A ENFERMAGEM E A FORMAÇÃO PROFISSIONAL DE NÍVEL MÉDIO:
DIFERENTES PROPOSTAS PEDAGÓGICAS
Raimunda Medeiros Germano
Professora do Departamento de Enfermagem da UFRN
Doutora em Educação pela UNICAMP.
“Ninguém educa ninguém; ninguém tampouco se educa sozinho;
os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.
(Paulo Freire)
O presente estudo tem a pretensão de registrar as diferentes práticas pedagógicas que
circunscrevem o universo da formação profissional de nível médio, na área de enfermagem. Tem
como objetivo fazer incursões acerca dessas práticas nas diferentes conjunturas históricas, nas quais
as mesmas se conformam, e analisar como estas se articulam com a prática profissional.
Desde logo, devemos afirmar que as práticas pedagógicas, que norteiam essa formação, se
pautaram e se pautam em concepções bastante heterogêneas. A mais tradicional e, ainda, a mais
marcante diz respeito ao ensino apenas como transmissão de conhecimento e, como tal, centrado no
professor. No entanto, outras abordagens pedagógicas são, igualmente, identificadas; dentre elas, a
pedagogia da problematização, embora em experiências pontuais. Fazendo uma retrospectiva,
devemos assinalar que o início da profissionalização de nível médio, na área de enfermagem, no
Brasil, data dos anos 30. No decorrer desses 70 anos, essa formação vem se expandindo,
inicialmente na rede pública de ensino profissionalizante e, nos últimos anos, mais notadamente, na
rede particular.
É importante ressaltar que apesar de predominar nesse ensino como um todo, uma prática
pedagógica marcadamente não problematizadora, centrada na pedagogia da transmissão, existem
experiências significativas, na rede pública, de práticas inovadoras, dentro de outras abordagens.
Antes de tratar de tais experiências no ensino de enfermagem, em relação à formação de
nível médio, devemos informar que essa se dá em dois níveis compreendendo: os cursos de auxiliar
e os cursos técnicos de enfermagem.
A formação do auxiliar de enfermagem inicia-se no Brasil em l936, na primeira Escola de
Enfermagem de Belo Horizonte –MG e, paulatinamente, se expande por todo o território nacional.
Na verdade, essa expansão ocorre mais precisamente com a Lei 775/49 que dispõe da
regulamentação do Ensino de Enfermagem no Brasil nos seus diferentes níveis. A partir da década
de 60, abre-se uma nova discussão, desta feita, sobre a formação do técnico de enfermagem. Com a
promulgação da lei 5.692/71 que trata da profissionalização dos cursos de nível médio, mais uma
categoria profissional incorpora-se à equipe de enfermagem – o técnico de enfermagem. Assim,
auxiliar e técnico de enfermagem passam a representar as categorias profissionais de nível médio na
área de enfermagem. A essência dessa formação, até então, pautava-se em uma pedagogia de cunho
bem tradicional, com ênfase nos aspectos eminentemente técnicos.
A década de 70 inaugura uma nova fase no ensino de enfermagem motivada, pelo
Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, pois, este ao propor, entre outros aspectos, a
reorganização dos serviços, exige, da mesma forma, um novo perfil do profissional a ser formado.
Nessa perspectiva, duas experiências devem ser registradas quando nos referimos à
formação de nível médio: O Projeto de Formação em Larga Escala e o Projeto de Formação dos
Trabalhadores da Área de Enfermagem (PROFAE).
O primeiro, surge nos anos 70 com o apoio dos Ministérios da Saúde, Previdência e
Educação e Cultura em parceria com a Organização Pan-Americana de Saúde; se expande e se
fortalece na década de 80, com o já mencionado Movimento Sanitário Brasileiro, tendo como
paradigma os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). E, mais do que isso, integra-se às
políticas de conquista desses princípios. É oportuno registrar que a 8ª Conferência Nacional de
Saúde, realizada em Brasília em l986, representou um marco na efetivação da Reforma Sanitária
Brasileira, propiciando desdobramentos que, sem dúvida, não somente atingiram a prática em saúde
mas, sobretudo, a formação de seus profissionais.
Retomando o Projeto Larga Escala, a proposta político pedagógica que o inspirou ganha
corpo e se amplia pelas diversas regiões do Brasil, a partir dos anos 80.Continha, em seus
pressupostos básicos, a idéia da construção e utilização de uma metodologia que contribuísse para
uma concepção democrática da educação e, desse modo, permitisse aos trabalhadores de saúde, a
reflexão, a crítica e o conhecimento indispensáveis à reformulação de sua prática profissional.
