TEIAS DA AFRO-DIÁPORA:
RELENDO FESTAS DO CICLO NATALINO ENTRE O BRASIL E O CARIBE
Nirlene Nepomuceno (PUC-SP)∗
Resumo: A obrigatoriedade do ensino da História da África e Culturas africana e afrobrasileira, através da aprovação da Lei 10.639/03, deve ser vista como oportunidade para
desconstrução de abordagens eurocêntricas que permanecem no nosso sistema de ensino. O
estudo de práticas culturais de africanos em diáspora nas Américas, numa perspectiva
transatlântica, requer que se privilegie códigos textuais outros que não só o escrito. Neste
artigo, nos propomos a rastrear similaridades e diferenças em festas negras do ciclo natalino
no Brasil e Caribe, tendo em mente que o corpo, sobretudo no universo africano, é suporte de
registros de memórias.
Palavras-chave: Diáspora, corpo negro, performance, práticas culturais, celebrações negras.
Abstract: The mandatory teaching of African History and Cultures of Africa and AfricanBrazilian, through the enactment of Law 10.639/03, must be seen as an opportunity for the
deconstruction of Eurocentric approaches that remain in our education system. From a
transatlantic perspective, the study of cultural practices of Africans in diaspora in the
Americas requires that reseachers privilege textual codes other than just the writing. In this
article, we propose to trace similarities and differences between celebrations from African
diaspora during Christmas time . In that sense, the body should be seen as a starting point,
especially given the fact that within the framework of African cosmogonies, it functions as a
repository of memories or records.
Key Words: Diaspora, memories, performance, cultural practices, African festvals.
Mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e ex-bolsista do
Programa Internacional de Bolsas da Fundação Ford. Atualmente, cursa o doutorado na mesma instituição, com
financiamento do CNPq. Desenvolve pesquisa sobre a diáspora africana na America Latina e Caribe, com foco
em celebrações de protagonismo negro do ciclo natalino nos séculos XVIII e XIX. Fulbright Visiting-Researcher
junto ao African and African American Studies Center at Boston University (MA, EUA), no periodo Mar 08/Mai
09, possui Especialização em História da África pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) da Universidade
Cândido Mendes (1997) e graduação em Comunicação Social (Jornalismo). Email:
[email protected]
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A hegemonia do saber europeu-ocidental, ao instituir o escrito, destituiu e relegou à
condição de selvagem, primitivo e inferior saberes e cosmologias de povos autóctones. Ideias
de progresso, civilização e letramento jogaram sombra e marginalizaram outros “códigos
textuais” que não privilegiam o escrito como forma de comunicação e expressão,
prevalecendo, por muito tempo, a máxima de que povos sem escrita eram povos sem cultura.
“Documentos escritos ganharam ares de verdade absoluta, a ponto de se tornarem sinônimos
de História e de naturalizarem a expressão pré-História para referências a um passado sem
escrita” (Funari, 2005: 83). Nessa perspectiva, a África, sobretudo a subsaariana, foi vista e
representada como sem códigos de escrita, sem história e sem arte, e seus povos e culturas
passaram a ser “lidos” apenas pelo prisma da civilização ocidental cristã.
A desconstrução dessa visão eurocêntrica começou a se efetivar nos anos finais da
década de 1940, quando, a partir de uma proposição da Unesco, intelectuais africanos de
diversas áreas do conhecimento foram convocados a escrever, eles mesmos, sua própria
história, privilegiando a tradição oral como fonte. Lá se vão, desde então, mais de meio
século, e nos meios educacionais da Europa e dos Estados Unidos o tema África perpassa não
só diferentes áreas de estudos, mas também os diversos níveis de ensino. Contudo, no sistema
educacional do Brasil, e no imaginário da maior parte dos brasileiros, permanece
(orgulhosamente) arraigado um desconhecimento da África e da diáspora de seus milhões de
filhos escravizados e trazidos para o Novo Mundo, bem como um desprezo pela história do
continente e de sua importância para a História do Brasil. A despeito da Lei 10.639/03, que
tornou obrigatório o ensino da História e Cultura da África e dos Afro-Brasileiros, a história
daquele continente e temáticas correlatas ainda ocupam um lugar secundário nas grades
escolares.
