Director José Pedro Paço dArcos [email protected] CAPA Editor Geral José Sousa Machado [email protected] Benes, para assinalar as Arte Contemporânea Sandra Vieira Jürgens [email protected] Arte Antiga Luís de Andrade Peixoto [email protected] Martelo e trincha revestidos com notas, de Barton Lidice nº 1 Outubro 2007 artes (com ênfase na arte portuguesa, sob o olhar atento de Camões e Pessoa) e os leilões (divulgando também os leilões internacionais) . 5 EDITORIAL 7 ARTE PORTUGUESA: UPA, UPA! | Estudo de Opinião 12 SOTHEBY’S | Entrevista a Francis Outred 17 ARTISTAS PORTUGUESES NO CIRCUITO MILIONÁRIO Internacional Kevin Power [email protected] Dossier ÍNDIA Produtora Editorial Carlota Mantero [email protected] Projecto Gráfico e Paginação Panóplia [email protected] Secretária de Redacção Janete Bento [email protected] 7. Revisão de Conteúdos Rita Graña [email protected] Assinaturas [email protected] 35. 26 ARTE CONTEMPORÂNEA DA ÍNDIA: Espaços de vaivém 31 BAIJU PARTHAN | Entrevista de Ranjit Hoskote 35 PINTURAS CANTADAS | Museu de Etnologia Por Alexandre Oliveira e Cláudia Pereira 38 DOS VELHOS CONTOS às NOVAS ESTÓRIAS Por Luís Serpa 44 VARANASI: VIDA E MORTE NA CIDADE SAGRADA 48 PORTUGAL NA ÍNDIA Por João Alarcão 52 ESPLENDORES DA ÍNDIA OUTSIDE ÍNDIA 62 LEILÕES INTERNACIONAIS: HIGHLIGHTS ÍNDIA 66 ANTIQUARIATO iNDIANo 72 PANOS PINTADOS Por Madalena Braz Teixeira Dossier PAULA REGO Conselho Consultivo João Esteves de Oliveira Jorge Barreto Xavier Luís Serpa Manuel Castilho Miguel Júdice Propriedade Artcetera – Cultura e Arte, Lda. Sede Rua Carlos de Oliveira, 3 12º C 1600-028 Lisboa Tel: 217 225 040 – Fax: 217 225 049 76 PAULA REGO | ENTREVISTA EM LONDRES 83 MARCO LIVINGSTONE | ENTREVISTA 86 ARQ. EDUARDO SOUTO MOURA | ENTREVISTA 90 FRANÇOIS DUFRÊNE | SERRALVES Por Gisela Leal Pessoa Colectiva Nº 502 191 082 Impressão e Acabamento Offset + Artes Gráficas, S.A. Rua Latino Coelho, 6 – Venda Nova – 2700-516 Amadora Tel: 214 998 716 -- Fax: 214 998 717 A ÍNDIA: EM CASA NO MUNDO Por Peter Nagy (para o viajante afoito) Por Manuel Castilho Publicidade Luís Figueiredo Trindade (Director comercial) [email protected] Mónica da Costa Silva [email protected] Administração José Pedro Paço dArcos Diogo Madre Deus GRANDE DEMAIS Por Jorge Barreto Xavier 24 Por Nancy Adajania Produtor Gráfico João Costa [email protected] Redacção Maria Correia [email protected] 20 76. 91 SKULPTUR PROJEKTE | MÜNSTER Por Nuno Crespo 94 EXPOSIÇÕES 96 QUEM É QUEM | PEDRO CABRITA REIS 98 QUEM SERÁ QUEM | JOÃO SERRA Distribuição Logista Rua República da Coreia, 34 Ranholas – 2710-460 Sintra Tel: 219 267 800 | Fax: 219 267 810 101 NOMES INVISÍVEIS | Crónica de Jorge Barreto Xavier Periodicidade Mensal 104 JUÍZO ESTÉTICO OU JUÍZO POLÍTICO? | Tiragem 12.000 exemplares Opinião de Nuno Crespo Registada com o Nº ISSN 1646-8139 É expressamente proibida a reprodução da revista, Em qualquer língua, no todo ou em parte, sem a prévia autorização escrita de ARTES & LEILÕES. Todas as opiniões expressas são da inteira responsabilidade do autor. Paginação1.1.indd 3 92. 106 NOTÍCIAS 108 VINTE MAIS NACIONAL | VINTE MAIS INTERNACIONAL 112 PALADARTE | Crónica de Miguel Júdice 07/09/04 22:20:31 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 EDITORIAL José Pedro Paço d’ Arcos A revista Artes & Leilões saiu a público pela primeira vez em Outubro de 1989, quando a única revista existente dedicada às artes plásticas era a Colóquio Artes, editada pela Fundação Calouste Gulbenkian . Não obstante os nay-sayers, que apregoavam que uma revista de artes plásticas em moldes comerciais e sem subsídios não vingaria, a Artes & Leilões brevemente se impôs no mercado e se tornou a revista de referência sobre arte em Portugal. Após sete anos de publicação regular, com uma cobertura das artes e dos leilões e antiguidades em Portugal e no estrangeiro, além de projectos especiais como o lançamento do Arte Guia / Guia d’Arte em 1991, a revista cessou a actividade. Na altura, divergências ao nível da administração do projecto provocaram essa situação. O mundo mudou e Portugal mudou com o mundo. Hoje, o panorama cultural português é completamente diferente, para melhor. A Cultura virou Ministério. Surgiram fundações privadas com espólios valiosos. O coleccionismo tornou-se uma virtude. Artistas de diferentes gerações e tendências competem por públicos e mercados. A internacionalização da arte portuguesa é mais efectiva. É neste ambiente de maior afirmação cultural que a revista Artes & Leilões se vai inserir e que tentará espelhar e, se possível, influenciar. Saudamos antiquários, leiloeiros, galeristas, artistas, críticos e todos os agentes culturais com quem colaborámos no passado. Esperamos poder acolhê-los, assim como a novos protagonistas, num projecto que procurará ser abrangente sem ser neutral, revelador sem ser descritivo, interveniente sem ser sectário. Portugal mudou e a Artes & Leilões mudou também. O modelo de revista da primeira série da Artes & Leilões foi seguido pela Arte Ibérica e, em certa medida, pela L+Arte. Estes projectos tiveram e têm o seu mérito. Na sua segunda série, a Artes & Leilões seguirá um novo modelo. O âmbito de intervenção editorial da revista foi alargado ao Turismo Cultural, Moda, Fotografia, Arquitectura e Design. Vários projectos especiais estão na forja, entre eles a reedição de um Guia d’ Arte actualizado. Para além da cobertura mensal da actualidade artística nacional e internacional, a revista dedicará uma atenção especial aos aspectos relacionados com o investimento em bens culturais, avaliando a evolução das cotações no mercado (“Vinte Mais Nacional e Internacional”), firmando a cotação dos artistas nacionais (“Quem É Quem”) e descobrindo novos valores (“Quem Será Quem”). Cada edição inclui um dossier alargado sobre a arte contemporânea e a cultura de um país escolhido, sugerindo itinerários culturais e artísticos. A Índia, pela sua importância no imaginário português e no mundo contemporâneo, foi a nossa primeira escolha, associando-nos assim à celebração dos seus 60 anos de independência. A partir deste primeiro número da segunda série, esperamos ter-vos como leitores. A crítica e as sugestões serão muito bem-vindas, para melhor podermos servir os interessados na actividade artística em Portugal. A Manuel de Brito, pioneiro que tanto lutou pelo desenvolvimento da arte em Portugal e que morreu no seu posto, uma última palavra de apreço e saudade. | Paginação1.1.indd 5 07/09/04 22:20:32 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 ESTUDO DE OPINIÃO upa,upa! arte portuguesa: Um estudo de opinião exclusivo da Eurosondagem para a Artes & Leilões revelou a opinião dos portugueses relativamente à arte contemporânea nacional e internacional. Damien Hirst | “Lullaby Spring”, 2002 | Cortesia Sotheby’s. Paginação1.1.indd 7 07/09/04 22:20:33 ESTUDO DE OPINIÃO ARTE PORTUGUESA: UPA, UPA! interesse pela arte contemporânea 1. Qual a sua opinião em relação à Arte Contemporânea? #41 Aprecia / Gosta muito 49,3% Depende dos artistas / Gosta por vezes 42,1% Não aprecia / É-lhe indiferente 6,3% NS / NR Total 2,3% 100,0% O estudo encomendado pela Artes & Leilões à Eurosondagem revela que em Portugal o interesse pela Arte Contemporânea é elevado. Os resultados permitem concluir que a grande maioria dos inquiridos, 49,3% aprecia/gosta muito; 42,1% afirmou que a sua opinião está dependente dos artistas em questão e apenas 6,3% expressou uma opinião desfavorável (Não aprecia/É-lhe indiferente) 2. Qual o período da História da Arte em relação à Arte Contemporânea. que mais lhe interessa? Relativamente a outros períodos da História da Arte, constatou- pode escolher uma ou duas) (*) se a sua preferência por épocas mais recentes, verificando-se um equilíbrio de resultados entre a Arte Moderna (29,2%) e a Arte Arte Antiga Arte do Renascimento Arte Barroca 14,2% Contemporânea (28,1%) a que se seguiu a Arte Antiga (14,2%), 9,1% a Arte Romântica (13,8%), a Arte do Renasc imento (9,1%) e, 5,6% finalmente, a Arte Barroca, que registou 5,6%. Arte Romântica (Séc. XIX) 13,8% Os resultados da questão seguinte permitem concluir que é elevado Arte Moderna (Séc. XX) 29,2% o nível de acompanhamento em relação à criação artística das novas Arte Contemporânea 28,1% gerações. 82,3% dos inquiridos revela acompanhar com bastante Total 100% interesse e regularidade a criação artística das novas gerações. | (*) - Nota: 4,8% dos inquiridos respondeu “Ns/Nr” 3. Acompanha a criação artística das novas gerações? Sim, com bastante interesse 40,0% Às vezes / Intermitentemente 42,3% Nem por isso / Só raramente 15,2% NS / NR Total 2,5 % 100,0% Damien Hirst | “Lullaby Spring”, 2002 | detalhe | Cortesia Sotheby’s. Paginação1.1.indd 8 07/09/04 22:20:35 UM OCEANO ESTUDO DE OPINIÃO INTEIRO ARTE PORTUGUESA: UPA, UPA! h VELÁZQUEZ | ”VÉNUS AO ESPELHO”, 1651 | ÓLEO SOBRE TELA | CORTESIA NATIONAL GALLERY, LONDRES. CONHECIMENTO DA arte INTERNACIONAL 4. Conhece alguns destes artistas? #41 1. VELÁZQUEZ 95,2% 2. CLAUDE MONET 93,7% 3. GOYA 93,5% Numa outra série de perguntas, indicadora do nível de conhecimento 4. REMBRANDT 91,4% sobre o panorama artístico nacional e internacional, em períodos 5. PAUL GAUGUIN 90,9% distintos da História da Arte, revelaram-se resultados surpreendentes. 6. BOTICELLI 85,3% Embora uma grande maioria dos inquiridos (49%) acompanhe a 7. TOULOUSE-LAUTREC 81,0% criação artística das novas gerações, permanecem desconhecidos 8. FRANCIS BACON 77,0% alguns dos artistas contemporâneos com maior repercussão. 9. KANDINSKY 74,9% Confrontados com uma lista que incluía artistas de várias épocas, 10. MARCEL DUCHAMP 68,4% registou-se um grau de desconhecimento mais elevado face aos 11. WARHOL 63,4% artistas mais contemporâneos: Damien Hirst, Baselitz e Jeff Koons 12. JACKSON POLLOCK 54,1% posicionaram-se nos últimos lugares. 