HumBOLDt 107
PASSAgENS
umA puBLICAçÃO DO gOEtHE-InStItut
Humboldt 107 / PAssagens
Editorial Johannes Ebert 03
Ulrike Prinz e ISabel Rith-Magni A CAMINHO… PELA ÚLTIMA VEZ… 05
Héctor Abad Faciolince A ÚLTIMA VIAGEM DO NAVIO FANTASMA 07
Antonio Skármeta UMA CANÇÃO PARA HUMBOLDT 09
Ottmar Ette O PENSAMENTO NÔMADE 11
Tobias Kraft NO INÍCIO dE UMA viagem digital 14
Laura Restrepo TERRORES E MILAGRES DA GRANDE VIAGEM 16
Óscar Calavia Sáez OS “SELVAGENS” VIAJAM 19
Hans-Jürgen Heinrichs E Nina Aydt ESPAÇOS E TEMPOS SOB O SIGNO
DA AMEAÇA E DA NOSTALGIA 22
Natalie Göltenboth MESTRES DA DESORDEM 25
Sergio Vega O PARAÍSO NO NOVO MUNDO 28
Isabel Rith-Magni A RECUPERAÇÃO DO ASSOMBRO 32
Christoph Otterbeck SOBRE EXPEDIÇÕES CIENTÍFICAS E
EXPERIMENTOS ESTÉTICOS 35
Verena Kast LUGARES DO ANSEIO 38
Germán Kratochwil A MIGRAÇÃO ONTEM E HOJE 41
Esther Andradi A PALAVRA VIAJADA 44
Ulrike Prinz EM BUSCA DE REASTROS 47
Rike Bolte transversalia 50
Bernardo Carvalho O EFEITO PARADOXAL DO DISCURSO SOBRE A VIAGEM 53
Martin Meggle Pontos de fuga paradisíacos 55
Christina Michahelles ENTRE ESCRITURA E TRADUÇÃO 59
Berthold Zilly NO PRINCÍPIO ERA A VIAGEM 63
Mario Cámara Afinidades eletivas entre a Alemanha e o Brasil 66
Sylk Schneider O PASSEIO IMAGINÁRIO DE ­GOETHE SOB AS PALMEIRAS
DA AMÉRICA DO SUL 69
EXPEDIENTE 72
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Johannes Ebert
Passagens
3/72
Editorial
O atual número, intitulado “Passagens”, é o último a ser lançado
em versão impressa. Com sua presença exclusiva na internet sob o
endereço www.goethe.de, a partir de 2014, HUMBOLDT continuará
ligada à tradição de quem lhe dá o nome, Alexander von Humboldt.
Vamos partir com HUMBOLDT para uma nova era!
Cristina Barroso (1958, São Paulo, vive em Stuttgart), “Flugrouten” (Rotas Aéreas), 2013.
© Cristina Barroso. Foto: Cortesia de Cristina Barroso
Na qualidade de revista cultural do Goethe-Institut, HUMBOLDT
configura e fomenta o diálogo cultural entre a Alemanha e a
América Latina, Portugal e Espanha. Evoca a figura de Alexander
von Humboldt, que, com sua pesquisa do continente latinoamericano, estabeleceu os fundamentos de um vivo intercâmbio
entre as nações e se tornou símbolo de uma estreita ligação entre
a Alemanha, a Europa e a América Latina. Da mesma maneira
que seu inspirador, HUMBOLDT também vai a fundo nas
questões: duas vezes ao ano, em espanhol e português brasileiro,
seus números dedicam-se a um tema central de arte, cultura e
sociedade. São premissas da revista a abertura e o interesse por
outras culturas, bem como a pretensão de abordar temas sociais
de relevância global e de refletir a respeito deles sob diferentes
perspectivas. E continuarão sendo, ainda que não mais em
formato impresso. O atual número, intitulado “Passagens”, é o
último a ser lançado em versão impressa.
Johannes Ebert
Editorial
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
Quando o primeiro número de HUMBOLDT foi publicado,
em 1960, a internet não era sequer sonhada. Hoje ela é em Copyright:
todo o mundo um elemento imprescindível do cotidiano, e sua Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
propagação, ilimitada. Por isso, HUMBOLDT quer otimizar as Junho 2013
possibilidades do diálogo multimídia e permitir aos leitores
virtuais uma maior participação na elaboração do formato digital, Autor:
no endereço www.goethe.de/humboldt. Pois, no que diz respeito Johannes Ebert es Secretario general del Goethe-Institut.
a alcance, atualidade e interatividade, a internet oferece muito
mais opções que uma edição impressa.
O espectro literário desta revista cultural é muito amplo:
em suas páginas manifestaram-se importantes personalidades,
como Gabriela Mistral, José Ortega y Gasset, Jorge Luis Borges,
Camilo José Cela ou Ramón Menendez Pidal. Outros artigos, por
sua vez, vieram das penas de Wolfgang Borchert, Walter Höllerer,
Ernst Jünger, Heinrich Böll ou Friedrich Dürrenmatt. No início,
HUMBOLDT era publicada pela Editora Übersee, de Hamburgo
e, a partir de 1972, pela Editora Bruckmann, de Munique. Foi
concebida como meio contra o totalitarismo e, ao mesmo tempo,
como uma centelha de esperança: um empreendimento nada
fácil diante da situação política de então na América Latina
e na Península Ibérica. Seu fundador foi o historiador da arte,
tradutor, professor universitário e jornalista Albert Theile (1904–
1986). Opositor do regime nacional-socialista, ele emigrara para o
Chile via Noruega, França, Índia, China, União Soviética e Estados
Unidos. Em 1952, retornou do exílio e estabeleceu-se na Suíça.
Depois de HUMBOLDT, fundou ainda a revista irmã Fikrun wa
Fann, dedicada aos países de cultura islâmica.
Em 1989, a responsabilidade editorial passou do jornalista
Werner Karsunky, sucessor de Theile, para a equipe formada
pelas romanistas Brigitte Simon de Souza (até 1993) e Margarete
Kraft (até 2007). Desde 1993 até o presente, a historiadora da
arte Isabel Rith-Magni é codiretora da redação, primeiramente
ao lado de Margarete Kraft, e desde 2007 com a etnóloga Ulrike
Prinz. No princípio, a revista era distribuída comercialmente,
antes que o patronício fosse assumido pela organização
mediadora Inter Nationes, financiada pelo Departamento
Federal de Imprensa e Informação e pelo Ministério das Relações
Exteriores da Alemanha. Após a fusão de Inter Nationes com
o Goethe-Institut, em 2001, HUMBOLDT passou a ser uma das
duas publicações suprarregionais dessa instituição cultural
internacional da República Federal da Alemanha. Ao longo desse
tempo, HUMBOLDT sempre soube conectar o efêmero da resenha
de eventos culturais no país e no estrangeiro com o caráter
perdurável do impresso.
Com sua presença na internet sob o endereço www.goethe.
de, a partir de 2014, HUMBOLDT continuará ligada à tradição de
quem lhe dá o nome, Alexander von Humboldt, demonstrando
interesse, enveredando por novos caminhos e proporcionando
uma importante contribuição para o intercâmbio cultural entre
os continentes. Vamos partir com HUMBOLDT para uma nova
era! <
Johannes Ebert , secretário-geral do Goethe-Institut
4/72
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Ulrike Prinz e
Isabel Rith-Magni
Passagens
5/72
A CAMINHO… PELA ÚLTIMA VEZ…
No princípio era a viagem. A partida para o desconhecido,
a odisseia, o grand tour, o hajj, a viagem de descobrimento...
e a narrativa a seu respeito. Uma introdução ao dossiê “Passagens”.
Seleção de capas e nomes de autores de HUMBOLDT em mais de cinco décadas
No princípio era a viagem. A partida para o desconhecido, a
odisseia, o grand tour, o hajj, a viagem de descobrimento... e a
narrativa a seu respeito. Bruce Chatwin anotou em seus aponta­
mentos que “os melhores viajantes são os analfabetos; não nos
aborrecem com recordações”.
E asssim, nós tampouco nos perdemos em lembranças, e
em vez de uma retrospectiva da história da publicação da
edição impressa de ­HUMBOLDT, cuja viagem conduz agora ao
digital, escolhemos o tema da transição, aquela forma do estar
a caminho que conecta a despedida com a chegada, sendo ela
própria uma passagem. Contemplamos neste número a viagem
sob as perspectivas etnológica, filosófica, psicológica, da históra
da arte e da história da cultura, com contribuições vindas como
sempre dos dois lados do Atlântico.
O tema central é uma homenagem ao patrono de nossa revista,
a Alexander von Humboldt e sua lendária viagem à América do
Sul com a qual “tudo” começou. Muito aconteceu desde então. A
ele, o viajante por excelência, Ottmar Ette descreve como um
nômade, cujo modo de pensar e de fazer ciência se caracterizava
por um movimento constante, o que torna sua abordagem tão
moderna. Os artistas a seu redor tinham a missão de documentar
o desconhecido até o último detalhe; depois a fotografia assumiu
Ulrike Prinz e Isabel Rith-Magni
A caminho… pela última vez…
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
6/72
pouco a pouco essa tarefa. Christoph Otterbeck descreve a
libertação da pintura de viagem do espartilho do documental e Copyright:
seu desenvolvimento para a visualização de impressões e efeitos Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
bem mais efêmeros. Por sua vez, a fotografia artística de viagem Junho 2013
de um Axel Hütte ou Andreas Gursky contrapõe, numa época do
turismo de massas em que já se conhece e se fotografou tudo, Tradução do alemão:
um outro olhar ao antigo repertório exótico.
Laís Helena Kalka
“A vida é uma viagem experimental, feita involuntariamente”,
como ­Fernando Pessoa formulou com acerto em seu Livro do Autoras:
desassossego. ­Laura Restrepo dedica seu ensaio à viagem invo- Ulrike Prinz é etnóloga, especializada em etnologia da arte e
luntária dos desterrados, mas também aos que partem voluntaria­ mitologia, redatora e autora. De 2001 a 2004, deu aulas sobre
mente em busca de uma vida melhor, “porque a humanidade está temas latino-americanos na Universidade Ludwig Maximilian de
a caminho, em um planeta onde o que flui é permanente e o Munique. De 2004 a 2006, foi assessora do Goethe-Institut de
sedentário não passa de miragem”. E enquanto nós procuramos Munique e, desde outubro de 2007, é redatora responsável da
rio acima o primigênio, talvez o inamovível, o mais normal é revista HUMBOLDT.
que os objetos do afã científico etnológico – como Óscar Calavia
constata em relação aos indígenas amazônicos – já estejam em Isabel Rith-Magni é historiadora da arte, especializada em arte
direção contrária a ca­minho da próxima cidade.
moderna e contemporânea europeia e latino-americana. Desde
A viagem, essa grande metáfora, abrange muito mais: a 1993 é redatora responsável da revista HUMBOLDT. Desde 2004
viagem interior, a viagem ao além e as passagens para outros leciona no Instituto de Tradução e Comunicação Multilíngue da
mundos, mundos do sonho e lugares paradisíacos almejados. A Universidade de Ciências Aplicadas de Colônia e, desde 2012,
própria escrita, assim como a atividade artística, é um movi­ também na Universidade Alanus de Arte e Ciências Sociais.
mento constante e um estar a caminho entre os mundos, àst
vezes também em ligação com uma ideia de cura. Joseph
Beuys, por exemplo, considerava a arte o melhor dos meios
para impulsionar processos de cura sociais, tal como Nathalie
Göltenboth descreve a trajetória dos artistas xamãs. A viagem,
portanto, também como imagem de rupturas, imersões, cruza­
mentos de fronteiras, encontros e transformações... de passa­
gens de toda espécie.
O atual Ano da Alemanha no Brasil e o fato de o Brasil ser
o país convidado da Feira do Livro de Frankfurt deste ano
nos serviram de ensejo para, no contexto das “passagens”, dar
especial atenção à literatura brasileira em seu modo específico
de estar a caminho.
Caminhemos juntos, portanto, rumo a um futuro que sempre
nos reserva surpresas.
Despedimo-nos com agradecimentos de todos os autores,
artistas, fotógrafos, de nossa equipe de tradutores e revisoras,
que durante anos acompanharam e contribuíram para dar forma
à revista. <
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Héctor Abad
Faciolince
Passagens
7/72
A ÚLTIMA VIAGEM
DO NAVIO FANTASMA
Uma saudação poética e melancólica a um projeto cultural soçobrante
e outros navios fantasmas que sulcam os mares do mundo.
William Turner (1775–1851), “Barco em chamas”, 1830, Tate Gallery, Londres. Foto: wikimedia Common
Talvez a mais misteriosa e a mais bela de todas as narrativas
tradicionais espanholas seja o “Romance del Conde Arnaldos”. O
enredo é muito simples: o encontro fortuito do infante Arnaldos
com um navio fantasma, com uma galera de quimeras que vem
“sobre as águas do mar” e “em terra quer chegar”. O barco é
maravilhoso: “Suas velas são de seda / as cordoalhas de ouro tal
/ âncoras feitas de prata / tábuas de fino coral. / Marinheiro que
a guia / vem entoando um cantar / que faz o mar acalmar / os
ventos faz amainar / as aves que vêm voando / sobre o mastil
vêm posar / peixes ao fundo nadando / acima ele os faz boiar”.
O infante gostaria de aprender a canção fantástica que entoa o
mari­nheiro e lhe pede para ensiná-la. A resposta do marinheiro
é uma das mais formosas da língua castelhana: “A minha canção
não digo / senão a quem vem comigo”.
Muitas pessoas que vivem no litoral (pelo menos no
exuberante Mar do Caribe) viram ou ouviram histórias de barcas
fantasmas que passam ao longo da costa sem ninguém ao leme,
com as luzes acesas e as velas içadas, ou – pelo contrário – mais
fantasmagóricas ainda, sem luzes acesas, nem velas içadas. Na
época de Humboldt, quando as longas viagens se faziam por
mar, não era raro encontrar navios à deriva: um barco era um
micromundo e, às vezes, seus tripulantes adoeciam da mesma
enfermidade e a epidemia matava marinheiros e passageiros, ou
um motim de escravos matava tanto negros quanto negreiros, e o
Passagens
Héctor Abad Faciolince
A última viagem do navio fantasma
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
barco seguia flutuando à deriva, com sua carga de sombras, anos a
fio, em meio ao oceano e às vezes ao longo do litoral.
Quem melhor narrou a travessia fantástica de uma dessas
maravilhas foi ­Gabriel García Márquez em seu conto “A última
viagem do navio fantasma”. Convém lê-lo na íntegra, mas só o
começo já nos deixa fascinados:
Agora vão ver quem sou eu, disse, com seu novo vozeirão de
homem, muitos anos depois que vira pela primeira vez o imenso
transatlântico, sem luzes nem ruídos, que certa noite passou em
frente ao povoado como um grande palácio desabitado, mais
vasto que todo o povoado e muito mais alto que a torre de sua
igreja, e seguiu navegando no breu até a cidade colonial fortificada
contra os bucaneiros do outro lado da baía, com seu antigo porto
negreiro e o farol giratório cujos lúgubres fachos de luz a cada
quinze segundos transfiguravam o povoado, transformando-o em
um acampamento lunar de casas fosforescentes e ruas de desertos
vulcânicos, e embora ele fosse na época um menino sem vozeirão
de homem mas com permissão da mãe para ficar escutando até
muito tarde na praia as harpas noturnas do vento, ainda podia se
recordar como se estivesse vendo que o transatlântico desaparecia
quando a luz do farol batia no flanco e tornava a aparecer quando a
luz acabava de passar, de modo que era um navio intermitente que
ia aparecendo e desaparecendo até a entrada da baía, buscando
com a hesitação de um sonâmbulo as boias que sinalizavam o
canal do porto, até que algo deve ter falhado em suas agulhas de
orientação, porque derivou até os escolhos, chocou-se, rompeuse em pedaços e afundou sem um único ruído, embora semelhante
encontrão com os arrecifes devesse produzir um fragor de ferros
e uma explosão de máquinas que fariam pasmar de pavor os
dragões mais adormecidos na selva pré-histórica que começava
nas últimas ruas da cidade e terminava no outro lado do mundo,
de modo que ele mesmo achou que fosse um sonho, sobretudo no
dia seguinte, quando viu o aquário radiante da baía, a desordem
das cores dos barracos dos negros nas colinas do porto, as goletas
dos contrabandistas das Guianas recebendo seu carregamento de
papagaios inocentes com o bucho repleto de diamantes, pensou,
adormeci contando as estrelas e sonhei com esse barco enorme,
claro, ficou tão convencido que não contou a ninguém nem voltou a
se lembrar da visão até a mesma noite do mês de março seguinte,
quando estava procurando nuvens de golfinhos no mar e o que
encontrou foi o transatlântico ilusório, sombrio, intermitente, com
o mesmo destino equivocado da primeira vez...
Um barco é muito mais propício que um avião para as efusões
fantásticas e os maravilhosos exageros do cancioneiro ou dos
romancistas. Mas também nos aviões podem suceder essas
viagens poéticas, mesmo que sejam mais breves e produzam
menos imagens quiméricas. Há alguns anos, li a notícia de um
avião particular que ultrapassou a altura permitida para seu
modelo. Sofreu uma despressurização súbita, levando todos os
tripulantes a perder a consciência e depois a vida, por falta de
oxigênio. O avião continuou voando, com o piloto automático,
a quinze mil metros de altitude, com sua carga de passageiros
mortos, como um navio fantasma, até que acabou a gasolina e
ele despencou por terra, certamente com a mesma emanação de
luzes com que o navio de García Márquez se estilhaçou contra
o povoado.
Uma revista, um projeto cultural ambicioso que une países,
línguas e continentes, uma aventura de tanta envergadura,
uma viagem de ideias inspirada em um dos maiores viajantes
da história, Alexander von Humboldt, muito se assemelha a um
navio que navega e sulca as águas do oceano, ida e volta, com
mercadorias culturais, com palavras que vão e vêm e conversam
e discutem entre si. Os marinheiros dessa galera fantástica, com
velas de seda e âncoras de prata, vão cantando suas canções, e
nota-se enlevo nos leitores, que já não sentem as ondas, nem o
enjoo, nem o tédio, nem a angústia. Se alguém de fora perguntasse
qual é o segredo de tanta magia, os marinheiros bem poderiam
dizer que, para entender essa canção, seria preciso embarcar:
“A minha canção não digo / senão a quem vem comigo”. Os que
estão fora dessa aventura dificilmente a entendem. Como não a
entendem, suspendem as provisões, a água doce e o alimento
fresco. Os marinheiros seguirão cantando, todavia, até o último
suspiro, e a revista se tornará um navio fantasma à deriva, com
sua carga de sombras, e é possível que afunde “sem um único
ruído”, mesmo que esse naufrágio devesse provocar “um fragor
de ferros e uma explosão de máquinas que fariam pasmar de
pavor os dragões mais adormecidos”.
Os que virem da margem passar esse navio maravilhoso
de outros tempos, com suas velas içadas, ainda que rasgadas
e maltrapilhas, com suas tábuas de coral, com suas cordas
trançadas de ouro, mas já à deriva, já sem direção, já muda, a
ponto de se chocar contra os arrecifes, com todos os marinheiros
mortos, pensarão, ah, como é possível que deixem naufragar
esta maravilha, como é possível que não vá sobrar nada das
tantas canções que eles cantaram para acalmar as águas, os
ventos, os voos, as feras. Mas restará algo, sim, algo que é
muito mais do que nada, na realidade, pois sobrevive aquilo que
já foi feito: centenas de barcos à deriva, centenas de revistas
fantasmas que passarão ao longo de litorais desconhecidos,
mesmo que só de vez em quando, para fascinação dos meninos
que conservem os olhos e a curiosidade de folheá-las e lê-las,
alguma noite, fascinados, em cima de uma montanha ou à beiramar. <
8/72
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autor:
Héctor Abad Faciolince (1958, Medellín, Colômbia) é escritor e
jornalista. Publicou vários livros de narrativa, entre os quais
Angosta (2004), El olvido que seremos (2005; em português A
ausência que seremos, 2011), El amanecer de un marido (2008)
e Traiciones de la memoria (2009). Seu último livro publicado
é de poesia: Testamento involuntario (2012). É colunista do El
Espectador e comentarista esporádico do Neue Züricher Zeitung.
Tradução do espanhol:
Simone de Mello
Antonio Skármeta
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
UMA CANÇÃO PARA HUMBOLDT
O escritor chileno despede-se da revista HUMBOLDT com um poema
em homenagem ao seu patrono intelectual, Alexander von Humboldt.
Johann Moritz Rugendas, “Descanso noturno a caminho do pico do Popocatépetl”.© Kupferstichkabinett, SMB.
Foto: Volker-H. Schneider. Sign.: Rugendas Inv. VIII E. 2494
9/72
Antonio Skármeta
Uma canção para Humboldt
Alexander von Humboldt
nome sonoro e profundo
Na corrente do Pacífico
soube confundir dois mundos
A América ancestral prodigiosa
rendida à deusa de sua curiosidade
Europeia. Não o mero devaneio
de botânicas longínquas
Mas o afano
da viagem e do perigo
Dos rios que nutrem a América
de sentidos sem revelar
De deuses e mares
de montanhas e astronomia
Toda essa vida fervente
que Humboldt sente
Não se pode classificar a planta
sem tocá-la
Não se pode entender
o Orinoco
Sem ter se afundado
um pouco em suas águas
Nisto se assemelham
O sábio e o poeta
Ambos podem construir
um cosmos
Onde palpitam em uníssono
a flor e a estrela
O livro e a galáxia
a medição e o desatino
O castelo da Prússia
E o alto templo andino
Com muita paciência
fez ciência do viver
E da ciência
vida que se multiplica
Humboldt, nome sonoro
e canto profundo.
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
10/72
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autor:
Antonio Skármeta é escritor chileno. Entre 1973 e 1989 exilouse em Berlim. Foi embaixador do Chile na Alemanha (2000–
2003). Seus romances foram publicados em mais de trinta
idiomas e alguns deles, como O carteiro e o poeta, deram origem
a filmes de grande sucesso internacional. Entre as distinções
mais importantes que recebeu, encontra-se o Prêmio Planeta
(Espanha) por seu romance O baile da vitória.
Tradução do espanhol:
George Bernard Sperber
Informações adicionais sobre a ilustração:
Arte inspirada por Humboldt. Viagens de estudo pela América
Central e do Sul No século XIX, os pintores Johann Moritz
Rugendas, Ferdinand Bellermann e Eduard Hildebrandt fizeram
viagens extensas pela América Latina. Com os esboços de
viagem e os estudos naturais ali realizados, as representações do
subcontinente sul-americano experimentaram um auge notável
em toda a Europa. Os três pintores mantiveram um estreito
contato com Alexander von Humboldt, que os aconselhou e
incentivou. Ele via neles um grande talento e os mencionou
elogiosamente no segundo volume de seu Kosmos. Considerava
possível unir arte e ciência e que isto contribuiria, para além da
observação exata da natureza tropical, para uma renovação da
pintura paisagística europeia. (Sigrid Achenbach, extratos de um
texto sobre a exposição “Arte inspirada por Humboldt. Viagens
de estudo pela América Central e do Sul”, que teve lugar no
Kulturforum de Berlim em 2009–2010.)
Ottmar Ette
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
11/72
O PENSAMENTO NÔMADE
Alexander von Humboldt pode ser compreendido como um nômade da ciência
em constante movimento. O caráter móvel marcou seu estilo de pensar e de
fazer ciência de um modo igualmente intenso como marcou seu estilo de vida.
Eduard Hildebrandt, “Tamandatuy”, 1844. © Kupferstichkabinett, SMB. Foto: Jörg P. Anders. Sign.: SZ
O pensamento de Alexander von Humboldt jamais foi monádico,
mas desde o princípio nomádico. Nascido em 1769, o mais novo
dos dois irmãos Humboldt não correspondia de modo algum ao
tipo do erudito caseiro voltado para dentro de si mesmo e que
se ocupava apenas consigo e com sua própria disciplina, mas era
antes interessado de um modo absolutamente vital no mundo e
em todas as suas dimensões: em movimento constante, quase
irrequieto. E assim, Humboldt confessou em um pequeno texto
escrito em francês em 1806, ao qual deu o insinuante título de
Mes confessions (Minhas confissões), aludindo autoironicamente
a Jean-Jacques Rousseau, o criador da primeira autobiografia no
sentido moderno do termo:
“Cheio de inquietude e excitação, eu jamais me alegro com
aquilo que foi alcançado e só fico feliz quando faço algo novo,
sempre umas três coisas ao mesmo tempo. É preciso que se
veja nesse espírito de inquietude moral, consequência de uma
vida nômade (vie nomade), os motivos principais da grande
incompletude de minhas obras”.
Depois da viagem é sempre antes da viagem Se nas
linhas citadas a autoironia se mescla à autocrítica, isso sucede
apenas para arrancar do ato aquela energia indômita que durante
mais de sete décadas de constantes viagens e escritos o animou
e estimulou. Alexander von Humboldt trabalhava sem parar em
Ottmar Ette
O pensamiento nómada
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
12/72
si mesmo. Escreveu as referidas linhas depois de sua grande desdobram um pensamento nômade que é fundamental à nossa
Viagem às regiões equinociais do Novo Continente (Voyage aux sobrevivência hoje em dia: um pensamento multilógico, que se
régions équinoxiales du Nouveau Continent), que o levara junto fundamenta na sustentabilidade.
com Aimé Bonpland ao mundo por ele ardentemente amado dos
trópicos americanos, entre os anos de 1799 e 1804. Mal retornou O pensamento nômade Mas o que se pode entender por
à Europa dessa grande viagem, no entanto, ele já planejava a um conceito como o do “pensamento nômade”? O autor das
próxima, que o levaria às profundezas mais interiores da Ásia Vues des Cordillères et Monumens des Peuples Indigènes de
em 1829. Depois da viagem era sempre antes da viagem para l’Amérique não cessava de apontar para a inconclusibilidade
Alexander von Humboldt.
do saber e da ciência, vinculando a ela o caráter aberto de seu
Uma “consciência de mundo” real, conforme a detalhou próprio pensamento e de sua própria escrita. Os plurais dos
mais tarde em sua suma operística Kosmos não podia ser títulos de várias de suas obras apontam para o fato de novas
adquirida, para Humboldt, sem a experiência, sem a Erfahrung, “vistas e quadros da natureza”, novas “visões da cultura” sempre
a experiência através da viagem [o substantivo alemão traz a voltarem a se sobrepor de modo a fazer com que surjam imagens
viagem de forma bem visível em seu radical linguístico. N.T.], e literárias do movimento. O caráter móvel do saber como projeto
sem a vivência de viagens sempre novas. A visão de mundo de de construção.
Humboldt se fundamentava na visão do mundo, na observação
do mundo.
Territórios do saber Pensar a partir do movimento
através do movimento no espaço, no entanto, é, ao mesmo
Escrever (n)a modernidade Para Humboldt viajar era, tempo, um pensamento a partir do movimento através das mais
portanto, muito mais do que apenas movimento empírico no diferentes regiões do saber. Já no ano da revolução de 1789
espaço a ser medido. Correspondia indubitavelmente a seu o então rapaz de 20 anos caracterizava a si mesmo como um
“espírito de inquietude moral” (esprit d’inquiétude morale), porém “estrangeiro” entre as ciências, uma vez que já bem cedo atuou
não apenas transferia o movimento interno ao externo, mas sim não apenas como filólogo e historiador cultural, mas também
transformava ambos em uma escrita incessante que permeou como matemático e botânico, e conquistou sucessos rápidos
toda sua vida.
nos mais diferentes âmbitos de uma paisagem científica que se
Se toda escrita – conforme nos ensina tanto a epopeia de diferenciava. Falar em “estrangeiro”, nesse caso, deixa claro que
Gilgamesh quanto o Shi Jing – desde o princípio é uma viagem na para Alexander von Humboldt não podia haver um território
qual os movimentos da mão sobre a superfície e os movimentos “próprio”, nenhuma “disciplina pátria” em si. Apenas quando
dos olhos dos leitores se sobrepõem, e na qual ao mesmo tudo podia ser ligado a tudo é que um todo podia ser pensado.
tempo as motions se combinam com as emotions, então a escrita Os interesses científicos persistentes iam da antropologia à
humboldtiana é movimento potencializado, uma vez que sempre americanística antiga, passando pela geologia e pela geografia,
abre as próprias viagens e as viagens alheias em direção a novos pela climatologia e pela teoria da cultura, pela física e pela
movimentos, a novas viagens. Todos os textos de Humboldt se botânica até chegar à história da linguística, à vulcanologia e à
abrem constantemente a novos horizontes, novas pesquisas, zoologia, em um cientista que, na condição de viajante através
novas paisagens da teoria. O caráter aberto justamente de suas das ciências, desdobrou um conhecimento transdisciplinar e, no
obras principais é, segundo esse ponto de vista, ao mesmo mais multifacetado dos sentidos, um conhecimento nômade.
tempo proposta científica e sinal de honestidade intelectual. Assim como um nômade, Humboldt não buscava tomar posse
Como ele poderia concluir o que para ele mesmo continuava de um território nem destruí-lo: não é de admirar, portanto, que
sempre em movimento? Como ele poderia conceder à sua “vida tenha se tornado cofundador de um pensamento ecológico ou
de nômade” um sedentarismo que para ele na realidade jamais geoecológico.
existiu?
Humboldt escreveu e publicou suas obras tanto em alemão
A escrita humboldtiana é uma escrita na modernidade e quanto em francês. Prussiano? Francês? Europeu, com certeza.
uma escrita da modernidade ao mesmo tempo. Os escritos Ele não podia de forma alguma ser usado para objetivos
de Humboldt – e também isso é uma característica central da nacionalistas. Em seus diários de viagem encontramos, além do
modernidade – não trazem apenas os rastros da história, mas, latim e do espanhol, um grande número de outras línguas que o
ao lado das espacializações de sua literatura de viagem, também tecnólogo de minas formado na Academia Mineira em Freiberg
as marcas da temporalização de toda experiência, de todo o (Saxônia) soube usar para se comunicar tanto no “Velho” quanto
acervo de conhecimento, de toda a compreensão. “O ser”, assim no “Novo” Mundo, tanto em regiões subterrâneas quanto nos
ele escreveu em Kosmos, “será reconhecido completamente em mais altos cumes dos Andes. O mundo, Humboldt sabia disso, não
sua amplitude e em seu ser interno apenas quando já tiver sido.” podia ser compreendido a partir do ângulo visual de uma única
Esse ter-sido histórico da escrita humboldtiana e da ciência língua. As línguas indígenas com as quais ele cruzou deixavamhumboldtiana se abre mais do que nunca ao nosso presente e no tão fascinado quanto as línguas da ciência. Seu pensamento
ao nosso próprio futuro. Os escritos de ­Alexander von Humboldt não poderia ser compreendido sem os constantes processos
peregrinam e atravessam o tempo – e no decorrer dos últimos de tradução, sem as transferências e as transformações que
25 anos voltaram visivelmente a ganhar importância. Não necessariamente andam de mãos dadas com elas.
porque se tornaram clássicos e se cristalizaram, mas sim porque
Passagens
Ottmar Ette
Pensamiento nómada
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Vida nômade O pensamento desse primeiro teórico da
globalização no sentido mais genuíno do conceito é um pensa­
mento nômade: entre as línguas, entre as ciências, entre
os mundos. Assim como sua écriture, qualquer que fosse a
língua que usasse, é uma escrita translingual sem endereço
fixo, assim também seu pensamento é nomádico de um modo
basilar: indubitavelmente marcado pelo pensamento ocidental e
unindo de forma assaz pronunciada a ética e a estética, mas ao
mesmo tempo sempre variando os pontos de vista a partir do
movimento e no movimento, na tentativa de pensar o mundo
de um modo novo e impulsionar uma consciência de mundo de
múltiplas perspectivas. Seu objetivo era a politopia no sentido
de uma pesquisa e de um pensamento a partir de vários lugares.
Em outras palavras: Alexander von Humboldt compreendia
sua atividade como a tentativa de criar o maior número possível
de perspectivas, de vínculos inovadores e interações entre as
disciplinas que se diferenciavam cada vez mais, mas também
entre as línguas e as culturas. Não estar em casa em lugar
nenhum na condição de estrangeiro foi para ele, durante sua
vida inteira, o mesmo que a ânsia e o empenho de estar em casa
por toda parte na condição de nômade.
Assim Alexander von Humboldt pode ser compreendido
como um nômade da ciência em constante movimento. O caráter
móvel marca seu estilo de pensar e de fazer ciência de um
modo igualmente intenso quanto marca seu estilo de vida. E se
projeto científico e projeto de vida condizem de um modo tão
fascinante em Humboldt como em poucas outras pessoas, são
deveras justificados os motivos que tornam adequado falar em
uma ciência vivida: exatamente como ela força passagem para
se expressar em Mes confessions e no discurso da própria “vida
nômade”.