Por isso mesmo, desde o início, a metodologia assumiu um lugar de relevância dentro do
processo, razão pela qual, mediante tal priorização, técnicos ligados às instituições integrantes do
Projeto, elaboraram um Programa intitulado “Capacitação Pedagógica para Instrutor/Supervisor”,
cujo propósito seria preparar, dentro de uma mesma concepção pedagógica, os eventos que iriam
integrar esse grande projeto nacional de educação, na área da saúde. Daí porque, no plano de
formação de pessoal de nível médio para o setor saúde, ora analisado, considera-se, a priori, a
capacitação pedagógica de seus professores, ou seja, o preparo de instrutores/supervisores que
integram e/ou integrarão o corpo docente dos cursos oferecidos, tendo em vista, primordialmente, o
domínio da metodologia a ser utilizada no desenvolvimento do processo ensino/aprendizagem.
Nessa perspectiva, há uma clara sinalização para uma prática didático-pedagógica, no centro
da qual se situa o aluno; este passaria de receptor de informações a construtor do seu conhecimento.
Nesse aspecto, há uma relação dialógica entre instrutor e aluno mediatizada pela realidade que
desejam transformar. Nesse caso específico, isso é bastante significativo, considerando as
características da clientela e os propósitos dessa formação, quais sejam: o resgate da dívida social
em relação aos trabalhadores de saúde, excluídos do sistema formal de ensino e a reorganização dos
serviços de saúde com vistas a contribuir, sobretudo, com o projeto de construção do Sistema Único
de Saúde (SUS). Por outro lado, a clientela se caracteriza por pessoas adultas, já empregadas,
dispersas geograficamente e, em sua maioria, com baixo grau de escolaridade, que atuam em
hospitais, centros e postos de saúde situados, muitos deles, no interior dos municípios brasileiros
onde não existem estruturas educacionais que ofereçam o primeiro grau completo.
Dessa forma, considerando, entre outros aspectos, as especificidades da clientela, a
metodologia proposta privilegia a importância da integração ensino/serviço, busca estabelecer uma
relação entre o sujeito e o objeto, e assim sendo, o educando e sua experiência são tomados como
um elemento reflexivo, em transformação, contribuindo, portanto, para que esta possa assumir
novos comportamentos, na prática profissional e social.
De acordo com os princípios filosóficos que fundamentam o programa de capacitação
pedagógica, destinado aos instrutores/supervisores, um aspecto essencial diz respeito à contínua
reflexão em torno do sujeito que aprende, o objeto a ser apreendido, bem como, o conhecimento
resultante da interação entre o sujeito e o objeto. Nesse sentido, é importante lembrar que o
instrutor/supervisor exerce um papel preponderante como agente facilitador da construção nesse
processo. E mais do que isso: levando em conta as características da clientela, esse instrutor
supervisor trabalha a partir das experiências de cada um, respeitando sua visão de mundo, forma de
pensar e agir, padrões sócio-culturais, possibilitando, dessa forma, a reflexão, reelaboração e
sistematização do conhecimento; permitindo, portanto, acompanhar o progresso e também as
dificuldades de cada um. Nesse sentido, preocupa-se em ajustar, corrigir e reforçar a aprendizagem
e a dinâmica da integração ensino/serviço.
Para a efetivação dessa proposta muitos obstáculos tiveram que ser transpostos, pelo fato
mesmo de constituir um projeto que não se adequava necessariamente à rede formal de ensino
profissionalizante, de lº e 2º graus. Diante desse impasse surge a criação de um outro espaço
pedagógico, no caso, os Centros de Formação de Pessoal no interior das próprias Secretarias de
Saúde, de cada Estado, autorizadas pelas Secretarias de Educação, através de suas Coordenadorias
de Ensino Supletivo. A escolha da via supletiva não só favorecia o atendimento das peculiaridades
inerentes à clientela do processo de formação em pauta, já apontadas anteriormente, mas
possibilitava, sobremaneira, a qualificação de um maior efetivo de pessoal em um menor espaço de
tempo.
Para consecução de tal propósito, privilegia-se a integração ensino/serviço, o preparo do
corpo docente e, sobretudo, o lugar que ocupa o sujeito do processo, dentro dessa proposição
metodológica. Assim, de acordo com o que preconiza o Manual de Capacitação Pedagógica do
Projeto, acerca da referida metodologia, “o sujeito que aprende é cidadão social e historicamente
determinado, está inserido na produção de serviços de saúde, em como atividade principal o
trabalho e, apesar da heterogeneidade de sua formação prévia, inserção social, funções que exerce,
relações de poder e hierarquia, é um sujeito apto a adquirir e produzir conhecimentos, desde que
sejam organizados e estruturados de maneira a não propiciar fragmentações ou atomizações, e,
acima de tudo, permitam a crítica para uma conseqüente transformação da prática” (l994, p.7).
