às vésperas do fim da Idade Média, de acordo com
uma periodização histórica que situa a Renascença europeia no curso do século XV,
pensadores citados por Flasch e que ainda tem certa atualidade, haja vista as
referências feitas em cursos e obras de historia da filosofia na Idade Média, destacamse Guilherme de Ockham (1288 -1347) e Mestre Eckhart (1260 – 1328). Ambos com
tradição filosófica distinta, quase antagônica: o nominalista e positivista Guilherme
Ockham, de um lado, e o místico e idealista Mestre Eckhart. Sintetizando sobre o que
diz Flasch sobre Ockham, cf. pp. 170 a 189, este, ao rejeitar ou superar a concepção de
mundo da física aristotélica, torna-se fim da Idade Média o mestre de uma nova
racionalidade e de um novo método. Mestre Eckhart, por seu lado, desenvolveu uma
nova filosofia e uma nova teoria do cristianismo adaptada a uma nova sociedade, quer
dizer, a sociedade que vai surgir no período conhecido como Renascença, pondo fim a
idade das trevas, a Idade Média propriamente dita.
17. O último debate (o método de Flasch é o de apresentar contendas entre os
pensadores de um mesmo período histórico, como nos seguintes exemplos: 1) Erígena
contra Goldescalc, autor de um evangelho iluminado, do século IX; 2) Anselmo de
Cantuária contra Gaunilon de Marmoutiers do século XI; 3) Averrois contra Al-Ghazali;
4) Ockham contra Eckhart, etc., etc.), este último debate, é entre Jean ou João Wenck
contra Nicolau de Cusa ou Nicolaus Cusanus, já na primeira metade do século XV. Esse
método de apresentar dois grandes debatedores, representando pontos de vista
diferentes sobre um mesmo tema acaba por concluir que um argumento é superior ao
outro, torna-se dominante e atualiza constantemente o “vencedor”. Nesse caso é de
Nicolau de Cusa a predominância sobre Wenck, assim como no início, lá no século IX,
Erígena supera Godescalc.
18. Então, Nicolau de Cusa predomina com sua concepção de uma reforma concreta
da ciência. Esta é justamente a tendência desde a introdução da filosofia de
Aristóteles no contexto intelectual da Idade Média, principalmente a partir do século
XIII. Aos poucos a Idade Média europeia vai dando lugar ao florescimento das artes,
ciência e cultura em geral, no inicio da Renascença. Mas é só a partir do século XVIII
que o pensamento científico torna-se realmente dominante sobre a doutrina religiosa,
num salto de qualidade do espírito humano, já no período conhecido como
Iluminismo.
REFERÊNCIAS:
FLASCH, Kurt. Introduction à la philosophie médiévale.
Universitaires de Fribourg, 1992.
Flammarion: Éditions
SOUZA, Antonio: Blog IC FAMA – A Iniciação Científica da FAMA na Web, agosto de
2013.
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