13. JEFF KOONS 28,2% Nas preferências entre os artistas portugueses, o estudo mostra que 14. BASELITZ 18,7% Paula Rego e Maria Helena Vieira da Silva são as artistas portuguesas 15. DAMIEN HIRST 17,0% de eleição, de entre uma lista que incluía nomes tão díspares como Grão Vasco, Amadeo de Souza-Cardoso e Pedro Cabrita Reis. | Paginação1.1.indd 9 07/09/04 22:20:36 10 PREFERÊNCIAS ENTRE OS ARTISTAS PORTUGUESES #41 6. E quais são os seus artistas portugueses preferidos? (pode indicar até 3)(*) PAULA REGO 17,6% MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA 17,4% JÚLIO POMAR 14,7% AMADEO DE SOUZA-CARDOSO 13,8% ALMADA NEGREIROS 12,9% JULIÃO SARMENTO 5,1% JOSEFA DE ÓBIDOS 4,2% HELENA ALMEIDA 3,3% COLUMBANO 3,1% PEDRO CABRITA REIS 3,1% GRÃO VASCO 1,9% SILVA PORTO 1,5% JORGE MOLDER 0,8% HENRIQUE POUSÃO 0,6% (*) - Nota: 6,9% dos inquiridos respondeu “Outro” artista português preferido. Maria Helena Vieira da Silva | (1909-1992) | ”Lisbonne Bleue”, 1942. | Cortesia Sotheby’s. 8. Já comprou alguma obra de arte? Noutra questão, que pretendia determinar a percentagem dos que adquiriram obras de arte, os 7. Com que regularidade visita exposições resultados são igualmente inesperados: 57% dos inquiridos respondeu “sim”. Também surge explícito que o critério que prevalece na aquisição é o gosto pela obra de arte? (73,7%), seguindo-se o apreço pelo artista (16%). A aposta em termos de retorno do Os resultados assinalam que é elevado o número daqueles que com regularidade visitam investimento traduziu-se em 7%; mais reduzida foi ainda a percentagem - 3,3% - dos exposições de arte: 53% dos inquiridos afirmou visitar mostras uma vez por mês e 30% inquiridos que revelaram fazê-lo por indicação ou opiniões manifestadas através da respondeu que as visita três a quatro vezes por mês. comunicação social. Paginação1.1.indd 10 07/09/04 22:20:36 11 ESTUDO DE OPINIÃO ARTE PORTUGUESA: UPA, UPA! comentário ao estudo de opinião #41 A amostra que serviu de base a este estudo de opinião foi constituída a partir cultivado por artistas como Jeff Koons contribuiu para dos visitantes de uma exposição de Arte Contemporânea que decorreu numa o fazer sobressair aos olhos do público e destacar-se de instituição cultural lisboeta. Ou seja, podemos inferir que esta amostra é composta entre muitos outros artistas seus contemporâneos, por por pessoas que frequentam com alguma assiduidade este tipo de iniciativas, outro lado esse fenómeno não é suficiente para o tornar possuindo alguma familiaridade com o universo da criação artística actual. tão incontornável quanto os artistas já consagrados Nesse sentido, este estudo revela alguns dados surpreendentes e outras tantas pela História da Arte, como Velázquez, Monet, Goya contradições, sobre as quais tentaremos oferecer pistas que nos ajudem a ou Rembrandt. Nem mesmo o mediatismo fortíssimo esclarecê-las. de Damien Hirst, que no último leilão da Sotheby’s Assim, é curioso verificar que praticamente 90% dos indivíduos consultados de Londres, em Junho passado, se transformou no adere sem reservas à Arte Contemporânea - 49,3 % de uma forma incondicional artista vivo mais caro - uma obra sua foi vendida e 42,1% fazendo depender a sua adesão da identidade do artista -, incluindo por €14.478.000,00 - foi suficiente para o celebrizar nesta designação, supomos, a Arte do séc. XX. Esta suposição decorre da análise num plano de equivalência com os autores clássicos. das respostas à pergunta seguinte, que indaga qual o período da Arte que mais Comparativamente com os autores estrangeiros, os interessa aos indivíduos consultados. Somando as preferências pela Arte Moderna artistas portugueses, infelizmente, são muito pouco (29,2%) e pela Arte Contemporânea (28,1%), constatamos que 57,3% do público conhecidos, o que denota a fraquíssima promoção prefere as manifestações artísticas que lhe são coevas. Acrescentando a este valor de que são alvo pelas instâncias responsáveis. Senão as preferências pela Arte Romântica (13,8%), que de certo modo antecipa ou, vejamos: o artista estrangeiro menos conhecido em certos casos, inaugura as tendências modernistas, concluímos que 71,1% - Damien Hirst (17%) - é quase tão famoso quanto do público consultado é receptivo às manifestações artísticas dos últimos cem as artistas portuguesas mais conhecidas - Paula anos. Isso mesmo se conclui da análise às respostas à terceira pergunta, que nos Rego (17,6%) e Vieira da Silva (17,4%). Os artistas informam que 82,3% dos inquiridos diz acompanhar com bastante interesse portugueses, independentemente da sua consagração (40%), ou com interesse mediano (42,3%), a criação artística das novas gerações. histórica, actual ou passada, são praticamente Apesar de considerarmos que estes valores estão empolados, reflectindo uma desconhecidos do público português. Apenas 3,1% natural valorização cultural dos inquiridos, não deixa de ser relevante que a dos inquiridos conhece Columbano; 1,9%, Grão Vasco pretensão de reconhecimento cultural que os inquiridos denotam se fundamente (que tem até um museu com o seu nome e sobre a sua no conhecimento que dizem ter da Arte mais recente, em detrimento das extensa obra quinhentista) e, pasmem, apenas 0,6% manifestações artísticas de outros períodos da História da Arte. Ou seja, parece que sabe da existência do Henrique Pousão, talvez o maior a Arte Moderna e Contemporânea está na moda e os nossos inquiridos, sabendo artista português do séc. XIX, precursor dos movimentos disso, não querem abdicar de um estatuto cultural actualizado. modernistas de que Souza-Cardoso viria a ser o Curiosamente, a linha de pensamento que temos vindo a desenvolver é expoente máximo (este último, conhecido por 13,8%, radicalmente contrariada pelas respostas às perguntas sobre quais os artistas talvez devido à grande exposição retrospectiva realizada estrangeiros e portugueses mais conhecidos. Na listagem dos quinze artistas recentemente na Fundação Gulbenkian). | estrangeiros mais conhecidos, os autores contemporâneos ocupam, sem excepção, JSM os últimos lugares da tabela. Os únicos três artistas ainda vivos mencionados - Jeff Koons (conhecido por 28,2% dos inquiridos), Baselitz (18,7%) e Damien Hirst (17%) - ocupam os três últimos lugares. Ou seja, se por um lado o vedetismo Paginação1.1.indd 11 Este estudo de opinião foi realizado entre 9 e 13 de Julho de 2007 numa amostra de 525 entrevistas validadas a partir do universo de frequentadores de uma exposição de arte contemporânea que decorreu num espaço institucional da capital. | 07/09/04 22:20:37 17 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 LEILÕES José Sousa Machado Artistas portugueses No circuito milionário #41 1. Apenas quatro artistas portugueses têm marcado presença regular nos leilões de artistas em princípio de carreira que apoiaram. arte da Christie’s e da Sotheby’s de Londres, Nova Iorque ou Paris. São eles Helena De facto, o simples facto de um artista estar Almeida, Julião Sarmento, Paula Rego e Vieira da Silva, tendo a penúltima batido representado nos afamados leilões de arte o seu recorde pessoal de preço no leilão de arte contemporânea da Christie’s contemporânea das duas principais casas leiloeiras londrina do passado mês de Junho, com a pintura The Moth (A Traça) – um pastel mundiais é, só por si, um indicador seguro da sobre tela, com 160 x 120 cm, datado de 1994 – que atingiu os € 559.654. Nesse estabilidade da cotação do mesmo e a garantia de mesmo leilão, o pintor britânico Lucian Freud conquistou o estatuto de pintor vivo circulação das suas obras num circuito à escala mais caro de sempre, quando uma obra sua intitulada Bruce Bernard - um retrato mundial, com margens de valorização muito - foi arrematada por e 11.624.940, palmarés de curtíssima duração, pois apenas 24 promissoras. À luz estrita do mercado de arte, a dias depois, no leilão de arte contemporânea da Sotheby’s, também em Londres, presença de um artista nos principais leilões da o ainda jovem artista Damien Hirst roubou-lhe a palma, com uma obra que subiu Christie’s e da Sotheby’s representa, por um lado, até aos e 14.487.000, numa vertigem de zeros que deixou muitos especialistas o reconhecimento da qualidade da obra e, por apreensivos devido às semelhanças que este fenómeno parece ter com a euforia de outro lado, a homologação de um valor credível preços do início da década de 90 (do século passado), quando inúmeras pinturas e sustentado da mesma. Para que as portas deste de Van Gogh subiram aos píncaros do estrelato artístico, para depois se afundarem circuito se abram de par em par a um qualquer no silêncio mais que suspeito da insolvência de um tal sr. Bond, australiano, e nas artista, é necessário, em primeiro lugar, o seu extravagâncias de um milionário japonês, o sr. Sato, que desejava insistentemente reconhecimento tácito no mercado de origem, a levar um Van Gogh (e um Renoir) consigo para o outro mundo. estabilização da sua cotação no mercado local, pois No mesmo leilão da Christie’s a que fizemos referência a propósito de Paula é a partir dos coleccionadores desse circuito nacional Rego e Lucian Freud, foram quebrados vários recordes pessoais de outros artistas que se alicerça a rampa para a internacionalização. conhecidos da cena artística internacional como, por exemplo, Thomas Schütte, Por outro lado, não é possível definir uma estratégia Rosemarie Trockel, Piero Manzoni, R.B. Kitaj e Tàpies, entre outros. de internacionalização de um artista cujas obras não Com efeito, nas últimas duas décadas assistimos, no plano internacional, circulem já em mercados estrangeiros. Finalmente, a a uma alteração no gosto dos coleccionadores ou, pelo menos, verificou-se presença de um artista em iniciativas institucionais é uma transferência significativa do investimento em arte dos leilões de obras também fundamental. impressionistas e modernistas para os leilões de arte contemporânea, nos quais a Dos artistas portugueses, apenas os quatro que maior parte dos lotes apresentados à praça pertencem a autores ainda activos e cada referimos lograram, até ao momento, aceder a esse vez mais jovens. As razões que determinaram este fenómeno são de natureza muito circuito milionário. Mesmo autores com a qualidade diversa, como a raridade de obras de autores mais antigos disponíveis para venda, a e visibilidade de um Júlio Pomar, Cabrita Reis, necessidade de renovar periodicamente o mercado, a cada vez maior mediatização João Penalva, entre tantos outros, não reuniram da contemporaneidade artística mas, sobretudo, o aparecimento de um novo tipo ainda os requisitos necessários para constarem nos de coleccionador ou investidor em arte, para quem a intervenção nos domínios leilões milionários de Londres e Nova Iorque e, dos da cultura assume não só o carácter de valorização pessoal e social, mas também quatro que referimos, Paula Rego e Vieira da Silva uma forma de aplicação financeira – de um negócio, em suma - cuja rentabilidade construíram toda a sua carreira no estrangeiro, em é necessário salvaguardar e promover activamente. Foram estes coleccionadores Londres e Paris respectivamente, não se podendo empresários, sem tradições firmadas na cultura, que nos últimos anos investiram portanto falar propriamente de uma estratégia de maciçamente nos artistas actuais e agora sustentam e promovem as cotações dos internacionalização sistematicamente construída. | Paginação1.1.indd 17 07/09/04 22:20:38 18 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 ARTE CONTEMPORÂNEA h LEILÕES ARTISTAS PORTUGUESES NO CIRCUITO MILIONÁRIO FILIPA VICENTE 2. 3. 1. Paula Rego | “The Moth”, 1994 | Pastel s/ papel | 160 x 120 cm | Vendido na Christie’s de Vieira da Silva | “Papillons”, 1951/2 | Óleo s / tela | 60 x 120 cm | Vendido na Artcurial de Londres, em 20 de Junho de 2007, por US$ 727.548. Paris, por US$ 574.350. 