Se nós provavelmente desenvolvemos a necessária sensibili­
dade apenas sob os augúrios de novas e transdisciplinares
concepções científicas para compreender o esboço da ciência
humboldtiana como uma ciência profundamente transdisciplinar,
também compreendemos melhor hoje em dia porque se mal­
versa seu pensamento – e no pior dos sentidos – de um modo
acadêmico, quando se acusa o autor de Kosmos de não ser um
especialista de verdade em nenhuma área, em nenhum território.
Pois para Humboldt não se tratava de uma especialização,
fosse qual fosse, que seria capaz de dialogar apenas de
modo fragmentário com outros especialistas, mas sim de um
conhecimento nômade, que graças a redes de correspondentes
estendidas pelo mundo inteiro e a uma capacidade incansável de
traba­lho sempre mantém aberta a possibilidade de argumentar ao
mesmo tempo a partir de diferentes pontos de vista disciplinares.
Mas não nos esqueçamos que Humboldt era animado por um
esprit d’inquiétude morale, para o qual também as fronteiras do
transdisciplinar de longe também teriam sido demasiado estreitas.
O pensamento nomadizante e impossível de ser disciplinado
por qualquer disciplina típico de Alexander von Humboldt nos
permite algumas visadas à figura do moderno intelectual, que já
começava a se desenhar na época de Humboldt, e que justamente
não se sente restrito às fronteiras do discurso científico. Se ele
por isso durante sua vida inteira exerceu funções que permitem
reconhecer nele um intelectual avant la lettre, isso se vincula
a uma prática científica não apenas experiente, no sentido de
erfahren, ou seja, experiente através da viagem, mas sim também
vivida em um sentido bem fundamental, que não apenas investiga
sustentabilidade, mas também age de modo sustentável. A época
de Humboldt é parte da história, mas seu pensamento nômade
não: pois em seus escritos ele permaneceu mais vivo do que
nunca – graças ao vigor de mover nossa própria vida. <
13/72
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autor:
Ottmar Ette (1956) é catedrático de Letras Românicas da Univer­
sidade de Potsdam. Seus campos de interesse como docente
e pesquisador incluem: Alexander von Humboldt, as ciências
literárias como ciências da vida, a convivência e TransArea
studies. Recebeu diversos prêmios por sua obra científica. Desde
2010 é membro da Academia Europaea e, desde 2012, Chevalier
dans l’Ordre des Palmes Académiques.
Tradução do alemão:
Marcelo Backes
Informações adicionais sobre a ilustração:
“Tamandatuy”, de Eduard Hildebrandt, pertence à coleção do
museu de arte gráfica Kupferstichkabinett de Berlim, que conta
com um grande número de trabalhos que testemunham a estada
de três anos de Johann Moritz Rugendas no México (1831–1834),
o período de Ferdinand Bellermann na Venezuela (1842–1845)
e a primeira viagem de Eduard Hildebrandt ao Brasil (1844). A
maioria dos trabalhos foi adquirida por Frederico Guilherme
IV para o Kupferstichkabinett por mediação de Humboldt.
Todos eles constituem o cerne de uma coleção excepcional de
representações da natureza de países distantes, sobretudo dos
trópicos, promovida por Humboldt, que possivelmente tinha
em mente uma descrição do mundo – comparável à de seu
Kosmos – através de imagens. (Sigrid Achenbach, extratos de um
texto sobre a exposição “Arte inspirada por Humboldt. Viagens
de estudo pela América Central e do Sul”, que teve lugar no
Kulturforum de Berlim em 2009–2010.)
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Tobias Kraft
Passagens
14/72
NO INÍCIO dE
UMA viagem digital
A agenda de Alexander von Humboldt, um exemplo precoce de
sistema social e rede de informação complexos.
A agenda de Alexander von Humboldt. Staatsbibliothek zu Berlin, PK / C. Seifertt
“O senhor de cada um é quem possui o poder de conservar ou
afastar as coisas desejadas ou não desejadas por cada um. Então,
quem quer que deseje ser livre, nem queira, nem evite o que
dependa de outros.”
Alexander von Humboldt estava muito familiarizado com estas
palavras do Encheirídion. O famoso naturalista e viajante pelas
Américas levava sempre consigo o manual do filósofo estoico
Epicteto com conselhos para uma vida feliz, quando atravessava
a passos largos as ruas de sua prussiana Berlim a caminho de
seu próximo compromisso. O pequeno livro foi um presente que
lhe dera o seu amigo físico e astrônomo francês François ­Arago,
por ocasião de sua última visita a Paris, em 1847.
Junto ao manual de Epicteto, havia outro livro que Humboldt
costumava ter sempre às mãos, em sua última fase produtiva,
de 1840 a 1850: sua agenda. Ela é talvez um dos comprovantes
mais reveladores do seu cotidiano, marcado pelo trabalho
incansável, pela correspondência com a elite intelectual, pelos
esforços ininterruptos para manter-se sempre atualizado e ativo.
Nas 204 páginas da pequena caderneta, totalmente preenchidas
com a caligrafia ligeira de Humboldt, encontram-se em ordem
alfabética os nomes de quase novecentos correspondentes,
contatos e amigos. É um compêndio da vida intelectual, artística
e política de sua época, o ponto nodal na rede de conhecimentos
de Alexander von Humboldt.
Em 2012, a agenda foi manchete em toda a Alemanha, por­
que desde então passou às mãos do Estado. Não é de admirar
que o público tivesse que esperar tanto tempo por um objeto
de tamanho valor. Assim como muitos outros documentos do
espólio de Humboldt, a caderneta, adquirida em 2012 pela
Biblioteca Estatal de Berlim junto com o Encheirídion, tem uma
história altamente movimentada. Após a sua morte inicialmente
Tobias Kraft
No início de uma viagem digital
em posse de seu camareiro Johannes Seifert, os dois documentos
foram vendidos em 1929 junto com outras preciosidades do
espólio ao colecionador berlinense Arthur Runge. Durante a
Segunda Guerra Mundial, Runge tentou resguardar a sua coleção
depositando-a no cofre de um banco em Frankfurt, mas isso
não evitou sua destruição quase total com a invasão do Exército
Vermelho. Por sorte para os pesquisadores, Runge guardou
alguns objetos consigo. Deles fazia parte, além do manual, a
agenda.
O trabalho de pesquisa vai a todo vapor. Desde 2012 a
biblioteca trabalha em cooperação com o Departamento de
Pesquisa Alexander von Humboldt da Academia de Ciências de
Berlim-Brandemburgo, para concluir a transcrição da agenda
ainda no corrente ano. Mas como disponibilizar esse tipo
de texto ao público? O ganho seria pequeno se fosse apenas
publicado ou colocado na rede. Porque, como objeto da história
da ciência e da cultura, a agenda é muito mais do que o simples
texto nela contido: é a expressão da prática de vida e do método
de trabalho de uma personalidade berlinense do século XIX, ao
mesmo tempo um suporte de dados extremamente dinâmico
contendo informações sobrepostas e altamente heterogêneas.
O fato de se ter acesso a um documento tão valioso no
início do século XXI pode ser qualificado como uma grande
sorte para a história das ciências. Nunca a ciência e o público
estiveram tão sensibilizados para as questões de organização
e acesso a complexas redes de informação e sistemas sociais
como agora, em tempos de Google, Wikipédia e Facebook.
E nunca as possibilidades tecnológicas e intelectuais foram
maiores para lidar com essas relações de forma historicamente
adequada. Nesse contexto a agenda de ­Alexander von Humboldt
presta-se especialmente como tema de pesquisa das ciências
humanas digitais, já que estas, como de­senvolvimento metódico
e organizado de maneira transdisciplinar das ciências culturais
voltadas tanto para o texto como para o objeto, parecem
possibilitar um acesso especial a um objeto tão complexo e
impregnado da ideia de rede. O projeto é ambicioso: já que
a agenda é uma espécie de ponto nodal para a exploração
visual da rede de pessoas e correspondentes de Humboldt,
toda sua correspondência conhecida deve ser catalogada e,
paulatinamente, digitalizada no âmbito de sua transcrição. Junto
com a catalogação de todas as cartas escritas e recebidas por
seus correspondentes, pode-se – esta é a ambiciosa meta do
processo de digitalização – por meio virtual compor uma ampla
rede intelectual da primeira metade do século XIX que, partindo
de Alexander von Humboldt, produziu e refletiu para muito além
dos limites de Berlim, da Prússia e da Europa um conhecimento
do mundo em todas as suas conexões globais.
Nesta incursão promissora em uma nova prática científica
com viés transdisciplinar e genuinamente digital, figura e obra
de Alexander von Humboldt parece ser um objeto de pesquisa
ideal e aponta para o futuro de uma área científica que começa
a se desenvolver. <
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
15/72
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autor:
Tobias Kraft (1978, Colônia) estudou em Bonn e Potsdam e
desde 2008 é colaborador científico no Instituto de Romanística da Universidade de Potsdam. Como diretor do projeto
www.avhumboldt.de, desenvolveu em 2009 “Humboldt Digital”.
Atualmente está preparando um projeto de pesquisa sobre o
futuro do livro digital.
Tradução do alemão:
Maria José de Almeida Müller
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Laura Restrepo
Passagens
16/72
TERRORES E MILAGRES
DA GRANDE VIAGEM
Um ensaio breve sobre as grandes viagens, voluntárias
e involuntárias, em nosso planeta.
Emigrantes centro-americanos aguardam a chegada de um trem de carga em Arriaga para viajar aos Estados Unidos nos tetos dos vagões.
Da série fotográfica de Kadir van Lohuizen “Via PanAm”: migrações nas Américas. O rastro dos emigrantes, Guatemala / México, novembro de 2011.
© kadir van lohuizen / NOOR
Eu os vi. Os que empreendem a Grande Viagem, eu os vi. Vêm
subindo, e são mi­lhares: fazem parte da migração que começa
no princípio dos tempos e se perde de vista adiante. Porque a
humanidade está a caminho, em um planeta onde o que flui é
permanente e o sedentário não passa de miragem. Você pode
comprovar isso no litoral do Golfo de Áden, ao sul do Iêmen,
observando como o Chifre da África vai subindo – somalis,
etíopes, eritreus –, em busca de um lugar onde a vida seja pos­
sível. Ali vi as mulheres que não se deixam atemorizar, apesar de
saberem que muitas morrerão no trajeto e que outras terão que
deixar ali seus filhos, enterrados. Mas sua decisão está tomada
e não se deterão até chegar, custe o que custar, seja como for,
em barquetas, de pés descalços pelo deserto, mendigando pelas
cidades antigas, passando pelo pior e esperando o melhor. Como
disse Steinbeck, os homens em êxodo, fugindo do terror […]
sofreram coisas estranhas, algumas cruelmente amargas, mas
outras tão belas que a fé se lhes reanimou para sempre.
Os desterrados por violência interna, esses também pude
ouvir. Aconteceu numa zona petroleira e florestal entre a
Colômbia e a Venezuela, quando fui despertada, de manhã, pelo
estrépito de latões e pelo martelar das tábuas e dos papelões
com que os recém-chegados armam suas moradias provisórias,
permitindo-se uma paragem e um descanso em meio a uma
viagem de muitas partidas e chegada alguma. Foi lá que escutei
sua lida e percebi, à medida que avançava o dia, que os barracos
erguidos se tornavam cada vez mais frágeis, quase imateriais,
e – ao chegar a noite – pareceriam construídos no ar, feitos
apenas de anseio, de puro martelar.
Passagens
Laura Restrepo
Terrores e milagres da grande viagem
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Também os vi rindo e brincando. Foi nas cercanias de
Tijuana, na linha eletrificada que corta a América em dois, onde
um grupo de meninos do bairro pratica o esporte de cruzar a
fronteira por uma fa­lha do Muro, sem documentos de identidade
e com uma bola de futebol na mão, apenas para jogar uma
pelada do lado gringo e depois voltar para casa, desafiando
assim a violência dos Border Patrols e o racismo assassino dos
Minute Men, ludibriando milhões de dólares investidos pelos
Estados Unidos para impedir que o Sul os invada. Apaixoneime pela irreverência lúdica desses meninos de Tijuana, que
me fizeram ver com novos olhos o drama dos migrantes sem
documentos: não só como crise humanitária – algo que não
deixará de ser –, mas também como desafio, audácia, afronta,
sede de vida e vocação para a dignidade. Eles me mostraram
que a viagem pode ser uma aventura desafiante, que o viajante é
capaz de transpassar os limites, burlando essa imposição brutal
de impedir que os seres humanos circulem por seu planeta e
de dividi-los com muralhas e com leis para seres de primeira
e seres de terceira categoria. E também é capaz, o viajante, de
desafiar a fome e a guerra que o expulsam do lugar onde sua
vida tem significado e sua pessoa goza de respeito, onde pode
ensinar a seus filhos o enraizamento e uma língua, onde pode
celebrar os acontecimentos de sua história e venerar as tumbas
de seus ancestrais.
Ao contrário da opinião dos racistas de todo gênero, a
Grande Viagem, a viagem da humanidade em marcha, a dos
deslocados e migrantes, o êxodo mítico, teve e continua tendo
um caráter claramente fundacional, por difundir a cultura, gerar
novas civilizações e funcionar como motor para que o mundo
prossiga.
Por isso, esse é o tema central das grandes gestas dos
povos, desde a Eneida, que relata como Eneas foge de uma
Troia derrotada e destruída, levando sobre os ombros seu pai
e na mão seu filho, e após superar as penúrias e os perigos do
desterro, consegue fundar Roma. Também deslocado, Moisés,
expulso da pátria e empreendedor de uma viagem repleta de
emboscadas, sim, mas ao mesmo tempo propiciador de uma
fé que lhe permite adoçar as águas amargas, a fim de que seu
povo não morra de sede, fazer chover maná, para que seu povo
não morra de fome, e encaminhá-lo a uma terra prometida
que, no final das contas, ele, Moisés, não chegará a ver. Outro
peregrino é São Tiago, que percorre a pé uma Via Láctea terrena
em busca da estrela, até chegar a Compostela, lugar ideal que
talvez signifique justamente isso, campus stellae. E assim como
São Tiago, também são viajantes em busca da estrela aquelas
costas molhadas que o cineasta Fernando León de Aranoa
viu atravessar, à noite e a nado, o Río Grande del Norte, sem
contar com outro guia a não ser a luz de neon de uma grande
estrela que servia de anúncio a um cassino da margem oposta. E
viajante por excelência é Noah, protagonista de As vinhas da ira
e membro de uma de muitas famílias pobres de colhedores de
uva que, durante a Grande Depressão, foram expulsas de suas
casas na Califórnia em decorrência da seca e da industrialização
da agricultura. Steinbeck se refere da seguinte forma a Noah: ...
fazia tudo, mas parecia que nada lhe importava. Sentia apenas
indiferença para com as coisas que as pessoas desejavam e
necessitavam. Vivia numa estranha casa silenciosa, da qual
olhava para fora com olhos tranquilos. Era um estranho para o
mundo...
Assim é o viajante – chame-se ele Ulisses, Eneas ou Moisés
–, e também extracomunitário, ilegal, exilado, sem documento,
costas molhadas ou Noah. Qual será seu destino, o final de sua
viagem, a utopia que persegue sem ter obtido de ninguém uma
promessa nesse sentido? Nos territórios antípodas às cidades
amuralhadas, que servem de resguardo aos que têm muito
contra os que não têm nada, a utopia resplandece como uma
ter­ra de perdões, onde seja possível recomeçar. Um lugar livre
de culpa e de rancor, onde todos caibam e onde se possa dizer,
como o fez Descartes, que “o mundo sempre está começando”.
Perdoar, aos outros e a si mesmo, como ponto de chegada,
depois de ter-se aberto à suspeita de que talvez haja outro
caminho, diferente do gargalo da garrafa ou do sem sentido do
labirinto. Perdoar como ato moral total, ou obrigação universal,
segundo propõe Stanislas Breton: uma espécie de atividade de
perdoança, com caráter mais cósmico que moral.
O final da viagem seria então um santuário ou círculo de
proteção, um refúgio aonde não chegue o castigo, a vingança
ou a mão do Poder. Quasimodo, tentando proteger Esmeralda
nas altas abóbadas da catedral, grita essa palavra, santuário,
apelando assim a um acordo ancestral entre os homens,
segundo o qual existe no mundo um lugar único e inviolável
onde o perseguido, o fraco, o ferido, o desarmado, o doente,
o faminto, a mulher, a criança e o ancião podem se salvar dos
impiedosos e dos violentos.
Ou talvez o final da viagem seja uma porta aberta, a da
solidariedade e do acolhimento, a porta aberta da confiança e
do fim do medo do outro, como mostra William Saroyan em sua
Comédia humana:
— Mamãe – disse –, alguém está sentado nos degraus do
nosso alpendre.
— Bem – disse a senhora Macauley –, sai e diz para entrar,
seja quem for.
A viagem como nostalgia, que vem do grego nostos, regresso,
e algos, dor, sendo – portanto – a tristeza pelo não retorno,
saudade de casa. Mas a viagem também é Fernweh, esta palavra
que só existe em alemão, creio eu, e que designa a saudade, não
do lugar que se teve, mas sim daquele que ainda não se tem.
Anseio de países distantes: o que os portugueses chamam, com
tanta beleza, de saudades de longes terras. Segundo Jung, quando
a viagem é interior e individual, desloca-se em direção às terras
do sonho; quando é coletiva e exterior, entra no território do
mito. E aí, entre o sonho e o mito, se encontra a Grande Viagem,
a iniciática, a fundacional, aquela que parte da nostalgia para
chegar ao Fernweh, e que em algum ponto do trajeto propicia
a revelação: esse instante privilegiado e luminoso que, para os
religiosos, é sentimento místico e, para os leigos, sentimento
oceânico. E que para outros, ainda, viria a ser yugen, termo
japonês que indica a autoconsciência inefável do universo.
Não é à toa que o Livro do Graal – o da eterna busca e do
permanente círculo entre perda e encontro – anuncia a travessia
com esta lenda: Aqui começam os terrores, aqui começam os
milagres. <
17/72
Laura Restrepo
Terrores e milagres da grande viagem
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autora:
Laura Restrepo escritora colombiana, autora de doze romances,
foi traduzida para mais de vinte idiomas e agraciada com vários
grandes prêmios internacionais, entre os quais o Alfaguara de
Novela, na Espanha e América Hispânica; o Prix France Culture,
prêmio da crítica na França; o Grinzane Cavour, na Itália. É ainda
jornalista e professora universitária.
Tradução do espanhol:
Simone de Mello
Informações adicionais sobre a ilustração:
“Via PanAm”: migrações nas Américas “Cruzar todo o México
é o primeiro obstáculo que os emigrantes da América Central
precisam superar em sua viagem aos Estados Unidos. Percorrem
o país de ônibus, a pé ou em cima de trens de carga. É uma
viagem perigosa. Ilegais e, portanto, sujeitos a humilhações,
estes emigrantes, quando tentam evitar as autoridades, correm
o risco de se tornar vítimas do tráfico humano, objetos de
roubos, violações ou assassinatos. E, apesar de tudo, continuam
cruzando diariamente a fronteira mexicana, buscando um
lugar nos trens em direção ao norte.” É assim que comenta
sua fotografia o fotógrafo Kadir van Lohuizen (Países Baixos,
1963), que fez a cobertura de conflitos na África e em outros
lugares, mas é provavelmente mais conhecido por seus projetos
de longa duração sobre os sete rios do mundo, a indústria do
diamante e a migração nas Américas. Para sua série fotográfica
“Via PanAm”, viajou durante um ano (2011–2012) pela Panamericana, desde a Terra do Fogo na Patagônia até Deadhorse
no Alasca. Recebeu numerosos prêmios e galardões no campo
do jornalismo fotográfico.
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
18/72
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Óscar Calavia Sáez
Passagens
19/72
OS “SELVAGENS” VIAJAM
Não há um grau zero da viagem, nenhum paraíso do
absolutamente local; toda pátria tem algo de porto.
Kadir van Lohuizen, da série fotográfica “Via PanAm”: migrações nas Américas. Vida indígena em Lima, Peru, maio de 2011.
© kadir van lohuizen / NOORt
Um dos primeiros – e melhores – romances de Alejo Carpentier
relata a odisseia de um músico à procura de raízes. Deixando para
trás um mundo de orquestras sinfônicas e de rádios estridentes,
remonta o Orinoco reencontrando-se com formas tradicionais –
depois arcaicas, depois primitivas – da sua arte. Melodias de um
folclore mestiço, violeiros que narram os feitos de guerreiros ou
bandidos, ou atabaques que celebram os deuses da África. Por
fim, perto das fontes do rio, o músico descobre índios nus, cantos
e flautas em que identifica a expressão mínima e originária da
música.
Rio acima Poderíamos imaginar um final alternativo para o
romance de Carpentier. O viajante, depois da sua singradura
águas acima, chega na aldeia primigênia e a encontra vazia:
os músicos primordiais foram a Berlim, gravar um disco em
parceria com uma estrela do rock.
Isso poderia acontecer a qualquer um, e de fato aconteceu
comigo: quando da minha pesquisa de campo entre os Yaminawa,
esforçava-me a procurá-los na sua aldeia, perto das fontes do
rio Acre, e custava-me aceitar que eles estivessem quase sempre
na cidade, ou em outra aldeia, ou em qualquer outro lugar, de
passagem. Selvagem é um belo nome que não merece ser usado
como insulto; na sua origem, designava o morador das selvas, e
há muito tempo sabemos que este pode ser mais gentil e discreto
que o morador da cidade. Mas pensamos ainda que ele seja mais
simples, e também que ele seja imóvel. Nos depararmos com ele
longe da selva continua a nos parecer um paradoxo, e teimamos
em acreditar que isso se deva a um acidente. Deve ter sido expulso
de suas ter­ras, deve estar à procura de bens e serviços que lhe
são necessários. Se estar fora é um acidente, a essência deve
consistir em ficar, ficar no recôndito da selva, quieto. O progresso
tem sido muitas vezes descrito como uma capacidade crescente
de se mover, que começa com passos hesitantes e acaba num vai
e vem ensandecido de um extremo ao outro do planeta. Para que
todo esse agito tenha sentido, é necessário imaginar um ponto
de referência que não se desloca, um ser humano perfeitamente
Passagens
Óscar Calavia Sáez
Os “selvagens” viajam
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
local, fundido com seu meio ambiente. É imaginar demais. Os
selvagens sempre viajaram, e nem sequer se pode dizer que
tenham sido os primeiros: animais e plantas viajaram muito antes
que eles, e até as massas continentais moveram-se. O sonho da
pátria imóvel sempre à nossa espera é na verdade um fruto da
fadiga de viajar.
Mais corriqueiramente, os índios viajantes são a imagem da
exclusão; porque os direitos de que dispõem são os de um ente
imóvel, caducam nas fronteiras de sua aldeia. Longe dela, não é
possível caçar, tomar banho no rio ou levantar um abrigo para
passar a noite, e tudo tem seu preço: a comida, a água, até o
lugar onde se dorme devem ser pagos com dinheiro – o dinheiro,
esse viajante por excelência. Os índios viajantes costumam ser
descritos pelos jornais com outro nome: mendigos. É um destino
comum, porque no mundo dos brancos viajar, antes de ser o
luxo por excelência, foi a maldição por excelência. Adão e Eva
saem caminhando do Paraíso, e Caim é um andarilho. O Holandês
Errante ou o Judeu Errante são os protótipos tristes do frequent
traveller das companhias aéreas. O viajante é um despossuído;
é esse estrangeiro para o qual a Bíblia recomendava que se
deixassem no campo (também para o órfão e a viúva) algumas
espigas e alguns cachos sem coletar; tornar-se-á rico de algum
modo se conseguir voltar à casa e desfrutar dos ga­nhos, do seu
prestígio ou de sua experiência. Nem todos conseguem. Nas
memórias de expoentes do movimento indígena que começaram
a ser publicadas recentemente – livros tão diferentes como o de
Raoni e o de Davi Kopenawa –, as viagens ocupam boa parte
do texto. E incluem uma advertência: eles foram recebidos por
reis, presidentes e celebridades do espetáculo, mas isso é a
exceção, de modo que o melhor é evitar o deslumbramento e se
entrincheirar na própria terra, nas tradições próprias, no saber
antigo; permanecer amparados pelas raízes. Essa não é a voz
da tradição ancestral, mas a de uma nova experiência, porque
esse lema tão badalado da terra sem fronteiras é enganador: as
fronteiras se multiplicaram. Se perderam força entre os Estados cá
ou lá, é porque quase tudo foi delimitado por fronteiras privadas,
e não se pode mais ir cortando a selva ou o campo ou a cidade.
Embora seja ainda possível viajar como o faziam os selvagens
– vivendo sobre o ter­reno, entre amizades e hostilidades, e em
suma em intimidade com o caminho –, isso é cada vez mais difícil.
Viagens (dos) selvagens Se os povos da Amazônia – quase
que os últimos representantes do selvagem – nos pareceram
imóveis durante um par de séculos, foi porque nós mesmos os
imobilizamos. Pelo mal, cercando o seu espaço com ameaças
que preferiam não enfrentar, ou pelo bem, garantindo-lhes
territórios ancestrais dos quais seu desejo, supomos, é nunca se
afastarem. Por isso, cada vez que se encontra um nativo longe de
suas terras o comum é se surpreender e perguntar-lhe, ou pelo
menos perguntarmo-nos, o que está a fazer lá. A melhor resposta
é a mais simples: lá está porque os selvagens viajam, e sempre
viajaram. Cada vez que os primeiros exploradores espanhóis
do Amazonas perguntavam a seus anfitriões – voluntários ou à
força – obtinham respostas sobre reinos longínquos, não relatos
sobre como o mundo foi criado lá mesmo. Toda a mitologia do
Alto Rio Negro, que trata precisamente da criação, a descreve
sob a forma de uma viagem, a da Grande Cobra primordial, rio
acima. A América é, em geral, um continente pouco fértil para as
fábulas da autoctonia – essa pretensão de que os homens estão
no seu lugar porque alguma vez brotaram do próprio chão. Os
arqueólogos, desde o primeiro, sempre supuseram que os índios
tinham chegado lá desde outras terras, e não poucas lendas locais
dizem o mesmo. E não se trata apenas de migrações de todo um
povo. Uma mitologia mais modesta, como a dos Yaminawa, nos
fala sempre do que acontece a sujeitos que se deslocam: curtos
ou longos, os caminhos são o cenário dos dramas humanos.
Viaja-se à procura de esposo ou esposa, viaja-se para fazer a
guerra, ou viaja-se sem motivo nenhum; curta ou longa, a viagem
é sair do lar para se expor ao imprevisto. A famosa busca da
Terra sem Mal, tão cara aos etnólogos, desdobra-se quando se
olha mais de perto a prática concreta dos Guarani, numa multidão
de viagens entre aldeias, que passam pelo incômodo das estradas
e das cidades antes de acabar em reencontros, infortúnios ou
descobertas; quiçá um novo lugar melhor para viver. Na Amazônia
são numerosas as etnias comerciantes como os Ingarikó ou os
Piro; ou os outrora chamados Campa, que realizavam séculos
atrás expedições de centenas de quilômetros águas abaixo do
Ucayali nas suas canoas para comerciar com o sal que apenas
eles possuíam. E isso numa economia onde em princípio nenhum
elemento importado, nem sequer o sal, seria imprescindível;
caberia se perguntar se a viagem era um meio para o comércio, ou
o comércio era um pretexto para ver o mundo.
Fronteiras privadas Para alguns povos da Amazônia,
esse sal tem sido substituído pela autenticidade: quanto mais
autóctones eles sejam, quanto mais isolados no seu canto de
floresta pareçam, mais fácil será que sejam chamados ao outro
extremo do mundo para mostrá-lo, para exibir suas máscaras,
seus rituais e suas danças. Mas essa é a aristocracia das viagens
indígenas, a que costuma interessar a jornalistas e etnólogos.
20/72
Rio abaixo O burburinho das viagens de negócios e turismo
tende a ocultá-lo, mas os seres humanos estão mais localizados
que nunca, e se muito se deslocam é porque as distâncias foram
anuladas: viaja-se por corredores bem definidos e com marcos
reconhecíveis – um caixa eletrônico, uma cadeia de restaurantes
conhecida, esses aeroportos que são iguais em toda parte.
Reservam-se com antecedência as noites, tenta-se garantir que
sempre seja possível voltar à casa no dia seguinte, e em geral
tudo é preparado para que na viagem nada aconteça. Os índios,
na sua maior parte, estão bem longe de poder viajar assim,
ou, o que é mais importante, de desejá-lo. Ninguém que tenha
organizado uma viagem de músicos ou artistas indígenas a outro
continente deixa de ter sua história, por exemplo, sobre aquele
que se desgarrou do grupo enquanto olhava fascinado uma banca
de laranjas. A disposição a procurar ou a se deslumbrar continua a
ser irresistível. É uma esperança para os que meditam tristemente
sobre o ocaso das viagens; talvez nós não esperemos mais
nenhuma revelação rio acima, mas eles, quem diria, continuam a
encontrá-la com facilidade rio abaixo. É a nossa vez de parecer
autênticos. <
Óscar Calavia Sáez
Os “selvagens” viajam
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autor:
Óscar Calavia Sáez (1959, La Rioja, Espanha), antropólogo e
romancista, é professor do Departamento de Antropologia
da Universidade Federal de Santa Catarina e especialista em
etnologia amazônica. Entre seus livros de pesquisa, destacamse Fantasmas falados (1996) e O nome e o tempo dos Yaminawa
(2006). Publicou três romances, La única margen del río, Las
botellas del señor Klein (XXXI Prêmio de Novela Tigre Juan de
Oviedo) e Amazonia-China: dos viajes de vuelta (VII Prêmio
Eurostars de Narrativa de Viagens).
Tradução do espanhol:
o autor
Informações adicionais sobre a ilustração:
Vida urbana indígena Há alguns anos, uma dezena de famílias
shipibas da província de Ucayali, a mais de 800 km ao nordeste
da capital, se transladaram da Amazônia oriental peruana para
Lima. Foram parar no bairro urbano de Cantagallo, no meio da
cidade e muito próximo da rodovia Pan-americana. “Os Shipibo
não são proprietários da terra onde ergueram suas moradias.
A autorização que o governo deu para o assentamento às
margens do Rímac era apenas provisória. Em qualquer momento
eles poderiam ser expulsos de suas casas, mas reclamam seus
direitos como povo indígena. Em 2011, apresentaram à cidade
uma proposta para um projeto de desenvolvimento de sua
comunidade e de suas moradias como atração turística. Desta
maneira, poderiam obter também os direitos de propriedade.”
É assim que comenta sua fotografia o fotógrafo Kadir van
Lohuizen (Países Baixos, 1963). Para sua série fotográfica
“Via PanAm”, viajou durante um ano (2011–2012) pela Panamericana, desde a Terra do Fogo na Patagônia até Deadhorse
no Alasca. Recebeu numerosos prêmios e galardões no campo
do jornalismo fotográfico.
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
21/72
Hans-Jürgen Heinrichs e
Nina Aydt
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
22/72
ESPAÇOS E TEMPOS SOB O SIGNO
DA AMEAÇA E DA NOSTALGIA
Sobre a viagem como o espaço entre os espaços
e o tempo entre os tempos.
Michael Rakowitz, detalhe da instalação “What dust will rise?”, 2012 © Michael Rakowitz. Foto: Fabian Fröhlich
A pergunta da redação da ­
HUMBOLDT era: Você gostaria de
escrever sobre a viagem como o espaço entre os espaços e o
tempo entre os tempos?
A pergunta toca os lugares reais e que povoam a fantasia,
aqueles que se procura com ansiedade quando se está de viagem,
e sua ameaça fundamental. Partimos da situação real e nos
pomos em busca de espaços e tempos (“entre os espaços e os
tempos”) que não estão sob ameaça imediata da destruição: a
imaginação, o mito, o sonho. De forma que a atmosfera é bastante
diversa: primeiro de opressão, aí mais alegre, e de uma vez, no fim,
seguimos a viagem como ela começou na infância, sendo então
obrigada a processar os mitos e as decepções. Às vezes o próprio
mito volta então.
Viajar sob o signo da ameaça O viajar continua atrelado
à fantasia e à nostalgia, à imaginação e ao imaginário – mesmo
quando os lugares aos quais as fantasias podem se dirigir
diminuam ou até se encontrem sob ameaça de desaparecer. O
espaço da fantasia do estar a caminho e do desejo de trans­
formação e mudança continua intacto.
Tomemos o exemplo das viagens atuais ao mundo árabe. A
Revolução Árabe fez surgirem novas grandes visões e, já depois
de pouco tempo, destruiu muitas dessas visões e, com elas, a
fantasia e a euforia. A destruição afeta as pessoas do mundo
árabe. E ela atinge as pessoas do mundo ocidental não apenas
politicamente em seus desejos de democracia, mas também
emocionalmente.