Como muito bem dito pelo historiador Alberto da Costa e Silva (2003), o olhar
brasileiro sempre esteve mais voltado para a Europa, a despeito de “o obá do Benim ou o
angola a quiluanje, ou rei dos andongos, est[arem]ão mais próximos de nós do que os
soberanos da Inglaterra ou da França” (COSTA E SILVA, 2003, 240). É claro que nas últimas
décadas surgiram cursos visando formar professores e pesquisadores em História da África e
na temática étnico-racial. Um significativo volume de estudos, tendo por objeto as
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interconexões Brasil-África, tem sido produzido, mas ainda temos um longo caminho a
percorrer, sobretudo no que diz respeito a abordagens das culturas negro-africanas na
perspectiva transatlântica, que leve em conta os “fluxos e refluxos” de pessoas, ideias,
experiências e bens culturais no espaço atlântico entre os séculos XV e XIX, bem como
universos de expressão e comunicação pautados nas tradições orais.
Muitas das pesquisas sobre a África e sua diáspora a partir do tráfico de escravos em
desenvolvimento, hoje, nas nossas universidades, apontam seu foco para as margens africana
e brasileira, o que é louvável. Contudo, é necessário também que nos voltemos para outros
“negros portos atlânticos” que integraram rotas das embarcações negreiras e comerciais nos
quase 400 anos em que durou o nefando comércio, para dimensionar o aporte civilizacional
da África no “novo mundo”. Falo, mais precisamente, do Caribe, ainda tão desconhecido
para nós, com quem o Brasil partilha um passado comum de colonização, escravidão e
sistema de plantações, a ponto de ter áreas de seu território – os estados do Maranhão, Pará e
Amapá –consideradas como “extensão” daquele arquipélago, seja em termos de paisagens
geográficas, seja em termos culturais.
O historiador porto-riquenho Antônio Gaztambide-Geigel (1996) propõe que, sempre
que se faça menção ao arquipélago, se especifique sobre qual Caribe se fala1 . Nesse sentido, o
Caribe aqui abordado é aquele cujas dimensões não são estabelecidas por fronteiras físicas e
sim por uma espécie de “modus operandi” cultural encontrado do Sul dos Estados Unidos ao
Norte do Brasil; um “caribe” em que a grande plantação fundamentou a organização
socioeconômica. Sabemos ainda pouco sobre a África e sabemos tanto quanto, ou até menos,
sobre o Caribe, cujas colônias inglesa, francesa, holandesa, receberam, juntas, o segundo
maior número de africanos escravizados depois do Brasil2.
1
Caribe é termo que comporta muitas definições e interpretações. “Existen em realidade muchos Caribes”,
sustenta Gaztambide-Geigel, referindo-se ao fato de que o Caribe pode ser “lido” pelos vieses econômico,
geográfico, estratégico e cultural, entre outros. Ver mais em “Plantation American: A culture sphere”. Caribbean
Studies: A Symposium. Ed. Vera Rubin. Seatle: Univ. of Washington Press, 1960/Gaztambide-Geigel. “La
Invención del Caribe a partir de 1898” (Las definiciones del Caribe, revisitadas).Tierra Firme, Caracas, Año 21.
Vol XXI, No. 82, Abril-Junio 2003; Girvan, N. Reinterpretar el Caribe”. Revista Mexicana del Caribe, Año IV,
no. 7, 1999; Carvalho E., Oliveira, G. “Perspectivas Interpretativas do Caribe e o Antilhanismo de Eugenio
María de Hostos”. In Cabrera, O., Almeida, J.(Orgs). Caribe. Sintonias e Dissonâncias. Goiania: Editora
CECAB, 2004, pp. 213-234.
