Cap 9 ANTIGUIDADE CRISTÃ E ALTA IDADE MÉDIA
Ramiro Marques
A Antiguidade Cristã e a Alta Idade Média vão do século III ao
século XII e correspondem ao triunfo do cristianismo sobre o
paganismo e sobre o judaísmo. Os triunfos do cristianismo são
múltiplos e evidentes: é uma religião missionária, apresenta-se como
universal, é um rito de salvação, traz a ideia de uma felicidade futura
acessível a todos, anuncia a visão de Deus e o reencontro final e
apoia-se numa mensagem de esperança e de vida. Face ao
paganismo exausto e sem esperança, o cristianismo tinha tudo para
vencer num Império Romano ameaçado do interior e do exterior.
Quando, em 312, o imperador Constantino reconhece o cristianismo,
as religiões pagãs apagam-se lenta mas inexoravelmente. Em 381, o
cristianismo é considerado a religião oficial do Império, em 391, o
paganismo é proibido, em 526, o imperador Justiniano manda fechar
a academia neo-platónica de Atenas sob a acusação de não ser cristã
e, em 529, um édito do mesmo Justiniano ameaça com a morte os
não cristãos. Entretanto, o Império Romano do Ocidente sucumbia às
vagas dos sucessivos povos bárbaros, rapidamente cristianizados,
que ameaçavam as suas fronteiras. No século V, Santo Agostinho
morre com os Vândalos a conquistarem Cartago, levando consigo a
certeza do fim do Império.
Contudo, o cristianismo vai conservar o espírito e a cultura
grega. Uns séculos antes, poucos anos após a morte de Jesus de
Nazaré, Paulo de Tarsus escreveu as Epístulas às comunidades cristãs
espalhados pela Grécia, por Roma, pela Ásia Menor e pelo Médio
Oriente. Nessas Epístulas, nota-se a influência da filosofia grega que
Paulo de Tarsus tão bem conhecia e apreciava. Santo Agostinho,
cinco séculos depois, não deixará de manifestar o seu apreço pela
filosofia platónica. Mas é preciso esperar até ao século XIII para
assistirmos à grandiosa empresa de Tomás de Aquino que associa o
pensamento aristotélico, nomedamente as "Éticas", a "Lógica" e a
"Metafísica" de Asristóteles à doutrina cristã. Então, não é exagerado
dizer que o cristianismo fez renascer o espírito grego.
O homem europeu da Alta Idade Média não pode ser
compreendido sem o cristianismo como ideai e ideal total a orientar a
sociedade e a vida de cada pessoa. Não é possível conceber a cultura
medieval sem o cristianismo, tal é o peso que a doutrina cristã teve
na vida das pessoas, das famílias, das comunidades e dos Estados. O
latim foi o veículo de comunicação universal da nova doutrina e do
novo ideal. Na Europa da Alta Idade Média era possível aprender,
escrever, ler e comunicar em latim em todas as escolas,
universidades, cortes e concílios. O clero cristão exercia, em todas as
instâncias da sociedade e com todos os grupos sociais, a sua
influência e orientação. O homem da Alta Idade Média era uma
homem integrado, sem conflitos, sem rupturas, profundamente
crente e dependente de Deus. As angústias existenciais do homem
contemporâneo eram-lhe estranhas. Cada um tinha o seu lugar na
sociedade e aceitava essa hierarquia com naturalidade. A vida terrena
era marcada pelo pecado e pela fraqueza, mas o homem medieval
sabia que o acesso à vida eterna estava ao alcance do mais fraco e
do mais pobre. A educação era vista como uma preparação para
merecer a vida eterna e, por isso, não admira o peso que as
Sagradas Escrituras tinham no currículo.
Com a derrocada do Império Romano, a herança pagã sofre
grandes alterações. A ideia da universalidade das leis, o primado do
direito escrito e as noções de cidadania são lugar à fragmentação do
direito, ao aparecimento dos laços feudais e à regionalização das leis.
Só a partir do século XII é que se assiste, de novo, ao renascer da
cidadania, do direito romano e à formação do Estado moderno.
O cristianismo apresenta-se como uma doutrina capaz de dar
respostas às interrogações e angústias do homem da Alta Idade
Média, fustigado pelos escombros de um império que deixava as
cidades em ruínas e o antigo modo de vida em decomposição. Entre
os séculos IV e VIII, tudo muda: as cidades entram em decadência,
as populações fogem para os campos, o comércio internacional
definha, as comunidades fecham-se e pedem protecção aos grandes
senhores e à Igreja. Nasce o feudalismo com a necessidade de os
pequenos pedirem protecção aos fortes, num mundo inseguro,
violento e pobre. Caberá à Igreja Católica e, em particular, aos
monges, que iniciam o processo de criação de ordens religiosas e que
se refugiam nos mosteiros, a preservação da cultura clássica, através
da criação de bibliotecas monacais, constantemente ampliadas pela
diligente actividade dos copistas.