Passagens
Hans-Jürgen Heinrichs e Nina Aydt
Espaços e tempos sob o signo da ameaça e da nostalgia
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Quando nos deparamos emocionalmente com a violência
incessante nos países árabes, nos confrontamos com o sofri­
mento das pessoas, com a situação dramática de vida, é
então permitido ou é cínico que lamentemos posteriormente
nossas fantasias e anseios das cidades e paisagens tal como
as conhecemos uma vez? Que sonhemos com o exotismo, ou
seja, com a exaltação individual de outras formas de vida?
Ou está exatamente nessa lembrança e fantasia a força para
protestar, de fora e de longe, contra essa degradação, e para
nos engajarmos?
Alguns países que, graças à Primavera Árabe, conseguiram se
libertar de seus dominadores despóticos, vivenciaram também
destruições e ameaças de seu patrimônio cultural e religioso. E
as imagens que chegam a nós da Síria sob o governo Assad vão
além das possibilidades de nos debatermos emocionalmente
com cada destino individual das pessoas, das cidades ou dos
monumentos. O lendário e antiquíssimo bazar na síria Aleppo,
edificações de mais de 2.000 anos, mais de 1.500 lojas, um
patrimônio cultural da humanidade foi destruído, tendo-se
falado até mesmo de um enterro. O petróleo que se vendia ali
fez do incêndio um inferno. E os moradores não tiveram nem
mesmo forças suficientes para o luto, relata a escritora síria
Maha Hassan.
Ou tomemos as viagens atuais à África. O Mali, por exemplo,
é para mim uma catástrofe praticamente inconcebível, de tal
forma que me pareceu quase impossível acompanhar as notícias
sobre o golpe violento, a destruição assassina de monumentos
culturais, mesquistas e mausoléus com picaretas, machados e
outras armas pesadas. Nos anos 1970, vivi nas cidades míticas
Gao e Timbuktu e nas paisagens que agora presumivelmente
fazem parte de um Estado islâmico radical. Como no caso de
Aleppo, o luto de muitos moradores era tamanho que as pessoas
nem mais conseguiam chorar.
Há, na história da humanidade, realmente um desenvolvimento
linear rumo à civilização e à humanização do homem? Depois da
destruição dos Budas milenares de Bamiyan, de diversas cidades
antiquíssimas, museus e jazigos no Iraque, Egito e na Líbia, e agora
também no Mali e em Aleppo, é preciso questionar essa premissa.
Mas será que não precisamos nos ater a nossas fantasias,
visões e anseios exatamente quando a violência e a destruição
são tão fortes? O que foi feito dos tuaregues (com sua cultura,
sua língua enigmática, o tamaxeque, e seu alfabeto de hieróglifos,
o tifinagh)? Sem eles não posso nem imaginar minha vida,
minha partida em fins dos anos 1960 para os mundos opostos à
Alemanha do pós-guerra: o espaço africano, árabe, asiático e da
Oceania.
Em relação ao tempo, o sonho tem algo de libertador. Também
nos estados de êxtase – ou seja, quando se está fora de si – a
consciência de tempo não é desligada, mas modificada. Consta que
no êxtase ritualizado xamânico, com suas formas e performances
pré-teatrais, em estados hipercinéticos a separação entre o céu
e a terra pode ser superada através de uma viagem ao além.
Os xamãs retomam a ligação com o além, que foi rompida num
tempo mítico. Não seria este nosso estado natural? E também o
estado que nos está disponível quando estamos a caminho de
mundos opostos?
Olhar para os ciclos de grande formato nos ajuda, ante as
ameaças e destruições atuais? Os mitos narram a respeito de
grandes ciclos e a respeito de um tempo ao qual a história não
chega, de um tempo primordial, de um tempo dos começos. Este
tempo dos primórdios é o que se tenta renovar nas culturas e
nos ritos.
Os mitos narram “como, graças às façanhas dos entes
sobrenaturais, uma realidade passou a existir [...].É sempre,
portanto, a narrativa de uma ‘criação’ [...] o mito fala apenas do
que realmente ocor­reu, do que se manifestou plenamente”. Com
essa argumentação provocante, Mircea Eliade constata que os
mitos (ao contrário das lendas) são “histórias verdadeiras”, que
tratam de uma realidade, de algo que se manifestou amplamente,
de algo que se revelou. A história “verdadeira” e “sagrada” de
todo mito remete sempre a realidades: “O mito cosmogônico é
‘verdadeiro’, porque a existência do mundo aí está para proválo; o mito da origem da morte é igualmente ‘verdadeiro’, porque
é comprovado pela mortalidade do homem, e assim por diante”.
A linguagem da Bíblia, das sagas, fábulas e dos mitos eleva
o pensado e o imaginado a uma esfera atemporal, a espaços
imensuráveis. Mircea Eliade fala, com relação ao tempo presente,
de “traços de um ‘comportamento mitológico’” e do desejo “de
reencontrar a intensidade com que se viveu, ou conheceu, uma
coisa pela primeira vez; de recuperar o passado longínquo,
a época beatífica do ‘princípio’ [...], a mesma esperança de se
libertar do peso do ‘tempo morto’, do tempo que destrói e que
mata”.
Se separamos rigidamente o histórico do pré-histórico e
confrontamos um com o outro, perdemos a percepção de que
também os mitos têm um contexto social e histórico e que, como
expressou Bronisław Malinowski, “os mitos dominam e regulam
muitos fenômenos culturais, formando a espinha dorsal da
chamada civilização primitiva”. O conteúdo atemporal dos mitos
é invocado pelas pessoas em meio a um tempo histórico para
pôr fim a divergências. O mito é também uma representação do
“infinito no finito”.
Lugares sem tempo Mas esse mundo oposto está ligado a
lugares reais em seu contexto histórico em mudança constante?
Dependemos do tempo e do espaço em nossas visões, fantasias
e imaginações? Há lugares sem tempo? Qualquer pessoa sabe
como os conceitos de espaço e tempo deixam de vigorar nos
sonhos. O sonho se estende em todas as direções ao mesmo
tempo, no ontem e no hoje; e pessoas há muito desaparecidas,
mortas ou banidas estão com frequência presentes nos
acontecimentos do sonho.
A viagem que começou na infância No dia em que
completei 13 anos, ganhei de presente um romance com o qual,
ainda na tarde daquele dia, me retirei para ler em meu quarto.
Junto com os protagonistas, saí numa viagem de aventuras a
cenários dos quais, até aquele momento, eu pouquíssimo sabia
da existência. Mergu­lhei num mundo que me pareceu estra­nho,
surreal, mas ao mesmo tempo familiar, até mesmo palpável.
No papel de observador, fui me tornando, a cada página
que lia, parte daquela história. Assim me sentia um aventureiro
23/72
Hans-Jürgen Heinrichs e Nina Aydt
Espaços e tempos sob o signo da ameaça e da nostalgia
audacioso, que cruzava totalmente sozinho, a pé ou no lombo
de um camelo, a imensidão infinita do Saara e constatava com
surpresa a diversidade da paisagem que se escondia por trás
de cada duna. Qual equilibrista sobre a corda bamba, eu me
movia entre um polo e outro de minhas vivências: passeando
comodamente, pulando, dançando e às vezes também com
pressa. Quanto mais eu viajava e assimilava aquele mundo
estranho, mais eu começava a compreender que estranheza e
beleza viviam dentro de mim. Pois era eu quem determinava o
mito, o espaço de fantasia de cada lugar por onde passava.
A essa experiência inicial associamos nossas viagens
posteriores. Convertemos cidades como Veneza ou Paris em
lugares tão míticos, que estamos sempre ameaçados de perder
o equilíbrio na tentativa de experimentar também fora de nós o
mítico que carregamos em nosso interior.
Assim como os palazzi do outro lado do canal se tornam
novamente visíveis, quando a névoa se dissipa, os lugares
marcados pelo mito também reaparecem na lembrança depois
da viagem, quando não conseguimos preenchê-los na própria
vida da forma como a imaginação nos fizera supor. Por exemplo
essa formação frágil de pedra, água e lama, os passeios pelas
ruelas estreitas e sobre as pontes, as viagens no vaporetto. Ali
estava ele de novo: o mito, fantasmagórico como numa aquarela,
pronto para desaparecer a qualquer momento.
Viajando e escrevendo, tentamos conceder a ele uma
duração e convertemos aquele tempo num tempo de agora. <
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
24/72
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autores:
Hans-Jürgen Heinrichs é etnólogo e autor de numerosas bio­
grafias, escritos de teoria da cultura, trabalhos em prosa e
livros sobre viagens, entre os quais Das Feuerland-Projekt, Die
geheimen Wunder des Reisens e Der Reisende und sein Schatten.
Nina Aydt é escritora. Atualmente está escrevendo seu primeiro
romance.
Tradução do alemão
Soraia Vilela
Informações adicionais sobre a ilustração:
Michael Rakowitz: “What dust will rise?” Os 33 livros de pedra
são reproduções de valiosos manuscritos históricos queimados
totalmente ou danificados pelo fogo ou pela água em 1941
na biblioteca do Fridericianum, em Kassel, entre os quais a
Canção de Hildebrando, do século IX, o mais antigo poema épico
germânico já encontrado. Para a dOCUMENTA (13), o artista de
origem judaico-iraquiana Michael Rakowitz, nascido em Nova
York em 1973, mandou talhar os livros perdidos em travertino
proveniente de uma pedreira da província de Bamiyan. Desse
modo, carregava de significado também o material, já que em
2001 duas estátuas gigantescas de Buda do século VI foram
destruídas em Bamiyan (Afeganistão) por talibans.
O tema principal, “a destruição por motivos religiosos”, esteve
presente também nas vitrines em volta dos livros em Kassel,
através de peças encontradas em Bamiyan e em outros lugares
destruídos, como um fragmento do piso de granito do World
Trade Center ou munições e cartuchos da Segunda Guerra
Mundial. A instalação ilustrou que em todos os casos os ideais
de guerra foram mais importantes que a preservação dos bens
culturais. Ao final resta a pergunta: “What dust will rise?” – Que
poeira ressuscitará? (Texto baseado em fragmentos ligeiramente
modificados da interpretação da obra de Julia Geiger em http://
vermittlung-gegenwartskunst.de/)
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Natalie Göltenboth
Passagens
25/72
MESTRES DA DESORDEM
Artistas e xamãs como mediadores entre os mundos. O que
significa para a arte a identificação do artista com o xamã, a
transferência do conceito de xamã ao artista?
Representación de una transformación: hombre-jaguar. Mitla, Oaxaca, México. Foto: Bildarchiv Staatliches Museum für Völkerkunde de Múnich
Eles dedicam seu tempo a um grande número de ações lentas
que, face a considerações racionais a respeito da relação custobenefício e explicações científicas, parecem apenas absur­
das. Assim como Teresa Pereda, carregam terra de um canto
do mundo a outro, peregrinam por esse mesmo mundo e
documentam seus vestígios, como faz Richard Long, falam
com animais mortos, como faz Joseph Beuys, coletam, como
faz Nikolaus Lang, as sobras de uma vida passada para
assemblagens, ou ficam durante dias nus em florestas, como faz
Chloé Piene, para descobrir sua natureza animal.
Contramundos na arte Com seus trabalhos, os artistas
partem de coordenadas que muitas vezes se localizam além
da escala de valores social. A arte está fora do contexto das
construções cotidianas de realidade, ainda que jamais seja
apenas a questão meramente individual de um artista e sempre
esteja em diálogo com necessidades e experiências sociais, e
dessa forma também visualize realidades sociais. Muitas vezes,
ações artísticas abrem caminho a uma outra realidade, a um
contramundo que parece estranho e às vezes até bizarro. Um
campo de novas experiências possíveis, de novos modos de ver
e conhecimentos que acabam atuando retroativamente sobre o
observador.
Os construtores e mediadores desses contramundos muitas
vezes são estilizados, eles mesmos, em figuras de oposição,
ou adotam essa posição. No decorrer da história intelectual
europeia os artistas esboçaram autorretratos a partir da
autocompreensão cambiante do que significa artista, retratos
estes que envolviam sofrimento, inspiração e sensibilidade, e
com isso se posicionaram, eles mesmos, à margem da sociedade
Passagens
Natalie Göltenboth
Mestres da desordem
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
que ainda assim esperavam influenciar positivamente com suas
obras. E nesse aspecto o xamã ofereceu sempre uma figura
de identificação ideal e idealizada que parecia reunir em si os
aspectos centrais do conceito de artista.
A figura central nesse discurso seria Johann Gottfried
Herder, que defendia o sentimento e a magia como possibilidades
de ganho de conhecimento contra o paradigma da pesquisa
objetivística, e que acreditava ter descoberto no xamanismo
o germe da criatividade humana conforme o mesmo também
se expressa em obras artísticas. A imagem da prática xamânica
culminou, em Herder, na figura de Orfeu, que através de suas
artes de cantor se comunica com os animais e faz uma viagem ao
submundo, e com isso se torna aquele que traz de volta a alma
e viaja a outras dimensões da existência humana. Orfeu – e com
ele o artista xamã – se transformou em figura de contraposição
ao Iluminismo e seu acesso racionalista ao mundo.
Encantamento do mundo Com os primeiros relatos de
viajantes acerca das práticas espirituais de grupos populacionais
na Sibéria, o acervo de conhecimentos etnológicos acerca do
xamanismo principiou a circular na sociedade ocidental. A
etnologia foi a iniciadora de um conceito que abriu caminho
no mundo da imaginação ocidental em diversas ondas e lá foi
transformado e adaptado de diferentes formas. Se no princípio
do século XVII ainda se via o xamã como um charlatão, como
um histérico ártico ou até mesmo como um sacerdote de satã,
esse ponto de vista – distorcido fundamentalmente pelo espírito
do Iluminismo – acabou adquirindo, com a prática religiosa no
Romantismo e sua ideia do reencantamento do mundo, uma
fascinação cada vez maior. É interessante observar que acabam
existindo alguns paralelos entre os conceitos que cunharam a
imagem do artista e aqueles que abriram caminho ao fascínio em
relação ao xamanismo. Ambos se fundamentam em modelos de
realidade e imagens do ser humano que – partindo da Antiguidade
– se fixaram no pensamento europeu até a Idade Moderna.
Possessão sagrada O discurso de Platão acerca da alma
humana (psyché), que é apresentado em seu escrito Fédon,
marca uma mudança decisiva que deve ser vista como cons­
titutiva da imagem humana até a contemporaneidade. A alma
é contemplada ali como um cerne humano independente do
corpo. Plotino, por sua vez, assume a união dessa alma indivi­
dual com a alma universal e com isso admite pela primeira vez
a posição mediadora da alma entre um mundo material e um
mundo divino-espiritual. Platão situa o artista, que compõe
música ou faz poesia levado pela inspiração divina, no âmbito
dessa noção. Ele compara a inspiração poética com a possessão
sagrada durante as festas dionisíacas.
Também o ideário do Renascimento, no qual já se formaram
os pensamentos básicos da Idade Moderna, encontra-se sob a
influência dessas tradições intelectuais antigas. O neoplatonismo
retomou as concepções de alma formuladas por Platão e
Plotino: o homem, que através da participação de sua alma no
divino deve ser visto ele mesmo como divino, não necessita
da mediação de um deus existente fora dele. Aceitando essa
premissa, o pensamento autonomista do humanismo da Idade
Moderna, que dava ao indivíduo criador e autodeterminado uma
grande importância, pôde se desenvolver: ele passou a poder
atuar criativamente a partir de então não apenas através da
inspiração divina, mas também de talentos próprios.
Participação na alma universal A concepção antiga
de alma, que identificava uma alma individual que é parte da
alma universal e assim tem acesso aos nexos cósmicos, cunhou
as noções tanto do xamã quanto do artista como “mediadores
entre os mundos”. No campo de tensão entre o Iluminismo e o
Romantismo, o desencantamento e o reencantamento do mundo,
a figura do xamã de repente passa a alcançar importância.
26/72
A arte cura o mundo Um artista que retoma esses pontos
de vista e em cuja pessoa a figura dupla do artista como xamã
se tornou realidade de um modo especialmente intenso foi sem
dúvida alguma Joseph Beuys (1921–1986). Beuys é tido como um
dos mais importantes artistas alemães do período pós-guerra.
Em suas criações artísticas, ele perseguiu uma abordagem de
pretensões universais que esboroava conscientemente as
fronteiras do conceito convencional de arte e via a arte como
o meio adequado por excelência para encaminhar processos de
cura sociais – uma pretensão que constitui um aspecto essencial
do xamanismo em Beuys.
Um acontecimento central na biografia do artista, que escla­
receria sua inclinação ao xamânico, se deu no inverno de 1943.
Nascido em Kleve, Beuys serviu como piloto de bombardeiros
de voo picado depois da prova de conclusão dos estudos préuniversitários e acabou caindo na Crimeia em um acidente.
Gravemente ferido – conforme os relatos conhecidos –, ele foi
tratado por tártaros nômades da Crimeia. A analogia dos ossos
quebrados e ferimentos de Beuys com o esquartejamento e
a experiência da morte dos iniciandos no ritual xamânico é
patente. E, de fato, a temática da crise transformadora tem
um papel central tanto na vida de Beuys como também em sua
filosofia. O motivo do curandeiro ou xamã, que pode mobilizar
apenas através da própria experiência do sofrimento e da
proximidade da morte forças curativas que então passam a
estar também à disposição de outras pessoas, certamente
também tem um papel importante nisso. Numerosas obras –
Haus des Schamanen (Casa do xamã, 1959), Schamane I (Xamãs
I, 1961), Werkzeuge des Schamanen (Ferramentas do xamã,
1962) – testemunham o confronto de Beuys com essa figura.
São também dessa época as primeiras publicações etnológicas
de Mircea Eliade e Hans Findeisen sobre o tema do xamanismo.
O motivo da cura de processos sociais, da nova ordenação
de forças que passaram a estar desequilibradas, o trato com
poderes e a visualização de suas constelações são critérios
essenciais da ação xamânica. Esses elementos podem ser
encontrados tanto em quadros e desenhos quanto em objetos
materiais e instalações de Beuys, e são sobretudo motivações
essenciais para suas performances e atividades políticas.
Escultura social Os dois polos calor e frio são elementos
centrais da teoria da escultura de Beuys e, associados a eles,
movimento, intuição e vivacidade de um lado, paralisia,
Passagens
Natalie Göltenboth
Mestres da desordem
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
pensamento e morte do outro lado. Beuys caracterizou o
status quo da sociedade ocidental como “escultura fria”.
Com isso, ele expressa que o organismo social se encontra
em crise devido à dominância do materialismo e do conceito
reducionista de ciência. O pensamento meramente intelectual
que assim acaba imperando é caracterizado por Beuys como
frio, mortal e cristalino. As consequências disso são, segundo
Beuys, estranhamento, pobreza espiritual, destruição do meio
ambiente, guerras e ditadura da economia. O estado ideal
da escultura social a ser alcançado foi chamado por Beuys
de “escultura quente”; quer dizer, uma sociedade na qual as
formas paralisadas do pensamento são postas em movimento
através da ação do calor humano – equiparado ao amor –, uma
energia que Beuys caracteriza como impulso crístico. Beuys
compreendeu a figura do xamã, que interfere de forma curativa
nos processos sociais, não apenas como um representante de
modos de existência não ocidentais, mas como um ator que
provoca transformações que buscam uma união entre formas
de conhecimento racionais e intuitivas. No fundo, portanto, o
xamã era, para Beuys, uma figura que pode integrar abordagens
científicas e artísticas.
forças e à sua visualização. Cura e canonização se encontram no
fim desses processos. A associação do artista com a figura do
xamã afirma que a arte, assim como a religião, se ocupa das
questões existenciais do ser humano e produz ações, e por isso
não deve ser compreendida como mera estética ou como mundo
imagístico desprovido de sentido. <
Mestres da desordem O que significa, no entanto, a
identificação do artista com o xamã, a transferência do conceito
de xamã ao artista, para a arte? Parece que está implicada nisso
uma duplicação do significado de arte. Como se a arte apenas
pela arte não fosse suficiente, como se o mundo moderno
buscasse um sentido existencial que ele acredita vinculado
à viagem a outros mundos e à visão de outras realidades e
conexões vinculadas a ela.
Em 2012 a união entre arte e xamanismo pôde ser con­
templada mais uma vez na exposição parisiense “Maitres
du Désordre”. Em seis salas, com o título programático de
“Ordem imperfeita”, “Poderes do caótico”, “Ativação das
forças”, “Mediadores entre os mundos”, “Iniciação e viagem
cósmica”, “Bazar das forças” e “Doença e exorcismo” estavam
representadas, além de objetos de poderes mágicos, vestimentas
de xamãs e máscaras de diferentes culturas do mundo, também
posições de artistas modernos que em seu trabalho tematizam
os âmbitos mencionados. A instalação de ­Thomas ­Hirschhorn
apresentou a vulnerabilidade do mundo na forma de numerosos
globos cobertos de bandagens. Em uma gravação em vídeo, era
possível ver Beuys em sua performance Wie man dem toten
Hasen die Bilder erklärt (Como explicar as pinturas ao coelho
morto). A dançarina Anna Halprin gritou abertamente seu
câncer em uma dança exorcista de vários dias de duração – uma
performance artística que teve efeito semelhante ao das séances
dos xamãs, pois Halprin, assim se disse, saiu curada dela.
A figura do xamã e todas as noções e discursos vinculados
a ele, ainda que talvez repousem em parte nas construções de
homens ocidentais que veem incorporado nos xamãs tudo aquilo
que parece ter escapado a eles próprios, empresta ao artista
uma dimensão que de resto seria difícil de afirmar: a dimensão
do existencial. O artista xamã opera com as forças poderosas
do caos, e suas ações – executadas com lentidão e sem dar
importância à eficiência científica – servem à organização dessas
27/72
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autora:
Natalie Göltenboth é etnóloga, redatora e colaboradora científica
do Instituto de Etnologia da Universidade Ludwig Maximilian de
Munique.
Tradução do alemão:
Marcelo Backes
Informações adicionais sobre a ilustração:
A figura zapoteca (Mitla, Oaxaca, México, 7,7 cm de altura)
representa a transformação de uma pessoa (provavelmente
sacerdorte, curandeiro/a, xamã ou especialista reiligioso/a) em
jaguar, revestindo-se da pele completa e da cabeça de um jaguar
morto. Está agachada, como um felídeo pronto para o salto. Uma
concavidade nas costas pode ter servido de recipiente.
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Sergio Vega
Passagens
28/72
O PARAÍSO
NO NOVO MUNDO
No século XVII, León Pinelo localizou ­geograficamente o Jardim do
Éden na América do Sul. Seguindo seus ­vestígios, o artista Sergio Vega
desenvolveu um ­projeto multimídia que confronta os mitos do paraíso
e as ­metáforas do inferno com a realidade atual.
Sergio Vega, instalação no pátio do Landesmuseum de Münster, 2008. De “Paradise in the New World – On the Mimetic Faculty”, 2008.
Foto: Cortesia de Sergio Vega
Introdução Certa vez, encontrei um livro velho e mofado
abandonado nas prateleiras de baixo de uma estante em uma
biblioteca de ciências políticas. Tratava-se de uma edição dos
anos 1940 de um manuscrito de 1650, publicada pelo governo do
Peru por ocasião da celebração do aniversário de quatrocentos
anos da descoberta do rio Amazonas. A última vez que o livro
foi emprestado foi na década de 1970, mas ninguém realmente
o leu antes já que, como percebi, a maioria das páginas sequer
foram abertas. O título era: Paraíso no Novo Mundo, Comentário
Apologético. História Natural e Peregrina das Índias Ocidentais,
Ilhas e Terra Firme do Mar Oceano, pelo licenciado Don Antonio
de León Pinelo, do Conselho de Sua Majestade e ouvidor da
Casa de Contratação das Índias, que reside na cidade de Sevilha.
Eu me lembro da ansiedade que senti quando carreguei os dois
volumes pesados para casa. Nunca podia ter imaginado que um
achado ocasional como esse determinaria o rumo da minha vida
e do meu trabalho nos próximos anos.
O mito da América do Sul como “paraíso encontrado” começou
com Colombo quando ele, em uma carta à rai­nha de Castilha,
assegurou que a entrada para o paraíso terrestre se encontrava
na foz do rio Orinoco. Colombo viajava com um exemplar de
As viagens de Marco Polo. O golfo de Paria era semelhante à
Passagens
Sergio Vega
O paraíso no novo mundo
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
descrição de um lugar na Ásia que o veneziano havia confundido
com o Jardim do Éden. A confirmação de um texto anterior é
parte substancial da descoberta, que faz com que o que foi
recentemente descoberto não seja exatamente novo.
A tese de Pinelo baseava-se nas rearticulações de várias
teorias anteriores sobre a localização do Éden. Em 1629, o
tratado Saincte Geographie, de Jacques de Auzoles, localizava o
Éden no centro da América do Sul. Na versão de Pinelo, o Éden
não era um jardim retangular, mas um território circular de 160
léguas (aprox. 891 km) de diâmetro, e o Paraná, o Amazonas,
o Orinoco e o Magdalena eram os quatro rios do paraíso. O
texto de Pinelo refletia as transições intelectuais do século XVII:
ele tentava reconciliar a abordagem teológica da criação com
uma visão científica da natureza derivada da disciplina recémdesenvolvida da História Natural.
Quando decidi embarcar à busca do paraíso de Pinelo
somente carregava um exemplar do seu livro, um mapa do Éden
desenhado por Pedro Quiroz em 1617 e uma passagem de avião.
Estava destinado a chegar ao coração da América do Sul e viver
para contar o que vira. Assim, minha viagem de descoberta
tornou-se a confirmação de um texto antigo, sendo que ele
mesmo era uma revisão de um mais antigo, e por aí se foi em uma
vasta e interminável cacofonia de ecos que passou por Dante e
Marco Polo até chegar ao Bereshit, o primeiro livro da Torá.
O Éden acabou ficando no Brasil. A área do paraíso cobre
uma parte do estado de Mato Grosso com floresta tropical, rios,
pantanais, montanhas, sítios arqueológicos, reservas indígenas,
favelas e cidades, inclusive a capital Cuiabá. Esses lugares
diversos, com suas histórias e lendas, forneceram as referências
materiais para meu projeto, do qual HUMBOLDT mostra aqui
uma seleção. O empirismo, contrastado com pesquisas históricas
e teóricas, resultou em obras de arte concebidas para ativar a
experiência sensorial como também o exame crítico do discurso
do tropicalismo. Todas as fotografias foram tiradas in situ e
devem ser interpretadas como representações do paraíso. Os
textos contam a descoberta do jardim mítico de Pinelo em
forma de um diário de viagem escrito por mim.
lugares, onde a dúvida não pode ser evitada, a percepção entra
em um mundo barroco de espelhos, um mise en abyme onde a
mudança constante de aparências encontra a seu incorporação
paradigmática como natureza virgem.
Não há nada inocente ou franco nessa virgindade, ela é pura
duplicidade. Este “inferno verde” da natureza atormentava os
conquistadores espanhóis até o nível do desespero. Engolidos
por essa massa vegetal, inúmeras pessoas perderam suas
vidas. Se há um padrão inteligente atrás de tudo isso: por que
disfarçar? Por que desorientar? O mesmo medo de se perder que
obcecou Carpentier na selva perseguiu Borges no interior do
labirinto de seus sonhos. Refletindo sobre o poder do imaginário
para formar a realidade, Borges perguntava: por que alguém
construiria um lugar com o propósito de se perder nele?
Os caminhos da Amazônia implicam uma viagem de volta ao
passado, todo o caminho leva ao ventre materno, à vitalidade
difusa do lugar primevo. Antes de nascer, somos somente
um magma coletivo de entropia, uma imanência autônoma
fechada em si, sem transcendência ou individuação alguma,
evanescência absoluta de uma consciência subjetiva para dentro
do paradigma químico da não existência.
Mas a selva também é o lugar de nascimento, de exu­
berância e de ordem. A vitalidade brilhante de energias tropicais
improvisadas aspira à luz em busca da sobrevivência. O que
vemos simplesmente como “verde” denota a precariedade
das nossas limitações sensoriais e culturais para entender o
significado contido nesse conceito. Como a palavra “branca”
para os povos Inuit e Yupik do Polo Norte, os Tupi-guarani
têm (como muitas outras tribos também), no mínimo, nove
nomes diferentes para o que no nosso mundo nomeamos
de “verde”. Nesse universo verde, encontrei uma gama de
formações espontâneas que apresentam semelhanças com a
arte: as combinações de cores, formas e texturas de paradigmas
modernistas, a sensualidade da arquitetura orgânica com suas
acumulações sem forma de matéria, a luz mística do romantismo,
a voluptuosidade retorcida e o desafio da gravidade típicos da
escultura do barroco, o contraste e o intimismo de sua pintura, a
monumentalidade da arquitetura gótica.
Uma das primeiras e mais evidentes constatações com a
qual os seres humanos se deparam na selva é a de tomarem
consciência de que são comida para outras espécies. Igualmente
chocante é o encontro com insetos, pássaros, répteis, mamíferos
e até peixes que mostram formas imprevisíveis de empatia em
relação aos seres humanos. Muitas vezes, sinto-me cético em
relação ao problema do quanto disso pode ser traduzido nas
artes visuais. O desafio não é como melhor representar a selva
como uma imagem, mas sim como transmitir a experiência de
ser humano dentro da selva.
No interior da selva
“A selva era o mundo da mentira, da cilada e do falso semblante.
Ali tudo era disfarce, estratagema, jogo de aparências,
metamorfose.“
(Alejo Carpentier, Os passos perdidos, 1953)
A estimulação sensorial vivenciada dentro da floresta amazônica
é quase impossível de ser reproduzida em uma forma que
se aproxime verdadeiramente da experiência de “estar lá”.
Espaços são ambíguos, muitas vezes caracterizados por fortes
contrastes: enquanto folhas translúcidas refletem a luz do sol,
a maioria da vegetação fica na escuridão quase total, criando
silhuetas sobrepostas e sombras que se multiplicam em padrões
aleatórios e rítmicos. Inevitavelmente, a floresta é vista através
de formas que revelam tanto quanto escondem. Na floresta,
a mais penetrante sequência de funções miméticas encenase através de planos inesgotáveis. Atrás da superfície existe
um universo no qual tudo atua como algo diferente. Nesses
29/72
Novo Mundo Chegando ao Novo Mundo, nos deparamos com
um campo queimando ao lado da estrada. As chamas já tinham
baixado um pouco e havia agora mais fumaça e cinzas em
brasa. Os vizinhos da fazenda do outro lado da estrada tinham
trazido um tanque com água e com mangueiras regavam troncos
enormes parcialmente consumidos que jaziam no chão. A densa
toxidade no ar anunciava o presságio dantesco de uma tragédia
Passagens
Sergio Vega
O paraíso no novo mundo
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
que eu conseguia ler na expressão de seus rostos. Eles sabiam
que suas chances eram pequenas, mas mesmo assim esperavam
poder apagar o fogo antes que atravessasse a estrada e se
espalhasse pelas suas plantações de café. Se o vento decidisse
retornar, as chamas estariam em toda parte.
A comunidade Rochedo, no município de Novo Mundo,
constitui-se de algumas centenas de fazendas familiares. Essas
famílias instalaram-se com suas pequenas fazendas no local
durante os últimos cinco anos para tentar a sorte na agricultura
orgânica e no gado.
No caminho, encontramos Sebastião Roberto Soares, líder
da comunidade, que nos levou à fazenda onde seu irmão José
morava com a esposa e os três filhos. O campo inteiro estava
queimado exceto a casinha onde moravam, um barraco com
ferramentas e alguns gali­nheiros. José nos contou do evento
trágico com sobriedade estoica.
Aproximamo-nos de uma área de floresta onde o fogo
estava fora de controle. As chamas espalhavam-se rapidamente
na nossa frente queimando, em segundos, arbustos inteiros de
fo­lhas de um verde fresco. A força desatada do fogo devorando
uma floresta inteira revelou um espetáculo inesperado de
nuvens de fumaça coloridas. Os sfumatos abstratos de Turner,
que fundem distintos pigmentos em combinações etéreas, nunca
foram tão vívidos como ali. Montei o tripé para capturar a
paisagem quando o sol da tarde de repente rasgou as nuvens
grossas. Como previsto por Tiepolo, Apolo apareceu anunciado
por raios de sol majestosos e cavalgando sua triunfante
carruagem de cavalos dourados sobre as nuvens robustas da
destruição. O espetáculo visual não foi seguido por trompetes
angelicais, mas rompido pelo som inquietante de galhos
estalando no fogo em toda parte. Dada a proximidade do
incêndio, a respiração tornava-se extremamente difícil, também
porque enxames de insetos de todos os tamanhos passavam por
nós, picando-nos na fuga estrondosa.
