O livro do jornalista e analista político Merval Pereira surge num momento extremamente oportuno da vida política e social brasileira. No limiar das eleições gerais do Brasil em 2010, em especial da eleição presidencial, a ampla análise desenvolvida por Merval Pereira aprofunda o debate sobre o papel do Partido dos Trabalhadores, do presidente Lula da Silva e do “lulismo” no cenário político brasileiro contemporâneo. Antes de tudo devemos destacar a trajetória e a atuação de Merval Pereira como jornalista e analista político. Merval dedica-se, depois de anos, a um tipo de jornalismo, infelizmente, raro no Brasil. Nas páginas de O GLOBO e na tela da GloboNews — e repetidores — o jornalista faz a uma análise diária, incansável e consistente dos fatos da política interna e externa do Brasil. Esta, embora rara, repito, é uma tradição do jornalismo brasileiro. Toda vez que lemos e ouvimos Merval, ao menos a geração mais velha, lembramo-nos de imediato do mestre Carlos Castelo Branco — o “Castelinho” —, que pontificava no jornalismo brasileiro. Em especial durante a ditadura civil-militar, de 1964-1985, Castelinho representou um sopro de liberdade, de profundidade e de informações sérias, até nos piores momentos da ditadura. Nem mesmo ela, com sua vocação liberticida, ousou calar o jornalista. Pois bem, Merval Pereira perfila-se na dianteria, com grande mérito, na escola aberta pelo seu notável antecessor. Para Lulismo__FINAL.indd 9 30/8/2010 11:12:19 10 muitos, a abertura política e a consolidação das instituições democráticas brasileiras — tema onipresente de Merval — descartariam um jornalismo do tipo praticado por Castelinho. Ledo engano. A abertura e a institucionalização do regime liberal-representativo entre nós, com a consequente incorporação de um amplo público de classe média ao debate político e de amplas massas ao processo decisório, acentuaram o papel do jornalismo crítico, analítico e mesmo, de forma desafiadora, opiniático. Em outros países — que Merval conhece bem, como os Estados Unidos, França e Espanha — este tipo de jornalismo é comum. Praticamente todo grande jornal nos Estados Unidos possui seu jornalista “crítico”, e suas colunas repercutem amplamente na opinião pública e até no recinto dos parlamentos. No Brasil, embora tenhamos vários — embora não muitos — excelentes jornalistas políticos, a maioria destes se coloca como fornecedores de informações, como produtores de “notícias”. Eis aqui a clara diferença com o jornalismo de Merval Pereira: ele vai além. Informa, é claro, e, muitas vezes, de primeira mão. Mas, o forte do texto de Merval é sua capacidade de buscar as motivações e daí os propósitos dos diversos atores políticos do Brasil contemporâneo. Seus atores prediletos são os partidos políticos, os próprios políticos e a opinião pública. Trata-se, em verdade, da tríade santa da democracia liberal moderna. Eis aqui a maior parte da produção crítica do autor. Fica clara, desde as primeiras linhas, a insatisfação do autor com o funcionamento da democracia liberal, do tipo representativo e multipartidário, no Brasil. Merval, derivando para o papel do historiador e do cientista político, lança-se numa análise de fôlego para entender, e explicar, as razões da fragilidade da democracia brasileira. Profundo conhecedor dos regimes políticos contemporâneos — que conhece de observação direta, dos Estados Unidos até a Turquia ou China Popular —, Merval aponta com clareza a fragilidade dos partidos, a anemia da opinião pública e a superatuação das lideranças carismáticas no país. Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Janio Quadros, Carlos Lacerda, Leonel Brizola e, claro, Lula da Silva seriam a prova viva, e atuante, da fragilidade das instituições políticas, em especial dos partidos, em favor da liderança carismática. Um papel especial desempenha nas preocupações a transformação da possibilidade social-democrata (depois de liberada do marxismo de resistência dos tempos de sua fundação) do Partido dos Trabalhadores em um suporte, sem seiva conforme o autor, de um fenômeno novo/ velho na história do Brasil: o lulismo. Ou seja, o carisma como condutor da política. A análise daí derivada, sempre centrada na possibilidade de risco institucional, amplia-se nas preocupações do autor para a dimensão continental: a opção popular pelo líder carismático na América do Sul Lulismo__FINAL.indd 10 30/8/2010 11:12:19 11 Introdução surge como um destino em face de experiências como Hugo Chávez ou os Kirchner? Eis um questionamento vital. Particularmente grave, e mesmo dolorosa, para o autor é a constante comparação com outras democracias maduras, explicitando o risco de uma caudilhização da política nacional. Daí a busca incessante das origens do processo que reduz a participação política a uma identificação/transferência carismática. Talvez a própria fragilidade da sociedade brasileira, e sul-americana, explique em verdade a fragilidade da política brasileira, e por extensão sul-americana. A robustez de instituições democráticas em países como França, Inglaterra e Estados Unidos está diretamente vinculada à robustez, e autonomia, das suas classes médias. Desde as chamadas revoluções “burguesas” (ou ocidentais, ou atlânticas) no século XVIII, a ascensão de amplas camadas médias das sociedades norte-atlânticas constituiuse no suporte indispensável da democracia. A robustez social aqui significava autonomia perante o Estado — na maioria das vezes era o caso de verdadeira oposição entre Sociedade e Estado — e controle deste pela sociedade, em especial em face de sua voracidade fiscal e dirigista. Ora, por tragédia, a história da América do Sul não conhece nada parecido. Herdamos as instituições da democracia liberal sem herdarmos, ou criarmos, as condições e os atores sociais para sua sustentação. A tremenda pobreza dos países sul-americanos, com seu espantoso achatamento e polaridade social extrema, acabou por tornar a sociedade um cliente permanente do Estado. A espera da dádiva, do dom, comprometeu largamente a busca de autonomia e transparência. Somente de forma muito recente, em países como Uruguai e Chile, e talvez em curso no Brasil, podemos ver a emergência de uma classe média que possa verdadeiramente ser mais exigente perante o Estado. Em vez de pedir o dom, a concessão e o favor, exigir a eficiência, a frugalidade e a transparência. O debate apresentado aqui por Merval Pereira é parte fundamental do amadurecimento democrático no Brasil. Francisco Carlos Teixeira da Silva/historiador/UFRJ Lulismo__