2
Estima-se que dos cerca de 11 milhões de africanos extraídos à África no tráfico interatlântico, 5 milhões
desembarcaram na costa brasileira, enquanto cerca de 3,5 a 4 milhões tiveram portos do Caribe como destino.
Números retirados de CURTO, J., LOVEJOY, P. Enslaving Connections. Changing Cultures of Africa and Brazil
during the Era of Slavery. N. York: Humanity Books, 2004.
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Pesquisa-piloto conduzida entre 2002 e 2004 pela historiadora Maria Negrão de
Mello (2003), no âmbito do Projeto Procad/Capes “Fronteiras: espaços imaginados, lugares
concretos”, evidenciou o desconhecimento de estudantes brasileiros em relação à região. A
pesquisadora analisou um conjunto de quatro livros didáticos de História da América3,
publicados entre 1980 e 1990 e adotados por escolas secundárias brasileiras, e conjugou a
análise à aplicação de questionários a estudantes universitários saídos do Ensino Médio há
menos de dois anos, a fim de conhecer “que discursos veicula[va]m quando o tema é o Caribe
e que representações lhes confer[iam]em suportes” (MELLO, 2003, 16). Obteve respostas
vagas sobre “um conjunto de ilhas” e “movimentos de libertação alhures”, constatando a
permanência de representações que lembram aquelas construídas por viajantes europeus dos
séculos XVIII e XIX4, de cujos relatos saltam paisagens “inabitadas, devolutas, sem
história” (PRATT, 1999: 99).
O sistema atlântico, com sua organização colonial e o tráfico de africanos, conectou
irremediavelmente as sociedades latino-americanas e caribenhas, dotando-as de percursos
comuns que resultam em similaridades histórico-culturais, guardadas as especificidades
nacionais e regionais. Apesar da proximidade geográfica e das similaridades culturais que o
Brasil guarda com o Caribe, as duas regiões permanecem praticamente desconhecidas e
desconectadas uma da outra, salvo pelo atrativo turístico. No dizer de Roberto Moura (1998),
Não conhecemos o cinema, nem a literatura, a poesia ou o teatro
colombiano, ou o argentino, chileno, ou de qualquer outro país com quem
partilhamos o continente e do vizinho Caribe (...) não sabemos nada sobre
suas sociedades a não ser alguma trívia, geralmente política ou esportiva,
tratada de forma caricatural pela imprensa – muito menos temos consciência
de aspectos comuns que compartilhamos quanto à nossa formação profunda
como países e como culturas nacionais e regionais próprias. (MOURA,
1998, p. 9)
A obrigatoriedade do ensino da História e Cultura dos Africanos e Afro-Brasileiros
impõe desafios5, mas também abre janelas para que iniciemos a “descolonização do
conhecimento”, tarefa, de acordo com Mary Louise Pratt (1999, 17), na qual intelectuais e
3
Os livros selecionados foram “História da América”, de Elza Nadai e Joana Neves, Ed. Saraiva, 1991;
“História da América”, de Heródoto Barbeiro, Ed. Harper & Row do Brasil, 1984; “História da América”, de
Raymundo Campos, Ed. Atual, 1991; e História das Sociedades Americanas, Ed. Eu e Você, 1981.
4
No imaginário dos estudantes afloraram imagens de “paisagem”, “natureza exuberante”, “frutos tropicais”,
“praia”, “bebida”, “turismo”, “gente bronzeada”, “sensualidade”, “ritmos” e “danças”, entre outras.
5
Encontrar professores qualificados é um dos maiores deles, uma vez que a história do continente não faz parte
da formação desses profissionais, correndo-se o risco da difusão de visões estereotipadas ou reducionistas sobre
as sociedades africanas.
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artistas devem permanecer como colaboradores vitais durante várias gerações. A adoção de
abordagens transatlânticas no estudo de formas culturais negro-africanas, poderá contribuir
para “romper com o eurocentrismo que ainda estrutura os programas de ensino das escolas”,
como afirma Hebe Mattos (citada por Oliva, 2003).
