1 A PROPOSTA PEDAGÓGICA DE SANTO AGOSTINHO PARA A FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO E DA SOCIEDADE PEINADO, Maria Rita Sefrian de Souza (PPE/UEM) [email protected] Palavras-chave: História da Educação; Proposta Pedagógica; Santo Agostinho. Introdução Pode-se reconhecer o valor dos grandes literatos, dos cientistas, dos governantes, dos líderes religiosos, dos artistas, mas as suas obras só devem merecer contemplação num estudo de História da Educação, se tiverem efetivamente contribuído para o patrimônio das idéias pedagógicas ou se tiverem influenciado as instituições ou as atividades educacionais (NUNES, 1979, p. 1,2). Neste artigo, nosso objetivo é analisar em algumas obras de Santo Agostinho (354-430), especialmente em A Doutrina Cristã, como se manifesta nelas a premissa metodológica de que os projetos pedagógicos das diferentes épocas correspondem às diferentes necessidades sociais. Neste texto, pontuaremos como sua proposta para a formação do cristão delineia a educação da transição da Antiguidade para a Idade Média. Elegendo o Trivium e o Quadrivium como necessários à compreensão e divulgação das Escrituras, ele sistematizou e preservou o conhecimento clássico, que se apresentou como a base para a formação do cristão e da sociedade. Por meio do método histórico-social, procuraremos analisar os aspectos fundamentais da proposta agostiniana para a formação do indivíduo e para a organização da sociedade medieval. Ao estabelecer a relação com o conhecimento do passado, teremos também condições para refletir sobre o papel social do educador atual. Entendemos que o conhecimento do passado nos oferece parâmetros para situar historicamente tanto a prática formativa atual quanto os conteúdos programáticos formativos que preservam, difundem e produzem o conhecimento humano. Para compreendermos as proposições agostinianas como resposta às necessidades de um período de intensas transformações sociais, primeiramente, com o subsídio da historiografia, situaremos o contexto social dos séculos IV e V, período que o autor viveu e fez sua proposição. Em seguida, analisamos a proposta contida em A Doutrina Cristã, a qual delinearia a educação dos séculos vindouros e, então, passaremos à reflexão sobre a educação atual. Desenvolvimento Para nossa pesquisa, utilizamos fontes “fidedignas”, como assim as denomina Nunes, a partir das quais compreendemos que as proposições de Santo Agostinho correspondem às necessidades de uma sociedade com a qual esteve comprometido. 2 Levamos em consideração as diferenças entre os homens do nosso tempo e os da época de nossa pesquisa. Para Nunes, ao estudioso da História “cumpre combater os preconceitos e deles desprender” para, então, conhecer as diferenças de mentalidade próprias de cada tempo histórico. [...] Ora, isso nos deve esclarecer quanto às diferenças de mentalidade entre os homens do nosso tempo e os de época transactas. Por isso, ao se estudar a História, importa obter, através de informações corretas, de fontes fidedignas, de documentos autênticos, o conhecimento da mentalidade e dos costumes vigentes nas épocas e regiões consideradas. Além disso, deve-se acionar a própria fantasia para se poder imaginar os homens de outros tempos nas suas situações peculiares de vida, nas circunstâncias de sua existência e, por fim, excitar em nós mesmos um sentimento de “empatia histórica”, para podermos conceber e apreciar as pessoas de outras sociedades passadas, com sua própria alma, com as suas concepções e costumes. Isto é fundamental para que se possa reconstruir mentalmente a vida passada das sociedades humanas que nos deixaram um legado de idéias, crenças e tradições. Deste modo, ao mesmo tempo em que estudarmos a humanidade passada, idêntica à nossa por natureza, poderemos apreciá-la, também, enquanto diferente acidentalmente de nós mesmos pela sua mentalidade e pela sua cultura. Nas