TEIAS DA AFRO-DIÁPORA: RELENDO FESTAS DO CICLO NATALINO ENTRE O BRASIL E O CARIBE Nirlene Nepomuceno (PUC-SP)∗ Resumo: A obrigatoriedade do ensino da História da África e Culturas africana e afrobrasileira, através da aprovação da Lei 10.639/03, deve ser vista como oportunidade para desconstrução de abordagens eurocêntricas que permanecem no nosso sistema de ensino. O estudo de práticas culturais de africanos em diáspora nas Américas, numa perspectiva transatlântica, requer que se privilegie códigos textuais outros que não só o escrito. Neste artigo, nos propomos a rastrear similaridades e diferenças em festas negras do ciclo natalino no Brasil e Caribe, tendo em mente que o corpo, sobretudo no universo africano, é suporte de registros de memórias. Palavras-chave: Diáspora, corpo negro, performance, práticas culturais, celebrações negras. Abstract: The mandatory teaching of African History and Cultures of Africa and AfricanBrazilian, through the enactment of Law 10.639/03, must be seen as an opportunity for the deconstruction of Eurocentric approaches that remain in our education system. From a transatlantic perspective, the study of cultural practices of Africans in diaspora in the Americas requires that reseachers privilege textual codes other than just the writing. In this article, we propose to trace similarities and differences between celebrations from African diaspora during Christmas time . In that sense, the body should be seen as a starting point, especially given the fact that within the framework of African cosmogonies, it functions as a repository of memories or records. Key Words: Diaspora, memories, performance, cultural practices, African festvals. Mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e ex-bolsista do Programa Internacional de Bolsas da Fundação Ford. Atualmente, cursa o doutorado na mesma instituição, com financiamento do CNPq. Desenvolve pesquisa sobre a diáspora africana na America Latina e Caribe, com foco em celebrações de protagonismo negro do ciclo natalino nos séculos XVIII e XIX. Fulbright Visiting-Researcher junto ao African and African American Studies Center at Boston University (MA, EUA), no periodo Mar 08/Mai 09, possui Especialização em História da África pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) da Universidade Cândido Mendes (1997) e graduação em Comunicação Social (Jornalismo). Email: [email protected] ∗∗ Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queiroz, ISNN 2179-9636, Ano 1, numero 1, março de 2010. www.faceq.edu.br/regs A hegemonia do saber europeu-ocidental, ao instituir o escrito, destituiu e relegou à condição de selvagem, primitivo e inferior saberes e cosmologias de povos autóctones. Ideias de progresso, civilização e letramento jogaram sombra e marginalizaram outros “códigos textuais” que não privilegiam o escrito como forma de comunicação e expressão, prevalecendo, por muito tempo, a máxima de que povos sem escrita eram povos sem cultura. “Documentos escritos ganharam ares de verdade absoluta, a ponto de se tornarem sinônimos de História e de naturalizarem a expressão pré-História para referências a um passado sem escrita” (Funari, 2005: 83). Nessa perspectiva, a África, sobretudo a subsaariana, foi vista e representada como sem códigos de escrita, sem história e sem arte, e seus povos e culturas passaram a ser “lidos” apenas pelo prisma da civilização ocidental cristã. A desconstrução dessa visão eurocêntrica começou a se efetivar nos anos finais da década de 1940, quando, a partir de uma proposição da Unesco, intelectuais africanos de diversas áreas do conhecimento foram convocados a escrever, eles mesmos, sua própria história, privilegiando a tradição oral como fonte. Lá se vão, desde então, mais de meio século, e nos meios educacionais da Europa e dos Estados Unidos o tema África perpassa não só diferentes áreas de estudos, mas também os