2. Paula Rego | “Target”, 1995 | Pastel s/ papel | 160 x 120 cm | Vendido na Sotheby’s de Julião Sarmento | “Emma 4”, 1990/1 | Óleo, grafite e areia s/ tela | 190 x 199,5 cm | Londres, em 22 de Junho de 2005, por US$ 627.737 Vendido na Sotheby’s de Londres, em 14 de Outubro de 2006, por US$ 95.094. Paula Rego | “Island of the Lights from Pinocchio”, 1996 | Tinta da índia e aguarela s/ Julião Sarmento | “A Prece de Viriato”, 1985 | Óleo, papel e colagem s/ tela | 188 x 279 cm | papel colado s/ tela | 150 x 180 cm | Vendido na Sotheby’s de Londres, em 9 de Fevereiro de Vendido na Christie’s de Londres, em 9 de Fevereiro de 2007, por US$ 94.117. 2006, por US$ 441.600. Paula Rego | “The Sweeper”, 2002 | Pastel s/ papel | 150 x 90 cm | Vendido na Sotheby’s Helena Almeida | “s/ título (seis trabalhos)”, 1976/7 | Gelatin silver print | 40 x 50,2 cm | de Londres, em 23 de Junho de 2004, por US$ 213.818. Vendido na Christie’s de Londres, em Abril de 2005, por US$ 33.834 3. Paula Rego | “The drawing lesson”, 1985 | Acrílico s/ papel | 100 x 70 cm | Vendido na Helena Almeida | “Voar (em quatro partes)”, 2001 | Cibacrome | 124 x 180 cm | Vendido Sotheby’s de Londres, em 10 de Fevereiro de 2005, por US$ 211.502. na Sotheby’s de Londres, em 16 de Outubro de 2006, por US$ 63.396. Vieira da Silva | “Souterrain”, 1948 | Óleo s/ tela | 81 x 100 cm | Vendido na Sotheby’s de Londres, em 29 de Junho de 1990, por US$ 855.809. Paginação1.1.indd 18 07/09/04 22:20:41 RAJASTÃO | Fotografia: Maria João lima Grande A Índia é assim grande. Difícil de contar num livro, numa colecção, só captável de relance em palavras de papel jornal. Um território imenso, o sexto maior do mapa político mundial. Paginação1.1.indd 20 07/09/04 22:20:42 21 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 Dossier ÍNDIA JORGE BARRETO XAVIER A Índia é assim grande. Difícil de contar num livro, milenares no território que ocupa, se tem actualizado numa colecção, só captável de relance em palavras e fortalecido como Nação nos últimos anos. de papel jornal. Um território imenso, o sexto maior A identidade indiana tem sido forjada com uma do mapa político mundial. Uma população que coerência maior por efeito da criação, em 1947, da continua a crescer e já ultrapassou os mil milhões União Indiana, reunindo sob uma mesma bandeira de habitantes, tendo apenas a China pela frente. As um território que nunca esteve integralmente montanhas mais altas do mundo, desertos de calor coberto pelos maiores impérios (como o mogol) tórrido, praias em sete mil quilómetros de costa, que marcaram o Industão, um território marcado florestas luxuriantes, cidades milenares. pela existência de um número incontável de E depois, o choque de saber que se projecta para 2050 realidades políticas, etnias, situações diferenciadas de serem a China e a Índia as economias dominantes. desenvolvimento. Que só na Índia as universidades “produzem”, O efeito da presença militar, administrativa, comercial, anualmente, dois milhões de licenciados. Mas onde a cultural, da Companhia Inglesa das Índias Orientais taxa de analfabetismo é a maior do mundo e a sida e da Coroa britânica teve um papel importante na um problema gravíssimo. afirmação identitária que se tem sedimentado nos Muito difícil relatar de forma coerente o estado das últimos sessenta anos. Um pequeno parágrafo nas coisas nesta terra, com a economia a crescer 8% histórias que se podem contar dos últimos quatro mil demais Paginação1.1.indd 21 ao ano. Aqui se instalam clusters de tecnologias que de um espaço geográfico onde, ao lado de culturas criam desemprego na Europa e nos Estados Unidos de subsistência se afirmaram algumas das mais nas respectivas áreas. Ao mesmo tempo, esta Europa florescentes da Humanidade. que morre demograficamente tem de se alimentar da Sendo pequeno, este parágrafo não é menor, pois emigração qualificada e não qualificada para avançar. trouxe o modelo de uma democracia parlamentar Aqui está um Estado que tendo afinidades históricas para a Índia, fazendo desta, actualmente, a maior 07/09/04 22:20:42 22 Dossier ÍNDIA GRANDE DEMAIS democracia do mundo. Ironia estranha, pois o Reino templos e espaços de oração não orienta, necessariamente, os comportamentos Unido, enquanto esteve, subjugou, explorou, mas ao por regras sábias ou por atitudes de desprendimento. O sistema de organização sair, deixa um modelo de liberdade. social por castas, apesar de manter um papel relevante, pode, com alguma Apesar das situações passadas de recentes guerras facilidade, ser ultrapassado por uma bom dote, pela riqueza de um empresário, com vizinhos como a China ou o Paquistão (aqui pelo lucro provável decorrente de uma certa ligação profissional. com uma ferida aberta ainda), de alguns problemas Atente-se agora na relação Portugal-Índia: no mundo globalizado, onde em cada secessionistas (Caxemira, Assam, Punjab) a Índia seis seres humanos um é indiano, percebe-se a premência de melhor conhecer estabilizou o território e as suas populações (28 um país com o qual perdemos contacto. Portugal tem, como todos sabemos, Estados, 18 línguas, mais de 800 dialectos). aspectos mal resolvidos como nação, com o seu período colonial. Os 450 anos Usou como cimento para a sua multiplicidade, e para as suas divergências, as palavras e as atitudes sábias de Mohandas K. Gandhi. Não se duvidará do seu papel no caminho para a independência e na afirmação do novo Estado, nas décadas de trinta e de quarenta. Mas não se pense que Gandhi, como outros indianos, hindus, muçulmanos, cristãos, jainas ou sikhs notáveis de todos os tempos, representam a maioria da população. Como em qualquer nação, os seus referenciais unem, por vezes numa aparência comummente aceite, o que não pode fazer esquecer a enorme diversidade das manifestações do quotidiano e dos seus cidadãos. É assim que se compreende que haja religiosidade e materialismo, democracia e corrupção, avanço tecnológico e analfabetismo, turismo de luxo e sida. A estes binómios, reducionistas, é certo, poderiam acrescentar-se outras construções, para afirmar a Cartaz de um filme de Bollywood complexidade deste país/continente. Os indianos, que continuam a fazer questão de de presença na Índia parece que se diluíram, evaporaram do nosso imaginário impressionar os visitantes, são muito pragmáticos. colectivo. Em alguns territórios indianos, essa presença continua a ser uma Tive a oportunidade de reparar como se avalia realidade e hoje, o Governo da Índia já é suficientemente forte para não ter e categoriza um interlocutor, seja indiano ou problemas com a salvaguarda do património histórico português. estrangeiro, no início de uma conversa, para situar Hoje, quantos portugueses há a estudar em universidades indianas? Contam-se o modo como se estabelece a relação de Poder pelos dedos de uma mão, talvez duas? Quantos verdadeiros conhecedores das concreto. É a partir daí que se estabelece a relação realidades desse imenso espaço de oportunidades? inter-pessoal. Estive em Goa em Março passado. Lá, o tempo parece correr depressa. As classes E se se olha para a Índia como espaço de altas e médias (enquanto as classes pobres muito lentamente se libertam dessa espiritualidade, não se pode esquecer o outro lado condição) anseiam pelo futuro, entusiasmam-se e correm para esse futuro. - o materialismo. A vontade de ascensão das classes Dizem-me ser assim em Mumbai, em Bangalore, em Delhi, em Calcuta, em médias, a afirmação ostentatório das classes ricas, Madras. a pouca preocupação destes com os mais pobres. Notei um entusiasmo, um dinamismo. Uma amizade com o Presente que por cá Esta terra onde se situam mais de dois milhões de vai faltando. Vale a pena fazer a ponte. | Paginação1.1.indd 22 07/09/04 22:20:42 24 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 Dossier ÍNDIA Peter Nagy | tradução de Maria correia A Índia: Em Casa no Mundo Após um longo período de desconhecimento e indiferença por parte da comunidade internacional, a Índia tornou--se, nos tempos recentes, cada vez mais visível. A prática da arte contemporânea na Índia actual granjeou a distribuição e um vasto reconhecimento reflecte a diversidade do próprio país. Tão grande público. Em seguida, veio a obsessão do mundo da quanto a Europa inteira, o subcontinente indiano moda. Nas grandes capitais do mundo, as calças engloba idêntica dimensão de pluralismo cultural. de ganga e as camisolas enfeitadas com brocados Desde a ponta norte de Kashmir à província de de saris, ou as sacolas de tela indiana semeadas de Kerala, a sul, a diversidade espelha as diferenças que lantejoulas tornaram-se objectos banais. A influência podemos, por exemplo, encontrar entre a Lapónia e da música chegou com a introdução de guitarras a Sicília. As práticas políticas e religiosas, os estilos indianas e alaúdes nas pistas de dança ocidentais no vestuário e na arquitectura, a cozinha, as línguas, e com a surpreendente adição de instrumentos os rostos e a música alteram-se drasticamente de de música tradicionais do Punjab no gangsta-rap uma província para outra. A unificação destas massas americano. Também na comida, as especiarias heterogéneas com o objectivo de fundi-las numa indianas e as diversas cozinhas regionais foram nação democrática e secular é uma das maiores redescobertas, adaptadas e contextualizadas. No histórias de sucesso do séc. XX. que respeita ao ioga, pode argumentar-se que Após um longo período de desconhecimento e este se tornou actualmente a forma de exercício indiferença por parte da comunidade internacional, predominante nos Estados Unidos. a Índia tornou-se, nos tempos recentes, cada vez mais Os projectores parecem agora incidir sobre as artes visível. É certo que isso se deve, em larga medida, contemporâneas do país. Talvez um pouco tarde, a factores económicos. Com um mercado da classe dir-se-ia, mas é como se um domínio globalizado média em rápida expansão no que se refere ao da arte tivesse antes de digerir uma quantidade de consumo de bens, uma mão-de-obra inesgotável produtos vindos da China e do Japão, mesmo da e uma aptidão especial para as ciências aplicadas, este América do Sul e da África, até poder debruçar-se país e este povo estão dispostos a alcançar o poder sobre a Índia. Se tivermos em consideração o cariz regional, a competir agressivamente com a China e a geralmente explorador e enganoso da globalização ganhar o respeito crescente das potências do futuro. nos seus mecanismos económicos e capitalistas, Mas a cultura também desempenha aqui o seu papel. na indústria cultural esta surge, afortunadamente, Os anos 90 testemunharam a aparição de escritores após décadas de diálogo sobre multiculturalismo, indianos que se exprimiam em inglês, o que lhes pós-colonialismo e análise marxista. Muitos artistas Paginação1.1.indd 24 07/09/04 