Analisar contextos sócio-históricos de aspectos comuns compartilhados por essas
regiões, e que demarcam tão fortemente as culturas situadas abaixo da linha do Equador,
levará a aprofundamento nas reflexões sobre o valor e a influência de experiências e práticas
de africanos na formação de instituições americanas modernas, contribuindo para redução das
distorções e discriminações em torno do papel dos negros nas Américas.
Um dos “percursos comuns” entre o Brasil, alguns países latino-americanos e regiões
do Caribe são as festas do chamado ciclo natalino6, objeto de pesquisa de doutorado ora em
andamento. Entre os séculos XVII e XIX essas celebrações irradiaram e compuseram o
cenário colonial do “novo mundo” naquelas áreas em que africanos escravizados e seus
descendentes marcaram presença. Em algumas regiões, como nas de colonização anglófona,
por exemplo, essas celebrações eram (e ainda são) muito comuns no dia seguinte ao Natal
(Boxing Day) e no Ano Novo.
Naquelas de colonização ibérica, esses festejos davam-se mais comumente durante o
Natal e no dia de Reis. Do Suriname ao Sul dos Estados Unidos, de Cuba ao Uruguai,
passando por Haiti, Martinica, Trinidad e Tobago e Brasil, essas celebrações alcançaram
grande dimensão em praticamente toda a América, num equivalente ao carnaval
contemporâneo. Reunindo africanos de diferentes etnias, negros nascidos nas colônias,
escravizados e livres, homens, mulheres e crianças, tais festejos, muitas vezes envolvendo
coroação de reis e rainhas, invadiam ruas de cidades e vilas, impondo-se sobre formas
culturais do colonizador europeu, algo a que Leda Martins (2002) classifica como “[...]
disjunção entre o que o sistema social pressupunha que os sujeitos deviam dizer e fazer e o
que, por inúmeras práticas, realmente diziam e faziam” (MARTINS, 2002, 71).
O antropólogo cubano Fernando Ortiz (1992), num estudo sobre essas celebrações
natalinas de protagonismo negro, dá bem a ideia da dimensão e intensidade dessas festas e
mostra o quanto a África se fazia presente nelas. “Aquel día [o de Reis] él África negra y
ultratlántica con sus hijos, sus vestidos, sus músicas, sus lenguajes y cantos, sus bailes y
6
Entre 25 de dezembro e 6 de janeiro, de acordo com o calendário cristão.
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ceremonias, sus religiones y instituciones políticas, se trasladabla a Cuba” (ORTIZ, 1992, 25).
Embora a referência seja sua ilha natal, o exemplo vale para outras áreas do “novo mundo”,
como é possível constatar em registros sobre práticas africanas deixados por cronistas,
viajantes, religiosos e outros “etnógrafos sem diploma” (SCHWARCZ, 2001: 612). Vejamos,
por exemplo, um registro feito por Long (1774), anterior a 1770, referente a celebrações na
Jamaica.
Nas cidades, durante os feriados de Natal, eles [os escravos] têm vários
companheiros altos e robustos, vestidos em grotescos trajes e com um par de
chifres de boi em suas cabeças, que brotam de um tipo horrível de viseira ou
máscara da qual, próximo da boca, projetam-se grandes presas de javali, o
que a torna ainda mais atemorizante. O mascarado, carregando uma espada
de madeira na mão, é seguido por uma multidão de mulheres que o
refrescam frequentemente com goles de bebida de anis enquanto ele dança a
cada porta. (LONG, 1774, 424)
E este outro, relativo ao Nordeste brasileiro, flagrado por Morais Filho (2002).
A véspera de Reis na Bahia é um corolário da noite de Natal [...] Destoando
do concerto magnífico, lá cresce o rancho dos bucumbis, que são negros e
negras vestidos de penas, rosnando toadas africanas e fazendo bárbaro rumor
com seus instrumentos rudes. Na primitiva, esses bandos, constituídos por
escravos d’África, eram numerosíssimos, sendo as suas cantigas bárbaras
unicamente na linguagem de suas terras natalícias. (MORAIS FILHO, 2002,
74-75, 141)
A situação não era diferente em Cuba, como se depreende de registro de Riego
(citado por Ortiz, 1992), datado de 1843.