diversos níveis de ensino. Contudo, no sistema educacional do Brasil, e no imaginário da maior parte dos brasileiros, permanece (orgulhosamente) arraigado um desconhecimento da África e da diáspora de seus milhões de filhos escravizados e trazidos para o Novo Mundo, bem como um desprezo pela história do continente e de sua importância para a História do Brasil. A despeito da Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da História e Cultura da África e dos Afro-Brasileiros, a história daquele continente e temáticas correlatas ainda ocupam um lugar secundário nas grades escolares. Como muito bem dito pelo historiador Alberto da Costa e Silva (2003), o olhar brasileiro sempre esteve mais voltado para a Europa, a despeito de “o obá do Benim ou o angola a quiluanje, ou rei dos andongos, est[arem]ão mais próximos de nós do que os soberanos da Inglaterra ou da França” (COSTA E SILVA, 2003, 240). É claro que nas últimas décadas surgiram cursos visando formar professores e pesquisadores em História da África e na temática étnico-racial. Um significativo volume de estudos, tendo por objeto as Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queiroz, ISNN 2179-9636, Ano 1, numero 1, março de 2010. www.faceq.edu.br/regs interconexões Brasil-África, tem sido produzido, mas ainda temos um longo caminho a percorrer, sobretudo no que diz respeito a abordagens das culturas negro-africanas na perspectiva transatlântica, que leve em conta os “fluxos e refluxos” de pessoas, ideias, experiências e bens culturais no espaço atlântico entre os séculos XV e XIX, bem como universos de expressão e comunicação pautados nas tradições orais. Muitas das pesquisas sobre a África e sua diáspora a partir do tráfico de escravos em desenvolvimento, hoje, nas nossas universidades, apontam seu foco para as margens africana e brasileira, o que é louvável. Contudo, é necessário também que nos voltemos para outros “negros portos atlânticos” que integraram rotas das embarcações negreiras e comerciais nos quase 400 anos em que durou o nefando comércio, para dimensionar o aporte civilizacional da África no “novo mundo”. Falo, mais precisamente, do Caribe, ainda tão desconhecido para nós, com quem o Brasil partilha um passado comum de colonização, escravidão e sistema de plantações, a ponto de ter áreas de seu território – os estados do Maranhão, Pará e Amapá –consideradas como “extensão” daquele arquipélago, seja em termos de paisagens geográficas, seja em termos culturais. O historiador porto-riquenho Antônio Gaztambide-Geigel (1996) propõe que, sempre que se faça menção ao arquipélago, se especifique sobre qual Caribe se fala1 . Nesse sentido, o Caribe aqui abordado é aquele cujas dimensões não são estabelecidas por fronteiras físicas e sim por uma espécie de “modus operandi” cultural encontrado do Sul dos Estados Unidos ao Norte do Brasil; um “caribe” em que a grande plantação fundamentou a organização socioeconômica. Sabemos ainda pouco sobre a África e sabemos tanto quanto, ou até menos, sobre o Caribe, cujas colônias inglesa, francesa, holandesa, receberam, juntas, o segundo maior número de africanos escravizados depois do Brasil2. 1 Caribe é termo que comporta muitas definições e interpretações. “Existen em realidade muchos Caribes”, sustenta Gaztambide-Geigel, referindo-se ao fato de que o Caribe pode ser “lido” pelos vieses econômico, geográfico, estratégico e cultural, entre outros. Ver mais em “Plantation American: A culture sphere”. Caribbean Studies: A Symposium. Ed. Vera Rubin. Seatle: Univ. of Washington Press, 1960/Gaztambide-Geigel. “La Invención del Caribe a partir de 1898” (Las definiciones del Caribe, revisitadas).Tierra Firme, Caracas, Año 21. Vol XXI, No. 82, Abril-Junio 2003; Girvan, N. Reinterpretar el Caribe”. Revista Mexicana del Caribe, Año IV, no. 7, 1999; Carvalho E., Oliveira, G. “Perspectivas Interpretativas do Caribe e o Antilhanismo de Eugenio María de Hostos”. In Cabrera, O., Almeida, J.