22:20:42 25 UM OCEANO INTEIRO h fotOGRAFIA: Maria João lima indianos, que se servem do vídeo e da fotografia populares e tribais, indústrias de informação e alta tecnologia, cultura dos povos, ou dos media recentes para abordarem temas iconografias religiosas, técnicas de artesanato, desigualdades sociais, diálogo sócio-políticos, assumindo atitudes agressivamente político e até às histórias da arte moderna ocidental e da filosofia europeia. Uma esquerdistas, expõem hoje as suas obras pelo mundo mistura forte e entrelaçada que provoca a um tempo prazer e consternação e inteiro, enquanto na própria Índia o interesse e as que confunde inteiramente qualquer leitura simplista daquilo que é a prática oportunidades ainda lhes escasseiam (isto deve-se ao artística contemporânea na Índia actual. Os artistas que começam a alcançar o facto de o mercado de arte indiano, hiper-activo mas reconhecimento internacional parecem ter intuitivamente encontrado para as suas conservador, continuar fixado na pintura, quase não obras o justo equilíbrio entre o local e o global, uma mistura que se identifica com existindo apoios institucionais para qualquer tipo de o facto de a melhor arte poder ser “globalizada” a partir de qualquer local. É caso arte contemporânea). para nos questionarmos sobre quão “indiana” deve ser a arte contemporânea À medida que a nação indiana vai ganhando na Índia. Pode também pôr-se esta questão relativamente aos “chineses”, aos importância na cena internacional, a sua cultura torna- “africanos” ou até aos “americanos”. No estágio presente da arte contemporânea, se cada vez mais relevante para o resto do mundo. quantas referências à cultura tradicional queremos ver nela incluídas? Quantos Conforme escreveu, há longos anos, o reconhecido elementos de expressão popular, tradicional ou nacional são desejados ou descritos crítico Thomas McEviley na revista Artforum, “A Índia como naïf pela audiência internacional? Francesco Clemente é considerado como já era uma nação pós-moderna antes de se tornar “visionário” ao inspirar-se na Índia; porém, os artistas indianos são vistos como uma nação moderna.” Continuando a debater-se, por “à deriva” quando se reportam à Arte Povera. Até que ponto somos receptivos às diversas formas, com o “moderno”, a Índia actual surge- espirais de influência que impelem a cultura contemporânea à volta do mundo e de nos como o exemplo par excellence da era pós-moderna, que forma temos consciência dos nossos preconceitos relativamente à direcção que um modelo para outras nações que queiram resolver essas influências devem seguir? | as suas ansiedades e dificuldades internas associadas à hibridez, complexidade, contradição e diversidade. Esta diversidade reflecte-se na arte contemporânea produzida actualmente na Índia. O público encontrará obras que reportam à mitologia clássica, tradições Paginação1.1.indd 25 Peter Nagy é um artista nova-iorquino que vive na Índia desde 1992. Entre 1982 e 1988 foi director da Galeria Nature Morte, na East Village de Nova Iorque. É, desde 1997, director da Nature Morte em Nova Deli. Em colaboração com a Galeria Bose Pacia, de Nova Iorque, desde 2003, a Nature Morte é a primeira galeria da Índia a participar em prestigiadas feiras de arte internacionais, tais como o Armory Show, em Nova Iorque (2005, 2006 e 2007), a Art Basel, a FIAC, em Paris, e a Art Basel Miami (2006). Em Março de 2007 ambas galerias abriram em conjunto um novo espaço chamado Bose Pacia Kolkata, em Calcutá. Além de dirigir a Nature Morte, Nagy é convidado para comissariar exposições tanto na Índia como no exterior e os seus artigos sobre arte contemporânea estão publicados em muitos jornais e revistas. | 07/09/04 22:20:43 26 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 Dossier ÍNDIA NANCY ADAJANIA | tradução de Maria correia ARTE CONTEMPORÂNEA DA ÍNDIA ESPAÇOS DE VAIVÉM A arte contemporânea da Índia tem sofrido muitas vezes um tratamento procustiano, com os críticos a tentarem confiná-la à retórica de uma cultura nacional ou a uma construção limitativa como a de identidade. Paginação1.1.indd 26 07/09/04 22:20:44 27 à esquerda | Raqs Media Collective | instalação “The KD Vyas Correspondence: Vol. 1·, 2006 | 18 ecrãs, 9 paisagens sonoras, arquitectura metálica, theromocol casing | Fotografia: Norbert Thigulety | EM CIMA | DETALHE DA Instalação. Paginação1.1.indd 27 A arte contemporânea da Índia tem sofrido muitas a sua obra, em espaços alternativos que não sejam vezes um tratamento procustiano, com os críticos estatais ou privados, nem galeria nem partido político. a tentarem confiná-la à retórica de uma cultura Coloca-se, muitas vezes, a seguinte questão: como nacional ou a uma construção limitativa como a de prosseguir uma política que não esteja comprometida identidade. Neste artigo abordarei a questão através com o político? Como realizar produções culturais dos processos e actividades diversas através dos quais que não sejam neutralizadas pelo mercado artístico? os artistas contemporâneos indianos têm produzido Assim surgiram novas espécies de convergências a sua arte, muitas vezes em condições difíceis ou até de interesses e alianças de vontades: entre o críticas. Falarei, assim, sobre o vaivém alternativo activista ambiental e o documentarista, o fotógrafo entre a fotografia e o filme; sobre o aproveitamento e o arquivista, o técnico de animação e o contador de arquivos no intervalo entre o documentário e de histórias. Muitos deles estão empenhados em a ficção e o espaço entre o registo e a realização; democratizar os recursos da época actual, os mesmos sobre o futuro da representação entre morphing e recursos que os controladores querem utilizar para realismo; sobre o cruzamento entre as economias exercer o seu domínio: as comunicações e tecnologias de fazer e receber e a difícil recuperação do sagrado de imagem, redes digitais, códigos de acesso e por aí como um dos conceitos legítimos e mais ignorados fora. do ser contemporâneo, muitas vezes desafiando uma As fronteiras e os arquivos têm sido uma fonte religiosidade mesquinha e politizada. metafórica para o colectivo Raqs Media Collective Os artistas indianos têm trabalhado nestes espaços de (Monica Narula, Jeebesh Bagchi and Shuddhabrata vaivém: zonas intermédias entre os estilos, os media, Sengupta) e também para Shilpa Gupta. O mito as audiências e as diversas economias de produção. foi utilizado por artistas como Jitish Kallat, Reena O seu trabalho apoia-se numa busca renovada de Saini Kallat, Anant Joshi and Justin Ponmany, não autonomia num período da história caracterizado pela apenas como combustível fóssil da imaginação, mas força crescente das restrições e pelo controlo, ainda também como uma história inacabada para o ser, a que assaz imperceptível, das escolhas e movimentos qual pode assumir as formas de um conto de fadas individuais; restrições de acesso e passagem; vigilância contemporâneo, folclore urbano, animação alternativa e militarização; e também constrições políticas e auto-dramatização. frequentemente violentas, baseadas na religião, nas Estes projectos artísticos transformam a produção origens étnicas e na identidade regional. estética em expressão política; eles desafiam o Muitos destes artistas procuram situar-se, e situar poder a diversos níveis; expõem à vista geral os 07/09/04 22:20:44 28 O colectivo Raqs exibe as suas intervenções no universo digital, assim como no disputado espaço público da Índia metropolitana que se caracteriza pelo rápido consumismo mecanismos secretos da coerção, do conformismo e narrativas, não é de admirar que o colectivo Raqs da manipulação. O conceito de autoria foi igualmente se tenha voltado para as narrativas épicas da Índia transformado por artistas como os do colectivo Raqs antiga. Estas, em particular o Mahabharata, são ou Shilpa Gupta, aqui representados. divulgadas por uma interacção constante entre as A natureza da obra leva-os a desenvolver situações versões originais do sânscrito, literariamente cultas, de colaboração com outros artistas e com especialistas e muitas outras versões subalternas e regionais, de outras disciplinas. Avançaram, assim, para uma improvisadas em espectáculos e em narrativas orais. compreensão alargada do conceito de autor, em que É a partir deste relacionamento que surge The K D o processo de produção é distribuído por múltiplos Vyas Correspondence: Vol. 1, no qual o grupo traduz a colaboradores ou emerge dos diálogos estabelecidos estrutura hipertextual da narrativa épica sob forma de na troca dos processos de construção. Desta forma, correspondência. O público é acolhido por uma árvore os artistas vão “re-mundanizar-se”, penetrando em de mensagens, tanto visuais como auditivas; espaços que talvez não tivessem ainda explorado, e passamos com ele da “Carta descoberta num usando ligações semelhantes a hipertextos para arquivo morto”, para a “Carta do tempo amargo da passarem de um plano a outro, fabricando para si paz”, até chegarmos à “Carta incriminatória do leitor”. novas vivências e novos contextos operacionais. Vacilando entre o surreal e o sombrio, o mágico e o Assistimos, portanto, à emergência de práticas messiânico, esta é uma das obras mais conseguidas comunitárias que se baseiam na partilha de interesses dos Raqs, cheia de ressonância, melancolia e de uma livres e democráticos; por exemplo, a livre partilha de poética metafísica da duração. software entre o colectivo Raqs e o Sarai Media Lab, Para vários destes artistas, o tema da catástrofe que produziu a OPUS (Open Platform for Unlimited é recorrente. Reena Saini Kallat desenvolve, no Signification), e cujos utilizadores podem descarregar seu trabalho, a ligação entre o medo do desastre conteúdos de media, como textos, imagens, vídeo e (“má estrela”, literalmente, em grego) e a magia áudio, modificá-los e devolvê-los. Este projecto inspira- apotropaica. As suas pinturas e esculturas- se no princípio da revisão: a alteração do código- instalação retratam o corpo humano e o corpo fonte de que resultará um conjunto de novas versões, político, por extensão, colocado em estado de sítio nenhuma delas singular ou categórica e todas elas permanente, destroçado por demónios míticos e estimulantes a diferentes níveis. vírus desconhecidos que o atacam por todos os lados. O colectivo Raqs exibe as suas intervenções no As acções desta artista revelam uma necessidade universo digital, assim como no disputado espaço obsessiva de consagrar lugares contestados, de afastar público da Índia metropolitana que se caracteriza as forças de conflito e o caos. Exterioriza os seus pelo rápido consumismo. Com a sua abertura medos e ansiedades acerca da condição humana, aos conceitos de autoria múltipla, de partilha dos na expectativa de poder contê-los e neutralizá-los direitos de propriedade e de proliferação