vicissitudes históricas, o estudioso precisa saber discernir o Mesmo e o Outro, o Permanente e o Transitório. Só assim as suas investigações serão produtivas e os conhecimentos crescerão cada vez mais adequados e válidos (NUNES, 1979, p. 14). Desse modo, entender o contexto social dos séculos IV e V nos permite adentrar o panorama cultural e moral de uma época marcada pela ação da Igreja, em que a sociedade religiosa desempenhou a função de transmitir a cultura aos povos. Influência que se estendeu por séculos na Idade Média. Segundo Nunes (1979, p. 4), “no medievo a religião impregna as instituições e caracteriza a cultura”. Santo Agostinho viveu na transição da Antiguidade para a Idade Média, período marcado pela crise do Império Romano e pela decadência do poder do Estado. Nesse contexto, o poder espiritual se sobrepôs ao estatal, expandindo suas fronteiras, inclusive para o campo educacional. Conforme Nunes (1979, p.102) “Essa época, todavia, era de transição e de mudança, pois os estabelecimentos escolares mais importantes ou eficientes eram cada vez mais raros e, à medida que as instituições oficiais desapareciam, estavam a surgir, entre o fim do século IV e o começo do século V, as escolas paroquiais, sob administração exclusivamente eclesiástica”. [...] quando os povos germânicos disseminados e fixados em vários rincões do Ocidente desarticularam as estruturas da sociedade romana, arruinaram as cidades, talaram as propriedades rurais e destruíram a rede escolar estabelecida pelo Império Romano do Ocidente. Nesses primeiros séculos medievais as tribos germânicas guerreiam umas com as outras, enquanto novas levas de bárbaros, como os lombardos, despenham sobre a Itália e novas invasões, como as dos sarracenos, põem em polvorosa o litoral europeu do Mar Mediterrâneo (NUNES, 1979, p. 17). 3 Nesse contexto de calamidade que modificava paisagens e costumes, além da Igreja, os mosteiros tornaram-se referência de difusão cultural, modelo de organização de vida. Essa função de organizar a vida dos homens, de preservar e difundir a cultura foi desempenhada também pelos mosteiros que se tornaram exemplo de conduta para a sociedade e, posteriormente, lugares preservados da pilhagem, pelo respeito que conquistaram. Conforme Nunes “Nessa época de profunda perturbação social os mosteiros beneditinos são as únicas ilhotas de cultura onde ainda se escreve, copiam-se manuscritos; onde se lê, se estuda e se conserva o legado cultural dos romanos” (1979, p. 17). Esta situação de insegurança produzida pelas migrações das hordas nômades desencadeou profundas mudanças, quer no âmbito político, quer no social. Os bárbaros, há séculos, já se haviam infiltrado no Império como agricultores, funcionários, soldados e generais. No século V d.C., as tribos germânicas, acossadas pelos hunos, começaram a despenhar no rumo do sul: vândalos, suevos, burgúndios, alanos e visigodos. Estes últimos, chefiados por Alarico, saquearam Roma em 410. A notícia dessa calamidade inspirou a Santo Agostinho o famoso sermão De Urbis excidio, A destruição da Cidade (Roma), no qual ele compara a devastação e a pilhagem de Roma à destruição de Sodoma onde o Senhor Deus não achou cinqüenta, nem quarenta, trinta, vinte nem sequer dez justos para poupar a cidade (NUNES, 1979, p. 37). Mediante as devastações que ocorreram a Igreja buscou explicações, exercendo o papel de consolar e ensinar. No ano 410, o episódio do saque de Roma tornou-se tema de sermão para Santo Agostinho. Temos acesso à tradução, por Lauand, de um sermão agostiniano sobre a devastação de Roma. Depois que situamos o panorama do contexto em que Santo Agostinho estava inserido e a posição do autor, representante da Igreja, analisaremos excertos de seu livro A Doutrina Cristã. Este livro que se tornou manual de educação para a sociedade medieval, uma vez que estabeleceu os fundamentos para as escolas paroquiais e para as escolas