(Orgs). Caribe. Sintonias e Dissonâncias. Goiania: Editora CECAB, 2004, pp. 213-234. 2 Estima-se que dos cerca de 11 milhões de africanos extraídos à África no tráfico interatlântico, 5 milhões desembarcaram na costa brasileira, enquanto cerca de 3,5 a 4 milhões tiveram portos do Caribe como destino. Números retirados de CURTO, J., LOVEJOY, P. Enslaving Connections. Changing Cultures of Africa and Brazil during the Era of Slavery. N. York: Humanity Books, 2004. Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queiroz, ISNN 2179-9636, Ano 1, numero 1, março de 2010. www.faceq.edu.br/regs Pesquisa-piloto conduzida entre 2002 e 2004 pela historiadora Maria Negrão de Mello (2003), no âmbito do Projeto Procad/Capes “Fronteiras: espaços imaginados, lugares concretos”, evidenciou o desconhecimento de estudantes brasileiros em relação à região. A pesquisadora analisou um conjunto de quatro livros didáticos de História da América3, publicados entre 1980 e 1990 e adotados por escolas secundárias brasileiras, e conjugou a análise à aplicação de questionários a estudantes universitários saídos do Ensino Médio há menos de dois anos, a fim de conhecer “que discursos veicula[va]m quando o tema é o Caribe e que representações lhes confer[iam]em suportes” (MELLO, 2003, 16). Obteve respostas vagas sobre “um conjunto de ilhas” e “movimentos de libertação alhures”, constatando a permanência de representações que lembram aquelas construídas por viajantes europeus dos séculos XVIII e XIX4, de cujos relatos saltam paisagens “inabitadas, devolutas, sem história” (PRATT, 1999: 99). O sistema atlântico, com sua organização colonial e o tráfico de africanos, conectou irremediavelmente as sociedades latino-americanas e caribenhas, dotando-as de percursos comuns que resultam em similaridades histórico-culturais, guardadas as especificidades nacionais e regionais. Apesar da proximidade geográfica e das similaridades culturais que o Brasil guarda com o Caribe, as duas regiões permanecem praticamente desconhecidas e desconectadas uma da outra, salvo pelo atrativo turístico. No dizer de Roberto Moura (1998), Não conhecemos o cinema, nem a literatura, a poesia ou o teatro colombiano, ou o argentino, chileno, ou de qualquer outro país com quem partilhamos o continente e do vizinho Caribe (...) não sabemos nada sobre suas sociedades a não ser alguma trívia, geralmente política ou esportiva, tratada de forma caricatural pela imprensa – muito menos temos consciência de aspectos comuns que compartilhamos quanto à nossa formação profunda como países e como culturas nacionais e regionais próprias. (MOURA, 1998, p. 9) A obrigatoriedade do ensino da História e Cultura dos Africanos e Afro-Brasileiros impõe desafios5, mas também abre janelas para que iniciemos a “descolonização do conhecimento”, tarefa, de acordo com Mary Louise Pratt (1999, 17), na qual intelectuais e 3 Os livros selecionados foram “História da América”, de Elza Nadai e Joana Neves, Ed. Saraiva, 1991; “História da América”, de Heródoto Barbeiro, Ed. Harper & Row do Brasil, 1984; “História da América”, de Raymundo Campos, Ed. Atual, 1991; e História das Sociedades Americanas, Ed. Eu e Você, 1981. 4 No imaginário dos estudantes afloraram imagens de “paisagem”, “natureza exuberante”, “frutos tropicais”, “praia”, “bebida”, “turismo”, “gente bronzeada”, “sensualidade”, “ritmos” e “danças”, entre outras. 5 Encontrar professores qualificados é um dos maiores deles, uma vez que a história do continente não faz parte da formação desses profissionais, correndo-se o risco da difusão de visões estereotipadas ou reducionistas sobre as sociedades africanas. Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queiroz, ISNN 2179-9636, Ano 1, numero 1, março de 2010. www.faceq.edu.br/regs artistas devem permanecer como colaboradores vitais durante várias gerações. A adoção de abordagens transatlânticas no estudo de formas culturais negro-africanas, poderá contribuir para “romper com o eurocentrismo que ainda estrutura os programas de ensino das escolas”, como afirma Hebe Mattos (citada por Oliva, 2003). Analisar contextos sócio-históricos de aspectos comuns compartilhados por essas regiões, e que demarcam tão fortemente as culturas situadas abaixo da linha do Equador, levará a aprofundamento nas reflexões sobre o valor e a influência de experiências e práticas de africanos na formação de instituições americanas modernas, contribuindo para redução das distorções e discriminações em torno do papel dos negros nas Américas. Um dos “percursos comuns” entre o Brasil, alguns países latino-americanos e regiões do Caribe são as festas do chamado ciclo natalino6, objeto de pesquisa de doutorado ora em andamento. Entre os séculos XVII e XIX essas celebrações irradiaram e compuseram o cenário colonial do “novo mundo” naquelas áreas em que africanos escravizados e seus descendentes marcaram presença. Em algumas regiões, como nas de colonização anglófona, por exemplo, essas celebrações eram (e ainda são) muito comuns no dia seguinte ao Natal (Boxing Day) e no Ano Novo. Naquelas de colonização ibérica, esses festejos davam-se mais comumente durante o Natal e no dia de Reis. Do Suriname ao Sul dos Estados Unidos, de Cuba ao Uruguai, passando por Haiti, Martinica, Trinidad e Tobago e Brasil, essas celebrações alcançaram grande dimensão em praticamente toda a América, num equivalente ao carnaval contemporâneo. Reunindo africanos de diferentes etnias, negros nascidos nas colônias, escravizados e livres, homens, mulheres e crianças, tais festejos, muitas vezes envolvendo coroação de reis e rainhas, invadiam ruas de cidades e vilas, impondo-se sobre formas culturais do colonizador europeu, algo a que Leda Martins (2002) classifica como “[...] disjunção entre o que o sistema social pressupunha que os sujeitos deviam dizer e fazer e o que, por inúmeras práticas, realmente diziam e faziam” (MARTINS, 2002, 71). O antropólogo cubano Fernando Ortiz (1992), num estudo sobre essas celebrações natalinas de protagonismo negro, dá bem a ideia da dimensão e intensidade dessas festas e mostra o quanto a África se fazia presente nelas. “Aquel día [o de Reis] él África negra y ultratlántica con sus hijos, sus vestidos, sus músicas, sus lenguajes y cantos, sus bailes y 6 Entre 25 de dezembro e 6 de janeiro, de acordo com o calendário cristão. Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queiroz, ISNN 2179-9636, Ano 1, numero 1, março de 2010. www.faceq.edu.br/regs ceremonias, sus religiones y instituciones políticas, se trasladabla a Cuba” (ORTIZ, 1992, 25). Embora a referência seja sua ilha natal, o exemplo vale para outras áreas do “novo mundo”, como é possível constatar em registros sobre práticas africanas deixados por cronistas, viajantes, religiosos e outros “etnógrafos sem diploma” (SCHWARCZ, 2001: 612). Vejamos, por exemplo, um registro feito por Long (1774), anterior a 1770, referente a celebrações na Jamaica. Nas cidades, durante os feriados de Natal, eles [os escravos] têm vários companheiros altos e robustos, vestidos em grotescos trajes e com um par de chifres de boi em suas cabeças, que brotam de um tipo horrível de viseira ou máscara da qual, próximo da boca, projetam-se grandes presas de javali, o que a torna ainda mais atemorizante. O mascarado, carregando uma espada de madeira na mão, é seguido por uma multidão de mulheres que o refrescam frequentemente com goles de bebida de anis enquanto ele dança a cada porta. (LONG, 1774, 424) E este outro, relativo ao Nordeste brasileiro, flagrado por Morais Filho (2002). A véspera de Reis na Bahia é um corolário da noite de Natal [...] Destoando do concerto magnífico, lá cresce o rancho dos bucumbis, que são negros e negras vestidos de penas, rosnando toadas