Grupos numerosos de homens e mulheres negros cruzam a cidade em todas
as direções ao som de seus tambores, ridiculamente vestidos, adornados com
uma profusão de fitas, miçangas, espelhos, penas e pedaços de tecidos de
todas as cores. No meio de cada um desses grupos segue um de seus iguais,
de estatura colossal, com a cara coberta por um lenço ou pintada de branco e
vermelho, o que lhe dá um aspecto risível e extremamente ridículo. Este
homem carrega na cintura um arco coberto por estopa e enfeitado com fitas,
formando uma espécie de saiote que alcança e cobre os joelhos e que
balança violentamente cada vez que ele dança (RIEGO apud ORTIZ, 1992,
32).
Tais celebrações eram recorrentes, também, no sul dos Estados Unidos, conforme
relatado por Harriet Jacobs (2002).
Toda criança acorda cedo na manhã de Natal para ver o Johnkankus... Eles
são grupos de escravos das plantações... Dois homens atléticos em um traje
de chita sobreposto por uma espécie de rede coberta por fitas e retalhos
coloridos. Eles têm rabos de boi preso às ancas, e suas cabeças são
enfeitadas com chifres. Uma caixa, coberta com couro de carneiro, é
chamada de gumbo. Vários batem sobre ela, enquanto outros tocam
triângulos e jawbones [ossada de maxilar animal usada como reco-reco] ao
som dos quais se movimentam os dançarinos. Esses grupos, com centenas
cada, aparecem de manhã cedo. (JACOBS, 2002, 572)
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Poderíamos enumerar vários outros flagrantes de “ajuntamentos” negros em regiões
distintas das Américas no período natalino. Não se trata, como podemos depreender, de uma
única e mesma festa espalhada por diferentes pontos, mas em todas elas persistem
significados e sentidos de ancestrais memórias de África, “lugar perdido e achado, transcriado
perenemente pela performance ritual”, no dizer de Martins (2002, 70). As “semelhanças
familiares”7 que essas celebrações apresentam atentam para permanências de sistemas
político-religiosos, de ritos de cura, de laços com a ancestralidade, de cosmogonias de povos
de África, e evidenciam o quanto o corpo negro serviu de capital cultural na diáspora (HALL:
2003, 342).
Eis aí outro desafio que se nos impõe o estudo de práticas e vivências de africanos na
diáspora. Se quisermos apreender dinâmicas de culturas afrodescendentes, precisamos
aprender a “ler” o corpo como “suporte de registros”8 , quer orais, visuais, textuais, na
sondagem de valores, crenças, expressões e tradições vivenciadas e trazidas por africanos,
ressignificadas na diáspora em interconexões com culturas e práticas de nativos e europeus.
George Vigarello (2002) lembra que o corpo “[...] evoca numerosas imagens, sugere múltiplas
possibilidades de conhecimento”. Em certas situações, diz ele, “especialmente quando a
relação com a escrita e com o livro não é geral, o corpo pode revelar uma profundidade social
por vezes inimaginável” (VIGARELLO apud ANTONACCI, 2002, 153).
Acostumados à hegemonia do escrito, nos despreparamos para histórias que
“envolvem maneiras de ver”9, ignorando gestos, disposições corporais, vestuários, ritmos,
máscaras e outros “códigos textuais” que não privilegiam o escrito como forma de
comunicação, mas que “podem nos dizer tanto quanto palavras”10 sobre o cotidiano e formas
sociais criadas por grupos silenciados e negados em sua humanidade.
7
Referência contida em HALL, S. Da Diáspora. Identidades e mediações culturais. B. Horizonte: Ed. UFMG;
Brasília: Representação da Unesco, 2003, p. 36.