dos mosteiros. Os escritos dos padres e dos monges, posteriores ao século V, evidenciam o conhecimento da proposição agostiniana. Oliveira, em seu artigo Agostinho e a Educação Cristã: um olhar da História da Educação, analisa a importância do conhecimento para a formação do cristão, a partir de considerações agostinianas presentes, especialmente na obra A Doutrina Cristã. Ao apresentar um roteiro de como se tornar cristão, Agostinho nos brinda com um verdadeiro programa de estudos, necessários, em nosso entender, para qualquer aprendizagem e que independe da época em que o estudo se realiza. O autor destaca a importância da linguagem, do conhecimento da escrita, portanto, das letras, da necessidade do aprendizado do cálculo, de se entender a música, de se conhecer as instituições nas quais e para quais se realizam determinados estudos, de se conhecer a língua na qual o estudo está sendo realizado. Dentro deste aspecto, destaca a precaução necessária em relação às traduções. Do ponto de vista agostiniano, saber a língua no qual o texto foi escrito é condição para o bom entendimento da mensagem contida no mesmo (mais adiante retomaremos esta questão). Na verdade, a preocupação de Agostinho perdura até os tempos atuais e é constante no ensino e na leitura. Com efeito, a maioria dos nossos alunos não conhece as línguas originais nas quais os autores apresentam suas formulações, dependendo sempre dos 4 tradutores que, em última instância, para verterem os escritos para nossa língua também interpretam e modificam muitas vezes o significado das palavras. Acabamos por ler o que o tradutor interpretou e não, efetivamente, o que o autor escreveu (OLIVEIRA, 2008, p. 6). O cuidado de Santo Agostinho para com a leitura e compreensão dos textos das Escrituras foi expresso na forma de uma proposição que aponta para questões atuais, como discute Oliveira. Passa, não só pelo conhecimento de leitura, pela compreensão, mas também pelo conhecimento de línguas e pela precaução com as traduções. A seguir, destacaremos em nossa fonte as passagens que nos permitem compreender tanto a motivação do autor, quanto sua proposta de ensino. Em seu livro A Doutrina Cristã, Santo Agostinho sistematiza as normas para que o estudioso das Escrituras as compreenda. Esse cuidado de estabelecer normas para a compreensão da mensagem cristã tornou-se profícuo, em uma sociedade que carecia de ser instruída nas letras, na fé e na civilização. Resultou em livros e inúmeros textos escritos com o objetivo de auxiliar os que sabiam menos. Assim, poderiam compreender as Escrituras e ensiná-la. A respeito da interpretação das Escrituras existem certas normas que me parecem poder ser ensinadas com proveito aos que se dedicam a esse estudo. Assim, poderão eles prosseguir não apenas lendo as obras de outros que esclareceram as obscuridades dos Livros santos, mas ainda progredir, com os esclarecimentos que eles próprios poderão dar a outros. Proponho-me a comunicar essas normas aos que desejam e são capazes de aprendê-las, se o Senhor nosso Deus, que costuma inspirar-me tais idéias quando reflito sobre elas, não me negar sua graça ao tentar pô-las por escrito (AGOSTINHO, prólogo, § 1). Essa prudência para com as causas da incompreensão das Escrituras motivou-o a expor como se proceder no estudo por meio de critérios que os antigos haviam produzido. Nesse sentido, o desconhecimento dos signos próprios, para Santo Agostinho, se constituía em fator de incompreensão, além da preocupação com os signos figurados, muito utilizados nas Escrituras. “Ora, há duas causas de incompreensão do texto da Escritura. A verdade encontra-se oculta por signos desconhecidos ou por signos de sentido figurado. Com efeito, os signos são ou próprios ou figurados” (AGOSTINHO, Livro II, cap. 10, § 15). Esses signos figurados consistiam em expressões da vida cotidiana utilizados para o ensino de outra significação. Para