Os romanos nunca foram grandes apreciadores da filosofia,
preferindo aplicar as suas energias e talento a actividades práticas e
utilitárias, como a construção de estradas, a arquitectura e o direito.
A filosofia foi ensinada em Roma por mestres estrangeiros, sobretudo
gregos, e os filósofos romanos que mais se destacaram, com
excepção de Cícero, eram oriundos das províncias romanas. Séneca
era oriundo do sul de Espanha, e Plotino era egípcio. Quando os
patrícios queriam ensinar filosofia aos seus filhos, contratavam um
filósofo particular, a maior parte das vezes estrangeiro, ou
compravam um escravo grego culto. Tudo isso muda a partir do
século IV. A Igreja Católica toma em mãos a criação de um sistema
educativo aberto não apenas aos filhos da aristocracia, mas também
aos mais humildes interessados em prosseguir uma vocação religiosa.
Em 395, o imperador Teodósio dividiu o império pelos seus
filhos. Honório ficou com o Império do Ocidente, com capital em
Roma, e Arcádio ficou com o Império do Oriente, com capital em
Constantinopla. No Império do Oriente, os estudos continuaram a ser
feitos em grego e os jovens procuraram a instrução nos grandes
centros helenísticos, como Atenas e Alexandria. Foi aí que os Padres
Gregos, regra geral com uma excelente formação filosófica,
procuraram conciliar a cultura grega com as fontes cristãs. Pelo
contrário, no Império do Ocidente, a filosofia continuou a ser pouco
apreciada. Até as ciências foram pouco cultivadas nas escolas do
Império Romano Ocidental. Contudo, o aparecimento das ordens
monásticas, nomeadamente a Ordem dos Beneditinos, permitiu a
organização de escolas cristãs que foram ocupando o lugar das
antigas escolas públicas romanas, entretanto desaparecidas.
O maior centro difusor da educação cristã, durante a Alta Idade
Média, foi Alexandria. Rivalizando em importância com Atenas, a
Escola de Alexandria foi, a partir do século II, o centro da difusão da
cultura helenística e da cultura cristã, abrigando uma escola superior
de teologia e a maior biblioteca de todo o Império Romano. De início
a escola de Alexandria, chamada "Didascaleion", era uma simples
escola catequística para educar os jovens na doutrina cristã,
preparando-os para o baptismo. Mais tarde, muito por influência de
Panteno, filósofo e doutor cristão do séc. II, veio a tornar-se num
escola superior de filosofia, realizando um importante trabalho de
conciliação entre a filosofia clássica e a doutrina cristã. Orígenes e
Tito Flávio Clemente foram dois dos grandes mestres da escola de
Alexandria. A partir do século III, há notícia de uma outra importante
escola cristã: a escola de Cesareia, na Palestina, onde Orígenes
dirigiu os estudos teológicos. Um dos alunos mais famosos da escola
de Cesareia foi São Gregório. No final do século III, surgiu, em
Antioquia, capital da Síria, uma outra importante escola cristã,
fundada por Malquião, onde se fazia a interpretação dos livros
sagrados e se estudava retórica e filosofia. A importãncia da escola
de Antioquia deveu-se ao facto de Ter aí havido muitos comentadores
de Aristóteles que serviriam, mais tarde, de inspiradores dos
comentadores árabes que, a partir do século X, traduziram e
recuperaram as principais obras de Aristóteles e as passaram para o
ocidente cristão. O siríaco foi, ao longo dos séculos III, IV e V, uma
importante língua culta e literária que rivalizava com o grego na
edição de comentários às obras dos filósofos clássicos. Edessa,
situada na Pérsia, conheceu outra importante escola cristã, durante
os séculos III, IV e V, onde se destacou Santo Efrém que escreveu
comentários bíblicos, sermões e poesias. Efrém foi um grande poeta,
tendo deixado os célebres "Poemas Nisiberianos" sobre assuntos
morais. Foi declarado Doutor da Igreja, em 1920, pelo Papa Bento
XV.
A escola de Nisibe, igualmente na Pérsia, fundada pelos cristãos
nestorianos Narsés e Barsoma, foi outro importante centro de difusão
da cultural cristã, nos séculos V e VI.
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