de versões através da criação de objectos talismânicos. Paginação1.1.indd 28 07/09/04 22:20:45 29 Dossier ÍNDIA Arte contemporânea na Índia: espaços de vaivém Reena Saini Kallat e Shilpa Gupta demonstram, elemento lúdico na obra de Joshi associa-se ao teatro em três aspectos diferentes: de formas distintas, empenho em envolverem- primeiro, ao teatro tradicional de sombras de fantoches, segundo, à lanterna se numa observação do sagrado num contexto mágica e ao zoetrope (mecanismo que dá a impressão de figuras em movimento) e, contemporâneo. Ambos trabalham nos extremos terceiro, à economia mundial de hoje, em que os brinquedos chineses se vendem entre a religiosidade politizada e a secularização a baixo preço nas ruas de Bombaim. Joshi alude também à histeria consumista agressiva. Nas suas mais recentes instalações que conquistou a Índia urbana, dando ênfase ao lixo das mercadorias do usa-e- interactivas, Gupta trabalha com um jogo de deita-fora e à celebração destrutiva de um excedente ilusório que origina a um sombras e realidades que é a um tempo espectral sentimento superficial de abundância. e estranhamente corpóreo. Neste jogo cintilante de fantasmas, o público é forçado a participar, pois as suas sombras, captadas ao vivo por uma câmara posicionada no local, interagem com as figuras sombrias projectadas em vídeo. Poder-se-ia considerar esta insistência na interactividade como o pretexto para uma descarada vigilância por parte do artista, forçando o público a uma colaboração intensa? Reduzidos às próprias sombras, os participantes seguem o artista até à realização dos seus mais profundos e básicos instintos. Gupta explora as sensações do público nessa situação: “Eu faço parte da sombra! Mas ninguém me pediu licença, teria nascido para ela? Teria nascido para este país, esta sociedade, esta religião?... Mas posso sair dela...” Gupta trata a noção de pertença a uma religião ou país como uma fé que pode ser transcendida, não como algo em que se está forçosamente encerrado. Anant Joshi está igualmente fascinado pela recuperação da sombra no simbolismo contemporâneo. Nas suas instalações multimédia, coloca brinquedos em cima de mesas ou em dioramas e simulações de montras de lojas. Projecta, em seguida, as sombras dos objectos nas paredes como presenças nefastas: um meditativo horizonte urbano ou um exército de demónios surgem das sombras. Ou então seguimos com os olhos um rápido tremeluzir de luzes através de uma cortina de lâminas, para encontrarmos brinquedos rodando penosamente no espeto do fogão de uma bruxa sádica. Joshi conduz-nos através de um inferno de animações ferozes, máquinas infernais, brinquedos possuídos por espíritos diabólicos, rabiscos maníacos: estamos no conto de Hansel e Gretel, ou recebemos um vislumbre do sindroma da Baía de Guantanamo? O Paginação1.1.indd 29 Shilpa Gupta | “Sem Título”, 2006 | Projecção vídeo interactiva (1). 07/09/04 22:20:45 Shilpa Gupta | “Sem Título”, 2006 | Projecção vídeo interactiva (2). Justin Ponmany e Jitish Kallat partilham entre si uma consciência estruturada, amolgada”, a paisagem transformou-se numa massa no princípio dos renovados anos 90, pela televisão por cabo e pelo ciberespaço. fluida e gelatinosa ou numa emanação que se Ponmany começou a usar superfícies hologramáticas para mostrar paisagens dissolve. Na abstracção manga de Kallat, o mundo urbanas e elementos de heráldica contemporânea que podiam ser vistos em parece ter ultrapassado o prazo de validade e ter diversas resoluções, conforme iam surgindo ao olhar a partir da superfície entrado em colapso através da catástrofe ecológica e preparada. Nas obras mais recentes, rebenta com o próprio conceito de panorama do caos da não-pertença. fotográfico ao produzir close-ups panorâmicos de 360 graus que retratam a camada Como se depreende do que ficou acima exposto, subalterna da população indiana em grandes dimensões. Ponmany representa na todos estes artistas estão simultaneamente sua obra o absurdo de cartografar e vigiar quando abre a cabeça de um homem concentrados no domínio regional e no transnacional: como um globo achatado, um mapa esticado e vulnerável de pele e cabelo, querem destacar-se dos seus congéneres de outros parodiando as fotografias por satélite do Google Earth, penetrantemente invasivas, países e com situações similares; querem contar as ou as repressivas investigações forenses do Identikit. suas próprias histórias e projectar as suas imagens, Kallat traduziu as suas superfícies pictóricas para ecrãs de computador simulados, estando contudo atentos aos temas que preocupam servindo-se de noções de distorção digital e transmissão espectral. Anteriormente, os artistas estrangeiros. Esta atitude fá-los avançar estruturava as obras de fontes tão diversas como uma fotografia de jornal ou um grande passo em relação ao sindroma de um menu de conteúdos digitais, e os seus protagonistas eram muitas vezes desconfiança/agressividade das gerações passadas figuras fugitivas, vítimas de migrações forçadas, de desígnios mal concebidos e faz-nos antever um futuro no qual os artistas e de remedeios drásticos. Enquanto se celebrava a liberalização económica, indianos irão conquistar o seu lugar no mundo. | Kallat insistia em retratar os prisioneiros desse mesmo progresso, os habitantes de moradas não fixas, a população flutuante da Índia urbana. No presente, as figuras de Kallat têm-se tornado mais caricaturais, aparentemente baseadas em exemplares manga; enquanto o ser humano se transformou numa “carroça Paginação1.1.indd 30 Nancy Adajania É ensaísta, crítica de arte e curadora independente. Os seus ensaios sobre novos media foram publicados em edições da Documenta 11, do Zentrum für Kunst und Medientechnologie (ZKM) e de revistas como Springerin, Metamute, Art 21, Art Asia Pacific, e Documenta 12 Magazine. Vive e trabalha em Bombaim. | 07/09/04 22:20:46 31 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 Dossier ÍNDIA RANJIT HOSKOTE | tradução de Maria correia Baiju Parthan Ranjit Hoskote conversa com baiju parthan, 2007 | “Sequence - “a” & “B”” | TINTA SOLÚVEL EM ÁCIDO INOXIDÁVEL | Baiju Parthan (nascido em 1956) é um dos mais importantes artistas indianos da actualidade, tanto na pintura como nas artes “intermedia”. Para além de tecer através da pintura um universo íntimo e misterioso, também combina os interesses pictóricos com explorações no ciberespaço, de que resulta um conjunto de instalações provocatórias e de textura intensa. A sua obra alcançou projecção internacional, tendo sido exposta em diversos espaços culturais, entre outros, o Kunsthalle Wien, Viena; a Culturgest, Lisboa; o ‘New Moves’ Live Art Festival, Glasgow; e a Japan Foundation, Tóquio. 218 X 112 CM Paginação1.1.indd 31 07/09/04 22:20:47 baiju parthan, 2000-2003 | “CODE - FUTURZ MACHINE” | INSTALAÇÃO DIGITAL INTERACTIVA | HTML, I-CHING DATA BASE baiju parthan, 2001-2003 | “DIARY OF THE INNER CYBORG” | INSTALAÇÃO DE VÍDEO DIGITAL INTERACTIVA | PAINÉIS ILUMINADOS POR TRÁS, PROJECTOR LCD. Ranjit Hoskote: Você nada através das correntes da sociedade de informação como Hanuman de mãos-atrás-das-costas. É como se você um míssil teleguiado. Acha esta imagem demasiado cortante e ambiciosa para definir a se imaginasse “fora das situações”, como já disse sua actividade, ou vê-se a maior parte das vezes no modo de piloto automático em que anteriormente no meu trabalho, Passando através de as sugestões se vão filtrando gradualmente? Espelhos? Reflexões sobre o Tráfico Espiritual entre a Baiju Parthan: Um míssil teleguiado! Parece-me uma imagem demasiado intencional! Índia e a Europa, acerca de outros eus em trânsito entre Vejo-me mais como um motor de busca (ou ser rastejante) de olhos bem abertos a culturas, épocas e estilos! procurar e a organizar informação. Da mesma forma que um motor de busca, também BP: Embora eu não procure conscientemente auto- eu pesquiso dentro da informação padrões que tenham alguma espécie de potencial imagens, estas às vezes insinuam-se. O robô-de-olhos- profético. Examinando padrões no fluxo de informação pode dizer-se: “Ok, o mundo/a fechados, por exemplo, é definitivamente a expulsão humanidade está a mover-se para esta ou aquela situação”. O que eu observo agora é do eu. E como você disse, suponho que as outras são um colapso ontológico e uma alarmante erosão dos significados. também eus que se encontram em trânsito. RH: Exprime-se como um profeta da desgraça. Como o Hari Selden da série Foundation RH: Na inscrição das colunas que acompanhavam a do Asimov, para não ir mais fundo ainda na tradição apocalíptica... sua projecção em Um Diário do Robô Interior ou DRI BP: O Hari Selden da Foundation! Isso é realmente lisonjeiro. Gostaria imenso de ser (na instalação “intermedia” que você produziu para a um profeta psico-historiador que tenta salvar a humanidade da extinção. Infelizmente exposição “Clicking into Place”, comissariada por mim não sou. Mas creio firmemente que os artistas e os poetas possuem uma certa visão em Bombaim, em 2002) e em A Fool’s Journey (em privilegiada, visto que estão sempre a tentar ver para além da realidade aparente. Por 2005) você vira as costas ao mundo, e aos observadores, vezes esta visão ampliada produz os seus frutos, ainda que possam ser amargos. e apresenta em seu lugar uma lista, que é também RH: A auto-representação é um traço recorrente no seu trabalho - diria até que para um biombo ou um véu, que consiste em nomes de uma personalidade aparentemente hesitante e que persiste em se apagar, você filósofos, gente do espectáculo e artistas que foram produziu uma série inspirada de auto-retratos - e refiro-me aqui ao robô-de-olhos muito importantes para si. Isso é uma espécie de auto- fechados, ao Cristo-além-de-Dürer, ao tigre-dançarino ginasta e à figura flexível de definição através dos outros? Uma válvula de escape ou Paginação1.1.indd 32 07/09/04 22:20:47 baiju parthan, 2004 | “A fool’s journey” | TINTA SOBRE ALUMÍNIO | 193 X 76 X 5 CM uma afirmação da multiplicidade de eus que representa? um ícone que já copiei em diversos trabalhos. BP: Nesse trabalho quis dizer que sou uma série de RH: Baiju, sente que é um robô? Sei, por experiência retalhos de influências e ideias obtidas através de própria, que um colapso do disco rígido é uma múltiplos ângulos da actividade humana. Estava a experiência de quase-morte. Sentimos que perdemos tentar contrapor esse eu-robô-substituto com o eu uma parte de nós, que ficamos nós próprios em risco de da série de retalhos. Queria exprimir que a nossa extinção. E a sua experiência no âmbito das realidades preciosa auto-imagem é na realidade uma ficção que cibernéticas e digitais é muito mais intensa e vivenciada está ao mesmo tempo a ser escrita e apagada. do que a nossa. RH: Interessa-me a personagem barbeada, de olhos BP: Se eu sou