No caminho de volta, uma grande árvore havia caído
queimando no meio da estrada. As chamas e a noite estavam
se aproximando rapidamente e fomos forçados a cortar um
caminho por meio de arbustos espinhosos para o carro poder
passar. Nos anos 1970, o desflorestamento da Amazônia tornouse o primeiro pecado contra a natureza a ser repudiado em
escala global. Quarenta anos mais tarde, essa mesma floresta
continua em chamas, queimando mais rápido do que nunca.
subjuga drasticamente a forma. As casas não são feitas de
tijolos, mas sim de caixas de papelão, cartazes de propaganda,
placas de rua, caixas industriais descartadas, pneus, galhos
de árvores e forros de plástico. O happening orgânico dessas
moradias procede de maneira fragmentária, e mesmo elas sendo
feitas de materiais descartados, nada realmente é descartado já
que tudo é transitório.*
A natureza cria semelhanças. Precisamos apenas pensar
em mimetismo. Porém, a maior capacidade para produzir
semelhanças vem do homem. Seu dom para descobrir
similitudes não é outra coisa senão um vestígio da compulsão
poderosa do passado por tornar-se ou comportar-se como algo
diferente. Talvez não haja função superior do homem na qual
sua faculdade mimética não exerça papel decisivo (vide ­Walter
Benjamin, “On the Mimetic Faculty”).
Mascarando presença, o ato de personificar outra coisa
serve à finalidade de construir um sinal de normalidade, uma
forma de falsa integração com o entorno. A maioria das espécies
camufla-se para evitar ser identificado como predador ou presa.
A precariedade artesanal de uma favela poderia dar lugar a
uma vasta gama de inovações. Não vai demorar muito antes
de vermos como as favelas copiarão formas arquitetônicas e
critérios estéticos das classes superiores. Revirando os ossuários
das ideias modernistas, uma cultura global de favelas poderia
emergir com o ímpeto de uma vanguarda pós-colonial.
Imagino que a graça materialista e ambiental dessa van­
guarda das favelas se basearia no ato benigno de dar uma
segunda chance aos ready-mades abandonados. Desafiando seu
status ontológico de escombros ao reciclá-los em moradias, esse
ato criativo sublimaria sua existência permitindo-lhes uma nova
vida dentro do reino inclusivo do collage. <
Saído da Toscana Depois do café, peguei um circular que
me levou com uma agonia ensurdecedora pelos subúrbios
empoeirados da cidade. Desembarquei em uma favela que se
estendia por um vale ocre e laranja, cores de um cartão-postal
do interior da Toscana. A vizinhança era rodeada por uma série
de prédios de classe média em cima de um morro paralelo a
uma grande avenida no outro lado. Longe de ser idílico, esse
panorama refletia uma lógica social incorporada na topografia
de uma paisagem em uma maneira literalmente vertical: as
casas dos ricos estavam no topo, as casas dos pobres ficavam
em baixo.
A estratégia antiestética do barraco é uma perversão do
collage, uma lógica pragmática na qual a urgência da função
30/72
* O autor estabelece uma analogia entre o caráter fragmentário
das construções de barracos e a estrutura retórica do collage.
Se a lógica da arquitetura moderna é primeiramente cartesiana,
a condição ontológica de uma favela é, pelo contrário, póscartesiana ou ainda de um caos posterior à ordem. Seus
materiais foram retirados do lixo descartado por outra classe
social.
Sergio Vega
O paraíso no novo mundo
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autor:
Sergio Vega (1959, Buenos Aires) participou do Independent
Study Program do Museu Whitney e obteve o título de Master
of Arts da Escola de Belas-Artes da Unviversidade Yale. Desde
1999 é professor de Fotografia, Escultura e Instalação da
Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Flórida.
Tradução do inglês::
Anna-Katharina Elstermann e ­Douglas Valeriano Pompeu
Informações adicionais sobre a ilustração:
Sergio Vega vem trabalhando há 18 anos em seu multifacetado
diário de viagem “Paradise in the New World”, no qual adota
uma postura crítica a respeito do mito do paraíso como âmbito
de beleza e salvação. Seu enfoque sensualista combina de
forma lúdica teoria, mito, experiências empíricas e crítica
social, numa montagem de discursos que revela o modus
operandi das ideologias colonialistas. Algumas partes desde
work in progress, que vem sendo desenvolvido desde 1995 e
inclui toda uma série de meios, como texto, fotografias, vídeos,
dioramas, maquetes e instalações, já foram apresentadas em
exposições internacionais. Por exemplo, em sua instalação no
museu Landschaftsverband Westfalen Lippe (LWL), em Münster,
em 2008, ocupou um lugar de destaque um barraco construído
com materiais descartados, que Vega queria que fosse visto
como “reflexão crítica de nosso presente colonizado”. Leia mais
em http://paradiseinthenewworld.blogspot.de e http://www.
sergiovega-art.net
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
31/72
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Isabel Rith-Magni
Passagens
32/72
A RECUPERAÇÃO
DO ASSOMBRO
As fotografias de viagem de Axel Hütte e Andreas Gursky constituem um
modelo alternativo diante da estranheza perdida em tempos de turismo de
massa e avalancha de instantâneos turísticos.
Axel Hütte, “Cayo-1, Belize”, 2007. Cortesia de Axel Hütte e Galerie Nikolaus Ruzicska, Salzburgo
De como se perdeu o assombro Antes, uma imagem de
“terras estrangeiras” era uma preciosidade rara para ser
admirada. No século XIX, quando a fotografia começou a se
desenvolver, fotos de viagem eram exemplares únicos e caros,
produzidos e vendidos como lembrança no local por fotógrafos
profissionais. Para o grosso dos viajantes, seria muito complicado
transportar o equipamento próprio, do aparato que consistia de
tripé, placas de vidro, produtos químicos até a câmara escura
portátil. A imagem do estranho ainda não era um bem comum, o
estranho ainda era estranho.
Hoje, no entanto, uma fotografia feita durante a viagem
requer um esforço mínimo. A consequência é que a safra global
Passagens
Isabel Rith-Magni
A recuperação do assombro
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
dos cliques de câmaras digitais abarrotou as memórias. A reação
a bilhões de fotos postadas no Facebook se reduz a apertar –
por puro reflexo – o botão “curtir”. Acabou-se o assombro.
de viagem, ainda se tratava de conhecer o que é estranho e
apropriar-se desse estranho pela via iconográfica, agora se
busca o oposto... pelo menos se consideramos a posição de
Andreas ­Gursky ou Axel Hütte representativa. Ambos pertencem
à chamada Escola de Düsseldorf, de cujos iniciadores, Bernd e
Hilla Becher, foram alunos na Academia de Artes daquela cidade.
Ambos são fotógrafos de viagem que não medem esforços para
encontrar a imagem desejada ao redor do globo. E têm mais uma
característica em comum: não trabalham como documentaristas.
O olhar induzido em tempos de turismo de massa Não
admira, pois, que seja impossível simplesmente ver a olho nu um
motivo clássico como a troca da guarda em frente ao Palácio de
Buckingham devido à aglomeração de gente que quer registrar
aquele “momento especial” erguendo suas câmaras digitais, a fim
de contemplá-lo depois na tela. Na foto, antes prova indiscutível
de um “testemunho ocular”, vemos o que poderia ter sido visto,
se as hordas de turistas não seguissem sempre as dicas dos
guias para a melhor foto no melhor momento e no melhor lugar.
O problema é que é difícil conciliar o anseio de exclusividade de
um olhar individual com uma viagem em grupo sem percalços.
Nesse sentido, o turismo promove a percepção seletiva, redu­
zida a alguns highlights, ou “lugares dignos de ser vistos”.
Surge assim um cânone reduzido de motivos iconográficos,
fotografados a partir de uma perspectiva convencional.
A estranheza perdida da imagem Com a enxurrada de
imagens – cuja produção, hoje, parece fazer parte das obri­
gações de qualquer viajante moderno – não apenas se perde
a “aura” no sentido de ­Walter Benjamin; ocorre também uma
transformação na categoria que, por falta de um termo mais
apropriado, chamaremos de “estranheza”.
O que não pode ser captado com as categorias da percepção
convencional – o que escapa ao cotidiano, coisas inéditas, surpre­
endentes, não usuais – torna-se algo pseudoconhecido por causa
da reprodução em milhões de vezes da imagem. A dimensão
do incompreendido e estra­nho, em forma de imagem, torna-se
“transportável” e se dissolve em algo puramente “pitoresco”. Em
uma época em que imagens do mundo todo são disponibilizadas
gratuitamente na mídia de massa, perdemos o assombro diante
do “estranho”.
Arte fotográfica enquanto estratégia de estra–
nhamento Naturalmente, não podemos equiparar a
mencionada mania de clicar em viagem – até certo ponto, um
efeito estético colateral do turismo de massa – com as fotos
de viagem artísticas, mesmo se as fotos dos leigos até podem
tocar mais a emoção do que uma imagem cuidadosamente
composta. O viajante que fotografa e o fotógrafo profissional
que viaja seguem parâmetros fundamentalmente distintos. Para
o clique rápido, as considerações estéticas são de importância
secundária, pois a prioridade é o valor de recordação.
Mas como a fotografia de viagem pode conservar sua
dimensão estética nas nossas abarrotadas memórias, eletrônicas
e humanas? Como uma imagem consegue não deixar de ser
vista na torrente do que é pseudoconhecido? Para suscitar
uma reflexão mais profunda, basta a exclusividade que uma
foto de arte sinaliza por estar numa galeria, em um museu
ou em um livro de arte, quem sabe magnificada em formatos
monumentais? Seria uma explicação insuficiente.
A resposta seria: é preciso restituir a estranheza ao que
é supostamente co­nhecido. Se, nos primórdios da fotografia
33/72
Axel Hütte: “Em terras estranhas” Consta que Axel
Hütte (nascido em 1951 na cidade de Essen) prepara meti­
culosamente suas viagens. A câmara escura móvel, que antes
era levada para revelar as fotos, em seu caso consiste em um
vasto conhecimento específico das diferentes regiões, que ele
adquiriu anteriormente nos mais diferentes campos. O desafio
consiste em dar ao olhar o frescor da primeira impressão, apesar
– ou melhor: com ajuda – dessa ingenuidade voluntariamente
perdida, para além de todos os clichês midiáticos e da préseleção daquilo que, supostamente, vale a pena ser fotografado.
O próprio Hütte expressou isso em uma entrevista em 2006:
“Sou mais um viajante que viaja através do tempo e do espaço. O
que me dá o enfoque é a viagem. Faz anos que me dei conta de
que teria que viajar 3.500 quilômetros para conseguir a imagem
que procurava. Uma vez que chego a um lugar, penso quais as
imagens são familiares e foram reproduzidas infinitas vezes,
porque é exatamente o que não quero fazer. Uma das razões que
me movem a fazer uma foto é que algo me pareça estranho”.
O desejo de se contrapor a um motivo estereotipado ou a uma
perspectiva previsível parece ter sido o estimulo para a série
En tierras extrañas, nascida em viagens realizadas entre 2004
e 2008. Abrange fotos feitas na Espanha e nas Ilhas Canárias,
assim como Belize, México, Novo México, Equador, Venezuela e
Chile. O próprio título já indica que o tema é a estranheza desses
lugares.
Hütte busca explorar figurativamente a essência do mundo
nos panoramas de zonas montanhosas áridas, bosques encobertos
pela névoa, desertos infindáveis, cavernas fantásticas, pântanos
tropicais e geleiras gigantescas. Não é acaso que suas paisagens
ermas, nas quais o observador se perde, lembrem Caspar David
Friedrich. Assim como os românticos, Hütte busca a expressão
poética de uma paisagem atemporal. Se evita que se possa
localizar exatamente a sua posição geográfica, isto se deve provavelmente ao fato de que o inspira a busca pela essência de
uma paisagem, encenada por ele como uma espécie de “visão
meditativa“.
Na época da fotografia digital, Axel Hütte adota uma singular
ambiguidade, pois suas fotos, embora tiradas com equipamento
analógico, dão a impressão, como diz Nikolaus Ruzicska, “de
manipulações digitais da realidade”.
Andreas Gursky: “Bangcoc” Assim como Hütte, Andreas
Gursky (nascido em Leip­zig em 1955) também emprega o local
onde surgiram suas fotos como título para suas composições,
como fez em sua série de nove fotos Bangcoc. A perspectiva
a partir de um ancoradouro ou uma ponte sobre os reflexos
Isabel Rith-Magni
A recuperação do assombro
luminosos de uma água turva e viscosa, onde flutua todo tipo
de lixo civilizatório, é apresentada ao espectador de uma forma
parcialmente estilizada que lembra quadros dos expressionistas
abstratos. Imaginamos, em função do título da série, que seja
o rio Chao Phraya que atravessa a capital tailandesa, mas
nada permite verificar essa suposição. Uma melhor localização
por meio de características geográficas é impossível, e iria
de encontro à essência dessas imagens, que condensam o
“mundo”. São fotografias fluviais no duplo sentido: fotografias
de (qualquer) rio e fotografias do fluxo da transitoriedade e do
tempo. As fotografias convidam à livre associação. Não admira
que um crítico de arte se lembrasse da mais existencial de todas
as viagens: “O Chao Phraya, que desemboca no mar, também
leva a uma fronteira, a fronteira da própria vida. Plúmbeo,
ameaçador, turvo, é também um rio mítico. Na Antiquidade,
recebeu o nome de Estige e separava o mundo dos vivos do
reino dos mortos”. (Andreas Rossmann)
Na série Bangcoc, o processamento manipulador das foto­
grafias digitais constitui um elemento essencial do processo
criativo, mesmo se o seu ponto de partida tenha sido uma ou
várias fotos instantâneas. Nesse sentido, nessas composições
a realidade captada (representação) se interpenetra indis­
soluvelmente – dentro de certos limites técnicos – com a criação
livre (ficção).
Isso é novo, já que a foto pré-digital de tempos passados
registrava uma dada situação, não aceitando – com exceção de
alguns retoques cosméticos – ser modificada substancialmente a
posteriori ou mesmo construída, ou seja, inventada.
Representação e imaginação, o segredo daquilo que
é digno de ser visto As fotografias de viagem de um
Andreas ­Gursky e um Axel Hütte têm outra função do que
documentar terras longínquas, como se fazia nos séculos XIX e
XX. Não relatam, mas “poetizam”, no sentido da palavra alemã
dichten, que contém a dimensão da densidade. Talvez esteja
aqui o segredo do estranhamento fotográfico. Não se trata
da categoria “recordação”, e sim “imaginação”, não se trata de
chamar à memória algo que já foi visto, e sim despertar o que
não foi visto. É o que torna essas fotografias, que não mostram
nenhum highlight, sejam elas próprias highlights, ou seja, dignas
de ser vistas. <
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
34/72
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autora:
Isabel Rith-Magni é historiadora da arte, especializada em arte
moderna e contemporânea europeia e latino-americana. Desde
1993 é redatora responsável da revista HUMBOLDT. Desde 2004
leciona no Instituto de Tradução e Comunicação Multilíngue da
Universidade de Ciências Aplicadas de Colônia e, desde 2012,
também na Universidade Alanus de Arte e Ciências Sociais.
Tradução do alemão:
Kristina Michahelles
Informações adicionais sobre a ilustração:
Axel Hütte – “Em terras estranhas” “Ainda que o título mencione
na maioria dos casos o lugar em que cada obra foi realizada,
as fotografias de Axel Hütte não são reproduções de paisagens
manifestas, ou seja, da realidade factual; são antes fantasias
desfocadas que confiam na imaginação do observador. Desse
modo, a arte de Axel Hütte conduz também à questão da
relação entre a realidade, a percepção individual e a imagem
fotográfica.” (Nikolaus Ruzicska)
A fotografia foi realizada em viagem à América do Sul e Central
e fez parte da exposição “En tierras extrañas”, apresentada na
Fundación Telefónica, de Madri (2008), e no Institut Valencià
d’Art Modern (IVAM), de Valência (2009).
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Christoph Otterbeck
Passagens
35/72
SOBRE EXPEDIÇÕES CIENTÍFICAS
E EXPERIMENTOS ESTÉTICOS
Imagens de viagens às Américas.
Um breve apanhado da história da arte.
Grete Stern, “Mujer chorote” Tartagal, Salta, 28 de agosto de 1964; Coleção Matteo Goretti.
Foto: Cortesia de Matteo Goretti e Fundación CEPPA, Buenos Aires
A partir do início da Idade Moderna, começaram a surgir na
Europa folhetos, escritos e livros com imagens e relatos sobre
os países da África, Ásia e das Américas. Ao contrário dos
autores dos textos, os criadores das imagens foram durante
muito tempo artistas gráficos que nunca haviam saído da
Europa. Eles transfiguravam os exemplos que conheciam,
no sentido daquelas ideias que tiravam da leitura dos textos,
às vezes com a ajuda de esboços e objetos que tinham sido
trazidos para a Europa. Uma descrição figurativa exata das
regiões não europeias do mundo não fazia parte das aspirações
culturais centrais da Europa. Os poderosos, ricos e cultos do
Velho Mundo saciavam a curiosidade em relação ao “exótico”, ou
seja, ao novo que vinha de longe e era até então desconhecido,
colecionando provas da existência do Novo Mundo, artefatos,
bem como animais, plantas e minerais. Ao grupo em constante
crescimento dos viajantes que seguiam para além-mar, os
artistas agregaram-se consideravelmente tarde, bem depois que
comerciantes, mercenários, colonos e missionários já haviam
estado ali. Os pintores Albert Eckhout e Frans Post, por exemplo,
acompanharam ao lado de alguns cientistas o governador
holandês Maurício de Nassau, que dirigiu a filial brasileira da
Companhia das Índias Ocidentais entre 1637 e 1644. Eckhout
e Post trabalharam na documentação em imagens da colônia,
com seus moradores, flora e natureza circundante. No grupo
Passagens
Christoph Otterbeck
Sobre expedições científicas e experimentos estéticos
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
em torno de Maurício de Nassau, já vigorava a combinação
típica de interesses políticos, econômicos e científicos, que se
tornaria mais tarde típica do colonialismo. A maioria dos artistas
em viagens para lugares longínquos, a partir de então, fornecia
suas imagens com base em sua experiência como participantes
de expedições em contextos como este. Uma exceção foi
Maria Sibylla Merian, cujo sério interesse pela natureza e pela
observação exata do reino dos insetos levou-a a uma viagem ao
Suriname.
de ver o próprio mundo ao redor com outros olhos. Na era do
desenvolvimento rápido de estilos de vanguarda, os artistas na
Europa passaram a usar a estética de culturas não europeias
como inspiração, mas independentemente de terem realizado
viagens a tais destinos. A gama de exemplos seguidos ia de
trabalhos sofisticadamente ornamentados, como por exemplo
em metal ou cerâmica, até obras de formas elementares em
pedra e madeira. Os artistas dedicados aos experimentos do
início do século XX entusiasmavam-se com grande fascínio
pelas formas de todos os tempos e povos que não estivessem
atreladas às premissas da estética acadêmica. Ninguém que
estivesse envolvido nesse processo fecundo de criação
intercultural de formas tinha, para isso, que fazer viagens
a lugares distantes. As coleções de seus lugares de origem
pareciam já conter todos os recursos necessários. O auge do
modernismo nas artes transcorreu paralelamente ao auge
do colonialismo. No chamado primitivismo da modernidade,
manifestava-se uma crítica ao estado da própria cultura. Ao
mesmo tempo, os artistas modernos participavam, com suas
apropriações das estéticas de outras culturas, das práticas de
exploração generalizadas e vistas como óbvias. Mais uma vez,
ficava evidente a ambivalência fundamental do exotismo.
Embora no início do século XX incontáveis artistas modernos
europeus tenham feito viagens para além das fronteiras do
próprio continente, eles não tiveram suas vivências estéticas
decisivas durante essas viagens que, por exemplo, levaram
Henri Matisse, Wassiliy Kandinsky e Paul Klee a países do
Oriente, Klee e ­Macke ao Norte da África ou Emil Nolde e Max
Pech­stein aos Mares do Sul. Essas viagens geraram certamente
seus frutos, e seus resultados foram assimilados com sucesso
pelo mundo da arte. No entanto, a estilização de tais viagens,
que escritores e especialistas tentaram apontar como pontos de
mudança centrais do desenvolvimento destes artistas, não pode
ser constatada quando se analisa a obra dos mesmos com maior
precisão crítica. Tem-se muito mais a impressão de que o forte
interesse pelos quadros então surgidos se devia sobretudo à
atratividade do universo de motivos.
Entre centro e periferia Até fins do século XVIII, os artistas
só deixavam a Europa em casos excepcionais. Dentro do ve­lho
continente, restava sobretudo um tipo de movimento dominante:
quem quisesse ser bem-sucedido, aspirava a uma viagem a um
centro artístico, ou seja, a um principado ou a uma grande cidade
comercial. Durante muito tempo, uma viagem à Itália era vista como
encerramento pomposo da formação acadêmica e mais tarde até
mesmo como forma de autoconhecimento. No decorrer do século
XIX, orientar-se pelas novas tendências dos acontecimentos das
artes em Paris foi se tornando cada vez mais importante. E na
esteira de um colonialismo mais acirrado, cada vez mais artistas
europeus passaram a fazer viagens para países distantes. Eles
acompanhavam a expansão política e documentavam a posse
de terras. Principalmente imagens do Oriente Médio e da Índia
despertavam grande interesse nas exposições das metrópoles
dos impérios coloniais. No geral, contudo, encontram-se antes
de Eugène Delacroix e Paul Gauguin poucos nomes entre os
artistas que viajaram para terras distantes – um sinal claro de
que o circuito das artes de então não via nenhuma relevância na
realização dessas viagens. Ou seja, elas eram possíveis, mas não
necessárias. Estímulos importantes para os pintores em viagem
vieram do pesquisador da natureza Alexander von Humboldt. Ele
tinha esperanças de que a pintura de paisagens atingisse um novo
tempo áureo, caso os artistas se aventurassem mais por viagens
pelos trópicos. Para Humboldt, a tarefa mais importante neste
contexto era juntar os detalhes e fragmentos a essas alturas já
conhecidos em imagens completas coerentes. Seu ideal era uma
combinação de exatidão na observação de formas individuais e
autenticidade nas grandes composições que eram criadas a partir
destas formas. O resultado artístico final, para ele, dependia do
sucesso de duas fases: durante as viagens, reuniam­­-se esboços,
impressões e estudos; depois do retorno, as obras iam sendo
criadas até nos mínimos detalhes, a partir da reunião deste
material. Humboldt encorajou e incentivou diretamente alguns
artistas que escolheram destinos de viagem na América Latina,
entre eles Johann Moritz Rugendas, ­Ferdinand Bellermann,
Eduard Hildebrandt e Albert Berg.
Caminhos rumo à modernidade No decorrer do século
XIX, a evolução da história da arte distanciou-se, contudo, das
aspirações de Humboldt. A fotografia passou a assumir cada vez
mais as tarefas documentais. O olhar sobre o detalhe foi sendo
gradualmente relegado a segundo plano em prol da visualização
de uma impressão fortuita ou de uma atmosfera característica.
A representação de novos e distantes horizontes passou a
entusiasmar menos a maioria dos artistas do que a possibilidade
36/72
Fuga da Europa Um movimento grande, decisivo para
muitas biografias de artistas, intercultural e muitas vezes
transatlântico, se deu a partir de 1933, com a fuga e expatriação
de uma parte significativa da vanguarda artística da Europa em
consequência do regime nazista na Alemanha. Marc Chagall,
Salvador Dalí, Max Ernst, László Moholy-Nagy, Piet Mondrian e
muitos outros seguiram para os Estados Unidos.
Alguns dos artistas emigrados se envolveram intensamente
com as culturas indígenas. Josef e Anni Albers, que haviam antes
dado aulas na Bauhaus, fizeram diversas viagens ao México e a
outros países latino-americanos, a partir dos EUA, durante as
quais fotografaram a arquitetura pré-colombiana e coletaram
objetos arqueológicos, além de tecidos. A linguagem das formas
inspirou parte das obras gráficas e de pintura abstrata criadas
por Josef Albers, bem como as tecelagens de Anni Albers.
Outros artistas voltaram seus olhos mais para as mani­
festações contemporâneas das formas de vida indígenas. Grete
Stern, fotógrafa emigrada para a Argentina, havia estudado na
Christoph Otterbeck
Sobre expedições científicas e experimentos estéticos
Bauhaus e se dedicado na Europa tanto às artes publicitárias
quanto a composições fotográficas livres e naturezas-mortas.
Na América, ela se voltou com mais afinco ao retrato e à
fotografia arquitetônica e de paisagens. Mas sua mais completa
documentação fotográfica foi feita voluntariamente, sem qual­
quer incumbência externa, sobre a população indígena do
Chaco argentino, numa série de mais de mil fotos. Este trabalho
foi realizado a partir de uma motivação tanto política quanto
estética. Grete Stern quis mostrar aos argentinos que havia
uma parte indígena do país e em que condições precárias
muitas dessas pessoas viviam. Ao mesmo tempo, ela prestou
um tributo às habilidades artesanais e artísticas da população
indígena, especialmente nos setores de cerâmica e tecelagem.
Os objetos por ela fotografados são marcados por uma estética
elementar, que parece semelhante àquela das obras dos artistas
da Bauhaus.
Imagens de um outro mundo No imaginário europeu, a
“América” surgiu há séculos como alternativa inesperada. Desde
os primeiros encontros, medos e esperanças foram canalizados
para o novo continente. As imaginações associadas a isso são
até hoje eficazes, muita vezes alternadas com imagens concretas
cada vez mais profusas. A frequência das viagens aumenta. Isto
possibilita aos europeus uma inversão da perspectiva corrente,
aliada a uma percepção mais intensa da arte e da história da arte
dos atores não europeus. <
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
37/72
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autor:
Christoph Otterbeck é historiador da arte e diretor do Museu de
Arte e História da Cultura da Universidade Philipp de Marburg.
Escreveu, entre outras, a obra Europa verlassen (2007), que se
ocupa das viagens de artistas no início do século XX e, juntamente
com Angela Weber, o artigo “Vom Bauhaus nach Argentinien”,
sobre Grete Stern e sua documentação fotográfica das culturas
indígenas do Gran Chaco (1958–1964).
Tradução do alemão
Soraia Vilela
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Verena Kast
Passagens
38/72
LUGARES DO ANSEIO
Viagens dos sonhos e sonhos de viagem: como interpretar
psicologicamente a sede do desconhecido e sua contrapartida,
a saudade de casa?
Dias & Riedweg, “Água de Chuva no Mar”, captura da videoinstalação. © 2012
Quem nunca experimentou isto? O nome de um lugar provocando
uma atração mágica. Às vezes basta uma palavra interessante:
Timbuktu, Zanzibar, Ilha de Páscoa, Uagadugu. Pelo menos uma
vez na vida temos que viajar para lá – ou não. Afinal, viajar para
algum desses lugares pode ser motivo de de­cepção. O lugar não
faz jus ao que tí­nhamos imaginado.
Com nossos lugares dos sonhos, fazemos associações
precisas. É que criamos essas localidades justamente por meio de
nossa imaginação, e quando temos uma capacidade imaginativa
viva, chegamos até mesmo a “conhecer” o cheiro do lugar. E
também sabemos como nos sentiremos lá – simplesmente
felizes; às vezes até sabemos quem encontraremos lá.
Esses lugares aspirados têm uma cor­respondência em pro­
cessos psíquicos que adquirem – por meio do anseio – uma
forma mais ou menos real. É por isso que eles têm uma ligação
ora maior ora menor com o lugar concreto no mundo real no
qual esse anseio é projetado e que possibilita situá-lo.
Algumas pessoas também vivenciam esses lugares do anseio
em sonho. De repente a pessoa está em sua casa de férias,
decorada de modo característico, no alto de um rochedo sobre
o mar. No so­nho, a pessoa fica feliz de revisitar esse espaço
que ela conhece muito bem, a não ser por um detalhe mínimo
que chama sua atenção: aí tem algo de errado... Ao acordar,
constatamos que essa casa não é nossa, que uma casa assim
nem poderia existir, mas mesmo assim temos a convicção de
que é a nossa casa: a casa do anseio, que já se materializou, que
pode ser imaginada e preenchida com emoções bem especiais,
como a sensação de regressar ao lar, encontrar paz, conquistar a
alegria... A casa é um símbolo de nós mesmos, da nossa situação
específica de vida.
Passagens
Verena Kast
Lugares do anseio
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Nostalgia e anseio O que move o ser humano é o anseio.
As pessoas estão sempre em movimento e, portanto, sempre a
caminho. O anseio nos mostra direções nesse movimento. É uma
forma de relação com o futuro, transcende em grande medida
o aqui e o agora, pois imaginamos algo que está no futuro e
ainda bem distante. Esse anseio vive da imaginação. É nele que
se revelam nossas possibilidades de desenvolvimento, nossos
potenciais, mas também aquilo que está pendente, que ainda
não se realizou e que falta para uma vida que nos parece plena
e significativa. Se conseguíssemos conquistar o que esse anseio
nos faz aspirar, então não teríamos mais anseios. Mas podemos
ter certeza de que, enquanto vivermos, sempre faltará alguma
coisa, que sempre haverá algo a se realizado, que o anseio
sempre permanecerá, mesmo que o objeto da nossa aspiração
venha a mudar ao longo do tempo. A vida é finita – o anseio,
contudo, quer o infinito, a plenitude. Trata-se de uma busca e de
uma vontade de algo que preencha plenamente; é a ponte que
liga o aqui e o agora ainda incompletos a um “depois” concebido
como pleno. E esse “depois” pode se concretizar quando fazemos
uma determinada viagem, quando conhecemos realmente um
lugar bem específico no qual também nos vivenciamos de modo
diferente e aprendemos a nos apreciar e amar.
Em geral, as aspirações que temos são menos definidas do
que uma viagem concreta: anseio de amor, do longínquo, do
estrangeiro, da vastidão, de um lugar originário e aconchegante,
de liberdade interior, anseio de ser uma pessoa completamente
diferente, de ter uma vida “totalmente outra”, de ter sentimentos
impetuosos, anseio de intensidade, de sentido – ou simplesmente
de tranquilidade. E os alvos do anseio se conectam uns aos
outros.
Em alemão o anseio está associado à dor [Weh, em alemão], o
que se manifesta em palavras como Heimweh [saudade de casa]
ou Fernweh [sede do desconhecido]: ou em casa – algo que ainda
deve ser encontrado – ou em algum lugar longínquo, achamos
poder encontrar o que nos tornará “inteiros”. Sabemos que o
anseio como um todo nunca será realizado. Se os nossos anseios
se vincularem a imagens concretas, então surgem certos desejos.
A isso está ligada a expectativa de que esses desejos precisam
ser realizados, a fim de que a vida possa ser considerada bemsucedida. Em certas circunstâncias a pessoa se vê, no entanto,
obrigada a constatar que não encontrou o que procurava –
mesmo que não se torne muito nítido o que, de fato, almejava.
Após uma viagem que sempre quisemos fazer, chegamos à
conclusão de que não era bem aquilo que realmente buscávamos.
De qualquer forma, temos sempre aquela alegria antecipada, e
psicologicamente esta é a alegria mais intensa que se pode ter. A
alegria prévia é algo que ninguém pode tirar de nós, a não ser nós
mesmos, quando – por medo de decepção – não nos permitimos
senti-la. Às vezes vinculamos a decepção a certas circunstâncias,
ao tempo, aos companheiros e companheiras de viagem. Mas por
trás disso há algo mais: uma nova meta tem que ser definida, um
novo desejo tem que ser seguido, na esperança de que seja isso
que – meio inconscientemente – buscamos de fato.
Também pode acontecer de não alcançarmos o nosso objetivo
e não preenchermos a nossa expectativa, mas mesmo assim
considerarmos positivo o cami­nho e o avaliarmos como uma boa
experiência de vida. Afinal, tivemos um contato profundamente
tocante com as pessoas, um contato que talvez tenha até mudado
as nossas vidas. No entanto, o anseio não deixará de ter outros
destinos. Do ponto de vista psicológico, trata-se de fantasiar
possibilidades que poderiam estar ligadas ao nosso self. Não existe
apenas um self que já desenvolvemos – também existe um “self
possível”, que se revela em nossas expectativas e por meio de
uma visão inspiradora de uma outra vida que também poderia ser
nossa. Nas diferentes expectativas, são estabelecidas por assim
dizer metas em etapas. O anseio é uma expressão de que sempre
estamos nos esboçando de modo novo tendo em vista o futuro,
que estamos em um desenvolvimento contínuo no qual sempre
vêm se ativar novos âmbitos de vida. O anseio atribui uma forma
imaginativa aos temas da vida. O interesse, quando passional,
impulsiona, proporciona que realizemos concretamente os temas
da vida ao longo do tempo e que encontremos para eles lugares
de vida habitáveis. A esperança e o entusiasmo proporcionam
que os temas da vida sejam guiados para o melhor, apesar das
resistências e do medo.