alcançar a condição de compreender o significado dessas passagens que deveriam ser entendidas no sentido alegórico, era necessário, primeiramente, o conhecimento das palavras no sentido próprio. Outro “remédio”, no entender do autor, era o conhecimento de línguas, já mencionado por Oliveira. Tornava-se necessário ao estudioso latino conhecer o grego e o hebraico para aprofundar a compreensão das Escrituras. Para combater a ignorância dos signos próprios, o grande remédio é o conhecimento das línguas. Os conhecedores da língua latina, a quem pretendemos instruir neste momento, necessitam, para chegar a conhecer a fundo as divinas Escrituras, de duas outras línguas, a saber, o grego e o hebraico. Elas lhes permitirão recorrer aos exemplares 5 mais antigos, no caso em que há infinita variedade de traduções latinas lhes traga alguma duvida (AGOSTINHO, Livro II, cap. 11, § 16). Esse conhecimento dos idiomas dos textos originais viabilizaria o acesso aos textos originais, pois, em diferentes idiomas, a mesma palavra pode ter significados diferentes, o que prejudicaria a compreensão do sentido originalmente proposto. Outro aspecto que o autor trata é o estudo comparativo das diversas traduções latinas, que poderia auxiliar a compreensão do sentido. “A diversidade de traduções, contudo, tem sido mais ajuda do que obstáculo à compreensão do texto, isso ao se tratar de leitores não negligentes. De fato, o exame de muitos códices, com freqüência esclarece certas frases obscuras “(AGOSTINHO, Livro II, cap. 12, § 17). Assim, também em nosso tempo, o cuidado com as fontes de pesquisa são para nós motivação para estudarmos as línguas originais dos códices e sobre as quais nos debruçamos, a fim de encontrar nelas o sentido que o autor lhes quis conferir e não nos limitarmos ao sentido que o tradutor conferiu ao traduzir o texto original. Tendo em vista que há palavras não traduzíveis e outro caso, o de palavras que permanecem as mesmas, no entanto, conceitualmente adquirem um sentido diferente, dependendo do tempo histórico a que se refere. Para Santo Agostinho, “a ignorância da natureza das coisas dificulta a interpretação das expressões figuradas, quando estas se referem aos animais, pedras, plantas ou outros seres citados freqüentemente nas Escrituras e servindo como objeto de comparações” (AGOSTINHO, Livro II, cap. 17, § 24). Para o autor, a compreensão eficaz das Escrituras passava, necessariamente, pelo conhecimento das coisas, do Quadrivium, pelo conhecimento da ciência do raciocínio, ou seja, do Trivium e pelo conhecimento das instituições humanas. As disciplinas que compõem o Quadrivium – a geometria, a aritmética, a astronomia e a música – abrangem um conjunto de conhecimentos relacionados à realidades externas, que proporcionava a compreensão de expressões utilizadas nas Escrituras como objeto de comparações a fim de alcançar o entendimento das coisas espirituais e, conseqüentemente, a rejeição das ficções supersticiosas. A astronomia estudava os astros, sua natureza e seu poder. Permitia fazer conjecturas exatas para o tempo futuro, calcular o curso dos astros ou da lua, dizer qual a fase dentro de um período passado ou futuro. Não se devia, contudo, segundo Santo Agostinho, utilizar esse conhecimento para tirar prognóstico de horóscopos, como faziam os genetlíacos, hoje chamados astrólogos. Assim como a ignorância dos números impedia a compreensão de expressões figuradas ou simbólicas empregadas nas Escrituras, também a ignorância das noções musicais impedia a compreensão de várias passagens. Santo Agostinho afirmava que tanto a música como os números eram colocados em lugar de honra em muitas partes das Escrituras. A música, nesse contexto, não deveria ser entendida como a arte do canto, mas como a disciplina que estabelecia as relações da música com a aritmética, com a harmonia dos astros e com as leis da acústica. Segundo Oliveira