um robô? De certas maneiras fechados, de pele azul do Robô Interior que foi suponho que sim, porque mantenho uma relação exposta, ainda antes do DRI, no Objecto de Desejo quase simbiótica com os meus computadores. (2001) e que também aparece noutros lados. Como foi Principalmente porque eles são uma extensão do que chegou a essa personagem? próprio ser e são invisíveis, são para nós coisas BP: Na verdade, a primeira versão do “robô interior” garantidas e invisíveis como a electricidade. É o foi terminada no ano 2000. Modelei a figura do robô caso da ferramenta inventada que reformula a nossa a partir da figura humana genérica masculina num percepção do mundo. Tal como a invenção da roda software gráfico de 3D. Achei bastante apropriado reformulou a noção de distância e de mobilidade. | modelar a personagem virtual do DRI com base numa figura humana gerada no computador. Este retrato azul, de olhos virados para uma visão interior, de uma entidade inexistente, transpira uma inocência primordial e uma pureza que me atraíram. E tornou-se Paginação1.1.indd 33 Ranjit Hoskote É poeta, crítico de arte, ensaísta e curador independente. Foi colaborador do The Times of India e publicou inúmeros ensaios sobre artistas indianos. Vive e trabalha em Bombaim. | 07/09/04 22:20:48 35 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 Dossier ÍNDIA Alexandre Oliveira | Cláudia Pereira EXPOSIÇÃO MUSEU NACIONAL DE ETNOLOGIA Pinturas cantadas ARTE E PERFORMANCE DAS MULHERES DE NAYA Paginação1.1.indd 35 07/09/04 22:20:49 36 1. A interessante exposição “Pinturas Cantadas” mostra-nos a arte, a cultura, a história e a vida social de um grupo de mulheres da aldeia de Naya, no estado de Bengala, a três horas de Calcutá. No Museu de Etnologia, aqui tão perto, até ao final do ano. 2. Muito antes de os baladistas e os contadores de lendas medievais percorrerem os trilhos da Europa, já havia ao sul dos Himalaias quem se dedicasse não só a cantar como a mostrar as lendas e histórias do seu povo. Ao longo dos últimos 2000 anos, os patua (pintores de narrativas) foram pintando e cantando as histórias dos livros sagrados hindus mesmo depois de, por volta do séc. XVII, se terem convertido ao Islão. A troco de alimentos e abrigo, estes artistas percorriam as aldeias de Bengala Ocidental relatando amores e paixões de deuses e demónios, pregando valores hindus e muçulmanos e apelando à tolerância religiosa, para o que recorriam a canções e a longos rolos de papel ilustrados com cores vivas para acompanhar a canção. Este meio audiovisual milenar subsiste ainda adaptando-se às mudanças sociais que vão surgindo até nas mais recônditas aldeias da Índia, como na aldeia de Naya, a três horas de Calcutá, onde um grupo de mulheres de casta patua se associou para melhor vender e dar a conhecer o seu trabalho. A exposição do Museu Nacional de Etnologia, “Pinturas Cantadas - Arte e performance das mulheres de Naya” é consequência de um trabalho de mais de cinco anos levado a cabo pelo casal de investigadores Lina Fruzzetti e Ákos Östör, que quiseram passar para filme as vidas destas mulheres. Foi durante a exibição de Singing Pictures em Lisboa que surgiu o interesse por parte de Joaquim Pais de Brito do Museu Nacional de Etnologia e Rosa Maria Perez do Departamento de Antropologia do ISCTE em transpor este filme e os desenhos para a sala de exposições. Há então na exposição uma preocupação em apresentar não só os desenhos como as artistas, as mulheres de Naya, contando as histórias das suas vidas e a sua relação com a arte que abraçaram. Para tal são expostos painéis com os testemunhos das autoras, o filme e uma selecção de 58 rolos ilustrados. Também o sítio na Internet, criado por Ákos Östör na Wesleyan University do Connecticut, complementa a exposição, contextualiza o trabalho de campo e convida-nos a viajar em maior profundidade na vida social e ritual das mulheres de Naya: http:// learningobjects.wesleyan.edu/naya Entrar na exposição é sentir a harmonia cultural que o filme dos antropólogos também revela. A própria disposição original da exposição provoca a mesma sensação. Predominam as narrativas religiosas hindus e muçulmanas: sucedem-se os relatos das seduções de Krishna e o rapto da princesa Sita, contos do milenar Página anterior | vista geral da exposição livro hindu Ramayana, e conta-se ainda a história de Shoto Pir, homem santo 1. Mayna Chitrakar | “Manasa Mangal” | Pormenor | 339 x 56 cm muçulmano mas também venerado pelos hindus pois a todos ajudava em troca 2. Hazra Chitrakar | “Chandi Mangal” | Pormenor | 408 x 56 cm de respeito, caso contrário a pessoa seria devorada simultaneamente por tigres e 3. Rani Chitrakar | ”Discriminação das Mulheres“ Pormenor | 274 x 56 cm crocodilo, tal como sugerem alguns desenhos. Paginação1.1.indd 36 07/09/04 22:20:49 3. Paralelamente à tradição oral, onde predominam as narrativas religiosas hindus preto, açafrão para o amarelo e folhas de diferentes e muçulmanas, juntam-se inesperadas temáticas contemporâneas que apelam plantas para as outras cores. à consciência social: a violência doméstica, particularmente o assassínio de As mulheres hindus e muçulmanas, normalmente mulheres (para os maridos poderem casar novamente e receberem outro dote confinadas ao espaço da casa e da aldeia, no casamento); o controlo da natalidade; o infanticídio feminino; a sida. É a dependentes economicamente do marido, transpõem passagem dos patuas para o século XXI, agora solicitados pelos serviços sociais e assim o espaço da sua aldeia, abarcando novos por ONG para campanhas de informação e aconselhamento nas aldeias. Outros universos e dando a conhecer outras concepções temas contemporâneos surgem também pintados: o 11 de Setembro e o tsunami do mundo. As próprias tradições familiares foram no Oceano Índico são transformados em metáforas visuais por vezes mais cruas transformadas, passando a ser, em alguns casos, a que as imagens vistas e revistas nos nossos televisores. Os conflitos entre hindus mulher a garantir a subsistência económica. Cantar e muçulmanos são reprovados com apelos à fraternidade universal espelhada na e vender as pinturas deu-lhes a oportunidade de fraternidade das mulheres de Naya, hindus e muçulmanas: “Os shantal dizem obterem mais comida para casa e de os filhos Marang Gurang; os cristãos usam o nome Deus; os muçulmanos dizem Allah, poderem andar na escola. enquanto os hindus utilizam o nome Bhagaban. Nós somos a raça humana, Visitar esta exposição convida-nos também a filhos da mesma mãe”. Na verdade, se ao nível político nacional existem conflitos reflectir sobre o conceito de arte visual, enquanto religiosos entre hindus e muçulmanos, estas pinturas são o exemplo de como as estética e comunicação, simultaneamente. As religiões dialogam ao nível local da aldeia, quando mulheres hindus e muçulmanas “pinturas cantadas” são criadas, por um lado, com pintam tanto temas muçulmanos como hindus. Desta forma, é possível o intuito de serem esteticamente agradáveis, sem observarmos como a tradição é recriada na contemporaneidade para novos fins terem de ser pragmaticamente funcionais, embora sociais. também o possam ser (como nas situações em que Quando olhamos para uma destas pinturas no museu, a nossa imaginação divulgam mensagens sociais, a pedido de ONG); dificilmente consegue alcançar os locais por onde as suas pintoras cantaram e, por outro, tentam comunicar, potenciando a as histórias: o que os habitantes de várias aldeias aprenderam ao ouvi-las; o percepção do visitante sobre o mundo, através das deleite que as pintoras sentiram na sua elaboração; os laços que criaram entre as imagens, levando à percepção intuitiva do que é mulheres; semelhante no que é, a um primeiro olhar, diferente. a forma como as pinturas lhes permitiram uma melhor condição económica, bem Por outras palavras, são pinturas que apresentam como a possibilidade de se sentirem melhor consigo próprias. Na verdade, é este um estilo e um processo que não são familiares, um dos poderes da arte visual: o de transformação da própria forma de representar abordando temas com os quais todos nos podemos e de sentir a Arte. Aos olhos de um ocidental é, sem dúvida, curioso notar, por identificar; no fundo, tentando criar harmonia em exemplo, a forma como os americanos são representados no 11 de Setembro: com universos de tensão. São um objecto de arte tanto características orientais. Ou seja, um dos muitos modos de olhar o mundo. no espaço local, das aldeias indianas, como no de Sem terem tido a oportunidade de frequentar a escola e até de se deslocar para outras culturas exteriores, proporcionando uma além da própria aldeia, é surpreendente o grau de detalhe do trabalho das pintoras, fonte de rendimento, o que parece determinar a que nos permite intuir a mensagem principal sem sabermos a história concreta forma de uma pintura ser bem sucedida. É também que se encontra por detrás de cada peça. As pinturas são sedutoras não só pela a contemplação de um objecto tido como exótico sequência que contam, mas também pelos desenhos isolados, havendo linguagens (literalmente, vindo “de fora”) para um ocidental, diferentes de expressão, consoante as pintoras. O processo de pintura revela-se o que nos proporciona o contacto com o Outro, bastante artesanal, desde os pincéis que são feitos a partir do pêlo de esquilo e de através das emoções que nos provoca através das cabra, até às tintas de materiais orgânicos como grãos de arroz queimados para o suas imagens. | Paginação1.1.indd 37 07/09/04 22:20:50 38 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 Dossier ÍNDIA Luís Serpa Dos velhos contos às novas estórias GOMUKA’S ESCAPADE: «In the country of the Vatsas, on the river Kalindi, lies the city of Kausambi, which is the heart of the world. There reigned King Udayana. If one tried to enumerate, however briefly, the virtues of this land, this city, and this king, the story would never begin. If a traveller sets out on a journey to the seven oceans and continents of this world and begins his voyage by counting the jewels of Mount Meru, when will he ever have time to see the world?».1 2 “O [Rio] Ganges passa também pela Rua dos Douradores” [F. Pessoa] Paginação1.1.indd 38 07/09/04 22:20:50 Paginação1.1.indd 39 07/09/04 22:20:50 40 DOSSIER ÍNDIA DOS VELHOS CONTOS ÀS NOVAS ESTÓRIAS Graça Pereira Coutinho | ”Índia”, 2004 | Díptico | Fotografia PÁGINA ANTERIOR | Graça Pereira Coutinho | ”CRIANÇAS DE BENARES”, 2004 | Fotografia [1.] Os Velhos Contos de mercadores, artistas e suas perspectivas orientais no mundo medieval e na escritores não se têm cansado de transmitir descrições renascença. de viagens maravilhosas através de “um discurso Nacque al mondo un sole histórico, descritivo, oratório, dramático, poético, Como fa questo talvolta di Gange litúrgico ou epistolar (...). Predomina, todavia, o DANTE, Paradis, XV/51. carácter narrativo e a faceta autobiográfica, o que Esses testemunhos estimularam a imaginação e confere à obra um tom de verosimilhança (...) ora com as cartografias pessoais baseadas nas experiências elementos verídicos ora imaginários” (A. J. Saraiva). dos passeantes puderam ser elaboradas a partir de As descrições dos viajantes e a literatura em que diversos itinerários que concorreram para maravilhar a viagem se confronta com regiões e populações os mais eruditos escritores e poetas europeus distintas da origem do narrador “permite relatos mais (Petrarca_De Dita Solitaria). ou menos objectivos, mas também serve de pretexto Ligadas ao ciclo do Sol, as águas escaldantes do para reflexões sobre variados aspectos, numa escrita Ganges chegaram-nos carregadas de simbologia. 