39/72
A viagem exterior, o caminho interior — ou viceversa O anseio – como o descrevi até então – nos conduz
a uma via de desenvolvimento e nos mantém em movimento.
Sempre estamos a cami­nho. Por vezes, achamos que chegamos
de vez, descansamos, apreciamos a situação, e então partimos
de novo. O que parece ser etapas de uma viagem também pode
ser entendido como uma dinâmica interior do ser humano, como
movimentos que são próprios de nós humanos.
Certas pessoas percorrem esses cami­nhos sobretudo no mundo
exterior, mudam a si mesmas por meio de viagens, conhecem
países estrangeiros e forasteiros, e assim entram em contato
com facetas da própria psique que ainda desconheciam. Por meio
daquilo que projetamos no que nos é estranho e nos estrangeiros,
o estranho em nós se torna visível e pode vir a se tornar familiar.
Esses trajetos no mundo exterior voltam a influenciar nossas
imagens interiores, nossos sonhos e imaginações – a saber, como
fantasias de partida, de buscar o caminho e encontrá-lo, ou não.
Imaginamos em sonho o medo de nos perder, ou alívio quando o
caminho se abre; entusiasmo, quando encontramos um lugar que
promete aconchego ou é muito bonito; ou desespero, quando um
caminho termina em um precipício, um beco ou na escuridão.
As experiências em sonho não são tão diferentes daquelas que
fazemos ao partir e viajar de fato. Afinal, o sonho também trata
da vida cotidiana, daquilo que é fundamentalmente importante
para as pessoas. Quando dormimos, contudo, as experiências
e as imagens podem ser conectadas de um modo complexo,
algo que não conseguiríamos na vigília. Diferentes sistemas de
memória podem interagir, possibilitando que se engendrem no
sonho associações criativas, peculiares.
Numa viagem real, quando – por exemplo – não há mais
meios de transporte disponíveis, quantas vezes desejamos que
tudo seja apenas um sonho, pois então daria pelo menos para
acordar e apenas refletir sobre o significado do sonho.
Podemos vivenciar medo, ou pelo menos apreensão e alegria
esporádicas, em viagens – em sonho mas também na realidade.
Na realidade, entretanto, partimos do pressuposto de que uma
Verena Kast
Lugares do anseio
viagem nos traga sobretudo alegria. Alegria é uma emoção que
sentimos quando a vida é melhor, mais bela, mais intensiva, mais
harmônica do que se esperava. E na alegria também estamos
em conformidade conosco, com as outras pessoas e com o
mundo enfim. E esse sentimento – que nos proporciona uma
boa experiência interior, que nos ajuda a lidar melhor com as
adversidades – é justamente o sentimento que buscamos. E de
vez em quando realmente o encontramos... muitas vezes após
termos passado por uma fase de inquietude. Na alegria que
vivenciamos, encontramos de fato um lugar que almejávamos.
Então chegamos concretamente ao nosso destino de viagem. <
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
40/72
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autora:
Verena Kast (1943 Wolfhalden, Suíça) é psicoterapeuta, pro­
fessora do Instituto Carl Gustav Jung de Zurique e presidente da
Sociedade Internacional de Psicologia Analítica.
Tradução do alemão:
Simone de Mello
Informações adicionais sobre a ilustração::
“Água de chuva no mar” O vídeo do duo artístico Mauricio Dias
(1964, Rio de Janeiro, Brasil) e Walter Riedweg (1955, Lucerna,
Suíça) foi realizado em Salvador da Bahia, na favela Unhão, e
mostra conversas com mulheres negras que passaram a vida
lavando e passando roupa para os brancos de classe média
da Bahia. São uma parte, quase invisível mas fundamental, do
sistema de exploração que caracteriza a sociedade oligárquica
do Nordeste do Brasil. No candomblé, na festa da deusa da água
Iemanjá, que pode se revelar nos sonhos, a água se converte em
força e metáfora principal da mudança social e da espiritualidade
na vida, e com isso em fio condutor do andamento narrativo da
história.
Germán Kratochwil
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
41/72
A MIGRAÇÃO ONTEM E HOJE
A dor “amadurecida” da partida e seus paliativos na era digital.
Buenos Aires, Hotel de Imigrantes em torno de 1905. Foto © Coleção Deutsches Auswandererhaus
Viagem e migração “Das Wandern ist des Müllers Lust...”*,
cantam as crianças, que animadas pela mãe atravessam os
bosques e prados, sempre em direção ao Castelo Kreuzenstein,
orgulho de seu pequeno povoado natal nos arredores de Viena.
Mas logo irão fugir dos soldados russos, refugiar-se numa aldeia
distante na região da Estíria, fingir que são bons católicos para
não serem hostilizados pelos nativos, até que sua alegria de
andari­lho se converta em emigração. A bordo de um navio,
embalados pelo barulho de gente e línguas estranhas, partem
de Gênova numa volta ao mundo, cruzando o ­Atlântico, até
chegar num país distante, que as crianças conhecem apenas de
um selo: uma pequena mancha branca, cujas bordas lembram
uma casquinha de sorvete. Uns parentes abastados enviaram as
passagens da Argentina para os famintos da Áustria pós-guerra
predizendo um futuro pacífico e promissor na nova pátria.
As crianças logo aprenderam o espa­nhol, mas a mãe ciosa
não queria que de­saprendessem a língua materna, esquecessem
sua origem. Reprovava a maneira como muitos imigrantes de
língua alemã se excediam no afã da integração – a uma nação tão
incoerente que afirmava sem constrangimento que sua população
mista desembarcara dos navios. E decidiu que elas tinham de ler
autores alemães e austríacos como Karl May, Bruno Brehm ou
Peter Rosegger.
Desse tesouro da juventude, ficou gravado na minha memória
o conto de ­Friedrich Gerstäcker “Germelshausen”. Um jovem
pintor encontrou durante suas andanças na saída de uma aldeia
uma jovem muito bonita. Ele a acompanhou até a praça central,
onde havia uma animada festa. Mas ele desconhecia a lenda da
aldeia amaldiçoada que emergia a cada cem anos do pântano
para submergir novamente, após a meia-noite. Assim aconteceu,
Passagens
Germán Kratochwil
A migração ontem e hoje
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
de repente, e como ao despertar de um sonho o apaixonado se
viu em meio ao pântano, solitário, lembrando-se com uma dor
profunda da sua perda. Somente muitos anos depois, descobri
o comentário do filósofo alemão Ernst Bloch sobre este conto
em Spuren (Vestígios, 1969): “Não conheço nenhuma história mais
bela sobre a partida, sua melancolia precisa, seu possível declínio,
ou mesmo o amadurecimento sonhador de suas imagens”. Referese a isto com as tocantes palavras: “Partir é sentimental em si.
Mas sentimental com profundidade, um trêmulo indiferenciável
entre aparência e profundidade”.
Há pouco tempo me dei conta então por que a história de
Gerstäcker me acompanhou com tanta insistência: ela expressava
a dor do partir. O momento da nossa partida fora um burburinho
de atividades e vivências novas. Só o posterior amadurecimento
sonhador transformou a viagem em emigração. Naquele mo­
mento, contudo, não podia imaginar como estes processos
mudariam em nosso século.
Viagem e migração são conceitos que só se diferenciaram
em um longo processo histórico. Depois teve início uma enxur­
rada de obras de emigrantes, especialmente crônicas e cartas. Os
motivos são repetidos infinitamente, a descrição do sofrimento
e da alegria, do sucesso e do fracasso dos personagens. Tudo se
passa naquele estrangeiro ameaçador, prometedor e, no final, tão
cotidianamente banal. Mais tarde veio a fotografia, multiplicaramse os semblantes pálidos, melancólicos, cujos nomes logo caíram
no esquecimento. E a documentação atingiu o auge patético com
os primeiros filmes, onde os movimentos entrecortados dos
migrantes pareciam conferir dramaticidade a seus passos.
exilaram Erik na distante América do Sul, porque, segundo as
explicações do casal Jens, ele “contraíra dívidas [em apostas de
corridas de cavalos], saldara com notas promissórias sem fundos
e por fim empenhara as joias da família”. Mas pouco tempo
depois, as notícias que chegavam sobre Erik eram preocupantes.
Sem vacilar, a senhora Pringsheim embarca no Cap Arcona.
Chegando ao destino, mãe e filho percorrem os pampas,
empreendem a difícil travessia dos Andes de trem e mula até o
Chile. Erik compra finalmente uma fazenda na distante província
de San Luis. Com grande sentimento de incerteza, a mãe retorna
a Munique. E em breve chega o fatídico telegrama: Erik morreu.
De insolação, após uma cavalgada selvagem? Envenenado?
Perguntas a que poderíamos ter encontrado respostas em
Thomas Mann, mas o seu romance ­Felix Krull, em que ronda o
fantasma de Erik, ficou inacabado.
Aimé Bonpland e Erik Pringsheim: duas histórias de
migração Dessa torrente caudalosa de obras, mencionarei
aqui apenas duas histórias. A primeira remonta a janeiro
de 1817, quando Aimé Bonpland desembarca do bergantim
francês Sainte Victoire e galga a margem enlameada e íngreme
até Buenos Aires. De novo no continente, desta vez, sozi­nho.
Seu famoso companheiro na viagem científica por regiões da
América do Norte e do Sul, o barão Alexander von Humboldt,
brilha soberanamente em Paris e Berlim. Mas ele – o jardineiro
de Malmaison, o confidente da abandonada imperatriz Josefina
– traz no bolso somente um contrato público duvidoso e busca,
como outros compatriotas depois da queda de Napoleão, um
solo hospitaleiro. Bonpland veio para ficar – e fica até a morte,
quarenta movimentados anos depois. Primeiro é feito prisioneiro
durante dez anos pelo paranoico Supremo do Paraguai, Gaspar
Rodríguez de Francia. Suspeitou-se que era um espião e agente
perigoso que viera para acabar com o monopólio paraguaio da
erva-mate. Assim que é solto, desenvolve o primeiro cultivo
industrial de mate na Argentina, lança-se ao árduo trabalho
pioneiro em um leprosário numa ilha no rio Uruguai e se
transforma, finalmente, em próspero criador de gado.
A segunda história é a chegada a Buenos Aires, noventa
anos depois de Bonpland, de Hedwig Pringsheim em busca de
seu filho Erik (o irmão mais velho de Katia, esposa de Thomas
Mann). Pringsheim registrou as peripécias de sua viagem a partir
de Munique em 1907–1908 em um diário vivaz, resgatado por
Inge e Walter Jens em seu livro de 2006 sobre o tema. Os pais
42/72
Emigrante e imigrante, morte e nascimento Expulsão,
exílio, asilo político, seus encargos financeiros, intelectuais,
pessoais e sociais, embora todos sejam fenômenos migratórios
e possam ser vistos como variantes patológicas dos traslados
normais, eles transcendem para outros campos de análise.
Um escritor multifacetado e brilhante como Hans Magnus
Enzensberger só tratou brevemente desses temas e centrado
em referências etimológicas no ensaio A grande migração (1992).
No exílio, se misturam a tristeza, a paixão, a dor por sofrer
um destino injusto com expressões de indignação cega até a
autocompaixão, como documentaram León e Rebeca Grinberg em
1984: o exílio pode ser visto como o nódulo dramático no tecido
migratório entre as nações. E em nenhuma parte do mundo,
as normas e a prática do exílio chegaram a ter um tratamento
mais sensível, cuidadoso e favorável do que na América Latina:
a possibilidade do exílio e a prática inversa do asilo político
constituem ali os poucos momentos de luz e esperança no
panorama do tratamento intolerante e egoísta geralmente pres­
tado às correntes migratórias entre sociedades e nações.
Ao contrário do exilado, o emigrante aceita se transformar
em imigrante: o “de onde” e o “para onde” definirão para sempre
a sua personalidade. O exilado pode sentir o ostracismo como
uma morte, para o imigrante isso pode significar um segundo
nascimento. Ele elabora uma nova identidade, um patchwork
nem sempre coerente, feito de retalhos da procedência e
da chegada. No seio da cultura familiar dos imigrados, estes
contrastes podem ser discutidos e reelaborados por gerações a
fio. Então, a origem pode se transformar em mito e a chegada
em epopeia.
Aquele menino que eu fui, que cantava durante suas
excursões pelo mundo, se vê depois trabalhando em Genebra,
na Organização Internacional para as Migrações (IOM), que se
ocupa das variantes e dos problemas da migração internacional.
E seja de forma voluntária ou forçada, legal ou ilegal, sob
governança ou em condições caóticas, mais de 200 milhões de
pessoas – metade mulheres – em todo o mundo vivem em estado
migratório, dez por cento ilegais, 16 milhões como asilados.
E este panorama inclui o tráfico de pessoas, deportações,
deslocamentos violentos, escravidão – ações criminosas
que movimentam mais dinheiro que muitas multinacionais –,
Germán Kratochwil
A migração ontem e hoje
e as explosões de intolerância racial, religiosa e política entre
migrantes e populações locais que envenenam a convivência em
muitos centros urbanos. Geralmente as políticas se seguem aos
fatos, com atraso, desorientadas e tolas. Talvez o perito possa
destacar alguns aspectos mais positivos, como as remessas de
uns 440 bilhões de dólares anuais, enviados pelos migrantes a
seus países de origem, um fluxo de divisas que em vários deles
supera a soma de suas exportações.
Distância geográfica e proximidade virtual Mas, além
disso, na migração internacional aparecem novas tendências,
vinculadas aos múltiplos processos de globalização. Como
mostra Saskia Sassen em Territory, Authority, Rights (2006), as
redes globais das megacidades, cada vez mais homogeneizadas
tecnológica e culturalmente, a ampliação do alcance de normas
do direito internacional, os mercados de trabalho transnacionais
e a globalização de muitos conteúdos culturais produzem novas
– e melhores – condições para a circulação de pessoas. Este
mundo em surgimento e expansão foi explorado por Ulrich
Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim em seu recente estudo Amor a
distância (2012), onde eles se perguntam como será a circulação
das pessoas e a migração nos tempos do ciberespaço. O homem
se descobre como um ser vivente capaz de satisfazer uma
grande quantidade de necessidades no espaço virtual por ele
criado. Estas condições novas afetarão a migração. Por exemplo,
as “famílias mundializadas” dos Beck sofrem menos com a
multiplicidade cultural e os movimentos territoriais, frustramse menos com problemas de comunicação. As distâncias se
reduzem graças aos modernos serviços eletrônicos. E, com a
aproximação e homogeneização dos conteúdos culturais, di­
minuem as incertezas, os medos e desconcertos perante o
estrangeiro. Especialmente as novas gerações se deparam cada
vez mais no estrangeiro com o conhecido e resolvem com maior
simplicidade a problemática da busca da identidade.
Onde a criança migrante antes sofria com a dor da partida,
hoje ela encontra a alegria com um iPad ou smartphone. Só é
preciso tê-los. Se antes os imigrantes faziam esforços para se
adaptar, hoje estes foram substituídos pela exigência de parti­
cipar. Ao tocar a tela de seus aparelhos, a dor de sua partida
diminui ante o encontro com um mundo virtual familiar. <
* “Caminhar é a alegria do moleiro...”, antiga canção alemã cantada pelos aprendizes viajantes que per­corriam a Europa, completando o ciclo de sua formação como artesãos.
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
43/72
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autor:
Germán Kratochwil (1938, Korneuburg, Áustria) emigrou na
infância para a Argentina. Vive em Buenos Aires e na Patagônia.
Em 1973 doutorou-se em Ciências Sociais em Hamburgo e
trabalhou para diversas organizações internacionais na América
Latina e na Alemanha. Seu primeiro romance, Scherben­gericht,
indicado para o Prêmio do Livro Alemão, foi publicado em Viena
em 2012; em janeiro de 2013, seguiu-se o romance Río puro.
Tradução do espanhol:
Maria José de Almeida Müller
Informações adicionais sobre a ilustração:
O cartão-postal pertence ao acervo do Deutsches Auswanderer­
haus Bremerhaven Este museu na cidade de Bremerhaven
mostra mais de 300 anos de história da imigração e emigração.
A partir de biografias reais, o visitante pode colocar-se no lugar
das pessoas que partiram para o Novo Mundo ou chegaram à
Alemanha confiando num futuro mais próspero. Reconstruções
fidedignas, como a entrecoberta de um barco a vela de 1854
ou a estação de imigração de Ellis Island de 1907, convertem
uma volta por suas salas numa viagem através do tempo. Assim,
este museu, premiado como o Melhor Museu Europeu do ano de
2007, entrelaça o passado e o presente da história europeia da
migração. http://www.dah-bremerhaven.de/
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Esther Andradi
Passagens
44/72
A PALAVRA VIAJADA
Há viagens e viagens. A viagem das palavras e das coisas.
Tópicos possíveis de um mundo em movimento que nos interpela, nos observa
e nos interroga. Se estivermos dispostos a escutá-lo...
“Maletas”, Galeria Nacional de Arte Moderna de Roma, 2010. Foto: Enrico De Vita © 123RF
Queiramos ou não, a vida é uma viagem com ponto de saída
e ponto de destino. Lá pelos meus 20 anos, eu iniciei minha
primeira viagem como mochileira. A mochila era tão pesada que
quando eu sentava me custava horrores me levantar. A palavra
sentada parece muito com sedentária, o contrário de nômade. E
não obstante, creio que tanto um quanto outro conceito, mais
do que interferirem entre si, se complementam. Desta forma
aprendi que, para viajar menos sedentariamente, na vida é necessário levar pouca equipagem material.
Nessa viagem de mochileira conheci um homem de baixa
estatura, que dirigia um enorme caminhão. A viagem era, para
ele, a vida em si. O importante não era o ponto de chegada, mas
o caminho. Foi um ensinamento muito bom, certamente, embora
em seu momento, ansiosa como era, eu suspirava a cada parada
no cami­nho, pensando, como as crianças, quando chegamos.
Mais tarde, cada vez que me sentia impaciente, me punha a
cami­nhar. Comecei a caminhar metodicamente faz alguns anos,
e, ao contrário da história daquele conto, sigo no mesmo lugar.
Passagens
Esther Andradi
A palavra viajada
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Fisicamente, quero dizer, porque há viagens e viagens. A viagem
das palavras e a das coisas. A viagem das comidas. O idioma do
caminho. Todos tópicos possíveis de um mundo em movimento,
que nos interpela, nos observa e nos interroga. Se estivermos
dispostos a ouvi-lo.
Hoje estou de viagem no país de mi­nha infância e minha
juventude. E por momentos me parece habitar um so­nho. Estou
na mesma paisagem onde nasci, na infância, na escola, com
minha mãe e as suas milanesas. E a cidade onde fui à univer­
sidade, onde tive 17 anos, me interroga. Me perguntam os
amigos de então. Onde estivemos; de que lugar viemos, aqueles
que fomos embora? Transformados e eloquentes, cabisbaixos
ou perplexos, levados e trazidos por um rolo do tempo, como
dizem os físicos, alguns ainda seguimos sustentando na mão o
so­nho de nossos 20 anos como um balão de festa infantil.
Nas paredes está escrito: So­nhar acordado: isso é a realidade.
E o país em movimento fala de direções, de estratégias do
caminho, de sapatos mais ou menos flexíveis. A flecha foi
disparada, e não há volta, como gosta de dizer meu amigo Raúl,
o marinheiro. Não há volta?
Há viagens e viagens. Viagens que duram um dia e outras que
duram toda uma vida. Viagens turísticas e viagens permanentes.
A viagem turística é a aventura em cápsulas para o sedentarismo.
Algo de nomadismo sempre cai bem. O sedentarismo trouxe
consigo todas as pautas de segurança necessárias para conter
o movimento em espaços que se imaginam eternos e incólumes.
Nada mais desestabilizador que o movimento. Então, a comprar
seguros. Assegura-se tudo. Até o idioma, que aspira a ser único,
simples, elementar. Um código de barras para compreender e
comunicar-se com o mundo.
Lá pelos anos 1940, o designer italiano Ernesto Nathan Rogers
escreveu que bastaria contemplar um objeto para descrever
a sociedade que o tinha produzido. Agora, com as coisas tão
globalizadas como estão, não é fácil dizer quem ou qual sociedade
dese­nhou tal ou qual objeto, porque tudo parece estar em
interdependência. Os idiomas também. As línguas se sustentam
no tempo umas às outras com um balanço entre protecionismo
e liberalismo, mas o que as define não é a regulação delas por
meio das academias, mas, antes, a persistência de quem as fala
em mantê-las vigentes e levá-las consigo a toda parte. Assim,
ao todo, nos últimos anos, vem-se reduzindo notavelmente o
número de línguas faladas no planeta.
Segundo o físico inglês Freeman Dyson, a extinção paulatina
de algumas das línguas no mundo faria desaparecer também os
neurônios da espécie humana que se tinham formado ao longo
dos anos para interpretá-las, estudá-las e falá-las. Ao contrário
do que se poderia esperar, menos línguas só seriam úteis para a
burocracia, mas, por outro lado, tornariam a comunicação entre
as pessoas cada vez mais elementar. É tão agudo este princípio,
porque resulta difícil de se imaginar que o complicado possa
simplificar as coisas. Quer dizer que a complexidade é o que nos
levou à evolução, e não ao contrário.
Então, a língua só se salva sendo nômade. Viajada. Quanto
mais gente a falar, tanto mais os destinos de seus falantes, mais
os estudos de seus pesquisadores. O viajante, muitas vezes sem
sabê-lo, vai à busca destas alegorias e ficções, destes alegados
e circunstâncias, abrindo cami­nho no matagal para rubricar uma
pauta. Um conhecimento. Uma distorção.
Os alemães inventaram recentemente a palavra Migrations­
hintergrund – que significa algo assim como pano de fundo
migratório – para classificar a origem das pessoas neste mundo
em movimento. Definição exigente a partir de qualquer ponto
de vista, porque é quase impossível a existência de alguém que
careça de pano de fundo migratório. Alguém que não tenha
um nômade, um viajante em seus genes. Porque desde Lucy,
que faz milhares de anos foi africana, até aqui, as pessoas não
fizeram outra coisa do que se movimentar. Movimentar-se e
pretender se fixar. Insistir em levar consigo o próprio e protegêlo do outro. Do alheio. Do impróprio?
O que a gente carrega durante uma viagem? A mala interna
traz idioma e sabores, histórias e consolos, medicinas e rituais
familiares para compor a música do caminho. Nem sempre aquilo
que se traz na bagagem se adapta, a começar pela comida, que,
segundo o ditado popular, viaja mal. Porque a comida, como a
gente e as palavras, também se modifica. A viagem das palavras
permite que elas também se impregnem do mundo em que vamos
caminhando. Os registros familiares falam de perdas e desgraças,
dramas de adaptação e tragédias de desenraizamento. Tudo se
transforma no choque da carícia, do olhar, da guerra, da fúria ou
do encontro amoroso com o outro, e há um medo diante desta
transformação, porque aquilo que se transforma deixa de nos
pertencer tal como o conhecemos, assim como nós também não
somos os mesmos depois de uma viagem iniciada na infância,
quando chegamos ao final do percurso. E temos medo. Medo de
perder. Medo de ganhar? Seja como for, neste caminho cheio de
altos e baixos, de retornos não desejados, de sonhos escondidos,
de comidas temperadas com o amor do que perdemos, nutrese a manada espiritual da qual procedemos. Como espécie,
não já como indivíduos. E aí está nosso desassossego, nosso
desequilíbrio cotidiano, nossa melancolia de séculos concentrada
num sonho, numa instância diferente. A consagração de nossa
mudança. Essa mudança que nos transtorna e desequilibra. Então
se inventam palavras para defini-lo, sem pensar que talvez o que
marca este movimento é a indefinição permanente.
Quando já tudo está perdido, fica a língua materna, insiste
Hannah Arendt. E ela sabia do que estava falando, submergida
na língua franca do inglês, seus conceitos não conseguiam se
encontrar. Trata-se, pois, da língua em viagem. De trasladar
aquilo que se tem. Como conviver com isso na terra dos outros?
Como usar as palavras conhecidas para definir aquilo que não
se conhece? Aquilo para o que não há palavras? Assim foi o que
ocor­reu com a escrita emigrada através dos séculos, remexendo
noutras línguas até transformar as palavras na própria. Como
Ovídio, que continuou cantando Roma e seus vitimizadores em
latim, perdido entre os bárbaros. Como Alexander von Humboldt,
que percebeu em alemão e formulou em francês sua experiência
nas colônias espanholas.
O tio Eusébio sofria da enfermidade da viagem. Depois de
um tempo, não importava sob quais circunstâncias, ele sentia
um formigamento persistente nos pés que somente amortecia
caminhando. Melhor dito, correndo, e então, partia. Conta a família
que a mãe do tio Eusébio estava grávida quando se mudaram
45/72
Esther Andradi
A palavra viajada
de um campo a outro, e que então sentiu um formigamento no
ventre e o parto acabou sendo prematuro. O tio Eusébio nasceu
assim, com a cruz da viagem sobre seu destino. Somente saindo
era capaz de retornar, de se comunicar, de existir.
Este parente longínquo, porque sempre andava por lugares
ignotos, mas que não perdia nenhuma das peregrinações, na­
quele tempo numerosas, foi o mito da minha infância. Também
eu, obrigada a partir durante minha juventude, depois de algum
tempo e agora já sem motivo aparente, sinto a compulsão de
abandonar o lugar onde estou, para me perder noutro lugar,
noutras circunstâncias, noutros mundos. Só por um tempo, eu me
prometo. Mas até agora continuo sem cumprir mi­nha promessa.
Quando estiver regressando o saberei. Entrementes continuo
andando. Como me disse aquele homem que conheci quando eu
era mochileira. O gosto está no caminho. <
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
46/72
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autora:
Esther Andradi escritora argentina, reside em Berlim e Buenos
Aires. Publicou testemunhos, contos, microrrelatos, poesias e
romances. Seus ensaios literários circulam em diferentes meios
culturais da América, Espanha e Alemanha. É autora do romance
Berlín es un cuento (2007)..
Tradução do espanhol:
George Bernard Sperber
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Ulrike Prinz
Passagens
47/72
EM BUSCA DE REASTROS
Relatos de viagem na era da globalização.
“Humboldt 2.0”. Concepção: Fabiano Kueva. Esq.: Retrato de Alexander von Humboldt de Friedrich Georg Weitsch.
Captura de vídeo: Mayra Estévez Trujillo, 2012 © Fabiano Kueva
O processo da globalização abocanhou a dimensão do estran­
geiro, tornando obsoletos os populares relatos de viagem, aquela
literatura que apaziguava a nossa nostalgia e, ao mesmo tempo,
incitava o desejo de conhecer outras plagas. Acabou-se a viagem
a novas terras, a descoberta de paisagens “desconhecidas”. Pois
em lugares antes esquecidos, em que agora pulula o turismo de
massa, todos os caminhos já foram desbravados e quase não
existe mais paisagem que não tenha sido “n” vezes digitalizada,
sua descrição se torna supérflua. Do sofá da sala, podemos ir
zapeando às regiões mais distantes da Terra e acompanhar na
TV os jornalistas do canal National Geographic explicando os
grandes mistérios do planeta. Esse “aniquilamento” midiático
não deixa mais espaço algum para aventuras. Por isso, no final
dos anos 1980, as ciências literárias de língua alemã declararam
a morte do relato de viagem.
No entanto, para nossa surpresa, há alguns anos constatamos
a volta de uma nova literatura de viagem. Seus autores
seguem os vestígios de seus modelos famosos ou esquecidos,
confrontando-se com seus relatos e experiências ao refazer
velhas rotas na vida real.
Literatura da busca de rastros Talvez eles todos
tenham lido Bruce Chatwin, cujo primeiro texto longo em prosa
publicado, Na Patagônia, foi um livro cult do final da década
de 1970 e dos anos 1980. Sua ideia mestra era o conceito do
nomadismo e a motivação para a sua nostalgia, o pedaço de
pele guardado no armário com porta de vidro da sala de sua
avó, “espesso e áspero, com tufos de um pelo avermelhado,
grosso”. Chatwin carregava em sua bagagem cultural antigos
relatos de viagem e textos científicos; a eles, associava a sua
fantasia da Patagônia. Enquanto viajante literário, buscava
rastros e dominou tão bem a arte de entreligar textos próprios
e estranhos que foi acusado de que a Patagônia em si não
aparecia em seu livro.
Era difícil classificar as obras de Chatwin segundo as
categorias existentes: relatos de viagem ou romances? Também
no caso da moderna literatura de viagem aqui descrita, uma
categorização se faz difícil. Pois o seu espectro, bem como
as intenções de seus autores, que aqui quero apresentar com
quatro obras, são amplos: vão do jornalismo investigativo ao
entrelaçamento habilidoso de fatos e ficção. O que têm em comum
é a frequência de referências metatextuais e intertextuais,
complementadas e renovadas pela realidade experimentada. A
grande atração desses textos é refazer fisicamente uma viagem
famosa que, por sua vez, influencia o escrito.
Se os autores do relato de viagem tradicional se concentravam
em primeira li­nha em descrever o estrangeiro ou se colocar em
cena enquanto descobridores, os novos “investigadores” não
Passagens
Ulrike Prinz
Em busca de reastros
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
objetivam apresentar nada inédito. Entretecem as histórias de
seus predecessores famosos ou enigmáticos com as experiências
de sua própria viagem. Sua literatura permanece em terreno
conhecido, eles não penetram no “coração das trevas”.
Raramente nos apresentam descobertas. São autores para quem
seguir os rastros dos predecessores é programa, epígonos,
possivelmente, que compreendem o passado e querem tornálo compreensível.
Geralmente, a busca pelos rastros fracassa, o que não
chega a ser um problema, pois nesse tipo especial de literatura
de viagem, a meta é o próprio caminho. Os sucessores são
confrontados com o fato de chegarem atrasados.
Viagem através do tempo Jürgen ­Neffe, por exemplo,
doutor em Biologia e jornalista científico, embarca em um navio
de contêineres e no colchão mais duro de sua vida a fim de
refazer a rota de viagem de Charles Darwin, 175 anos depois da
legendária travessia de cinco anos no navio Beagle. Seu relato de
viagem Darwin. Das Abenteuer des Lebens (Darwin, a aventura
da vida, 2006) é entremeado por fragmentos e reflexões dos
diários de Darwin. Neffe conduz seus leitores a uma prazerosa
viagem através do tempo em que nos aproxima da pessoa de
Darwin e tenta nos fazer entender suas teorias. Neffe deseja que
a natureza fale com ele, experiência extremamente subjetiva que
é difícil revestir de palavras e que resta reservada ao próprio
viajante. Em seu relato “falam” principalmente os muitos textos
dos predecessores. Enquanto viajante culto, Neffe não apenas
segue os caminhos de Darwin – o qual, por sua vez, já seguira
os rastros de Alexander von Humboldt –, mas também revela
um traço que o impressionou desde os seus tempos de escola: a
fotografia das marcas de mãos, de dezenas de milhares de anos
de idade, que conhecera no livro de Chatwin e, em sua cabeça,
estava intimamente ligada ao nome Patagônia. Encontrar esses
rastros é, ao mesmo tempo, a realização de um sonho pessoal.
“Como poderia sair dessa região sem ter visto as mãos?”
O movimento de refazer a viagem no espaço geográfico
também deve ser visto como tentativa de se aproximar do
modelo, seguir seu exemplo ou mesmo entrar em sua pele. A
busca interior, pessoal, associada ao motivo da viagem, pode se
tornar uma espécie de peregrinação.
Afinidade de alma A empatia e a identificação pessoal
também caracterizam a reportagem de Karin Ceballos Betancur,
Auf Che Guevaras Spuren. Lateinamerikanische Reisenotizen
(Nas pegadas de Che Guevara, anotações de viagem latinoamericanas, 2003), em que, cinquenta anos depois, a autora
retoma o trajeto de seu ídolo, levando suas Notas de viagem
embaixo do braço. Enquanto refaz o trajeto histórico de 16 mil
quilômetros em busca de evidências pessoais de seu herói,
persegue acima de tudo a questão de como as condições polí­
ticas e sociais se transformaram no espaço de meio século –
problemas que também impulsionaram seu ídolo, tornando-o
um revolucionário. A sua reportagem liga as reflexões e ideias
de Guevara ao espaço geográfico, leva-a de volta às suas
origens e checa as condições atuais com sua percepção pessoal.
No fim, Karin Ceballos apresenta o encontro com o companheiro
de viagem de Che, Alberto Granado, em Havana, que recusa
ser entrevistado. A mola propulsora de encontrar as últimas
testemunhas é parte obrigatória dessa busca de rastros. No
final, decepção e continuar a luta “hasta la victoria” – às vezes.