Assim, para santo Agostinho, a leitura, a matemática, a natureza, a música, o conhecimento das línguas e a memória tornam-se condição primeira para a conversão do cristão. O cristão deve ser antes de tudo um ser que consegue entender e interpretar os escritos sagrados pelo conhecimento e não somente pela fé. O cristão também deve entender as relações sociais de cada tempo presente vivido pelos homens, pois 6 são elas que imprimem os signos do conhecimento. É exatamente por isso que o autor chama a atenção para as mudanças que ocorrem de uma dada sociedade para outra (OLIVEIRA, 2008, p. 6). As disciplinas que compõem o conjunto de conhecimentos propostos por Santo Agostinho se constituem em pré-requisitos à formação do cristão. Para Durkheim, em sua análise sobre os campos de conhecimento, o Quadrivium “era um conjunto de conhecimentos relacionados com as coisas. Seu papel era tornar conhecidas as realidades externas e suas leis, leis dos números, leis do espaço, leis dos astros, leis dos sons. Assim, as artes que abraçava eram chamadas artes reales ou physica” (1995, p. 52). É importante destacar que, às quatro disciplinas, atribuía-se um sentido alegórico. Procurava-se um significado oculto nos números, nos astros. Desse modo, as disciplinas do Quadrivium ofereciam um conjunto de conhecimentos externos, necessários à compreensão das ilustrações ou de expressões figuradas dos Livros Santos. O objetivo da educação, tal como era conhecido já nessa época, era o de formar a mente no que ela tem de mais geral, em seu princípio essencial e fundamental, independente das aplicações, múltiplas e concretas, que pudessem ser realizadas; pareceu que o único meio de alcançar essa meta era levar o homem a pensar sobre si, a entender-se, a tomar consciência de si. Não é que as ciências da natureza não possam servir para esse mesmo fim. Mas, por motivos que havemos de procurar, muito devagar conseguir-se perceber os serviços que as ciências podiam prestar a esse respeito. Durante séculos, pareceu evidentemente que somente os estudos relativos ao homem podiam servir para formar o homem. Chegamos a esse importante resultado de que havia uma necessidade lógica para que o ensino fosse inicialmente todo formal (DURKHEIM, 1995, p. 54). Como explicita Durkheim em sua análise sobre o ensino cristão, no seu aspecto formal. A educação tem por objetivo formar o homem e o levar a pensar sobre si. Para isso, além das “artes liberais, bastante apropriadas ao uso da verdade e ainda alguns preceitos morais muito úteis” (AGOSTINHO, Livro II, cap. 41, § 60), o conhecimento do Trivium – dialética, gramática e retórica – é muito valorizado por Santo Agostinho, na medida em que constitui a formação do pensamento. Resta discorrermos sobre os conhecimentos relativos não aos sentidos do corpo, mas à razão ou potência intelectiva da alma, entre as quais reina a ciência do raciocínio. A ciência do raciocínio é de muitíssimo valor para penetrar e resolver toda espécie de dificuldades que se apresentam nos Livros santos. Só se há de evitar o desejo de discussões (libido rixandi) e certa ostentação pueril de enganar o adversário (AGOSTINHO, Livro II, cap. 32, § 48). As regras da lógica compõem a instrução formal que deveria ter o estudioso das Escrituras, não com o objetivo de articular discussões apenas para enganar o adversário, mas o silogismo torna-se instrumento de convencimento da verdade, que para Santo Agostinho, era o ensino contido nas Escrituras. Uma coisa é conhecer as regras do silogismo e outra conhecer a veracidade das sentenças. Pelas primeiras, aprende-se o que é deduzido logicamente, o que é deduzido ilogicamente e o que repugna 7 à razão. A dedução lógica é esta: “Se ele é orador, é homem”. A dedução ilógica: “Se ele é homem, é orador”. E a dedução que repugna à razão: “Se ele é homem, é quadrúpede” (AGOSTINHO, Livro II, cap. 35, § 52). As disciplinas do Trivium, portanto