africanas e fazendo bárbaro rumor com seus instrumentos rudes. Na primitiva, esses bandos, constituídos por escravos d’África, eram numerosíssimos, sendo as suas cantigas bárbaras unicamente na linguagem de suas terras natalícias. (MORAIS FILHO, 2002, 74-75, 141) A situação não era diferente em Cuba, como se depreende de registro de Riego (citado por Ortiz, 1992), datado de 1843. Grupos numerosos de homens e mulheres negros cruzam a cidade em todas as direções ao som de seus tambores, ridiculamente vestidos, adornados com uma profusão de fitas, miçangas, espelhos, penas e pedaços de tecidos de todas as cores. No meio de cada um desses grupos segue um de seus iguais, de estatura colossal, com a cara coberta por um lenço ou pintada de branco e vermelho, o que lhe dá um aspecto risível e extremamente ridículo. Este homem carrega na cintura um arco coberto por estopa e enfeitado com fitas, formando uma espécie de saiote que alcança e cobre os joelhos e que balança violentamente cada vez que ele dança (RIEGO apud ORTIZ, 1992, 32). Tais celebrações eram recorrentes, também, no sul dos Estados Unidos, conforme relatado por Harriet Jacobs (2002). Toda criança acorda cedo na manhã de Natal para ver o Johnkankus... Eles são grupos de escravos das plantações... Dois homens atléticos em um traje de chita sobreposto por uma espécie de rede coberta por fitas e retalhos coloridos. Eles têm rabos de boi preso às ancas, e suas cabeças são enfeitadas com chifres. Uma caixa, coberta com couro de carneiro, é chamada de gumbo. Vários batem sobre ela, enquanto outros tocam triângulos e jawbones [ossada de maxilar animal usada como reco-reco] ao som dos quais se movimentam os dançarinos. Esses grupos, com centenas cada, aparecem de manhã cedo. (JACOBS, 2002, 572) Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queiroz, ISNN 2179-9636, Ano 1, numero 1, março de 2010. www.faceq.edu.br/regs Poderíamos enumerar vários outros flagrantes de “ajuntamentos” negros em regiões distintas das Américas no período natalino. Não se trata, como podemos depreender, de uma única e mesma festa espalhada por diferentes pontos, mas em todas elas persistem significados e sentidos de ancestrais memórias de África, “lugar perdido e achado, transcriado perenemente pela performance ritual”, no dizer de Martins (2002, 70). As “semelhanças familiares”7 que essas celebrações apresentam atentam para permanências de sistemas político-religiosos, de ritos de cura, de laços com a ancestralidade, de cosmogonias de povos de África, e evidenciam o quanto o corpo negro serviu de capital cultural na diáspora (HALL: 2003, 342). Eis aí outro desafio que se nos impõe o estudo de práticas e vivências de africanos na diáspora. Se quisermos apreender dinâmicas de culturas afrodescendentes, precisamos aprender a “ler” o corpo como “suporte de registros”8 , quer orais, visuais, textuais, na sondagem de valores, crenças, expressões e tradições vivenciadas e trazidas por africanos, ressignificadas na diáspora em interconexões com culturas e práticas de nativos e europeus. George Vigarello (2002) lembra que o corpo “[...] evoca numerosas imagens, sugere múltiplas possibilidades de conhecimento”. Em certas situações, diz ele, “especialmente quando a relação com a escrita e com o livro não é geral, o corpo pode revelar uma profundidade social por vezes inimaginável” (VIGARELLO apud ANTONACCI, 2002, 153). Acostumados à hegemonia do escrito, nos despreparamos para histórias que “envolvem maneiras de ver”9, ignorando gestos, disposições corporais, vestuários, ritmos, máscaras e outros “códigos textuais” que não privilegiam o escrito como forma de comunicação, mas que “podem nos dizer tanto quanto palavras”10 sobre o cotidiano e formas sociais criadas por grupos silenciados e negados em sua humanidade. 7 Referência contida em HALL, S. Da Diáspora. Identidades e mediações culturais. B. Horizonte: Ed. UFMG; Brasília: Representação da Unesco, 2003, p. 36. 