48/72
À procura da verdade no Xingu Traços podem se
apagar e os segredos são levados para o túmulo. É o que
adverte o jornalista e escritor brasileiro Bernardo ­Carvalho
em Nove noites (2002), o livro no qual reconstrói o suicídio
do antropólogo norte-americano Buell Quain. Sessenta e dois
anos depois de sua morte cruel, Carvalho busca os motivos. O
tema da viagem ao Xingu é elaborado literariamente, tornandose movimento interior rumo ao “Xingu da infância” e revelando
uma forte identificação do autor com o antropólogo cansado da
vida. Em sua habilidosa narrativa, Carvalho mistura pessoas e
eventos históricos e inventados. Coloca ao lado do jornalista
narrador um amigo fictício do falecido que o adverte: “Quando
vier à procura do que o passado enterrou, é preciso saber que
estará às portas de uma terra em que a memória não pode ser
exumada, pois o segredo, sendo o único bem que se leva para o
túmulo, é também a única herança que se deixa aos que ficam,
como você e eu, à espera de um sentido, nem que seja pela
suposição do mistério, para acabar morrendo de curiosidade”.
Nem toda investigação de rastros é bem-sucedida, e alguns
caminhos terminam na selva. Suspeita é antes a reportagem que
encena o investigador como descobridor e apresenta resultados
duvidosos, como faz David Grann em Z, a cidade perdida –
A obsessão mortal do coronel Fawcett em busca do Eldorado
brasileiro, 2009. O repórter nova-iorquino alega estar revelando o
segredo do último grande cavalheiro explorador, Percy Fawcett,
desaparecido de maneira misteriosa há 86 anos em busca da
cidade submersa Z. No embate com o “inferno verde”, Grann, o
habitante desajeitado da cidade grande, salva-se por um triz dos
jacarés e das piranhas e se vê entregue a “antiquíssimos rituais
indígenas”. Novamente, não pode faltar a conversa com a última
testemunha viva, e Grann leva suas pesquisas a um ápice que
revela ser uma “barriga” jornalística: a “descoberta” dos campos
de escavação arqueológica dirigida por Michael ­Heckenberger,
que apontam para uma área densamente habitada no Alto Xingu
entre os séculos XIII e XVII e cuja existência já era conhecida
entre especialistas desde os anos 1990. A sua reportagem, que
não deixa de ser construída com muito talento, é a tentativa
de voltar aos grandes descobridores, ainda que através de uma
autor­representação elaborada com ironia. Ela revela os limites
da literatura da busca de rastros.
As exigências à moderna literatura de viagem mudaram
nitidamente na era da globalização. Hoje praticamente não
se fazem mais descobertas durante viagens. O sucesso dessa
literatura da busca de rastros com caráter de reality show reside
antes em uma hábil reatualização dos textos dos predecessores.
Surpreendentemente, o caminho dessa literatura não termina na
virtualidade, diante da TV e na internet, mas sim na renovação
constante, reconstituindo fisicamente a viagem e vinculando o
passado com a experiência pessoal <
Ulrike Prinz
Em busca de reastros
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autora:
Ulrike Prinz é etnóloga, especializada em etnologia da arte e
mitologia, redatora e autora. De 2001 a 2004, deu aulas sobre
temas latino-americanos na Universidade Ludwig Maximilian de
Munique. De 2004 a 2006, foi assessora do Goethe-Institut de
Munique e, desde outubro de 2007, é redatora responsável da
revista HUMBOLDT.
Tradução do alemão:
Kristina Michahelles
Informações adicionais sobre a ilustração:
Humboldt 2.0, uma ficção digital A instalação em DVD multicanal
de 7 minutos com 3 projeções e som, que o artista multimídia e
produtor de rádio e sonoro Fabiano Kueva (Quito, 1972) chama
de “Humboldt 2.0” em alusão à lendária viagem de Alexander
von Humboldt, é um trabalho multimídia baseado em algumas
estratégias discursivas dos cientistas viajantes do século
XIX. Fabiano Kueva tematiza a caminhada, o mapeamento,
o diário de campo, o inventário, as notas, a correspondência,
colocando-se na pele do viajante e relator. Com imagens em
vídeos simultâneas, paisagens sonoras e narrações, próprias ou
baseadas na correspondência de Humboldt ou nos escritos de
Walter Mignolo, Silvia Rivera Cusicanqui ou Peter Handke, dota
essas viagens de outro significado, dando-lhes assim um novo
sentido.
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
49/72
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Rike Bolte
Passagens
50/72
TransVersalia
Horizontes com versos: diálogo germano-latino-americano.
Ilustração Mónica Alvarez Herrasti, 2011
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Redação e seleção::
Rike Bolte (1971) vive em Berlim, leciona Literatura Francesa,
Espanhola e Latino-americana na Universidade de Osnabrück e
é tradutora, bem como fundadora e organizadora do Festival
Itinerante de Poesia Latino-Americana “Latinale”. Publicou
várias antologias de literatura jovem da América Latina, como
Transversalia. Horizontes con versos/Horizonte in verkehrten
Versen (2011), a primeira grande coleção de Transversalias,
juntamente com Ulrike Prinz.
Autor:
Ricardo Domeneck (1977) deixou São Paulo e se estabeleceu
em Berlim em 2002. Publicou cinco coletâneas de poemas,
e seus textos foram traduzidos e incluídos em antologias em
cinco idiomas. Ele próprio traduziu Hans Arp, H.C. Artmann,
Thomas Brasch, Jack Spicer, Frank O’Hara e Harryette Mullen,
entre outros. Como videoartista e sound-performer, apresentou
projetos em vários museus modernos. Em 2013 foi lançado seu
poemário Körper: ein Handbuch.
Tradução:
Marcelo Backes
Autora:
Sabine Scho (1970) vive em Berlin e São Paulo. Publicou as
coletâneas de poemas Album (2001) e farben (2008), bem como
Frauenliebe und leben (2010), uma repoetização de uma ciclo de
canções de Adelbert von Chamisso. Em 2012, foi agraciada com
o prêmio Anke Bennholdt-Thomsen (Schillerstiftung). Recebeu
vários prêmios e distinções, entre outros uma bolsa da Villa
Aurora, Los Angeles..
Tradução:
Ricardo Domeneck
Rike Bolte
TransVersalia
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
51/72
Ricardo Domeneck
Alienações fiduciárias
Alienaciones fiduciarias
Voltar à casa, para quê?
Aproveita a viagem,
Odisseu. Ninguém
sabe o que houve
em Ítaca
durante a tua ausência.
Por ora, tens a atenção
de Circes e de cíclopes
e de sereias. Uma nau,
um fantasma cego
para o diálogo.
Provável, neste mundo
com ânsia por notícias
e vício em atualizações,
ao chegar à casa
homem muitíssimo
inferior a ti agora
seja rei e Penélope
esteja no quinto
marido. Teu cão.
morto. Tuas pelancas
geriátricas tenham já
tornado irreconhecível
a cicatriz ou tua ama
em estágio avançado
de um Alzheimer
sequer diagnosticável
em tua época.
Casa? Sempre
foi tolice investir
no setor imobiliário.
Retornar dá trabalho.
Permanece à deriva.
Volver a casa, ¿para qué?
Aprovecha el viaje,
Odiseo. Nadie
sabe lo que pasó
en Ítaca
durante tu ausencia.
Por ahora tienes la atención
de Circes y de cíclopes
y de sirenas. Una nave,
un fantasma ciego
para el diálogo.
Es probable, en este mundo
con ansia de noticias
y el vicio de actualizarse,
que al llegar a casa
un hombre muchísimo
inferior a ti sea
rey ahora, y Penélope
ande ya por el quinto
esposo. Tu perro,
muerto. Tus pellejos
geriátricos habrán
vuelto irreconocible
la cicatriz o tu nodriza
en estado avanzado
de un alzhéimer
si fuese diagnosticable
en tus tiempos.
¿Casa? Siempre
fue disparate invertir
en el sector inmobiliario.
Regresar es laborioso.
Sigue a la deriva.
///// Telegrama de Scho a Domeneck // A caminho, em trânsito, adiante, estar aqui, estar ali, adiante. Despedida, retorno,
um outro. Quando eu era criança, tinha a certeza de um lar e não fazia a ideia do dilaceramento interior daqueles para os quais
isso já não valia mais nem naquela época: trabalhadores imigrantes, exilados, e o bilinguismo ainda era algo que marcava os
estrangeiros e não a postura poliglota. A literatura é viagem, é partida, desde os primeiros épicos, uma noção tateante de que
nada permanece como era, nem mesmo para os que ficam, ainda que talvez não de um modo tão manifesto. // Em busca do
tempo perdido, finitude, tentativas vãs de encontrar apoio naquilo que passou e naquilo que passa. Hic et nunc. Viva o aqui
agora! Mas onde fica isso para um ser humano dotado de memória que se recorda no aqui e no agora? Do lar, da mulher, da ama,
do cachorro, da própria posição. Então quer dizer que talvez seja rei aquele que tem um lar ou uma memória não tão boa assim?
Quem ainda se lembra de ti, Odisseu, se tudo que dá testemunho da tua identidade é uma cicatriz, que uma ama de leite doente
por causa do esquecimento não reconhecerá e que há tempo já desbotou? Tu não existes mais como aquele que foi, portanto não
existes mais como aquele que pode voltar. Retorne como outro. Mas teu cão, Odisseu, deverias tê-lo levado junto! //
Rike Bolte
TransVersalia
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
52/72
Sabine Scho
ekballein, wo fährt der dämon ein?
ekballein, ¿dónde se cuela el demonio?
filum terminale
it’s always hit me from below
sie halten mich aufrecht, das schon
aber sie machen mich flieger besteigen
und sagen, schau, man zeigt lohn der angst
solaris und champagner gibt es, um zu
vergessen, wo du eigentlich wohnst
dein ziel wirst du vermutlich erreichen
aber du kannst dich nicht erinnern
warst du bei christi beweinung?
situations have ended sad
du kannst dich nicht erinnern
man verteilte vielleicht ein glückshormon?
man könne dich nur schlecht erreichen
es ist nicht so, dass ihr nicht miteinander
könntet, du und dein dämon, nur der form
halber bestehst du noch drauf, es sei
eigentlich folgendermaßen gewesen, und
dass du dich gegen derlei intervention, allein
weil du das wort nicht mögen würdest
im prinzip gern verwehrtest, aber dir sei klar
ohne seine mechanik fehle dir wohlmöglich
jede motivation, er hält dich am laufen und
würde letztlich auch nur vermitteln
bei einer provision an spinalen nerven
und etwas sitzfleisch. man könne im duty free
auch noch einen schladerer kaufen
an austreibung sei da nicht mehr zu denken
yer gonna have to leave me now, i know
filum terminale
it´s always hit me from below
me mantêm ereta, isso sim
mas me fazem embarcar em aviões
e dizem, veja, assiste-se a salário do medo
solaris e há champanhe, para se
esquecer onde você na verdade mora
você chegará a seu destino supõe-se
mas você não consegue se lembrar
você foi à lamentação do cristo?
situations have ended sad
você não consegue se lembrar
distribuiu-se talvez um hormônio da alegria?
podia-se alcançá-la apenas muito porcamente
não é bem assim, que vocês não possam
um com o outro, você e seu demônio, só a forma
você meio que insiste ainda, teria sido
de tal maneira, e que você teria, só porque não
gostava da palavra em princípio, resistido com prazer
a tal intervenção, mas a você estava claro
que sem a sua mecânica lhe faltaria
possivelmente qualquer motivação, ele
a mantém funcionando e por fim seria
apenas intermediário numa comissão
de nervos espinhais e certa attention
span. alguém poderia comprar ainda
no duty free um schladerer e aí não seria
mais o caso de pensar em exorcismos
yer gonna have to leave me now, i know
///// Telegrama de Domeneck a Scho // Eu sinto estar no meio de uma espécie de ginástica odisseica, quando contemplo a
maneira como Sabine Scho e eu cruzamos o Charco Atlântico em direções contrárias, sendo que, o que para ela é a viagem de
retorno de Ulisses, é para mim a viagem longa até Troia. Minha Troia é sua Ítaca, minha Ítaca é sua Troia. Talvez nossa casa seja
cada vez mais no barco entre as duas margens, ou deveria dizer no avião, com filmes sobre desastres ou histórias de superação,
em que uma personagem passa e trespassa e atravessa um vale de agruras para chegar a ser quem deve ser, ou já é, quiçá
sempre foi? Eu, que há muito tempo percebo a noção de nacionalidade como uma abstração difícil demais de gerenciar, sinto-me
pertencer cada vez mais a duas cidades, a pólis como aglomerado de desejos mais concretos, de carne e osso, e vejo então como
Sabine Scho e eu dividimos entre duas pólis nossas separações e encontros, entre nossa Berlim e nossa São Paulo. Se ao menos
o duty free oferecesse os poemas que precisamos para encontrarmos a morada na cidade seguinte. Se não houvesse o risco das
expulsões de uma fronteira a outra, e se nosso daemon viesse a cada viagem com dicionário e curso embutido para compreender
que cada país gerencia de forma distinta nossos dramas. Ekballein, ekballein, o outsider torna-se meteco, o marginal define o
centro, e a separação, diria Simone Weil, é também uma forma de conexão. //
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Bernardo Carvalho
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
53/72
O EFEITO PARADOXAL DO DISCURSO
SOBRE A VIAGEM
Para continuar viajando (e escrevendo), agora eu preciso
mais do que nunca escapar à viagem.
Cristina Barroso, “Terra Roxa”, 2012. © Cristina Barroso. Foto: Cortesia de Cristina Barroso
Até muito recentemente eu repeti que a viagem era fundamental
para o meu trabalho, porque me deslocava das identificações
fáceis e imediatas, me confrontava com o que eu não com­
preendia, criava desconforto, fazia de mim um estrangeiro
permanente, mesmo no meu país, me deixava mais vulnerável
e mais permeável ao que não faz parte da minha vida, ao que
em princípio eu não viveria se tivesse que corresponder apenas
ao que se espera de mim e da minha experiência de autor,
circunscrita à minha biografia, à minha nacionalidade, à minha
sexualidade, à minha língua. Repeti a mesma história, até cansar
de me ouvir e entender que também era isso o que, de um jeito
ou de outro, repetiam outros escritores em congressos, feiras
e encontros literários mundo afora, sempre que procuravam
tecer uma teoria sobre si mesmos ou construir uma autoimagem
literária respeitável. Nenhum escritor vai dizer que busca o
lugar-comum. Nenhum escritor vai fazer o elogio da mesmice,
do sedentarismo e do imobilismo. Todos dizem que buscam o
desconhecido. Mesmo se não buscam. De um jeito ou de outro,
todo mundo repete a mesma coisa.
Uma nova consciência É verdade que não há muito a dizer
além disso. E confesso, encabulado, que, a certa altura, na
minha ignorância arrogante, cheguei a achar que estava sendo
imitado, usurpado de um pensamento pessoal, e como vingança
Bernardo Carvalho
O efeito paradoxal do discurso sobre a viagem
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
imaginei a história de um escritor que já não escrevia, cuja obra
se reduzira ao que ele repetia da boca pra fora em congressos,
feiras e encontros literários nos quais passava a vida, até
terminar entendendo, horrorizado, que o discurso que havia
considerado tão original e pessoal não passava do mesmo que
todos os outros escritores repetiam (e sempre repetiram) nos
mesmos congressos, feiras e encontros literários mundo afora.
Por meio desse personagem que de certa forma representou
uma nova consciência para mim, entendi que, se por um lado
o que tenho a dizer sobre as viagens é (e talvez sempre tenha
sido) um lugar-comum, por outro o repúdio ao clichê contido
nesse pensamento me faz voltar, num movimento circular e
paradoxal, ao que originalmente nele me seduzira.
A viagem para mim é simplesmente um modo de escapar.
A pergunta principal que se deveria fazer aos escritores é: “Se
ninguém lesse, você parava de escrever?”. Se a literatura for
sinônimo de mercado e depender apenas de uma relação de
oferta e demanda, a resposta é óbvia e a pergunta nem precisa
ser feita. Mas para quem insiste, como eu, em pensar que a
literatura está além do mercado, por mais contraditório que
isso seja num mundo que já não se distingue do mercado, fazer
literatura é se colocar fora desse mundo. Daí o significado da
viagem.
ou religião, que só podem ser reveladas pelo próprio texto.
Como se o texto escrevesse o que eu penso antes mesmo de
eu pensar. É claro que esse gênero de afirmação se presta a um
monte de fetichismos e imposturas, nos levando de volta aos
clichês e à fabricação da autoimagem do escritor, da qual eu
tentava escapar. Mas é curioso que, sendo um homem tão pouco
apegado às religiões e até bastante anticlerical em algumas
circunstâncias, eu tenha acabado por atribuir ao texto literário
um poder quase místico.
Demorei a perceber o efeito imobilizador que é produzido
pelo discurso sobre a viagem como deslocamento permanente,
como um ideal jamais alcançado, que é no fundo o que todo
escritor busca sem precisar dizê-lo ou anunciá-lo. O problema
é começar a falar e se tornar profeta de si mesmo e da sua
própria obra, como o escritor que eu havia imaginado e que já
não escrevia, só falava, só se explicava. O que me fascina na
literatura é a ambiguidade, essa zona de dúvida que não permite
esgotar uma obra numa única interpretação nem circunscrevêla a um único lugar. Me fascina o sonho de textos capazes de
criar religiões de um homem só, sem igreja nem seguidores. E é
por isso que, para continuar viajando (e escrevendo), agora eu
preciso mais do que nunca escapar à viagem. <
A recusa das identidades e definições prévias
Entretanto, me dei conta de que, ao repetir à exaustão o mesmo
discurso sobre a viagem como modo de escapar às identidades,
eu apenas criava mais uma identidade. Através do elogio do
movimento e dos deslocamentos, eu apenas me tornava mais
e mais sedentário, construía uma imagem que me paralisava e
me petrificava num determinado lugar, me condenava a ser um
certo tipo de escritor, à maneira de um produto de marketing.
Haveria alguns meios para tentar escapar a esse círculo
vicioso. Pelo silêncio. Ou pela contradição e pelo paradoxo de
uma obra que não se deixa reconhecer, quando tudo o que um
artista (e um escritor) quer é ser reconhecido. Durante muito
tempo, repeti que o que mais me encantava na ideia de viagem
era não saber exatamente para onde eu ia, como agora, neste
pequeno texto de autorrepúdio ou autocrítica, guiado apenas
por um horror a pertencer ao que quer que seja, a fazer
parte, a corresponder a definições prévias, impostas inclusive
por mim mesmo. É lógico que não faltou quem me acusasse
de voluntarista, como se eu acreditasse que tudo depende
unicamente da minha vontade. Mas como esse voluntarismo
correspondia antes a um espírito de porco, a um espírito de
contradição, nunca levei essa crítica muito a sério. Por outro
lado, ela me fez pensar no que é que me causava (e ainda causa)
tamanho horror a pertencer – e se isso não se resumiria apenas
a uma vontade de ser original.
A revelação no texto Por que essa obsessão? Em primeiro
lugar, sempre quis dizer coisas que eu não sei bem o que são
e que intuo não poderem ser ditas por nenhuma outra forma
além da contradição e do paradoxo. Coisas sobre as quais, ao
contrário de cientistas e filósofos, eu sei praticamente nada
e que eu teimo em acreditar, como em algum tipo de mágica
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
54/72
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autor:
Bernardo Carvalho (1960, Rio de Janeiro) é romancista,
dramaturgo, tradutor e jornalista. Escreveu, entre outros, os
romances Nove noites, Mongólia e O filho da mãe.
Martin Meggle
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
55/72
Pontos de fuga paradisíacos
Um diálogo com Alberto Dines, decano da imprensa brasileira,
a respeito do mito do Brasil como “país do futuro”, sobre Stefan Zweig,
antissemitismo e sobre a “monotonização do mundo”.
Stefan Zweig nos jardins do Hotel Atlântico (Monte Estoril, Lisboa), em janeiro de 1938, examinando os originais de “Coração inquieto”. Foto: “Diário de Notícias”,
Lisboa. Cortesia do Acervo Casa Stefan Zweig, Petrópolis
Alberto Dines completou 80 anos de idade em 2012. Todas as
semanas ele ainda faz ouvir sua voz pelo rádio, aparece na TV
como moderador, escreve para a imprensa. Ele gosta mesmo
de se imiscuir na realidade brasileira, fortificar a oposição à
opinião pública corrente, criticar a ingenuidade política ou a
burrice oportunista predominante, questionar o teor de verdade
de muitas matérias publicadas na imprensa e, com não menor
insistência, exigir a nítida separação entre Igreja e Estado.
No Brasil e no mundo inteiro. Este senhor bem apessoado, de
cabelo grisalho, sempre disposto a comprar uma boa briga, tem
uma missão. É a missão do pensamento crítico, da liberdade de
espírito. Dines faz parte da rara espécie daqueles jornalistas
que, no Brasil, ocupam a posição de reconhecidos críticos da
mídia. Os fãs de seu programa e de seus artigos mordazes
amam-no como uma espécie de Dom Quixote brasileiro, que luta
também contra os moinhos de uma crescente comercialização e
banalização dos meios de comunicação pública no Brasil. Mas há
outros, porém, entre eles também antigos colegas do setor da
mídia, que veem Dines como um encrenqueiro, um predicador
moralista ou como alguém que cospe no prato em que comeu.
Em todo caso, como um chato, de quem se pode abrir mão sem
remorso.
Já na década de 80 Dines diagnosticava uma deficiente
autopercepção e autorreflexão da imprensa brasileira. Este
debate levou Dines a se perguntar a respeito da consciência
que a cultura brasileira em geral tinha de si mesma. E a cons­
tatar mais uma vez o fato de o Brasil ter tido sempre que ser­
vir aos europeus como tela para a projeção de promessas
paradisíacas. Dines não pode aceitar, dentro de sua missão de
ser um porta-voz do Iluminismo laico, tal enfática invocação de
ilusões paradisíacas. Por outro lado, justamente esta visão de
um paraíso chamado Brasil sempre o atraiu irremediavelmente
e com ela, paradoxalmente, ele se digladia até hoje.
Morte no paraíso (1981) é o título de uma biografia de sua
autoria, que trata da última estada de Stefan Zweig e de sua
mulher no Brasil, e de seu trágico fim. Escorraçado pelo terror
Martin Meggle
Pontos de fuga paradisíacos
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
nazista e pelos excessos ideológicos da Europa do seu tempo,
Zweig achou poder reconhecer na cultura brasileira um modelo
para um futuro humanista da humanidade. Nesse mesmo Brasil,
contudo, por ele imaginado como um barco salva-vida para toda
a humanidade, Stefan Zweig cometeu suicídio, junto com sua
mulher, na noite de 22 a 23 de fevereiro de 1942.
O jornalista alemão Martin ­Meggle conversou em São Paulo
com Alberto Dines, espírito mentor do projeto que levou, em
julho de 2012, à inauguração da Casa Stefan Zweig (www.
casastefanzweig.org), um centro de documentação criado para
honrar a memória do escritor austríaco.
Alberto: A questão central reside no fato de que essa forma
de falar do país do futuro no fundo era vista no Brasil, mais
especificamente entre nós, brasileiros, como uma maldição, ou
como uma promessa vã, e não como talvez Zweig a entendia,
como uma gigantesca promissão. Também os jornalistas
brasileiros consideravam, via de regra, o seu próprio país como
um empreendimento fracassado, sobretudo porque o bem-estar
de amplos setores da população brasileira, sempre prometido
em altos brados pelos políticos, nunca tinha se transformado em
realidade no presente. De fato, os brasileiros não têm, em geral,
uma imagem positiva de sua própria civilização e costumam
menosprezá-la. E justamente por estes motivos era inevitável
que surgissem problemas, quando Zweig, com o seu livro, entoou
esse hino em louvor da nossa cultura brasileira, justamente no
início dos anos 40.
O senhor diria que Stefan Zweig não captou os altos e baixos
da autoconsciência dos brasileiros, melhor dizendo, a sua falta
de consciência de si mesmos?
Alberto: Disso Zweig não tinha a menor ideia! Zweig quase
não conhecia o Brasil, quando ele escreveu o livro. É claro que
o pouco tempo que ele ficou no Brasil não foi suficiente para
ele realmente chegar a conhecer os aspectos mais profundos
e sutis da nossa cultura. O livro foi mal planejado e Zweig não
teve tempo para desenvolvê-lo com calma. Ele escreveu o livro
depressa e ganhou das autoridades, como recompensa, um visto
permanente, para poder ficar no Brasil. Foi, por assim dizer, uma
questão de business.
Mas nessa situação de necessidade, não era legítimo para um
autor judeu, durante a perseguição nazista, chegar a um porto
seguro através desse meio?
Alberto: Evidentemente era algo legítimo. Zweig tinha medo de
que os nazistas o perseguissem até na América do Sul. A teoria
de Zweig sobre o Brasil também se baseava, além disso, em
premissas históricas errôneas. Ele achava que o Brasil tinha sido
poupado de guerras e revoluções e nutria grandes esperanças
a respeito de um futuro pacifista. Mas na verdade houve fases
belicosas na história do Brasil, houve até mesmo a Inquisição.
O senhor acha que Zweig, de quem se sabe que ele simpatizava
com a monarquia austro-húngara, também tivesse simpatia
pelo passado imperial do Brasil?
Alberto: De fato. Zweig admirava o imperador brasileiro Dom
Pedro II, que foi uma pessoa muito culta e, como Zweig, tinha
antepassados austríacos. Dom Pedro II foi um monarca perfeito,
que confiava na força de uma imprensa livre, que era capaz
de resolver os seus próprios problemas sem a intervenção do
governo, sem que o governo se imiscuísse em tudo. Foi somente
308 anos depois do descobrimento que, com a vinda da Corte
portuguesa ao Rio de Janeiro, em inícios do século XIX, o Brasil
começou realmente a se desenvolver. O país começou a acordar
lentamente. O intercâmbio entre universidades portuguesas
e brasileiras começou a se configurar. Também a imprensa
brasileira começou a se desenvolver pela primeira vez depois
do ano-chave de 1808. E é bom que se saiba que durante os
séculos anteriores não existiu nenhum jornal no Brasil.
A ideia de festejar o Brasil como sendo um país do futuro
atingiu, portanto, nos anos 40, um ponto nevrálgico. Houve
Martin Meggle: “This is a country of the future no more. The
­people of Brazil should know that the future has arrived.”
Com estas palavras audaciosas o presidente americano Obama
recorreu, quando de sua mais recente visita ao Brasil, a um
tópos arquiconhecido.
Alberto Dines: Hoje em dia ninguém mais reflete antes de
denominar ou caracterizar o Brasil como “país do futuro”. A
ideia de que o Brasil tem que ser um “país do futuro” há muito
tempo se tornou algo corriqueiro, um lugar comum.
Em que contexto nasceu este tópos?
Alberto: No fundo, quem está por trás dele é o escritor austríaco
Stefan Zweig. Zweig escreveu durante a Segunda Guerra Mundial
um livro intitulado Brasil, um país do futuro. A primeira edição
em língua alemã foi lançada pela editora Bermann-Fischer,
de Estocolmo, em 1941. O livro tornou-se logo um best-seller
internacional.
Antes do texto hínico de Zweig sobre o Brasil, já existiam livros
que poderiam ser considerados também como instauradores
do mito a respeito do glorioso futuro da cultura brasileira?
Alberto: Já há perto de quatrocentos anos – em 1618 – o portu­
guês Ambrósio Brandão publicou um livro com o título Diálogos
das grandezas do Brasil. A grandeza do Brasil refere-se, neste
texto precoce dos tempos da colônia, à incomensurável riqueza
da natureza brasileira, riqueza em matérias-primas, tais como
ouro, prata e outros minérios. Mas se refere também à forma de
vida especialmente calma e pacífica dos brasileiros.
Internacionalmente este livro de Zweig sobre o Brasil foi parar
na lista dos best-sellers. Mas na imprensa brasileira choveram
as críticas negativas. Por quê?
Alberto: Imagine só um estrangeiro chegando ao Brasil, e ele
escreve, nos tempos da ditadura, um livro sobre a sua cultura
e chama este país de “um país do futuro”. Era previsível que,
quando foram publicadas as primeiras resenhas, se suspeitasse
que ele tivesse sido pago pelo Estado repressivo, ou mesmo
por alguém do exterior, para escrever uma descrição tão extre­
mamente positiva da cultura brasileira. Ele tinha chegado a este
país nutrindo um incrível entusiasmo pelo Brasil. Zweig dizia
que ele andava pelas ruas e não via nem brancos nem negros,
mas mulatos, mulatos e mais mulatos. O fenômeno da mistura
de raças o entusiasmava, sobretudo porque ele vinha de uma
Europa onde, em 1935, um ano antes de sua primeira vinda ao
Brasil, tinham sido promulgadas as leis raciais de Nuremberg.
A ideia central de Zweig, de que o Brasil seria um país do
futuro, corresponderia, em sua opinião, a uma alucinação?
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
56/72
Martin Meggle
Pontos de fuga paradisíacos
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
algum pensador que inspirasse Zweig decididamente para ele
criar sua fé no futuro do Brasil?
Alberto: Zweig começou a se interessar pela América do Sul sob
a inspiração, entre outros, dos trabalhos do filósofo Hermann
Keyserling. Keyserling era um conde prussiano que criticava o
nacional-socialismo, embora inicialmente tenha nutrido alguma
simpatia por Hitler. Zweig conhecia o livro de Keyserling Medi­
tações sul-americanas e ficou profundamente impressionado por
sua ideia de que a América do Sul pudesse ser a herdeira do
humanismo europeu.
Acho que Zweig não nutria apenas a esperança de uma
América do Sul humanista. Ele também pensava, se não me
engano, numa “unidade espiritual do mundo”.
Alberto: Correto. A respeito dessa “unidade espiritual do mundo”
Zweig já falou em 1936 no Rio de Janeiro, onde ele participou
de uma conferência internacional. Essa palestra, contudo,
nunca foi publicada. Falar de uma unidade espiritual do mundo
pouco tempo depois da irrupção da Guerra Civil Espanhola e
ainda durante os tempos marciais da Segunda Guerra Mundial
era, para muitos dos seus contemporâneos, um testemunho da
ingenuidade do escritor austríaco. Mas se a gente ler esse texto
hoje, no contexto da crise global, é possível ter a impressão de
que essa tese não deixa de fazer sentido.
No Brasil, Zweig falou em público sobre os perigos do
antissemitismo?
Alberto: Não. Mesmo que naquela época, no Brasil, começasse
a se espraiar muito abertamente um terrível antissemitismo.
Durante os meus estudos sobre a história da imprensa brasileira
eu pesquisei, entre muitas outras coisas, como a mídia brasileira
refletiu, em 1933, o fato de Adolf Hitler assumir o poder. As
primeiras páginas dos jornais dedicavam-se exclusivamente
a esse tema da assunção do poder, e numerosas informações
sobre o pano de fundo desse acontecimento foram sendo publi­
cadas. Ao que tudo indica, nos anos 30 o Brasil era um país
muito mais bem informado do que hoje possa parecer.
Quem estava por trás do antissemitismo brasileiro durante os
anos 30?
Alberto: Havia um partido fascista no Brasil, que não se esfor­
çava em ocultar o seu antissemitismo. Esse partido era também
clerical, ou seja, orientado para o catolicismo, e ocupava a
extrema direita no espectro político brasileiro. Eu nasci em 1932
e os vi marchando, vi-os desfilando nas ruas com bandeiras
desfraldadas, os jovens antissemitas aderentes desse partido
que se chamava Ação Integralista Brasileira. Mas Stefan Zweig
foi muito reticente em fazer declarações políticas claras diante
da opinião pública brasileira.
Onde o senhor vê as raízes desse comportamento?
Alberto: Quando H
­ itler chegou ao poder, Zweig não saiu às ruas
para protestar contra Hitler, porque ele não confiava na maioria
da oposição contra Hitler, que era constituída pelos comunistas,
e não queria apoiá-los. Embora ele tivesse ficado entusiasmado
com o nível do teatro russo, da sua literatura e de seu cinema.
Mas quando ficou sabendo das execuções de opositores em
nome da revolução cultural, Zweig ficou totalmente desiludido.
Ele não apenas perdeu a sua fé na política partidária, mas aca­
bou tendo, no fundo, um verdadeiro horror a ela. Mas no que
diz respeito às questões ético-filosóficas de seu tempo, Zweig
nunca ocultou as suas opiniões, pelo contrário, sempre falou em
termos muito explícitos. Stefan Zweig era um idealista.
Já nos anos 20 Zweig constatou uma tendência global para o
nivelamento das diferenças culturais. Isso é algo que pode ser
extraído, entre outras coisas, do seu ensaio “A monotonização
do mundo”.
Alberto: Com esse ensaio Zweig, no fundo, visava muito preco­
cemente o fenômeno da globalização. Zweig esteve em muitos
aspectos bem adiante do seu tempo. Muitas de suas observações
só puderam ser entendidas a longo prazo, por assim dizer.