constituíam, na perspectiva do autor, em instrumento para o convencimento que poderia ser utilizado para se chegar a conclusões lógicas ou ilógicas, verdadeiras ou falsas. Assim, para o autor, esse conhecimento poderia ser utilizado para o ensino das Escrituras. E quando cada um tiver encontrado tudo o que aprendeu de proveitoso em outros livros, descobrirá muito mais abundantemente aí. E o que é mais, o que não aprendeu em nenhuma outra parte, somente encontrará na admirável superioridade e profundidade destas Escrituras. [...] Bem munido por essa formação e não estando mais paralisado por signos desconhecidos, o leitor manso e humilde de coração, submisso ao jugo de Cristo, carregado com um fardo leve, fundado, enraizado e edificado na caridade, poderá lançar-se ao exame e à discussão dos signos ambíguos das Escrituras, sobre os quais, no próximo livro, eu me preparo a discorrer, conforme o Senhor se dignar me inspirar (AGOSTINHO, Livro II, cap. 43, § 63). Em sua análise sobre os campos de conhecimento do Trivium na educação medieval, Durkheim afirma que: O trivium tinha por objetivo ensinar a própria mente, isto é, as leis às quais obedece ao pensar e expressar seu pensamento, e, reciprocamente, as regras às quais deve sujeitar-se para pensar e expressar-se corretamente. Tal é, com efeito, a meta da gramática, da retórica e da dialética. Esse triplo ensino é, pois, totalmente formal. Manipula unicamente as formas gerais do raciocínio, abstração feita de sua aplicação às coisas, ou com o que é ainda mais formal do que o pensamento, ou seja, a linguagem (DURKHEIM, 1995, p. 52). Nesse sentido, o ensino do Trivium desempenhava a função de formador do pensamento e da linguagem do cristão. Conforme Oliveira, essa utilização da linguagem assume parte no ensino e na aprendizagem do cristão Assim, quanto maior for a capacidade das pessoas de usarem a linguagem, melhores suas condições de se apropriar dos sentidos e ensinamentos contidos nos textos bíblicos. Por conseguinte, as conversões ocorrerão de maneira mais consciente. Na verdade, Agostinho apresenta diversos aspectos que julga serem elementos essenciais para se compreender as palavras contidas nas Escrituras. A nosso ver, apresenta, de fato, um roteiro de como se deve proceder para ser cristão. Do seu ponto de vista, a conversão é um processo de aprendizagem. No seu tempo, em geral, não se nascia cristão, mas se tornava, pela aceitação da doutrina. (OLIVEIRA, 2008, p. 6). Outro aspecto que Santo Agostinho destaca são as instituições humanas, que, para ele, se referem ao conhecimento histórico, literário produzido pela humanidade. A primeira vista, poderíamos pensar no acesso restrito a essas obras. No entanto, elas não foram desprezadas, antes se tornaram em fundamentos teóricos para os cristãos 8 chegarem a uma compreensão mais aprofundada do ensino contido nas Escrituras. Deveriam, inclusive, segundo o autor, ser aprendidas de memória. “Toda essa parte de instituições humanas que são convenientes para as necessidades da vida, os cristãos não têm razão nenhuma para evitá-la. Eles devem, bem ao contrário, à medida de suas precisões, dedicar-se a seu cumprimento e aprende-las de memória” (AGOSTINHO, Livro II, cap. 26, § 40). Para Santo Agostinho, “todos os informes que a ciência chamada história nos oferece sobre o sucedido nos tempos passados nos são de grande ajuda para compreendermos os Livros santos, ainda quando forem aprendidos fora da Igreja, em vã erudição” (AGOSTINHO, Livro II, cap. 29, § 42). Assim, a responsabilidade do pregador no ensino e na formação assume relevância, na medida em que ensina, mas também deve conquistar os ouvintes e isso com sabedoria. Instruir mediante um conhecimento que advém do estudo, da compreensão era trabalho árduo e que requeria um preparo. O pregador é o que interpreta e ensina as divinas Escrituras. Como defensor da fé verdadeira e adversário