8Expressão retirada de M. Antonieta Antonacci, que vem trabalhando esta questão nos últimos anos. Ver “Corpos Negros desafiando verdades”. In: BUENO, M. L e CASTRO, A. L. Corpo território da cultura. S. Paulo: Anablume, 2005, pp. 27-66; ‘Corpos sem fronteiras”Revista Projeto História, 25, Dez. 2002, pp. 145-180; “África made in Brasil”. Artigo ainda inédito. Agradeço a permissão para leitura e citação. 9 Expressão retirada de Samuel, R. “Teatros de Memória”. Revista Projeto História, no. 14, Fev. 1997, pp.41-81. 10 Frase do personagem Alloune, no filme argelino Little Senegal, de 2001, que trata da jornada de um velho senegalês “djulla” a Nova York ao encontro de descendentes de um ancestral levado para a América como escravo. A fala em questão refere-se às escarificações – três marcas que vão da boca ao queixo – que identificam os integrantes de sua etnia. Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queiroz, ISNN 2179-9636, Ano 1, numero 1, março de 2010. www.faceq.edu.br/regs Ao estudar semelhanças e diferenças nas manifestações da diáspora entre si e destas com outras existentes em África, o dramaturgo e professor nigeriano Esiaba Irobi (2007) também centrou atenção no corpo. Irobi condena a valorização excessiva da palavra impressa, à qual atribui a dificuldade do ocidente em compreender o poder do corpo como “[...] um local de múltiplos discursos para esculpir a história, memória, identidade e cultura” (IROBI, 2007, 900). Séculos antes que a Fenomenologia11 , ironiza Irobi, concluísse que o corpo humano é a principal fonte, lugar e centro de percepção e expressão, seja ela física ou transcendental, já havia espaços, nas culturas africanas, onde a vida era e continua sendo uma atividade intensamente performativa e ritualizada. Toda tradição de representação ritual e cerimonial africana, com toda sua música, dança, linguagem de percussão, arquitetura, canções, espetáculos, configurações espaciais, coreografias e máscaras sempre foram fenomenologicamente transmitidas de geração a geração. Antes e depois da escravidão, tais transmissões foram veiculadas por meio da inteligência do corpo humano, e não através de vídeos, filmes ou textos impressos. (IROBI, 2007, 897) Incorporando hábitos memoriais, o corpo físico torna-se receptáculo simbólico e expressivo do transcendente, e ainda que deslocado além-mar, mantém coreografias e vocabulários fenomenológicos da sua história cultural e identidade original (Irobi, 2007, 898). Em seu deslocamento forçado, o africano trouxe consigo esses hábitos e memórias que mesmo a escravidão com todos os seus rigores, de acordo com Martins (1997), [...] não conseguiu apagar no corpo/corpus africano e de origem africana os signos culturais, textuais e toda a complexa constituição simbólica fundadores de sua alteridade, de suas culturas, de sua diversidade étnica, linguística, de suas civilizações e história (MARTINS, 1997, 25). Mais do que a sazonalidade do período natalino, celebrações negras dos séculos XVIII e XIX - como os registros de viajantes e cronistas acima reproduzidos permitem vislumbrar -, partilhavam princípios estéticos e filosóficos. Sistema processional, configuração espacial, visitações casa a casa, desafios versejados, cantos responsoriais, sátiras, máscaras, tambores, danças, penas de pássaros, figurações de animais constituem princípios elementares e/ou atitudes estéticas que regem sociedades africanas, sobretudo naquelas regiões que mais cederam escravizados ao tráfico interatlântico. Tanto para povos 11 O autor leva em conta não apenas pontos de vista de Hegel, Husserl, Sartre ou Merleau-Ponty, mas também, e principalmente, a partir de perspectivas africana e afro-diaspórica. Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queiroz, ISNN 2179-9636, Ano 1, numero 1, março de 2010. www.faceq.edu.br/regs iorubas quanto para povos bantos, para citar dois dos grupos étnicos transplantados em maior proporção, movimentação circular e processional em rituais envolvendo mascarados está associada à proteção da comunidade/vilarejo contra os maus espíritos e influências, servindo também para atrair sorte e bem-estar. Na Iorubalândia12 , por exemplo, nos festivais dedicados ao Rei Shango13, o mascarado condutor da cerimônia exibe sua “performance” dançando a cada porta do Palácio Real de Oyó, garantia de que possíveis males serão espantados para longe. Essa “geometria social”14 pode ser surpreendida, ainda hoje, em inúmeras celebrações da afro-diáspora. “Divertimentos estrondosos” (SANTOS, 1997) com raízes fincadas em África, que ainda ecoam no Brasil e em vários países da América Latina e do Caribe, a despeito das muitas transformações e empréstimos culturais . Muitas das manifestações natalinas de protagonismo negro flagradas por viajantes, religiosos e cronistas nos séculos XVIII e XIX deixaram de existir ou adquiriram, ao longo dos séculos, configurações bem distintas das que tinham no passado. Adaptadas a novas situações e contextos, às vezes deslocadas no tempo e espaço, guardam, contudo, uma certa “textualidade performática”15que não deixa dúvidas quanto às heranças nelas presentes. Em algumas, como é o caso das Congadas de Minas Gerais ou do Ticumbi de Conceição da Barra (ES), essa herança é facilmente identificável; em outras, como em certos grupos de Folias de Reis das regiões Sul mineira e fluminense, essa “escrita” é mais sutil, exigindo olhares atentos para ser desvelada. Como observado por Nilma Gomes (2009), o universo africano “[...] não se dissocia da corporeidade, da musicalidade, das narrativas, da vivência da periferia, das formas comunitárias de aprender” (GOMES, 2009, 429). Não importando se sob domínio inglês, holandês, francês, espanhol ou português, os africanos nas Américas, parafraseando Reid Mitchell (2002, 43), carregaram a festividade europeia do ciclo natalino para dentro da estrutura de suas próprias culturas, ressignificando-as, reelaborando-as, apropriando-se de 12 Compreende terras da Nigéria e do Benin. 13 Shango, Sango ou Xangô. De acordo com Pierre Verger, pode ser descrito sob os aspectos histórico e divino. Pelo primeiro, teria sido o terceiro rei do reino de Oyó. No aspecto divino, é orixá filho de Iemanjá. 14 Expressão utilizada por Dejo Afolayan. Apud THOMPSON, R. F. “Recapturing heaven’s glamour: AfroCaribbean festivalizing arts”. In NUNLEY, J.; BETTELHEIM, J. Caribbean Festival Arts. St. Louis Art Museum, 1988, pp. 17-30. 15 No dizer de Esiaba Irobi. Op. cit. P. 896. Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queiroz, ISNN 2179-9636, Ano 1, numero 1, março de 2010. www.faceq.edu.br/regs espaços eurocristãos de festas para seus próprios objetivos, ao mesmo tempo em que alteravam significativamente práticas religiosas europeias. Se, no passado, saberes, crenças, tradições de povos autóctones foram renegados urge, no presente, ampliar possibilidades de compreensão desse passado dando visibilidade, como aponta Martins (1995),“[...] a outros saberes possíveis de verdades, de legitimidade, de encanto e sedução, mas também passível de fendas, de rasuras, de incompletudes” (MARTINS, 1995, 26), pois, como advertiu Tierno Bokar (citado por Hampatê Bâ, 1982),“[...] a escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si” (BOKAR apud HAMPATE BA, 1992, 181). Diversificar narrativas e suportes de memórias, legitimando a pluralidade de práticas de conhecimento e percepções culturais, de acordo com Antonacci (2010), representa tentativa de desencadear processos de decolonialidade mental e sondar rastros de culturas insurgentes nas Áfricas, Américas e diásporas afro-americanas. BIBLIOGRAFIA ANTONACCI, Maria Antonieta. Corpos sem Fronteiras Projeto História. 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