O fato de permitir a crítica favorece, no caso particular, uma aprendizagem centrada na
realidade de cada serviço, no sentido de transformá-la, a partir da construção coletiva de um
conhecimento novo e em função dos propósitos de reorganização dos serviços de saúde,
preconizados pelo SUS. Mediante tais princípios, em busca da consecução desses objetivos, a
direção dos centros de formação não pode prescindir de uma contínua preocupação com o preparo
dos instrutores/supervisores e coordenadores de cursos, tanto no que diz respeito ao domínio da
metodologia utilizada, quanto em sua atualização técnica, inerente à área de profissionalização
específica de cada um.
A esse respeito é importante mencionar que, paralelo ao processo de profissionalização,
ampliam-se os cursos de especialização, nas diferentes áreas técnicas, com o objetivo de preparar os
enfermeiros para atuar principalmente junto às unidades básicas de saúde, dentro dos propósitos do
SUS, bem como, melhor capacitá-los para a profissionalização de nível médio. Vale frisar que esses
cursos, em sua grande maioria, ocorreram graças às parcerias entre as universidades públicas,
secretarias de saúde e educação dos Estados e outras instituições de apoio, como a OPS, por
exemplo.
Essa preocupação com o preparo dos instrutores/supervisores e coordenadores de curso, que
atuam na formação dos trabalhadores de nível médio, do setor saúde, é fundamental e, em
decorrência, exige, por parte destes, um grande envolvimento com o preparo dos sujeitos desse
processo. E, assim sendo, importa, em primeiro lugar, ressaltar a contribuição do aluno, como
agente ativo da experiência ensino/aprendizagem, a ser vivenciada, e o que isso significa no seu
crescimento, como cidadão, na conquista da cidadania. Em segundo lugar, propiciar os meios
necessários à compreensão do fenômeno saúde/doença, dentro de uma visão ampla, com base na
compreensão da realidade social, das condições de vida da população e da própria inserção do
homem no processo de produção.
Portanto, todo esse esforço de utilização de uma metodologia centrada na problematização,
tinha e tem como propósito contribuir para a construção de uma consciência crítica dos atores
envolvidos no processo ensino/aprendizagem. Nessa perspectiva, o sujeito do processo, o aluno
trabalhador, é participante e agente de transformação social; por isso mesmo, essa proposta
pedagógica permite a conformação de uma nova prática e, por conseguinte, a possibilidade de
reorganização dos serviços de saúde, um dos propósitos explícitos do processo de construção do
SUS.
Para a concretização desses objetivos, um aspecto que merece ainda ser ressaltado, diz
respeito a flexibilização do processo na sua operacionalização. Assim, considerando ser a clientela
desses cursos, trabalhadores que se encontram integrados à rede de prestação de serviços na área da
saúde, a metodologia prevê uma fase de concentração e outra de dispersão, sem, no entanto, afastar
o aluno totalmente do seu campo de trabalho. Na primeira fase, ele parte da observação da
realidade, identifica os pontos chaves de cada problema e, com a ajuda do instrutor, tem acesso a
um recorte teórico dentro do tema estudado. Em seguida, realiza-se a dispersão, oportunidade em
que o aluno volta às suas atividades para aplicação dos novos conhecimentos à realidade. Em outras
palavras, a experiência de ensino/aprendizagem acontece com momentos presenciais e não
presenciais e ainda considera o ritmo de cada aluno, ou seja, seu potencial de compreensão e
assimilação do conhecimento com vistas à transformação da prática.
Sem dúvida, essa experiência representa um marco na história do ensino de nível médio na
área de enfermagem, no entanto, insuficiente para fazer face às exigências de profissionalização do
grande contingente de trabalhadores da área, sem a escolarização profissional devida. Por outro
lado, as precárias condições de vida da população brasileira, o difícil acesso à escola pelas camadas
populares, acrescendo-se, ainda a extensão territorial do país que atinge uma dimensão continental,
são variáveis que, se não inviabilizam, dificultam, em muito, a realização de uma proposta
pedagógica que atenda a todos os trabalhadores de enfermagem ainda não profissionalizados.