do erro, deve mediante o discurso ensinar o bem e refutar o mal. Nesta tarefa, o mestre deve tratar de conquistar o hostil, motivar o indiferente e informar o ignorante sobre o que deve ser feito ou esperado. Mas ao encontrar ouvintes benévolos, atentos, dispostos a aprender ou que os tenha assim conquistado, deverá prosseguir seu discurso como pedem as circunstâncias (AGOSTINHO, Livro IV, cap. 4, § 6). Como pregador, além de ensinar com conhecimento, também deveria falar com sabedoria, esta decorrendo daquele. Um homem fala com tanto maior sabedoria, quanto maior ou menor progresso faz na ciência das santas Escrituras. E eu não me refiro ao progresso que consiste em ler bastante as escrituras ou aprendê-las de cor, mas do progresso que consiste em compreendê-las bem e procurar diligentemente o seu sentido (AGOSTINHO, Livro IV, cap. 5, § 7). Assim, percebemos que a proposição agostiniana para a difusão do cristianismo passa por um conhecimento de totalidade, na medida em que decorre do conhecimento do Quadrivium, do Trivium e da História. Nesse sentido, para Bloch, o cristianismo é uma religião de historiadores. Os próprios monumentos estão repletos de história e de conhecimento do passado. Trata-se de alguém cujo conhecimento do passado constitui não só a possibilidade de conhecimento do passado, mas a compreensão do presente e, ainda mais, a própria atuação no presente. O cristianismo é uma religião de historiadores. Outros sistemas religiosos puderam assentar suas crenças e seus ritos numa mitologia pouco mais ou menos exterior ao tempo humano. Os cristãos tiveram por Livros Sagrados livros de história, e suas liturgias comemoram, com os episódios da vida terrestre de um Deus, os fastos da Igreja e dos santos. O cristianismo é ainda histórico de uma outra maneira, talvez mais profunda: colocado entre a Queda e o Juízo Final, o destino da humanidade simboliza, a seus olhos, uma longa aventura, de que cada destino, cada “peregrinação” individual, é, por sua vez, o reflexo; é na duração, portanto na história, que se desenrola o grande 9 drama do Pecado e da Redenção, eixo central de toda a meditação cristã. A nossa arte, os nossos monumentos literários, estão cheios dos ecos do passado; os nossos homens de acção têm a boca cheia das lições do passado, reais ou imaginárias (BLOCH, 1965, p. 11,12). Nesse sentido, o conhecimento histórico torna-se um instrumento para a compreensão do homem: saber quem foi, o que fez, quem é, o que faz. Não podemos deixar de estabelecer estas relações. Pois, segundo Bloch, “a ignorância do passado não se limita a prejudicar o conhecimento do presente; compromete no presente a própria acção” (1965, p. 40). É tal a força da solidariedade das épocas que os laços da inteligibilidade entre elas se tecem verdadeiramente nos dois sentidos. A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja mais útil esforçarmo-nos por compreender o passado, se nada sabemos do presente (BLOCH, 1965, p. 42). Na medida em que conhecemos o passado com a sua rica produção cultural, entendemos o homem na sua totalidade quem foi e o que ele fez, quem é e o que é capaz de fazer. O historiador ama a vida. “Nesta faculdade de apreensão do que é vivo é que reside, efectivamente, a qualidade fundamental de um historiador” (BLOCH, 1965, p. 43). Portanto, o conhecimento histórico oferece melhores condições ao educador no seu trabalho de formar o homem. Considerações finais Percebemos que a proposição de Santo Agostinho foi elaborada em um momento histórico cujas relações sociais convergiam para uma nova proposição, na medida em que as relações sociais e políticas decadentes do Império Romano não respondiam mais às novas necessidades que se colocavam, em virtude da presença dos nômades. Le Goff diz que “Este mundo medieval resulta do encontro e da fusão de dois mundos que iam evoluindo um para o outro, de uma convergência de estruturas