3 de características artísticas ou ensaísticas” . As narrativas extraídas do livro religioso Rig-Veda Da Verdadeira Informação das Terras do Preste João provam-nos como, dos hinos às lendas, das tradições das Índias, do padre Francisco Álvares (1540), ao orais históricas aos comentários práticos bramânicos, Itinerário em Que Se Contém como da Índia Veio dos monólogos aos argumentos com militares e por Terra a Portugal, de António Tenreiro (1560) heróis, demónios e crimes, melodramas e sátiras, e à Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (1614) “a literatura indiana é uma galeria onde figuram todas revelaram-se os misteriosos príncipes e impérios as escolas e tendências”. Transcende as audiências que intrigaram a imaginação europeia. O contexto aglutinadas pelos ancestrais crentes e pelas práticas geopolítico, económico e social revelou-se através de de transmissão de valores baseadas na embriaguês fontes pertencentes às potências comerciais graças do misticismo, nos dóceis e resignados cânticos, à exploração da “novas terras” (Paesi Nuovamente leituras ou representações dramáticas. Desde as 4 Ritrovati) em que as descrições da Índia aparecem já velhas epopeias sânscritas, os templos também como fazendo parte do património cultural da Europa. albergam reuniões políticas, filosóficas e didácticas e Cruzados, missionários e “viageiros” deram-nos as relatam a história das aventuras fantásticas passadas Paginação1.1.indd 40 07/09/04 22:20:51 Graça Sarsfield | Da série ”Rahasya”, 2001 | Tríptico | Fotografia | 70 x 53 cm com sacerdotes que sobem ao sétimo céu a consultar cada passo percorremos o caminho para a meta a sabedoria dos deuses que nem sempre podem (inalcançável?). Se a encontrarmos, deparamo-nos elucidar as perguntas transcendentes dos sadhus (holy com o ponto absoluto (M. Zambrano). “We Indians men | homens santos). use outer reality to preserve the continuity of the Os percursos percorridos pelos sarmayasins self” (Nós, os indianos, usamos a realidade exterior (renouncers | os que renunciam) foram para preservarmos a continuidade do eu). Mas na metodicamente elaborados e incansavelmente metafísica hindu, as coisas são substanciais (dáthu), planeados, tal como as tradicionais “jornadas de embora algumas sejam subtis (sukshma) e outras fé” medievais europeias. Esta atitude compulsiva grosseiras (sthula). O Absoluto não tem atributos. da procura do sublime, construída sob o impulso O “real” é uma construção teórica, deve sobreviver ao “religioso”, constitui-se como um fundamental desejo efémero transcendendo o transitório. Se a metáfora da humano de alcançar e coleccionar experiências de cidade nos Contos da Velha Índia é expressa por tudo modo a mobilizar energias adormecidas e, assim, o que é irreal, não-existente, ela representa também contribuir para a conquista dos espaços-de-esperança o mal, pois os “demónios são os arqui-inimigos dos próprios da atitude do peregrino. Tal como em Sto. deuses. (...) e o céu torna-se uma cidade real - a Agostinho (De ciuitate Dei 15.1), as pessoas são materialização, na terra, da cidade sagrada”. Todas as divididas entre aquelas que vivem sob o modelo cidades são construções ilusórias, simultaneamente humano e as que se pautam pelo modelo de Deus ou, sagradas e profanas mas, (...) “por definição, uma alegoricamente, entre a Babilónia e Jerusalém, cidade não pode ser boa, e não pode durar; se parecer às quais podemos acrescentar Gomorra e Sodoma. boa, terá de ser corrompida; se parecer imortal, terá A dicotomia (entre o mal e o bem), encontra-se de ser destruída” (W. D. O’Flaherty). também referenciada nos preceitos que regem a O nómada e o peregrino ocidental confrontam-se, apropriação do(s) acto(s) purificador(es), tal como por um lado, com o “cosmopolita rural Mahatma na confrontação entre Abel e Caim onde viveram, Gandhi” e, por outro, com “o cosmopolita urbano 5 6 um com Deus, outro com o Diabo . A procura do Jawaharlal Nerhu”. A diferença entre o nómada e o conhecimento de nós próprios conduz-nos ao ponto peregrino reside no facto de que ao primeiro não é que sustém a vida (ou a sua impossibilidade) e a concedido o direito de cidadania e, por conseguinte, Paginação1.1.indd 41 07/09/04 22:20:51 Maria José Palla | ”Paredes de Panjim, Velha Goa”, 1996 | Fotografia Cristina Ataíde | ”Durante o rio # F22”, 2005 | Fotografia, impressão Lambda | 81 x 120 cm não lhe é permitido evocar o estatuto de território por do habitante (ou a falta dela). A tensão entre ambos ele percorrido ou habitado; ao contrário, o segundo reflecte a estratégia cultural contemporânea, embora “pratica” a paisagem e reconhece o local de partida a confrontação das diferenças e as contradições no e chegada, razão por que pode habitar os lugares discurso estético oscile, também, entre contemplação e e reconhecer-se neles. Esta aptidão para utilizar o simples documentação” (L. Serpa). 9 espaço e o tempo permite-lhe cartografar as zonas em que se pode inserir e manter o estatuto que viaja [2.] As Novas Estórias constituem-se como narrativas com ele. A noção de espacialidade que confere aos fragmentadas retiradas de mitos e experiências locais de referência facilita a sua hierarquização, dos recém-chegados das distantes terras. Permitem podendo harmonizá-los de modo a constituírem- elaborar genealogias culturais baseadas na se como referências na cartografia que elabora a transmissão operada pelas novas comunidades de partir dos itinerários que percorre. Hierarquizado o viajantes que representam identidades herdadas espaço social, a cidade surge como zona espacial de mas que questionam os estereótipos dos tradicionais eleição para se confrontar com aquilo que a define: a contos. multidão. Esta confronta-se com o solitário passeante O conceito de “herança” surge da prática multicultural e assegura a criação de uma geografia urbana baseada que solidificou as relações entre essas comunidades no cosmopolitismo em justaposição com o errático e nas quais a questão de identidade provoca agora “cidadão do mundo”. uma produtiva discussão sobre a nação e a sua Contudo, a cidade organizada em redor da hierarquizada construção. Este desempenho das estratificação socio-económica continua, tal como novas classes (i)emigrantes, internacionalmente referencia o mundano Balzac (La Recherhe de l’Asbolu), aclamadas como o modelo do pós-colonialismo, a ser o local unitário “do arquétipo geopolítico do sintetizam a interacção entre diversas culturas que 7 cosmopolitismo” (V. Dharwadker) e a ocupar o eixo não mais podem disputar a liderança da sua imperial das dúvidas que se colocam face ao redundante inter-relação mas que consolidam uma constelar processo da globalização. “Will cosmopolitanism organização na qual não predomina nenhuma survive globalization’s omnivorous compression of ascendência civilizacional mas uma solidariedade 8 cultural space-time and erasure of differences?” baseada numa responsabilidade individual dos (V. Dharwadker). novos operadores sociais. Transformada a secular “O sistema de identidade oscila, assim, entre a classificação hierárquica, esta democratiza-se numa noção de território (ou a perda dela) e a consciência categorização cujo acesso passa a ser assegurado pela Paginação1.1.indd 42 07/09/04 22:20:52 Luís Serpa | ”O comissário como peregrino”, 2000 | Oberoi Hotel, Bombaim | Fotografia a cores transdisciplinar partilha de saberes e conhecimentos be renegotiated and redefined. The two generations cujo novo modelo se baseia numa universal comunhão have different starting points and different givens” 10 1Tales Of Ancient India, tradução de J.A.B. Van Buitenen, Srishti-Publishers & Distributors, New Delhi, 2000, p. 151. Tradução para o português - A escapadela de Gomuka: “No país dos Vatsas, junto do rio Kalindi, situa-se a cidade de Kausambi, que é o coração do mundo. Ali reinava o Rei Udayana. Se tentássemos descrever, ainda que sucintamente, as virtudes desta terra, desta cidade e deste rei, jamais começaríamos a história. Se um viajante se dispuser a fazer uma jornada aos sete oceanos e continentes deste mundo e começar por enumerar as jóias do Monte Meru, como encontrará tempo para ver o mundo?” de valores agregados aleatoriamente mas capaz de (R. Radhakrishanan). incentivar processos inovadores de transmissão das A paisagem cosmopolita, múltipla e discrepante face à estórias contidas nos velhos contos anónimos. regulada, manipulada e normalizada paisagem urbana Esta estratégia universalista deriva também da modernista e à ilusionista cidade dos Gandharvas, confrontação com a cultura da diáspora, que se confere aos seus protagonistas uma participação confronta com as novas geografias cosmopolitas e convergente mas não unificada nas acções de Marcha Fúnebre, Parque Expo ‘98 SA e Assírio & Alvim, Lisboa, 2001, p. 375. é surgida da transferência dos antigos espaços de construção de um modelo aberto e tolerante, graças à 3Saraiva, António José, Excertos do Prefácio à representação. As novas convicções são baseadas capacidade de inscrição no espaço-tempo das novas “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, Edição Sá da Costa, 1961. na instabilidade da identidade nacional (U. tendências de aproximação de centro e da periferia, 4Edwards, Robert R., The Metropol And The Chaudhuri) que reavalia sistematicamente o seu cujo léxico inclui palavras como “variedade, narrativa, desempenho através da recolocação dos valores que fragmentação, contexto urbano, expressionismo, definem o espaço de experimentação percorrido mobilidade, autonomia, emancipação, tecnologia mas pelo(s) viajante(s) e que encontra na flexibilização também poética...” (L. Serpa). da história o argumento para a reconstrução do A descoberta de um espaço para a afirmação cultural modelo de expansão e apagamento das fronteiras. na era da globalização transgride as ideologias A interacção entre o modelo étnico e racial utilizado baseadas no tradicional conceito de deslocação pois New Locations in Literature and Culture, The English Institute, Routledge, London, 2001, p. 9-10. pelas complexas relações institucionais encontra, acelera e potencia energias capazes de ultrapassar os 8 Idem. Tradução para português: “Sobreviverá o na dinâmica paisagem urbana, uma bem sucedida significados de “nação e identidade e as consequentes cartografia dos múltiplos interesses individuais. questões de interculturalismo e indigenismo” O colapso da distância ultrapassou as históricas (L. Serpa). “Uma nova Índia emergiu nos últimos fronteiras geográficas e permite a fruição de cinquenta anos. Não renega o seu passado nem exemplares experiências, unindo o passado ao é imune à sua influência. É mais um produto dos presente. A repetição dos ancestrais contos não é desafios do presente e das oportunidades do futuro” mais possível pelo facto de que as novas gerações não (P. Varma). | 2Pessoa, Fernando, O Livro do Desassossego, 420. 