Zweig tinha, ao que tudo indica, uma visão extremamente
crítica da cultura dos EUA. Ele até mesmo a acusou de ser
responsável pela assim chamada monotonização do mundo.
Nesse ensaio ele diz: “De onde vem essa terrível onda que
ameaça arrastar consigo e tirar das nossas vidas tudo o que
tem uma cor própria, uma forma própria? Todos os que já
estiveram por lá, o sabem: ela vem dos Estados Unidos”. Como
o senhor julga essa postura antiamericana?
Alberto: Quando, durante a sua fuga dos nazistas, ele conheceu
os Estados Unidos, Zweig ficou decepcionado e rejeitou a cultura
dos EUA. Ela era materialista demais para o seu gosto. Sentia
falta, naquela burguesia, de um senso pelas questões culturais
abrangentes, tal como o conheceu em Viena, quer dizer na Áustria,
assim como na Alemanha. Zweig não era senão um filho de uma
burguesia empreendedora, que sabia cultivar um ar mundano,
tinha necessidade de manifestações culturais e que era poliglota.
Durante a sua fuga dos nazistas, Zweig acabou procurando no
Brasil essa pátria burguesa, culta e inspirada pelo humanismo.
Não obstante as catástrofes da Segunda Guerra Mundial,
Zweig previa a unificação da Europa.
Alberto: De fato. Zweig era um europeu convicto pelos quatro
costados. A sua confiança num futuro pacífico na Europa era
extraordinária. Na sua carta de despedida, ele afinal não fala,
por exemplo, da paisagem de escombros alemã ou austríaca, mas
da europeia. O pacifismo que Zweig defendia e pelo qual tentou
lutar, era sempre de natureza europeia.
Na sua carta de despedida, Zweig escreve: “A cada dia aprendi
a amar este país mais e mais e em parte alguma poderia eu
reconstruir minha vida, agora que o mundo de minha língua
está perdido e o meu lar espiritual, a Europa, autodestruído”.
Alberto: A sua carta de despedida tinha apenas uma página e,
no fundo, foi feita sob medida para ser publicada. Ao que tudo
indica, Zweig imaginava muito bem como apareceria na imprensa
a notícia de sua morte, depois do seu suicídio. Ele redigiu duas
versões. Uma delas tinha 21 linhas, e deveria ser reproduzida
em fac-símile em todos os jornais. Se a carta tivesse sido mais
longa, os redatores dos jornais não teriam podido reproduzi-la
por inteiro. Ele, de fato, pensou em tudo, preparou tudo, porque
nada devia ser deixado ao acaso. O suicídio obedecia a um plano.
Alguns escritos não publicados até hoje foram preparados por
ele para o tempo posterior ao seu suicídio. Um dia antes do
suicídio ele foi ao correio e despachou um pacote com a sua
autobiografia. Até o seu último suspiro, Stefan Zweig continuou
sendo um escritor. <
(O texto aqui apresentado é uma versão reduzida da entrevista original)
57/72
Martin Meggle
Pontos de fuga paradisíacos
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Martin Meggle (1964) estudou Filologia Românica. Trabalha
desde 1994 como jornalista autônomo para diversos meios de
comunicação alemães e estrangeiros. Em 1999, desencadeou o
“debate Sloterdijk” com um artigo no Frankfurter Rundschau.
Em 2001 foi premiado um artigo de sua autoria sobre a história
da psiquiatria publicado no semanário Rheinischer Merkur. Há
alguns anos especializou-se em documentações biográficas
familiares.
Autor:
Alberto Dines (1932, Rio de Janeiro) trabalha como jornalista no
Brasil desde os anos 50, tendo sido premiado em várias ocasiões
em reconhecimento aos seus méritos. Suas experiências com
a censura durante a ditadura militar contribuíram para uma
postura engajada. Aos 81 anos, continua intervindo todas as
semanas num programa como crítico combativo de seus colegas.
Além disso, tornou-se conhecido como biógrafo do escritor
austríaco Stefan Zweig, de cujo legado se ocupa na qualidade de
presidente da Casa Stefan Zweig em Petrópolis.
Tradução do alemão:
George Bernard Sperber
Informações adicionais sobre a ilustração:
Casa Stefan Zweig. Em 2012, fruto de diligências de anos de
uma iniciativa privada, foi inaugurado na última residência
do escritor Stefan Zweig e sua esposa Lotte, a uns 80 km do
Rio de janeiro, um centro cultural para o qual estão previstos
simpósios, exposições, concursos, representações teatrais, pro­
jeções cinematográficas, leituras e concertos: a Casa Stefan
Zweig. Seu museu se dedicará à memória de Stefan Zweig, com
objetos pessoais, livros, fotografias, documentos e filmes. Ao
mesmo tempo, a Casa Stefan Zweig lembrará também o exílio
de outros artistas, intelectuais, cientistas e europeus em geral
que durante o nacional-socialismo buscaram refúgio no Brasil e
ali prestaram sua contribuição para a cultura, a arte e a ciência.
Leia mais em: casastefanzweig.org.
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
58/72
Kristina Michahelles
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
59/72
ENTRE ESCRITURA E TRADUÇÃO
A Feira do Livro de Frankfurt: um novo espaço de diálogo?
Uma conversa com Carola Saavedra e Marcelo Backes.
Feira do Livro de Frankfurt, vista de um estande no pavilhão 3.1. Foto: © Frankfurter Buchmesse/Fernando Baptista
Carola Saavedra, 39 anos, escritora e tradutora, fala muito com
os expressivos olhos negros. É de Peixes. Dizem que os nativos
desse signo precisam buscar sentimentos intensos para saber
que estão vivos. Basta folhear aleatoriamente qualquer um dos
romances da jovem e talentosa escritora para descobrir que a
intensidade é uma marca. E a busca de outros mundos, idem.
Nascida no Chile, mudou-se para o Brasil aos três anos de idade.
Morou na Espanha, na França, na Alemanha. Estreou com o
livro de contos Do lado de fora (7Letras, 2005) e seu primeiro
romance foi Toda terça (Companhia das Letras, 2007). No ano
seguinte Flores azuis (Companhia das Letras) foi eleito o melhor
romance pela Associação Paulista dos Críticos de Arte. Em 2010,
Paisagem com dromedário (Companhia das Letras) rendeu-lhe o
Prêmio Rachel de Queiroz na categoria Jovem Autor. O livro foi
lançado este ano na Alemanha, pela C.H. Beck, com tradução de
Maria Hummitzsch. Carola também traduziu – entre outros – a
alemã Herta Müller, Prêmio Nobel de Literatura de 2009.
Marcelo Backes também tem 39 anos, também é escritor
e tradutor, mas é do signo oposto, Escorpião. Curiosamente,
segundo os especialistas, outro signo marcado pela intensidade
das emoções. Gaúcho, radicou-se no Rio de Janeiro, onde
se divide entre a atividade de escritor, professor (tem vários
grupos de estudo) e coordenador editorial. Publicou, pela
Record, a coletânea de aforismos e epigramas Estilhaços (2006)
e os romances Maisquememória (2007) e Três traidores e uns
outros (2010). Seu romance mais recente, Terceiro tempo (2013),
foi publicado pela Companhia das Letras. Traduziu do alemão
para o português importantes escritores como Kafka, Schiller,
Hermann ­Broch, Ingo Schulze, Juli Zeh e Saša Stanišić. Coordena
atualmente a tradução das obras de Arthur Schnitzler no Brasil
e a coleção de clássicos Fanfarrões, Libertinas & outros Heróis
para a Editora Civilização Brasileira.
Kristina Michahelles
Entre escritura e tradução
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
60/72
Kristina Michahelles: Brasil, país-tema da Feira do Livro em
Frankfurt em outubro de 2013: quais são as expectativas?
Carola Saavedra: A principal experiência não é a feira em si,
mas sim o espaço de diálogo e de divulgação que se abre para a
literatura brasileira. A Feira de Frankfurt é uma ponte que não
se esgota em si. O que vai acontecer depois dependerá muito
da Fundação Biblioteca Nacional, dos autores, das editoras, dos
divulgadores. A Feira de Frankfurt é um incentivo e, espero, o
início de uma nova fase no âmbito internacional.
Marcelo Backes: Seria ótimo se esse incentivo pudesse sedi­
mentar alguma coisa e fazer com que a literatura brasileira
­ecoasse na Alemanha de modo mais permanente. A tendência,
no entanto, não é bem essa. O maior exemplo disso é 1994:
há quase duas décadas, o Brasil também foi homenageado
na mesma feira. Foi muito badalado, houve muitos eventos,
autores foram convidados para ir à Alemanha, muitos livros
foram traduzidos – e depois o que houve foi um silêncio retum­
bante. Durante alguns anos, nada aconteceu. A Alemanha lançou
seu olhar para os países do Leste. Curiosamente, hoje me parece
existir um interesse maior pela literatura brasileira do que no fim
da década passada. O Brasil voltou a ser moda. Mesmo assim, as
motivações mais políticas e econômicas para o público alemão
ainda não se refletem na mesma medida na produção literária. A
boa notícia é que, pela primeira vez, está se trabalhando aqui no
Brasil para que nossa literatura ecoe no exterior.
Carola: Concordo. O interesse maior por parte do público
alemão não despertou por acaso. Esse olhar que se volta para a
literatura brasileira deve-se à Feira de Frankfurt, mas é também
consequência de um trabalho de divulgação que está sendo feito
aqui. O Brasil está investindo, criando um programa bastante
concreto (bolsas de tradução etc.), e isso gerou o interesse lá
fora. Agora resta esperar para ver que caminhos esse programa
vai seguir depois da feira.
Então o Brasil aprendeu a se “vender”?
Marcelo: Sim, o Brasil está se “vendendo” pela primeira vez.
Isso antes não acontecia. Há todo um ciclo de incentivos que
impulsiona uma nova geração de divulgadores na Alemanha,
capazes de dialogar com os editores e de entusiasmá-los.
Carola: Lembro que, quando morei na Alemanha, de 1998 a
2008, havia mais interesse pela literatura de Portugal do que
pela brasileira. Leitores do Instituto Camões davam aulas de
literatura portuguesa nas universidades. Seria interessante que
o Brasil pensasse nessa ferramenta de divulgação no longo
prazo. Parece-me essencial que o Brasil tenha um instituto
que trate de divulgar a literatura brasileira no exterior, como o
Goethe-Institut faz para a Alemanha e o Instituto Camões para
Portugal...
Marcelo: ... e que, no nosso caso, seria o velho Instituto
Machado de Assis, ideia que vem sendo discutida pelo menos
desde 1994. É fundamental que exista um instituto que promova
verdadeiramente a língua e a literatura no Brasil e no mundo,
que seja referência quando se fala na criação literária, na
formação de professores, que realize eventos culturais. Já
estivemos tão próximos desse ideal, mas como sempre acontece,
decisões tomadas verbalmente nem sempre se concretizam no
plano factual.
Mas se existe investimento para divulgar a literatura brasi­
leira, o problema é o desinteresse do público leitor alemão ou
simplesmente falta boa literatura?
Carola: Definitivamente, não falta boa literatura. O problema é
complexo e há muitos aspectos a considerar. O que move, por
exemplo, o leitor europeu a escolher literatura sul-americana?
Infelizmente, muita gente ainda busca um determinado tipo
de “literatura de exportação”, na linha do exótico, do realismo
fantástico. Ora, o Brasil hoje tem uma literatura muito diver­
sificada, com temas urbanos variados, muitas vezes com
aspectos ensaísticos, filosóficos. Mas a Europa “prefere” que a
América Latina escreva sobre temas exóticos ou sociais, como
a pobreza, as favelas. É um olhar colonizador. Como se não
pudéssemos falar sobre outros países e temas, como se isso
nos fosse negado. Ninguém exige que um autor alemão escreva
apenas sobre a Alemanha.
Você concorda, Marcelo?
Marcelo: Em parte, os editores só buscam essas obras porque
elas se vendem com mais facilidade. Temas amazônicos ou
baianos são mais apelativos, mais vinculados ao preconceito
referido pela Carola e fáceis de vender como um produto
realmente – ainda que preconceituosamente – brasileiro. Mas
se contássemos aqui com os mesmos instrumentos que existem
do lado alemão para divulgar nossa literatura seria diferente.
Lembro o programa Litrix, que durante quatro semestres vendeu
para o Brasil – com um portal próprio na internet, com subsídios
para tradutores etc. – o que havia de melhor na literatura
alemã contemporânea. Se tivéssemos um programa Litrix
brasileiro, os divulgadores alemães ficariam entusiasmados, os
editores atentos, porque descobririam de fato aquilo que está
acontecendo na literatura brasileira.
Até que ponto o sucesso dos best-sellers pode impulsionar a
chamada “alta literatura”?
Marcelo: Um Paulo Coelho funciona sozinho, a despeito da
crítica alemã que tem sido arrasadora. Vende muito. Mas não
acho que ele impulsione a venda de outros autores brasileiros. E
sou absolutamente contra o financiamento oficial a best-sellers.
Esse não deve ser o critério de apoio, como, aliás, não é do lado
alemão.
Carola: No Brasil, ainda não prezamos suficientemente a
chamada literatura de entretenimento. Ou é “alta literatura”,
entre aspas, ou é porcaria. Mas a literatura de entretenimento
é tão necessária quanto a literatura mais sofisticada, uma não
exclui a outra, cada gênero tem seu espaço. Boa literatura de
entretenimento pode formar leitores. Harry Potter pode levar
muitos leitores para a “alta” literatura. O grande problema do
Brasil é que não formamos leitores. Falta um Bildungsbürgertum.
Marcelo: É verdade. Ao longo das últimas décadas, o Brasil
criou uma economia vigorosa também devido ao consumo
interno, milhões de pessoas entraram no mercado pela primeira
vez. Mas isso ainda não se refletiu na educação e na leitura,
lamentavelmente não temos um mercado consumidor de cultura.
Carola: Tome o exemplo das feiras de livros. Existe dinheiro
para levar os autores para os lugares mais longínquos. Mas você
chega lá e não tem público. E se tem, ele está lá para ver o
autor, e não para conhecer o que ele escreve. Faz falta trabalhar
Kristina Michahelles
Entre escritura e tradução
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
61/72
com o texto, ler com e para o público. O livro deveria ser o
foco principal, infelizmente, em vez disso, os eventos acabam
girando em torno dos autores.
Marcelo: O público brasileiro vai a esses debates para ver o
autor na condição de pop star, e não porque está interessado
na literatura. Não é o que acontece, de um modo geral, na
Alemanha. Minha experiência mais cabal nesse sentido foi num
lugar em Berlim chamado Chaussée der Enthusiasten, um porão
em que jovens escritores leem seus textos para um público
atento que pode chegar a quinhentas pessoas. Depois da leitura
e do debate, começa a dança. Boa parte do público vai embora
nessa hora. Aqui, provavelmente seria o contrário.
Carola: Precisamos de um programa de formação de leitores. A
literatura exige participação do leitor, exige que ele pense, que
tire suas próprias conclusões, que seja uma espécie de coautor.
É necessário aprender a ler.
Em resumo: quais são as oportunidades da Feira de Frankfurt
para a literatura brasileira? Os resultados são mensuráveis e
duradouros?
Carola: Vai depender do programa que o governo brasileiro e
suas diversas instituições desenvolverão no médio prazo. Não é
a quantidade que importa: livros podem encalhar. A pergunta é:
foram vendidos, lidos, debatidos, aproveitados?
Marcelo: Como eu já disse, acho que, pela primeira vez,
existem condições no Brasil para um trabalho que coloque em
rede mediadores e intermediadores para divulgar a literatura
brasileira lá fora e, assim, fazer um trabalho duradouro.
Tradutores são importantes mediadores. Vocês são ambos
escritores e tradutores. Vocês escolhem os autores que
querem traduzir?
Marcelo: Eu traduzo essencialmente textos que eu mesmo
escolho e que geralmente fazem parte de uma proposta mais
ampla como uma coleção, de um exercício a que eu mesmo me
proponho, como se eles fossem a minha “oficina literária”, ou
então preveem a divulgação específica de um autor que depois
poderá ser usado em outras atividades.
Carola: Não sou tradutora. Sou uma escritora que traduz. O que
o autor tem é uma sensibilidade especial para o texto, e esse
obviamente é um dos principais aspectos para se ter uma boa
tradução. Traduzo apenas quando o livro me interessa, quando
vejo ali uma possível aprendizagem. Meu interesse é pela
literatura, não vivo da tradução.
Vocês buscam na tradução estímulos para o próprio exercício
da escrita? O escritor enquanto tradutor e vice-versa: quais
são as vantagens ou desvantagens quando se trabalha simul­
taneamente como tradutor e escritor?
Marcelo: Certamente é um exercício para lapidar, para apurar
o texto. Mas são dois caminhos que se entrecruzam e por isso
quando traduzo, não escrevo. É mais fácil ser escritor e lenhador
do que escritor e tradutor ao mesmo tempo.
Carola: Também não traduzo quando estou escrevendo. São
duas atividades que exigem total dedicação, e, a meu ver, uma
acaba excluindo a outra.
Então preferem ser escritores?
Marcelo: Sim, claro. A sensação é que, na condição de autor,
tenho um universo inteiro pela frente limitado apenas pela
minha fantasia interior. Já o tradutor é obrigado a encarar um
universo preconcebido e já delineado.
Carola: Como disse anteriormente, sou uma escritora que ­traduz.
O que acham das traduções literárias do alemão feitas no
­Brasil?
Carola: O que me incomoda são traduções que passam por outro
idioma, que vêm do alemão, passam pelo francês, por ­exemplo...
Marcelo: ... mas isso praticamente não existe mais. É preciso
que o tradutor domine a língua de partida. Faltam hoje bons
tradutores do alemão. Recebo em média duas consultas por
semana. Existem várias situações: jovens extremamente talen­
tosos que surgem no mercado, como Renato Zwick, de Ijuí. Há
bons profissionais, como Carlos Abbenseth, que infelizmente
não querem mais traduzir. E há pessoas de renome, como Lya
Luft, que deixam a desejar enquanto tradutores.
A literatura alemã vem conquistando mais espaço no mercado
editorial brasileiro. Mesmo assim, ainda fica aquém de outros
idiomas. O que dificulta uma propagação mais rápida?
Marcelo: Além da falta de tradutores, que já mencionamos,
há uma deficiência de conhecimento por parte das editoras
– embora estejam se profissionalizando cada vez mais – e a
questão da divulgação. Os alemães dispõem de iniciativas
muitos interessantes. No período 2008/2009, o já referido pro­
grama Litrix sanou temporariamente o déficit que havia em
relação à literatura alemã contemporânea. Neste momento,
o Goethe-Institut capitaneia um programa que selecionou as
maiores lacunas existentes no cânone da literatura alemã e
prepara um programa especial de financiamento para fazer com
que também essas obras cheguem ao Brasil: trinta romances,
trinta obras ensaísticas e trinta livros infantis que precisam
urgentemente ser traduzidos ao português.
Carola: O problema é que a literatura alemã é pouquíssimo
lida. Voltamos ao ponto central que é a falta de leitores. E
os poucos leitores que temos, por questões históricas, eco­
nômicas etc., estão muito mais voltados para a literatura de
língua inglesa.
Marcelo: Especialmente os clássicos da literatura alemã têm
uma trajetória difícil aqui. Tolstói e Dostoiévski, quase todos
os principais escritores franceses, tiveram sua obra completa
traduzida ou pelo menos têm uma obra que é chamada de
completa, ainda que às vezes não seja. Da obra de Goethe,
que é um vulto universal em todos os sentidos, devem ter sido
traduzidos cerca de 40 por cento no máximo. De Schiller, 20 por
cento. Muitos outros autores, como Theodor Fontane, ainda não
foram traduzidos.
Como o fim da era de Gutenberg impacta a escrita? Onde estão
as possibilidades? E os riscos?
Marcelo: No caso do Brasil, vai demorar um bom tempo para
que o e-book ganhe mais mercado. O número de iPads vendidos
no Brasil é até maior do que na Alemanha, eu suponho, mas eles
não são usados para ler. O e-book está demorando a entrar no
Brasil.
Carola: O audiolivro também não pegou por aqui. No Brasil, não
existe a tradição de ler para outras pessoas, o famoso “vorlesen”.
Tanto é que nos eventos de literatura o autor raramente lê um
trecho do próprio livro.
Kristina Michahelles
Entre escritura e tradução
Mas de que forma a linguagem da internet influencia este­
ticamente o texto literário?
Carola: Para mim, não muda nada. Não vejo diferença. Pode ser
que me falte o distanciamento cronológico para poder julgar
e entender o que está acontecendo. Claro, há uma diferença
cultural entre a geração que cresceu com TV e as anteriores.
Quem cresceu com internet certamente também vai mudar. Mas
é muito difícil fazer previsões, muitas vezes ocorre justamente
o contrário. Como explicar a contradição entre a tendência à
concisão, por exemplo, ditada pelo Twitter e pelas redes sociais,
e o tamanho ideal dos romances atualmente, que são longos,
com cerca de quatrocentas páginas?
Marcelo: O surgimento das novas maneiras de escrever e de se
expressar de maneira ficcional pode até influenciar o meu modo
de escrever, mas eu não me ocupo disso, não estou interessado,
e se isso acontece se localiza num subsolo tão profundo que nem
mesmo eu vejo. Poder haver escritores que buscam voluntaria­
mente adaptar seu texto às novas ofertas e demandas. Mas eu
realmente não dou atenção ao fato, por exemplo, de meu livro
sair em e-book ou não. Não faço negociação artística para ser
publicado ou para ser lido. Por outro lado, acho que não me
importaria se o editor colocasse um hiperlink que possibilitasse
ao leitor ouvir uma música de Tom Waits no instante em que ela
é mencionada no meu romance e que isso fique marcado como
uma interferência do editor e não minha.
Carola: Eu já teria problemas com isso, não gostaria de inter­
ferências no meu texto.
Qual é a visão do paraíso para vocês?
Carola: Poder viver só de escrever. Viver para escrever.
Marcelo: Eu também. Eu continuaria dando minhas aulas nos
grupos de estudo e escrevendo como escrevo. O que eu gostaria
mesmo é de não precisar fazer nada para que meus livros
fossem livros a não ser escrevê-los, mas isso seria realmente o
paraíso. Como a vida tem mais a ver com purgatório, no entanto,
eu trabalharei por eles em palestras, entrevistas e feiras e o
farei também com gosto. <
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
62/72
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autora:
Kristina Michahelles é jornalista, tradutora e escritora. Trabalhou
no Jornal do Brasil, na revista Veja e na TV Globo. Colabora
com a revista HUMBOLDT desde 2007 e traduziu mais de trinta
livros do alemão para o português, entre outros, de Stefan
Zweig, Thomas Mann e Siegfried Lenz. É membro da diretoria da
associação Casa Stefan Zweig.
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Berthold Zilly
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
63/72
NO PRINCÍPIO ERA A VIAGEM
Escrever em busca da nação brasileira.
“Déménagement d‘un piano, à Rio-de-Janeiro” (Transporte de um piano, no Rio de Janeiro). Ilustração extraída do livro de Auguste François Biard
“Deux années au Brésil”, Paris, 1862; com ilustrações de Edouard Riou e gravuras de Charles Maurand baseadas em desenhos originais de Biard.
Foto: Cortesia da Coleção da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin – Universidade de São Paulo (USP)
A transferência da Corte portuguesa para o Brasil em 1808 já era,
na perspectiva de hoje, uma independência de fato, sendo o Rio de
Janeiro capital de um reino com domínios em quatro continentes.
Portanto, não surpreende que o novo governo luso-brasileiro
tenha criado as instituições de que todo Estado soberano
precisa, inclusive culturais – imprensas, bibliotecas, escolas
de artes, faculdades de Medicina e de Direito – praticamente
inexistentes no Brasil colonial. E ao estimular a vinda de especialistas europeus das mais diversas áreas, o governo também
contemplou artistas e cientistas para pesquisarem e retratarem
o país, incluindo os seus desconhecidos e remotos sertões.
Vieram em grande número, curiosos por conhecer um Brasil
quase alheio aos luso-brasileiros e ainda mais ao mundo, dei­
xando depoimentos, cartas, relatos ou quadros de viagem.
Entre os mais conhecidos encontravam-se: Debret, Denis, Ender,
Eschwege, Graham, Langsdorff, Neukomm, Rugendas, SaintHilaire, Spix, Martius, Taunay e Wied, todos chegados antes da
Independência oficial de 1822. Desde o início do Império naquele
ano, se esperava que literatos, jornalistas e artistas, brasileiros
e estrangeiros, contribuíssem para a construção de um Estado
nacional independente, moderno, próspero e civilizado. E para
isso, precisava-se não apenas de estruturas políticas, jurídicas
e econômicas, mas também de uma cultura própria, capaz de
gerar o que Machado de Assis iria chamar mais tarde (1873) um
“pensamento nacional” e um “instinto de nacionalidade”.
O nascimento da literatura nacional a partir do
espírito da viagem Assim, os viajantes, direta ou indirect­
amente, já antes de 1822, foram “parteiros” da nascente literatura
nacional, sendo o mais influente deles talvez o francês Ferdinand
Denis, homem de letras polivalente. De 1816 até 1821 viveu e
viajou no Brasil, país que continuou pesquisando e divulgando
mesmo depois de retornar para a França, e assessorando os
estudantes brasileiros em Paris que publicaram, em 1836, a
Berthold Zilly
No princípio era a viagem
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
revista Niterói, certidão de nascimento do romantismo e do
indianismo. Em Resumo da história literária do Brasil (1826),
Denis já tinha proclamado a independência literária da jovem
nação, dando aos escritores recomendações influenciadas pela
visão romântica, entre sublime e idílica, do mundo extraeuropeu
de um Bernardin de Saint-Pierre ou Chateaubriand. Temas e
fontes inspiratórias, a seu ver, deviam ser a própria realidade
do país, a sua “natureza exuberante”, a cultura indígena e a
tradição oral dos sertanejos. Para isso, era preciso fazer viagens
e transformá-las em palavras. E realmente, em muitos autores
românticos, os narradores ou protagonistas são viajantes
ficcionais, que descrevem o país baseando-se em leituras
de relatos de viajantes estrangeiros, incentivando os outros
personagens – e os leitores – a viajar também para descobrir a
pátria brasileira. Na realidade, os relatos de viajantes brasileiros
sobre o Brasil eram raros, ficando mais frequentes a partir da
Guerra do Paraguai (1865–1870), que chamou a atenção pública
para o descuido da Monarquia com os sertões do Mato Grosso.
criticar cada vez mais a cultura “para inglês ver”, surgindo um
novo páthos de sinceridade no discurso sobre os problemas do
país. Aumentaram as viagens de patriotas à busca da pátria no
interior do Brasil, ou seja, militares, engenheiros, sanitaristas,
como Alfredo Taunay, Couto de Magalhães, Sampaio, Rondon,
Euclides da Cunha, Roquette-Pinto, Carlos Chagas e outros.
Sabiam que o Brasil não era ou não devia ser o “Chile do
Atlântico” – como diria um patriota à procura do centro
geográfico do Brasil, no romance Quarup, de Antônio Callado
(1967). A Abolição de 1888 e a República de 1889 despertaram
esperanças – eleições limpas, administração eficiente, integração
dos negros recém-libertos, justiça e progresso social – em
grande parte decepcionadas, o que levou alguns autores a um
profundo pessimismo, do tipo “o Brasil não tem jeito”, aquilo que
Antonio Candido chamou de “consciência catastrófica do atraso”.
Os centros das cidades civilizaram-se no estilo da Belle Epoque,
mas pouco se fez para diminuir o contraste entre o litoral e o
sertão, onde os coronéis semifeudais estavam se tornando mais
poderosos ainda.
Uma das viagens de maior impacto para a literatura e o
pensamento social do Brasil foi a dupla missão do engenheiro,
jornalista e tenente da reserva Euclides da Cunha na guerra
de Canudos (1897), no sertão da Bahia, como correspondente
de guerra do Estado de S. Paulo e como adido do ministro de
Guerra. Mas ele se deu a si mesmo uma terceira missão, a de
viajante científico e antropológico, munido de máquina foto­
gráfica, termômetro, barômetro e sobretudo: a caderneta de
campo. Uma viagem ao coração das trevas. As suas pesquisas
e reflexões sobre a guerra, o meio físico e social e a história
nacional, assim como as entrevistas com sertanejos, resultaram
no ensaio científico-poético Os Sertões: Campanha de Canudos
(1902), que foi saudado logo como uma revelação, uma epopeia,
uma “bíblia da nacionalidade”. Revelação do sertão e do seu
povo anteriormente caluniado como bárbaro e degenerado,
valorizando o mestiço do interior como protótipo do brasileiro,
contra as ideias racistas da época e do próprio autor. E
revelação também de traços bárbaros da própria civilização,
cujo Exército era uma “multidão criminosa e paga para matar”.
O narrador, quase sempre na terceira pessoa, assume ora a
perspectiva dos descobridores, colonizadores, bandeirantes,
missionários, pesquisadores, soldados ou sertanejos, ora a de
um “observador”, “viajante”, “viandante”, “viajor”, “caminhante”,
como se Os Sertões fosse um relato de viagem. Em carta a
um amigo, o autor expressa a sua afinidade com aqueles des­
bravadores: “Não desejo a Europa, o boulevard, os brilhos de
uma posição, desejo o sertão, a picada malgradada e a vida
afanosa e triste de pioneiro”.
Ao chegar no sertão, o narrador se espanta com a divisão
do país, não só antecipando, mas radicalizando a ideia dos
“dois Brasis”, de cinquenta anos mais tarde, um Brasil espacial e
socialmente partido em dois, cuja parte interiorana, miserável,
parecia um país estranho e estrangeiro. Assim, a pátria procurada
no sertão se apresenta como “ficção”. Mas justamente graças a
Os Sertões, os sertões reais deixaram de ser uma ficção, ficando
incorporados ao imaginário dos brasileiros, virando até a parte
mais autêntica do país. O impacto do relato de Euclides foi tão
Um país “para inglês ver”? De um modo geral, a nascente
literatura revela visões ora grandiosas e sublimes, ora um
tanto idílicas, talvez até alienadas, como se diria na segunda
metade do século XX, ou seja, um Brasil em que a violência, a
miséria, a criminalidade, as revoltas populares, a escravidão, a
exterminação dos indígenas pouco aparecem, ou quase só como
temas históricos. Surge assim o mito, até hoje perceptível no
imaginário nacional, do caráter basicamente pacífico e conci­
liatório do povo e da história do Brasil. A visão de um país em
vias de civilizar-se e ao mesmo tempo agradavelmente atrasado
e até um pouco selvagem, atraente para imigrantes europeus,
caracteriza também trabalhos de viajantes estrangeiros, por
exemplo, do desenhista e pintor alemão Johann Moritz Rugendas,
que esteve duas vezes no Brasil, em 1821–1825 e 1845–1847.
Não é por acaso que ele – ou o seu editor parisiense – tenha
intitulado o livro em que reuniu cem litografias sobre a sua
primeira estadia Viagem pitoresca no Brasil (1835), um sucesso
dos dois lados do Atlântico. Apesar da inclusão de quadros
com tendência abolicionista, como “Negros no porão do navio”,
prevalece a tendência amenizadora, reforçada provavelmente
pelos gravadores da editora. A visão harmonizadora e “pito­
resca” correspondia aos interesses das elites escravocratas,
que cultivavam aquilo que o crítico literário Antonio Candido
chamou de “consciência amena do atraso”. A forte presença do
indianismo e do abolicionismo em poetas românticos, como em
Castro Alves, teve poucos efeitos práticos em favor dos índios
e dos escravos. O hiato entre a civilização no plano cultural e
a barbárie no plano socioeconômico, entre o parecer e o ser,
criou uma cultura de fachada, europeizada, do fazer de conta,
do “para inglês ver”, cuja hipocrisia fica ilustrada, por exemplo,
em um quadro, nem tão pitoresco: seis escravos carregando um
enorme piano de cauda, do francês François Biard.
“Desejo o sertão, a vida afanosa e triste de pioneiro”
Depois da Guerra do Paraguai, com a radicalização dos movi­
mentos republicano e abolicionista, ligados muitas vezes ao
positivismo e outras correntes modernizadoras, pas­sou-se a
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
64/72
Berthold Zilly
No princípio era a viagem
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
grande que mudou, até certo ponto, a situação relatada. Foi por
isso, que, depois da sua morte, uma sala do Museu Nacional
no Rio de Janeiro, ao lado da Sala Humboldt, foi nomeada Sala
Euclides da Cunha, homenageando um dos grandes viajantes da
América Latina.
nas primeiras décadas do século XX, com as suas estruturas
clientelistas e autoritárias, mas de grande potencial humano
e aspirando pela dignidade, justiça e paz. Como disse o autor
na famosa entrevista com Günter W. Lorenz: “Riobaldo [...] é
[...] o Brasil”. A trama conta um episódio da formação do Brasil
moderno, a pré­história dos anos 1950, quando o romance estava
sendo escrito, uma época de acelerada modernização, em que se
começou a construir Brasília, a capital no sertão. As lutas entre
os bandos de jagunços liderados por coronéis, que se parecem
com warlords em países africanos de hoje; as tentativas mal
concebidas de alguns deles e do governo central de impor a
ordem e o progresso; o amplo painel da sociedade sertaneja
com sua estratificação; a simbiótica relação do homem com a
natureza – a evocação de tudo isso faz de Grande Sertão: Veredas
uma das mais perspicazes e mais belas interpretações do Brasil.