romanas e de estruturas bárbaras em transformação” (1993, p. 48). Nesse contexto de fusão de culturas, na proposta de formação do cristão que sistematizou, Santo Agostinho elegeu um conjunto de saberes que deveriam compor a formação do cristão. Ao estabelecer como necessárias as disciplinas do Quadrivium, do Trivium e da História, ele propõe a preservação da cultura clássica, não apenas no aspecto do discurso de seus escritos como também em sua proposta, que é fortemente marcada pelo ensino da cultura clássica, pois para ele sem esse conhecimento não seria possível a compreensão das Escrituras. Assim, em virtude do cuidado para com a formação do cristão, Santo Agostinho elabora sua proposta eminentemente cristã fundamentada no conhecimento clássico. Pois, para ele, o estudioso das Escrituras deveria ser formado com amplo conhecimento, a fim de promover a difusão da doutrina cristã. Sua proposta delineou a educação da transição da Antiguidade, influenciando também, posteriormente, a educação medieval. 10 Entre as escolhas culturais essenciais que o cristianismo medieval fez, em primeiro lugar, e sobretudo está a das classificações científicas e dos métodos de ensino. Transmitida por um retórico latino cristão do século V, Marciano Capella, a classificação e a prática das artes liberais dominam o ensino medieval. Divididas em dois ciclos, o do trivium, ou artes da palavra (gramática, retórica e dialética) e o do quadrivium, ou artes dos números (aritmética, geometria, música e astronomia), estas artes recomendadas por Santo Agostinho vão, nos séculos XII e XIII, fornecer o fundamento do ensino universitário na faculdade propedêutica dita faculdade de artes. (LE GOFF, 2007, p.26) Le Goff nos elucida sobre a influência dos postulados cristãos para a educação medieval, para o desenvolvimento e encaminhamento que forneceria fundamento ao surgimento do ensino universitário. Portanto, conhecer um autor como Santo Agostinho, o seu tempo histórico e sua proposição diante da sociedade, nos permite refletir sobre a sociedade em que estamos inseridos. Em nossa sociedade, marcada por profundas transformações sociais, desencadeadas, dentre outros fatores, pelo crescente desenvolvimento tecnológico, o desafio está para os intelectuais da educação: elaborar proposições que correspondam às novas exigências sociais por meio de uma educação humanizadora, que promova acesso ao conhecimento científico, possibilitando o convívio e a inserção social. Nesse sentido, a proposição de educação atual, a nosso ver, cumpriria sua função, não somente no que diz respeito à preservação do conhecimento produzido pela humanidade, mas desenvolvendo as possibilidades e as condições para a produção do conhecimento científico pelas próximas gerações. Tendo em vista que educamos para o futuro. Referências AGOSTINHO, Santo. A Doutrina Cristã. Traduzido por: Ir. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002. BLOCH, Marc. Introdução à História. Traduzido por Maria Manuel Miguel e Rui Grácio. Lisboa: Publicações Europa-América, 1965. LAUAND, Jean. Nota Introdutória ao sermão sobre a devastação de Roma. Cultura e educação na Idade Média.Sao Paulo, Martins Fontes, 1998. Disponível em: <http://www.hottopos.com/mp5/agostinho1.htm> Acesso em:05 jun.2008 LE GOFF, Jacques. A instalação dos Bárbaros. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 27, 63. LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Traduzido por Jaime A. Clasen. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. NUNES, Rui Afonso da Costa. História da educação na Idade Média. São Paulo: EPU: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1979. 11 OLIVEIRA, Terezinha. Agostinho e a Educação Cristã: um olhar da História da Educação. Notandum 17 jul-dez. ESDC / CEMOrOC-Feusp / IJI-Universidade do Porto, 2008. Disponível em: < http://www.hottopos.com/notand17/terezinha.pdf> Acesso em 05 ago. 2008