A concretização e expansão do Projeto Larga Escala, atingindo todas as regiões do país,
contribuiu de forma decisiva para uma profunda reflexão acerca do fazer pedagógico na área da
saúde, em particular, na enfermagem, por ser justamente o maior contingente de profissionais dessa
área. Por conseguinte, essa experiência abriu novos horizontes para propostas alternativas mais
ambiciosas, dentro do projeto de profissionalização de nível médio, reforçada, pela nova Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96) que enfatiza a profissionalização do ensino
de nível médio. Surge, portanto, nesse contexto, o Projeto de Formação dos Trabalhadores da Área
de Enfermagem (PROFAE).
O PROFAE nasce nos anos 90, no Ministério da Saúde, com o apoio da Fundação Oswaldo
Cruz e Escola Nacional de Saúde Pública. De alguma maneira, mesmo concebido dentro de outra
dimensão metodológica, suas bases de apoio contam com o know-how do Projeto Larga Escala,
experiência fundamental para viabilização do PROFAE. Esse tem como propósito ampliar e
redimensionar a política de formação de profissionais de nível médio na área de enfermagem. Tratase de uma iniciativa de grande força política, cuja preocupação básica se centra, inicialmente, na
formação de professores que integram o Projeto. Essa proposta é considerada ambiciosa na medida
em que atinge um grande contingente de professores/instrutores através de um Projeto de Educação
a Distância, coordenado pela Escola Nacional de Saúde Pública e contando com o apoio das
universidades públicas, através de seus professores.A idéia inicial é promover a Formação
Pedagógica em Educação Profissional na Área de Saúde, em nível de especialização. Nesse projeto
serão gradativamente incluídos todos os professores/instrutores, da rede pública de ensino
profissionalizante, envolvidos no processo de formação de auxiliares e técnicos de enfermagem.
Vale ressaltar que uma proposta pedagógica dessa magnitude abre caminhos para um processo de
educação permanente junto aos profissionais, questão fundamental dentro da política do SUS, bem
como, prática essencial para fazer frente às constantes mudanças tecnológicas que envolvem o
setor. Além disso, como projeto de educação a distância, possibilita a inclusão de um contingente
muito maior de enfermeiros, no caso, professores/instrutores que atuarão na formação desses
profissionais de nível médio, aos quais nos referimos.
O PROFAE, diferentemente do Larga Escala, amplia sua área de formação, incluindo tanto a
demanda oriunda do mercado aberto quanto aqueles trabalhadores que se encontram na rede de
serviços, mas que ainda não foram profissionalizados.
Devemos, igualmente, salientar que esse último projeto, o PROFAE, encontra-se em fase de
implantação em todo o Brasil e, assim sendo, ainda não há uma avaliação de resultados. No entanto,
podemos ressaltar a receptividade e compromisso dos diferentes atores envolvidos com o processo,
nas distintas regiões do país. Sobre o Projeto Larga Escala, embora não exista uma avaliação deste,
como um todo, incluindo todos os Estados envolvidos com o processo, o próprio surgimento do
PROFAE dá conta da semente por ele semeada. Avaliações pontuais, acerca do projeto, realizadas
por algumas instituições, indicam a importância do mesmo no resgate da dívida social para com os
trabalhadores da saúde, além de contribuir para o grande desafio da construção de uma nova prática.
Por fim, é importante afirmar que a realização de qualquer processo dessa natureza envolve
uma grande disposição e compromisso político, por parte de quem com ele se envolve. Devemos
ainda acrescentar que tal inovação reveste-se de uma certa complexidade, pois, conforme assinala
Edgar Morin, a gestação e aceitação de novas idéias, implica na mudança dos dispositivos mentais,
por vezes, ossificados e engessados ao longo da experiência profissional de cada um. Mas, por outro
lado, o mesmo autor, também afirma: “a aquisição de uma informação, a descoberta de um saber, a
invenção de uma idéia, podem modificar uma cultura, transformar uma sociedade, mudar o curso da
história” (l99l, p.22).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL, Ministério da Saúde. Coordenação Geral de Desenvolvimento de Recursos Humanos para
o SUS. Capacitação pedagógica para o instrutor/supervisor – Área da Saúde. Brasília:
Ministério da Saúde, l994.
GERMANO, R. M. CEFOPE/RN: uma experiência de formação de recursos humanos em
saúde – l984-l996. Natal: SSAP/RN, l996.
LOBO NETO, F.J.S. Formação pedagógica em educação profissional na área de saúde:
enfermagem. Brasília: Ministério da Saúde; Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, ENSP,
2000.
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