8Expressão
retirada de M. Antonieta Antonacci, que vem trabalhando esta questão nos últimos anos. Ver “Corpos
Negros desafiando verdades”. In: BUENO, M. L e CASTRO, A. L. Corpo território da cultura. S. Paulo:
Anablume, 2005, pp. 27-66; ‘Corpos sem fronteiras”Revista Projeto História, 25, Dez. 2002, pp. 145-180;
“África made in Brasil”. Artigo ainda inédito. Agradeço a permissão para leitura e citação.
9
Expressão retirada de Samuel, R. “Teatros de Memória”. Revista Projeto História, no. 14, Fev. 1997, pp.41-81.
10
Frase do personagem Alloune, no filme argelino Little Senegal, de 2001, que trata da jornada de um velho
senegalês “djulla” a Nova York ao encontro de descendentes de um ancestral levado para a América como
escravo. A fala em questão refere-se às escarificações – três marcas que vão da boca ao queixo – que identificam
os integrantes de sua etnia.
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Ao estudar semelhanças e diferenças nas manifestações da diáspora entre si e destas
com outras existentes em África, o dramaturgo e professor nigeriano Esiaba Irobi (2007)
também centrou atenção no corpo. Irobi condena a valorização excessiva da palavra impressa,
à qual atribui a dificuldade do ocidente em compreender o poder do corpo como “[...] um
local de múltiplos discursos para esculpir a história, memória, identidade e cultura” (IROBI,
2007, 900). Séculos antes que a Fenomenologia11 , ironiza Irobi, concluísse que o corpo
humano é a principal fonte, lugar e centro de percepção e expressão, seja ela física ou
transcendental, já havia espaços, nas culturas africanas, onde a vida era e continua sendo uma
atividade intensamente performativa e ritualizada.
Toda tradição de representação ritual e cerimonial africana, com toda sua
música, dança, linguagem de percussão, arquitetura, canções, espetáculos,
configurações espaciais, coreografias e máscaras sempre foram
fenomenologicamente transmitidas de geração a geração. Antes e depois da
escravidão, tais transmissões foram veiculadas por meio da inteligência do
corpo humano, e não através de vídeos, filmes ou textos impressos. (IROBI,
2007, 897)
Incorporando hábitos memoriais, o corpo físico torna-se receptáculo simbólico e
expressivo do transcendente, e ainda que deslocado além-mar, mantém coreografias e
vocabulários fenomenológicos da sua história cultural e identidade original (Irobi, 2007, 898).
Em seu deslocamento forçado, o africano trouxe consigo esses hábitos e memórias que
mesmo a escravidão com todos os seus rigores, de acordo com Martins (1997),
[...] não conseguiu apagar no corpo/corpus africano e de origem africana os
signos culturais, textuais e toda a complexa constituição simbólica
fundadores de sua alteridade, de suas culturas, de sua diversidade étnica,
linguística, de suas civilizações e história (MARTINS, 1997, 25).
Mais do que a sazonalidade do período natalino, celebrações negras dos séculos
XVIII e XIX - como os registros de viajantes e cronistas acima reproduzidos permitem
vislumbrar -, partilhavam princípios estéticos e filosóficos. Sistema processional,
configuração espacial, visitações casa a casa, desafios versejados, cantos responsoriais,
sátiras, máscaras, tambores, danças, penas de pássaros, figurações de animais constituem
princípios elementares e/ou atitudes estéticas que regem sociedades africanas, sobretudo
naquelas regiões que mais cederam escravizados ao tráfico interatlântico. Tanto para povos
11
O autor leva em conta não apenas pontos de vista de Hegel, Husserl, Sartre ou Merleau-Ponty, mas também, e
principalmente, a partir de perspectivas africana e afro-diaspórica.