Narrando a sua vida, Riobaldo narra momentos e processos
fundamentais da condição humana. Expõe e reflete a velha e
atual tarefa humana de como construir uma vida plena e uma
sociedade civilizada. Essa tarefa, os obstáculos e perigos para a
sua realização, a ambiguidade entre o bem e o mal, a ambição de
poder e riqueza, assim como a inconstância das pessoas e dos
grupos, não se restringem à região nem à nação. “O sertão é o
mundo”, diz Riobaldo. As chances de alcançar alguma felicidade
no plano pessoal e social são vistas com ceticismo, contudo
sempre vale a pena a viagem: “O real não está na saída nem na
chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” <
Viajar ao sertão é viajar ao mundo Em 1956, saiu à
luz um livro de quinhentas páginas em prosa poé­tica, de leitura
difícil, e mesmo assim, um sucesso de crítica e de público
tanto no Brasil como no exterior, considerado até hoje um
dos maiores romances brasileiros de todos os tempos, Grande
Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Já pelo título, o
autor, que gostava de se apelidar “Viator”, “Odysseus” (forma
alemã de Ulisses), ou “o vaqueiro Rosa”, dialoga com Euclides
da Cunha e outros viajantes em busca da nacionalidade na
hinterlândia. Esse diplomata cosmopolita e citadino, de uma
curiosidade enciclopédica, era assíduo leitor de viajantes: Spix
e Martius, Saint-Hilaire, Richard Burton e outros, que de vez em
quando aparecem transfigurados em sua ficção, por exemplo,
Alquiste na novela “O Recado do Morro”, um naturalista alemão,
admirável e meio caricaturesco, talvez um autorretrato do
autor. Pois se os primeiros românticos brasileiros baseavam a
sua ficção em relatos de viajantes estrangeiros, Guimarães Rosa
baseava a sua não só em leituras, mas também em viagens
próprias pelo interior, além das suas lembranças da infância
em Cordisburgo, no sertão mineiro. Nessas viagens, levava
sempre uma caderneta de campo, documentando tudo o que
via, ouvia, cheirava, saboreava, pensava e sentia, combinando
a observação exata com impressões subjetivas. E transcrevia as
breves entrevistas com o sertanejo nas quais este tinha o papel
de professor, não só de botânica e zoologia, de agropecuária e
de sabedoria da vida, mas também de língua portuguesa. Pois
Rosa tinha um projeto estético: a renovação da língua literária,
para “dar-lhe precisão, exatidão, agudeza, plasticidade, calado,
motores”. Essa meta, só poderia alcançá-la através da estilização
da fala do sertanejo.
As pesquisas de campo prefiguram a constelação narrativa
do romance: um anônimo viajante urbano “entrevista” um
velho sertanejo, o antigo jagunço e atual fazendeiro Riobaldo,
passando para a sua “caderneta” a transcrição exata e completa
da fala do “entrevistado”, omitindo as suas próprias palavras de
“entrevistador”, um fluxo narrativo de três dias, que constitui
o romance todo. O “informante”, em vez de apenas responder
perguntas, pede para poder narrar ao interlocutor as suas
vivências de adolescente e jovem adulto, apresentadas como
viagem, como “travessia”, de duplo sentido: passagem pelo
espaço, sequência de deslocamentos pelo sertão, por diversos
meios naturais e sociais; e passagem pelo tempo, pela história
pessoal e coletiva, sequência de experiências, encontros, rela­
cionamentos, erros e acertos na busca de bem-estar, ami­zade e
amor, uma metáfora da vida com fortes conotações espirituais.
Nessa grande confissão, “viajar” e “viagem” são palavras-chave,
muito frequentes, assim como “atravessar” e “travessia”, sendo
esta a palavra final do romance.
A vida do protagonista está intimamente entrelaçada com
a história do país e de uma região atrasada, pobre e violenta,
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
65/72
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autor:
Berthold Zilly (1945), romanista especializado em cultura brasi­
leira, foi até 2010 professor da Universidade Livre de Berlim e
da Universidade de Bremen. Atualmente é professor visitante da
Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil). É tradutor de
clássicos da literatura brasileira, portuguesa e argentina, como
Os Sertões, de Euclides da Cunha; Confissão de Lúcio, de Mário
de Sá-Carneiro; Facundo. Civilización y barbárie, de Domingo F.
Sarmiento. Está preparando uma nova tradução para o alemão
de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.
Informações adicionais sobre a ilustração:
O pintor e desenhista francês François Auguste Biard (cerca
1798–1882), que durante um tempo trabalhou também como
retratista oficial na Corte francesa, viajou ao Brasil em 1858
e percorreu amplas extensões do país. Após regressar a Paris,
publicou em 1862 o livro, amplamente ilustrado, Deux années au
Brésil (Dois anos no Brasil). Segundo Berthold Zilly, a ilustração
do transporte do piano pode ser vista “como símbolo da cisão
da sociedade brasileira, incluída a elite, entre a pretensão civi­
lizatória e a bárbara base socioeconômica”.
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Mario Cámara
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
66/72
Afinidades eletivas entre a
Alemanha e o Brasil
Intercâmbio, propagação de ideias e invenções
no campo cultural
Max Bense durante a inauguração da exposição “Lygia Clark. Variable Objekte”, 1964,
na Studiengalerie des Studium Generale da Escola Superior Técnica de Stuttgart.
Foto: Elisabeth Walther-Bense © ZKM | Zentrum für Kunst und Medientechnologie Karlsruhe
Lá vem meu almoço pulando As afinidades eletivas entre
Alemanha e Brasil possuem um precursor que faria história
e produziria descendência: o artilheiro alemão Hans Staden.
Efetivamente, no dia 22 de janeiro de 1555, Staden, atribulado,
mas quem sabe mais sábio, retornava de sua segunda viagem
ao Brasil, depois de ter sido prisioneiro de uma tribo indígena.
Durante seu cativeiro, observara uma série de festins canibais,
além de ser ele próprio quase devorado. Sua odisseia começara
quando a nave na qual viajava afundou diante das costas da
atual ilha de Florianópolis, no sul do Brasil. Os tripulantes conse­
guiram chegar a nado até a praia e dali se deslocaram até São
Vicente. Staden foi contratado por colonos portugueses para
defender o Forte de São Felipe de Bertioga, que se encontrava
nas proximidades do vilarejo. Poucos dias depois, quando o
Mario Cámara
Afinidades eletivas entre a Alemanha e o Brasil
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
artilheiro alemão fazia parte de uma expedição de caça, foi
capturado pelos índios da tribo Tupinambá.
Ao retornar à Europa, dirige-se à sua cidade natal, Homberg.
Ali, durante mais de um ano, e com a ajuda de Johannes
Eichmann, escreve A verdadeira história e descrição dos selvagens nus e ferozes, devoradores de homens, encontrados no
Novo Mundo, América, que foi editado em 1557, em Marburgo.
O texto de Staden conheceu um sucesso imediato de público.
Seu relato, ao qual deveriam se somar os de Jean de Léry e
André Thevet, foi um dos primeiros que narrou práticas cani­
bais na América do Sul, contribuindo para construir desse
modo um rosto para esse território que fora percebido, inicialmente, como uma espécie de paraíso na Terra.
da literatura brasileira relaciona a emergência do Romantismo
brasileiro com os textos que os viajantes escreveram sobre o
Brasil, referindo-se especialmente aos naturalistas alemães.
Nostalgia de um paraíso perdido diante da magnificência da
paisagem e a natureza como fonte de emoções que era capaz
de atuar sobre a sensibilidade foram alguns dos enunciados,
tanto de Spix como de Martius, que fizeram com que os jovens
escritores brasileiros começassem a observar a paisagem como
um signo com o poder de vigorizar a sensibilidade e a alma.
O terceiro motivo possui uma estrutura constelar e inclui os
naturalistas alemães, Hans Staden, Montaigne e até Gonçalves
Dias e Oswald de Andrade. Vamos por partes. Como reflete o
recente livro de Sylk Schneider, Goethes Reise nach Brasilien:
Gedankenreise eines Genies (2008), Goethe se mostrava muito
interessado pelo Brasil. Em sua biblioteca, encontram-se, entre
outros, os ensaios de Montaigne, de Mawe, de Robert Southey.
Entre os autores alemães, constam Hans Staden, Heinrich
Koster (Reisen in Brasilien) e Christian August Fischer (Neuestes
Gemälde von Brasilien). E entre seus amigos ou interlocutores,
com os quais conversa e troca correspondência, encontram-se
Alexander von Humboldt, Von Martius e Eschwege.
O interesse de Goethe pelo Brasil é perceptível nas numerosas
anotações que podem ser encontradas em seus diários, entre
as quais se incluem três poemas. Gostaria de me deter no que
tem como título “Canção de morte de um prisioneiro brasileiro”:
“Vinde com coragem, vinde todos, / E juntai-vos para o festim!
/ Pois com ameaças, com esperanças / Nunca me dobrareis. /
Vede, aqui estou, sou prisioneiro, / Mas ainda não vencido. /
Devorai meus membros / E, junto com eles, devorai / Vossos
ancestrais, vossos pais, / Que foram meu alimento. / Esta carne,
que vos dou, / Insensatos, é a vossa, / E em minha medula está
/ Cravada a marca de vossos ancestrais. / Vinde, vinde, a cada
mordida / Vossa boca poderá saboreá-los”.
Este poema foi escrito por Goethe a partir do ensaio de
Montaigne “Os canibais”. É sabido que o ensaio de Montaigne
adquire sua beleza e sua relevância por se valer das práticas
indígenas para construir uma crítica dos pressupostos da razão
europeia. Ao se concentrar no suposto canto indígena, ao assumir
sua voz, Goethe coloca em primeiro plano a antropofagia como
um ritual de valor e de comunhão. Assim, inverte a valoração
negativa e bárbara que seu compatriota Hans Staden realizara
e desloca o relativismo cultural propiciado pelo ensaio de
Montaigne para destacar o puro ato de antropofagia e dotá-lo
de uma valoração positiva. Pouco menos de um século depois,
um dos grandes poetas do Romantismo brasileiro, Gonçalves
Dias, comporá o poema “I Juca Pirama” (1851), em que o ritual
antropofágico será enfocado, numa linha goetheana, em termos
de valor e de comunhão. E na segunda década do século XX,
o escritor Oswald de Andrade se apropriará da antropofagia,
dando-lhe um sentido positivo como procedimento de
apropriação cultural e prática subjetivadora: “Só a Antropofagia
nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”.
Eschwege, Humboldt, Martius e o brasileiro Goethe,
entre outros Pouco mais de um século e meio deverá
transcorrer para que os destinos da Alemanha e do Brasil se
cruzem de novo de um modo significativo. Em 1810, Wilhelm
Ludwig von Eschwege é contratado pela Coroa portuguesa para
estudar o potencial mineiro de Portugal. No entanto, e como
consequência da invasão francesa do território português e da
decisão da Corte de se transferir para o território brasileiro,
Eschwege deve se deslocar para o Rio de Janeiro. Ali é encar­
regado de realizar a primeira pesquisa geológica de caráter
científico feita até então na colônia portuguesa. Sua reputação
cresce e lhe confiam a direção do Real Gabinete de Mineralogia
do Rio de Janeiro, posto que ocupa até 1821, data em que decide
retornar à Alemanha.
Mas Eschwege não é o único alemão em território brasileiro
naqueles anos. Entre 1810 e 1820, a chegada de naturalistas
alemães se intensifica: Georg W. Freireyss chega em 1813,
Friedrich Sellow, em 1814, e o príncipe Maximilian zu WiedNeuwied, em 1815, para realizar de imediato uma expedição pelo
litoral norte do país; em 1817, chegam Karl Philipp von Martius
e Johann Baptist von Spix. Ambos realizam minuciosos estudos
sobre a fauna e a flora brasileiras, mas também se interessam
por questões etnográficas, folclóricas e pelo estudo das línguas
indígenas.
Sua estada no Brasil é importante por três motivos. O
primeiro concerne unicamente Von Martius. Alguns anos depois
de sua experiência brasileira, em 1847, participa e ganha o
concurso que o recentemente criado Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro convocara com o fim de premiar o melhor
projeto para escrever uma história do Brasil. O título do trabalho
de Von Martius era Como se deve escrever a história do Brasil e,
embora colocasse o homem branco em primeiro lugar, propunha
como uma das principais características da história brasileira
a fusão de brancos, negros e índios, que teria uma enorme
influência nas décadas posteriores, da ficção de Mário de
Andrade (seu romance Macunaíma, de 1928, é um bom exemplo)
à reflexão ensaístico-antropológica de Casa grande e senzala
(1933), de Gilberto Freyre, e seu conceito de “democracia racial”.
O segundo motivo inclui e ultrapassa Von Martius e Spix, e diz
respeito em geral aos naturalistas europeus que percorreram o
Brasil durante a primeira metade do século XIX. Aqui me remeto
em primeiro lugar a Antonio Candido, que em sua Formação
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
67/72
Raízes do Brasil O século XX conhece trânsitos variados
entre Brasil e Alemanha. Em 1933, no Clube de Artistas
Modernos de São Paulo, sob a direção de Flávio de Carvalho e Di
Mario Cámara
Afinidades eletivas entre a Alemanha e o Brasil
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
68/72
Cavalcanti, é apresentada uma mostra da gravurista alemã Käthe
Kollwitz; pouco depois, e fugindo do nazismo, chega ao Brasil o
músico Hans-Joachim Koellreutter (ver HUMBOLDT 105, pp. 72–
75); e no início dos anos 1940 e quase pelos mesmos motivos,
é a vez do escritor Stefan Zweig. Em sentido inverso, em 1927,
o crítico de arte Mário Pedrosa estuda Filosofia e Estética na
Universidade de Berlim; em 1929, o ensaísta brasileiro Sérgio
Buar­que de Holanda parte para essa mesma cidade, como
correspondente, e permanece ali quase um ano; durante os anos
1960, a artista plástica brasileira Lygia Clark expõe sua obra em
­Stuttgart, com a curadoria atenta de Max Bense (as relações
entre o concretismo brasileiro e a Alemanha são extensas); e
nos anos 1990, o poeta brasileiro Ricardo Domeneck se instala
definitivamente em Berlim, onde mora até hoje. Em cada um
desses deslocamentos (poderiam ser mencionados muitos
outros) se produzem redes de amplas consequências e de uma
rica produtividade. Por exemplo, as aulas que Caetano Veloso,
Gilberto Gil e Tom Zé fazem com Hans-Joachim Koellreutter são
um episódio importante na história do Tropicalismo; a marca
que a exposição de Käthe Kollwitz deixa no gravurista brasileiro
Livio Abramo se mostra central para o desenvolvimento da
gravura política no Brasil.
Mas de todos esses trânsitos, gostaria de me referir muito
brevemente a dois. As estadas de Mário Pedrosa e Sérgio
Buarque de Holanda em Berlim. Este último, entre suas múltiplas
tarefas como correspondente dos Diários Associados, reserva
tempo para frequentar o ambiente artístico e intelectual de
Berlim. Dois encontros se revelam decisivos: o primeiro, com
o historiador Friedrich Meinecke; o segundo, com a obra de
Max Weber. Entre a história e a sociologia, Sérgio Buarque de
Holanda começará a compor na capital alemã um dos ensaios
de interpretação nacional mais importantes da década de 1930:
Raízes do Brasil (1936). Ali, Buarque de Holanda, para interpretar
a cambiante sociedade brasileira, que se debate entre uma
velha e uma nova ordem, se vale do “critério tipológico” de Max
Weber e propõe a categoria de “homem cordial”. A cordialidade
à qual se refere Buarque de Holanda não implica simpatia, mas
uma modalidade que atravessa as relações sociais e dá o tom
ao espaço público brasileiro que, desse modo, não consegue
distinguir inteiramente as divisões entre as esferas do público
e do privado.
A figura de Mário Pedrosa parece atravessar boa parte da
história cultural e política brasileira do século XX. Militante
comunista durante os anos 1920, fundador da primeira agru­
pação trotskista do país durante a década seguinte, mentor
intelectual do movimento concreto a partir dos anos 1950,
propulsor das bienais de Arte de São Paulo, mentor e crítico
do projeto Brasília e intérprete de inúmeros novos criadores,
como Hélio Oiticica, Antonio Manuel e Lygia Pape, entre outros.
Em 1927, o jovem e talentoso Pedrosa é enviado pelo Partido
Comunista Brasileiro à “Escola Leninista Internacional”, em
Moscou. No entanto, Pedrosa se detém em Berlim, cidade na
qual permanece até agosto de 1929. Ali acompanha de perto
os convulsionados acontecimentos do marxismo soviético,
mas também do alemão. A experiência berlinense, com suas
sucessivas purgas, determinou que ao retornar ao Brasil deci­
disse fundar uma corrente dissidente do Partido Comunista.
Essa decisão política possui inumeráveis consequências em seu
desempenho como crítico de arte, que a partir dos anos 1930
toma um rumo diferente, se afasta da noção de compromisso e
se orienta para uma investigação sobre a relação entre a forma
estética e a percepção, baseada na Gestalttheorie, desenvolvida,
como não poderia deixar de ser, pelos alemães Max Wertheimer,
Wolfgang Köhler, Kurt Koffka e Kurt Lewin.
Transitamos pelos devires antropófagos de Goethe/Staden e
do Romantismo brasileiro, pela confluên­cia racial de Von Martius
e Gilberto Freyre, por Berlim dos anos 1920 e pelo novo ensaísmo
de interpretação nacional, até chegarmos ao concretismo via
Mário Pedrosa e a Gestalttheorie, que atravessa de lado a lado os
territórios do Brasil e da Alemanha, com Max Bense e Lygia Clark
como referentes centrais. As afinidades eletivas entre Brasil e
Alemanha compõem montagens inusitadas, atravessam fronteiras
e desconstroem as histórias puramente nacionais para nos fazer
ver uma filigrana de viagens, derivas e leituras cruzadas. <
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autor:
Mario Cámara (1969, Argentina) é doutor em Letras, professor
de Literatura Brasileira e Portuguesa da Universidade de Buenos
Aires e pesquisador no CONICET. Ademais é um dos editores da
revista Grumo, de literatura e imagem. Publicou recentemente
o livro Cuerpos paganos. Usos y efectos de la cultura brasileña,
1960–1980 (2011).
Tradução do espanhol:
Paloma Vidal
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Sylk Schneider
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
69/72
O PASSEIO IMAGINÁRIO DE GOETHE SOB
AS PALMEIRAS DA AMÉRICA DO SUL
Goethe nunca pôs os pés em regiões tropicais, mas acompanhava
com o maior interesse as descobertas de seus contemporâneos, com os quais
mantinha um estreito intercâmbio intelectual.
“Goethea cauliflora N. et M.”, 1823. Foto: Klassik Stiftung Weimar
A viagem de Goethe à Itália é sobejamente conhecida e já foi
descrita muitíssimas vezes. Menos conhecido é o fato de que
ele, já quando estava na Itália, teve o desejo de viajar para bem
mais longe, talvez às Índias, que abrangiam naquele tempo tanto
a Ásia (Índias Orientais) quanto a América (Índias Ocidentais).
Numa carta dirigida no dia 18 de agosto de 1787 a seu amigo Karl
Ludwig Knebel, escrita em Roma, ele descreve o seu plano de
vida, o seu quefazer futuro com o estrangeiro e com as viagens.
Por sentir-se demasiado velho para ainda empreender as difíceis
viagens às duas Índias, ele planejava encontrar esses lugares
longínquos em livros e bibliotecas. A nostalgia de Goethe pelas
terras distantes exprime-se sobretudo com respeito à luxuriosa
vida das plantas dos trópicos, sobretudo a das palmeiras, que
ele já chegara a ver na Itália:
“Quando, como artistas, gostamos de estar e de ficar em
Roma, como amantes da natureza desejamos ir mais para o Sul.
Depois daquilo que eu vi em Nápoles e na Sicília em termos
de plantas e de peixes, eu ficaria, caso eu fosse dez anos mais
jovem, extremamente tentado de empreender uma viagem à
Índia, não para descobrir algo novo, mas para observar à minha
Sylk Schneider
O passeio imaginário de goethe sob as palmeiras da américa do sul
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
70/72
maneira o que já foi descoberto [...] E como nós não iremos à
Índia, é provável que nos reencontremos ocasionalmente na
biblioteca de Büttner... ”
Até hoje a Biblioteca Anna Amalia e a Biblioteca de ­Goethe,
em Weimar, são testemunhos de suas viagens imaginárias. O
“segundo descobrimento” da América começou, também para
­Goethe, com Alexander von Humboldt. Este chegou até mesmo
a lhe dedicar a segunda edição alemã de sua obra “Viagem de
Alexander von Humboldt e Aimé Bonpland às regiões equinociais
do Novo Continente (Voyage aux régions équinoxiales du Nou­
veau Continent)”. Numa carta escrita a Goethe por Humboldt em
6 de fevereiro de 1807 é possível ler: “Nas florestas solitárias do
rio Amazonas alegrei-me amiúde com a ideia de poder dedicarlhe os primeiros frutos desta viagem. Atrevi-me a levar a efeito
este desejo de cinco anos atrás. A primeira parte da descrição
de minha viagem, a pintura da natureza desse mundo tropical,
é dedicada a Vª Sª”.
O efeito que isto teve sobre Goethe pode ser depreendido de
sua carta de agradecimento, de 3 de abril de 1807. Dá para sentir
nitidamente o seu entusiasmo.
“A Alexander von Humboldt:
Há alguns dias eu hesito em escrever-lhe, meu estimado
amigo. Agora não quero mais adiar a expressão de meu caloroso
agradecimento pelo primeiro volume que descreve a sua viagem.
Além disso, ao grande presente representado pelo conteúdo do
livro vem se juntar a amável dádiva de sua dedicatória, que
não poderia ser mais agradável e honrosa. Eu certamente sei
valorar tal lembrança, e lhe agradeço de todo coração que, além
da grande estima que eu sinto por Vª Sª, pelas suas obras e
pelos seus feitos, V. Sª ainda permita, de modo tão gentil, que
eu, como indivíduo, participe pessoalmente dos tesouros com os
quais Vª Sª nos deleita.
Li e reli numerosas vezes com grande atenção esse volume,
e imediatamente, na falta do prometido grande perfil geológico
prometido, fantasiei para mim mesmo uma paisagem…”.
Humboldt tinha lhe enviado sua obra com a seguinte
observação: “Não irá custar-lhe nem mesmo meia hora, e no
áspero entardecer invernal, bem que gostamos de passear em
meio a uma bela e frondosa floresta tropical”.
Até parece que Humboldt conhecia o sonho de Goethe, o
de passear em espírito, por assim dizer, numa floresta tropical.
Na sua obra As afinidades eletivas (1809) Goethe acabou por
imortalizar Humboldt. “Por vezes, quando eu tinha um acesso
de curiosa necessidade de tais coisas aventurosas, invejei aquele
viajante que vê tais milagres em combinação viva e quotidiana
com outros milagres. [..] Mas também ele se torna outro homem...
Ninguém passeia incólume embaixo das palmeiras, e os
sentimentos certamente mudam quando se está num país que
é o lar de elefantes e de tigres. [...] Somente é digno de honra
aquele naturalista que sabe como descrever e apresentar o que
há de mais estranho, de mais peculiar, com as suas localizações,
com toda a sua vizinhança, sempre com os elementos que lhe
são mais próprios. Que prazer eu teria em ouvir as narrativas de
Humboldt!”
É vão discutir sobre se quem fala aqui é o próprio Goethe ou
se é Otília. O anseio de Goethe pelos trópicos é o que de qualquer
modo se destaca aqui, assim como o modo através do qual ele
pensa saciá-lo. Goethe quer se apropriar a partir de testemunhas
oculares daquilo que lhe é estranho, no sentido de Humboldt.
Não apenas Goethe recebeu com entusiasmo a viagem
de Alexander von ­Humboldt e as suas obras científicas. Uma
nova época, o segundo descobrimento da América, acabara de
começar. Basta observar as obras sobre ciências naturais e os
relatos de viagem de antes e de depois de 1807, para avaliar o
imenso progresso que a obra de Humboldt significou. Observar
os países, a Terra em seu conjunto, tornou-se doravante a meta
dos cientistas.
Embora Alexander von Humboldt tivesse podido viajar por
vários países da América do Sul e Central, foi-lhe denegada a
permissão de visitar o Brasil. Portugal continuava a manter
hermeticamente fechadas as fronteiras do Brasil. Goethe demon­
strou grande interesse quando finalmente o Brasil abriu as suas
fronteiras, com a vinda da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro,
fugindo das tropas napoleônicas. As descrições das viagens e os
relatórios de pesquisa do príncipe Wied zu Neuwied, do Barão
von Eschwege, de von Martius e de muitos outros, encontram-se
até hoje em sua biblioteca. A respeito de Carl ­Friedrich Phi­lipp
von Martius e de sua obra Genera et species palmarum (1823),
Alexander von Humboldt escreveu: “Enquanto se conhecer as
palmeiras / enquanto se falar em palmeiras, / o nome de Martius
/não cairá no esquecimento”.
Também Goethe ficou entusiasmado e escreveu uma
resenha sobre essa obra, na qual vem claramente à tona o
seu jeito de viajar através dos livros: “Também na última das
obras por nós lidas com atenção mais detalhada, é ricamente
apresentado aos conhecedores cultos, com o auxílio de uma
linguagem artisticamente elaborada, o gênero das palmeiras em
suas mais raras espécies, sem que nas ilustrações registradas
acima se deixe de levar em consideração o mais comum dos
amigos da natureza, na medida em que são apresentadas as
relações e as figuras mais generalizadas do seu estado natural,
as suas localizações solitárias ou conjuntas e a sua presença em
terras secas ou úmidas, sobre solos altos ou baixos, livres ou
sombrios, em toda sua variedade, estimulando e satisfazendo
simultaneamente o conhecimento, a imaginação e o sentimento;
e assim, percorrendo o círculo dos livros acima mencionados,
sentimo-nos presentes e acolhidos numa parte longínqua do
mundo”.
Até hoje encontramos Goethe em muitos jardins botânicos
pelo mundo afora, em meio às palmeiras, na forma de uma
malvácea que tem o seu nome: a Goethea. O príncipe Maximiliano
Wied zu Neuwied a tinha descoberto na Mata Atlântica brasileira
e o cientista Carl Philipp Friedrich von Martius e o presidente da
Academia ­Leopoldina lhe deram o seu nome.
Goethe escreve ao botânico e filósofo da natureza alemão
Christian Gottfried Daniel Nees von Esenbeck, em 24 de abril
de 1823, uma carta de agradecimento pelo fato de essa planta
ter sido batizada de Goethea: “Recebo de Vossa Excelência
Ilustríssima uma dádiva agradável após a outra, [...] O fato de
ter sido indicado como padrinho de uma planta tão maravilhosa
e formosa, e o de o meu nome passar a ocupar por causa disso
um tão belo lugar entre os objetos científicos, é, como Vª Eª
Sylk Schneider
O passeio imaginário de goethe sob as palmeiras da américa do sul
mesma sente e observa, duplamente comovedor e marcante, nas
atuais circunstâncias. Quando chegamos perto de abdicar de nós
mesmos e subitamente voltamos a ser cumulados de benevolência
e de reconhecimento público, isto desperta uma sensação à qual
não deveríamos simplesmente nos submeter, mas diante da qual
seria melhor encontrar um ponto de equilíbrio. [...]”.
Aliás, Goethe viria a servir para muitos exilados, sobretudo
no Brasil, como figura simbólica de resistência intelectual, como,
por exemplo, para Ernst Feder, jornalista judeu que fugiu dos
nazistas em 1941 para o Brasil (não obstante a proibição então
vigente de aceitar imigrantes judeus) e que viria a fazer parte
do círculo mais estreito de amigos de Stefan Zweig. Feder
encerrou em 29 de agosto de 1949 um discurso pronunciado
no ­Teatro Serrador no Rio de Janeiro por ocasião do 200º
aniversário de Goethe com as seguintes palavras, que fecham o
ciclo de viagens intelectuais empreendidas por Goethe: “Quando
de uma homenagem prestada a Goethe em 1932, foi plantada no
Jardim Botânico do Rio uma Goethea, e a restinga de Itapeba foi
declarada Reserva Biológica, para preservar os exemplares ainda
existentes dessa planta. Numa cerimônia realizada na Academia
Brasileira de Letras, por iniciativa do acadêmico Roquette Pinto,
uma muda de Goethea foi plantada no jardim da sede, no Petit
Trianon.
É difícil imaginar uma homenagem melhor do que esta, que
corresponde com tanta beleza ao caráter deste país, possuidor
da mais rica flora do planeta, um país que recebeu em sua terra
abençoada, simbolicamente, o espírito de Goethe.
Plantar uma Goethea – não seria esta uma tarefa para cada
um de nós? Uma Goethea não no sentido da planta real, que só
é encontrada no Brasil, sendo rara mesmo aqui, mas no sentido
cunhado por Goethe em sua ‘Metamorfose das Plantas’ de uma
protoplanta, que para nós corporifica o espírito de Goethe”. <
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Horizontes com versos:
diálogo germano-latino-americano.
71/72
Copyright:
Goethe-Institut e.V., Humboldt Redaktion
Junho 2013
Autor:
Sylk Schneider é diplomado em Ciências Econômicas, espe­
cializado em estudos regionais latino-americanos. É autor de
Goethes Reise nach Brasilien (2008) e foi curador da exposição
“Dr. Ernst Feder, uma vida de jornalista entre a República de
Weimar, o exílio e Goethe” (2011).
Tradução do alemão:
George Bernard Sperber
Informações adicionais sobre a ilustração:
“Goethea cauliflora N. et M.”, gravura colorida de Th. Wild, 1823.
Ilustração extraída de: Christian Gottfried Nees von Esenbeck e
Carl Friedrich Philipp von Martius, “Goethea, Novum Plantarum
Genus, A Serenissimo Principe Maximiliano, Neovidensi, Ex
Itinere Brasiliensi Relatum”, em Nova acta Academiae Caesareae
Leopoldino-Carolinae Germanicae Naturae Curiosorum (vol. XI)
A gravura foi feita a partir de um desenho do príncipe e expres­
samente colorida a mão para Goethe. A fotografia foi tomada do
exemplar original da Biblioteca de Goethe (Ruppert 4916).
Humboldt 107
Goethe-Institut 2013
Passagens
72/72
EXPEDIENTE
Redação:
Ulrike Prinz
Isabel Rith-Magni
Endereço:
Frankenstraße 13
53175 Bonn
Comitê Assessor:
Wolfgang Bader
Vittoria Borsò
Ottmar Ette
Barbara Göbel
Anne Huffschmid
Reinhard Maiworm
Berthold Zilly
Conselho Editorial:
Néstor García Canclini
Juan Goytisolo
Werner Herzog
Axel Honneth
Robert Menasse
Sebastião Salgado
Beatriz Sarlo
Antonio Skármeta
Editor:
Secretário-geral do
Goethe-Institut
Postfach 190419
80604 München
Internet:
E-mail: humboldt.redaktion
@goethe.de
www.goethe.de/humboldt
Revisão de textos:
Laís Helena Kalka
Arte gráfica:
QWER:
Michael Gais
Iris Utikal
Anne Franke
Impressão:
Werbedruck GmbH Horst Schreckhase
Dörnbach 22
34286 Spangenberg
ISBN 0018-7615
2013/Número 107/Ano 54
© Goethe-Institut
Printed in the Federal
Republic of Germany
Para qualquer pergunta sobre as assinaturas, dirija-se por favor
a [email protected].
HUMBOLDT pode ser adquirida em nossa loja virtual. Visite-a em
http://shop.goethe.de
HUMBOLDT está disponível na web e também em formato
e-paper no endereço
www.goethe.de/humboldt
Capa e verso:
Sergio Vega (1959, Buenos Aires), foto do projeto multimídia
“Paradise in the New World – O paraíso no Novo Mundo”.
Cortesia do artista
Leia também sua colaboração para este número de HUMBOLDT
às páginas 34–39.
Os artigos nem sempre expressam nem coincidem plenamente
com a opinião da redação.
Download

Hum B OL D t 10 7 - Goethe