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iorubas quanto para povos bantos, para citar dois dos grupos étnicos transplantados em maior
proporção, movimentação circular e processional em rituais envolvendo mascarados está
associada à proteção da comunidade/vilarejo contra os maus espíritos e influências, servindo
também para atrair sorte e bem-estar. Na Iorubalândia12 , por exemplo, nos festivais dedicados
ao Rei Shango13, o mascarado condutor da cerimônia exibe sua “performance” dançando a
cada porta do Palácio Real de Oyó, garantia de que possíveis males serão espantados para
longe.
Essa “geometria social”14 pode ser surpreendida, ainda hoje, em inúmeras celebrações
da afro-diáspora. “Divertimentos estrondosos” (SANTOS, 1997) com raízes fincadas em
África, que ainda ecoam no Brasil e em vários países da América Latina e do Caribe, a
despeito das muitas transformações e empréstimos culturais . Muitas das manifestações
natalinas de protagonismo negro flagradas por viajantes, religiosos e cronistas nos séculos
XVIII e XIX deixaram de existir ou adquiriram, ao longo dos séculos, configurações bem
distintas das que tinham no passado. Adaptadas a novas situações e contextos, às vezes
deslocadas no tempo e espaço, guardam, contudo, uma certa “textualidade performática”15que
não deixa dúvidas quanto às heranças nelas presentes. Em algumas, como é o caso das
Congadas de Minas Gerais ou do Ticumbi de Conceição da Barra (ES), essa herança é
facilmente identificável; em outras, como em certos grupos de Folias de Reis das regiões Sul
mineira e fluminense, essa “escrita” é mais sutil, exigindo olhares atentos para ser desvelada.
Como observado por Nilma Gomes (2009), o universo africano “[...] não se dissocia
da corporeidade, da musicalidade, das narrativas, da vivência da periferia, das formas
comunitárias de aprender” (GOMES, 2009, 429). Não importando se sob domínio inglês,
holandês, francês, espanhol ou português, os africanos nas Américas, parafraseando Reid
Mitchell (2002, 43), carregaram a festividade europeia do ciclo natalino para dentro da
estrutura de suas próprias culturas, ressignificando-as, reelaborando-as, apropriando-se de
12
Compreende terras da Nigéria e do Benin.
13
Shango, Sango ou Xangô. De acordo com Pierre Verger, pode ser descrito sob os aspectos histórico e divino.
Pelo primeiro, teria sido o terceiro rei do reino de Oyó. No aspecto divino, é orixá filho de Iemanjá.
14 Expressão
utilizada por Dejo Afolayan. Apud THOMPSON, R. F. “Recapturing heaven’s glamour: AfroCaribbean festivalizing arts”. In NUNLEY, J.; BETTELHEIM, J. Caribbean Festival Arts. St. Louis Art
Museum, 1988, pp. 17-30.
15
No dizer de Esiaba Irobi. Op. cit. P. 896.
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espaços eurocristãos de festas para seus próprios objetivos, ao mesmo tempo em que
alteravam significativamente práticas religiosas europeias.
Se, no passado, saberes, crenças, tradições de povos autóctones foram renegados
urge, no presente, ampliar possibilidades de compreensão desse passado dando visibilidade,
como aponta Martins (1995),“[...] a outros saberes possíveis de verdades, de legitimidade, de
encanto e sedução, mas também passível de fendas, de rasuras, de
incompletudes” (MARTINS, 1995, 26), pois, como advertiu Tierno Bokar (citado por
Hampatê Bâ, 1982),“[...] a escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do
saber, mas não o saber em si” (BOKAR apud HAMPATE BA, 1992, 181).
Diversificar narrativas e suportes de memórias, legitimando a pluralidade de práticas
de conhecimento e percepções culturais, de acordo com Antonacci (2010), representa
tentativa de desencadear processos de decolonialidade mental e sondar rastros de culturas
insurgentes nas Áfricas, Américas e diásporas afro-americanas.
BIBLIOGRAFIA
ANTONACCI, Maria Antonieta. Corpos sem Fronteiras Projeto História. São Paulo: EDUC,
nº 25, dez/ 2002, pp. 145-180.
______________. Corpos e Saberes. Texto inédito. 2010
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