11 12 Paginação1.1.indd 43 6M. Zambrano, Clareiras do Bosque, Relógio d’Água, Lisboa, 1995, p. 131. cosmopolitismo à compressão omnívora do espaçotempo cultural e ao rasuramento das diferenças?” 9Serpa, Luís, Fragmentos Globais/Tendências Locais - Arte na Índia Contemporânea, Catálogo exposição Culturgest, Lisboa, 2004, p.14. 13 e as contemporâneas narrativas dos novos locais community, displaced by travel and dislocation, must 5Montalboddo, Fracazano di, Paesi Nuovamente Ritrovati et Novo Mondo da Aberico Vespucio florentino intitulato, Vicenza, 1507. 7Dharwadker, Vinay, Cosmoplitan Geographies - encontram relação entre as autobiografias históricas emergentes. “The very organicity of the family and the Mayester-Toun, in Cosmoplitan Geographies-New Locations in Literature and Culture, The English Institute, Routledge, London, 2001, p. 35. 10R. Radhakrishanan, Diasporic Meditations: Between Home and Locations, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1996, p. 206. Tradução para português: “A própria organicidade da família e da comunidade, desviadas pela viagem e pela deslocação, devem ser renegociadas e redefinidas.” 11Serpa, Luís, Fragmentos Globais/Tendências Locais - Arte na Índia Contemporânea, Catálogo exposição, Culturgest, Lisboa, 2004, p.17. 12 Idem, p.19. Luís Serpa Dirige a Galeria Luís Serpa Projectos e foi co-curador da exposição Zoom! Arte na Índia Contemporânea (Lisboa, Culturgest, 2004). | 13Varma, Parvan K., A Índia no Séc. XXI, Editorial Presença, Lisboa, 2006, p.175. 07/09/04 22:20:53 44 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 Dossier ÍNDIA Manuel Castilho Varanasi VIDA OU MORTE NA CIDADE SAGRADA (PARA O VIAJANTE AFOITO) Acredito que quem nunca foi à Índia perdeu uma experiência fundamental, da humanidade, é uma janela sobre milénios de não conhece o Mundo. Visitar a Índia é a oportunidade de viver no presente o História. Visitar a Índia é percorrer, em algumas passado da humanidade, é uma janela sobre milénios de História. Visitar a Índia semanas, um presente diferente, o passado próximo, é percorrer, em algumas semanas, um presente diferente, o passado próximo, o passado distante e o passado muito longínquo. o passado distante e o passado muito longínquo. É reviver memórias com que É reviver memórias com que nunca sequer sonhámos, nunca sequer sonhámos, é um salto no abismo em mais do que um sentido. Quem é um salto no abismo em mais do que um sentido. conseguir superar o choque da miséria, do caos, da sujidade, do mau cheiro, do Quem conseguir superar o choque da miséria, calor, da humidade, dos mosquitos, dos “chateadores” profissionais e muito mais é do caos, da sujidade, do mau cheiro, do calor, recompensado com o êxtase intemporal desta cultura milenar sublime. Os outros da humidade, dos mosquitos, dos “chateadores” apressam-se a antecipar a data da partida e a rogar pragas a quem como eu os profissionais e muito mais é recompensado com o encorajou a empreendimento tão temerário. êxtase intemporal desta cultura milenar sublime. A Índia é um país vasto, um subcontinente. Quem procure férias de praia e Os outros apressam-se a antecipar a data da partida testemunhos de cultura portuguesa fará bem em visitar Goa; quem procure cidades e a rogar pragas a quem como eu os encorajou a e castelos medievais exóticos no deserto com mulheres misteriosas envoltas empreendimento tão temerário. em saris de cores vibrantes, homens de turbantes e hotéis de luxo digno de A Índia é um país vasto, um subcontinente. Quem marajás e marahanis não deverá perder as cidades do Rajastão. Glamour urbano procure férias de praia e testemunhos de cultura (sim!), opulento, deveras chocante e entremeado de miséria citadina encontrará portuguesa fará bem em visitar Goa; quem procure em Bombaim, a Bollywood, a chamada Nova Iorque da Índia (não bem!), onde cidades e castelos medievais exóticos no deserto Rolls Royces, Mercedes e BMWs disputam, barulhentamente, palmo a palmo, as com mulheres misteriosas envoltas em saris de cores ruas com táxis Fiat e Ambassador dos anos 50 e carros de mão de duas rodas vibrantes, homens de turbantes e hotéis de luxo empilhados com mercadoria, movidos a tracção humana. Para amantes de digno de marajás e marahanis não deverá perder as templos e de pedra esculpida recomenda-se Khajuraho, Ajanta e Ellora, Sanchi e cidades do Rajastão. Glamour urbano (sim!), opulento, Amaravati e os deliciosos templos na praia em Mahabalipuram. Varanasi (Benares deveras chocante e entremeado de miséria citadina para os ingleses) é o coração da espiritualidade e cultura hindus, cidade de grande encontrará em Bombaim, a Bollywood, a chamada antiguidade cujas origens se perdem na bruma das dinastias que nela deixaram Nova Iorque da Índia (não bem!), onde Rolls Royces, a sua marca. Documenta pelo menos 2500 anos de história ininterrupta, e foi Mercedes e BMWs disputam, barulhentamente, palmo contemporânea de Tebas, Babilónia e Ninive. a palmo, as ruas com táxis Fiat e Ambassador dos Tenho de confessar que só depois de várias viagens à Índia me decidi a ir anos 50 e carros de mão de duas rodas empilhados desvendar a “cidade com mercadoria, movidos a tracção humana. Para Acredito que quem nunca foi à Índia perdeu uma experiência fundamental, não amantes de templos e de pedra esculpida recomenda- conhece o Mundo. Visitar a Índia é a oportunidade de viver no presente o passado se Khajuraho, Ajanta e Ellora, Sanchi e Amaravati e Paginação1.1.indd 44 07/09/04 22:20:53 45 Em cima à esquerda | A Grande Stupa de Sarnath (Dhamekh Stupa) e ruínas do santuário principal Em cima à direita | Um momento da cerimónia de veneração de Ganges ( deusa Ganga) ao pÔr do sol Em baixo à esquerda | “Sadhu” (asceta) numa das vielas da cidade antiga de Varanasi em baixo à direita | “Sadhus” (ascetas) numa das vielas da cidade antiga Paginação1.1.indd 45 07/09/04 22:20:54 46 os deliciosos templos na praia em Mahabalipuram. restaurantes para viajantes, bordejam sumptuosas escadarias sobre o rio. Mas Varanasi (Benares para os ingleses) é o coração da quase me esquecia de mencionar o principal: os Ghats são essencialmente o local espiritualidade e cultura hindus, cidade de grande onde os corpos são incinerados em grandes ou pequenas piras funerárias, dia e antiguidade cujas origens se perdem na bruma das noite, 365 dias por ano. Nestes “burning Ghats” o cenário é dantesco. Deparamos dinastias que nela deixaram a sua marca. Documenta com enormes pilhas de madeira, com pequenos grupos de familiares que pelo menos 2500 anos de história ininterrupta, e foi aguardam pacientemente a vez de ver os seus familiares reduzidos a cinza e com contemporânea de Tebas, Babilónia e Ninive. corpos envoltos em panos, chamas e muito fumo. Alguns turistas Tenho de confessar que só depois de várias (é proibido tirar fotos) contemplam e pasmam, mas a morte aqui é encarada viagens à Índia me decidi a ir desvendar a “cidade como parte do ciclo da vida e adquire total naturalidade. sagrada”,Varanasi. Temor sem fundamento. Varanasi Nesta cidade tudo parece confluir para o rio, onde o espectáculo é colorido, é uma cidade acessível, uma “experiência forte” mas variado e cativante. Peregrinos banham-se nas águas sagradas e fazem as não agressiva. Sai-se de Varanasi com um sorriso suas pujas (rituais e devoções); Brahmins estudam textos sagrados e fazem búdico e maior compaixão pela condição humana. prelecções a quem queira ouvir; yogis praticam; pedintes e crianças pedem Varanasi, no Estado de Uttar Pradesh, Nordeste da esmolas; vendedores ambulantes expõem as suas bugigangas; vacas passeiam Índia, situada na margem esquerda do Ganges, o displicentemente, barbeiros rapam cabeças e grupos sentados nas escadarias rio sagrado, é um dos mais importantes centros de conversam, escutando os cânticos e música transmitidos por altifalantes, peregrinação hindus. Banhar-se no Ganges purifica enquanto desfrutam do ambiente e da paisagem banhada por uma luz que a os pecados acumulados na vida terrestre. Morrer na certas horas torna o cenário irreal. cidade eterna coloca o devoto hindu em posição mais Ao visitante recomenda-se passeios de barco pelo rio, a melhor forma de observar favorável para a próxima incarnação, poderá até o cenário dos Ghats em relativa calma. Logo que se chega à margem do rio é-se libertá-lo do ciclo contínuo da morte e reincarnação. abordado por barqueiros expeditos e insistentes. Como em qualquer outro local Os Ghats (escadarias de pedra sobre o Ganjes) são da Índia, temos de pôr à prova os nossos talentos negociais e mesmo assim cinco quilómetros de cenário “bíblico” onde, a par acabaremos certamente por pagar mais do que o devido, o que faz parte da de templos shivitas, albergues para os moribundos, experiência. Vale bem a pena um dia levantarmo-nos muito cedo para percorrer centros espirituais, palácios construídos em os Ghats de barco, ao nascer do sol, quando a cidade desperta. É uma experiência épocas diversas pelos Marajás de vários estados da inesquecível e a luz, maravilhosa, é ideal para fotografia. Convém marcar de Índia, edifícios díspares com pequenos hotéis e véspera no local, ou através do hotel. Em termos de Índia, Varanasi é uma cidade de tamanho médio, com pouco mais de um milhão de habitantes. Tem uma zona relativamente nova com algumas avenidas e largos do tempo dos ingleses. A parte antiga, adjacente ao Ganges, é um labirinto de vielas estreitas e irregulares onde é difícil discernir qualquer plano ou orientação. Deambular por estas ruelas contornando vacas, lixo, vendedores ambulantes e evitando chocar com cortejos funerários é uma experiência fundamental para ter uma percepção da vida desta fascinante cidade. Pequenas lojas vendem sedas e outros panos, uma das especialidades de Benares, assim como todo o género de produtos locais, como os associados ao culto, especiarias, perfumes, grande sortido de CDs de música indiana, etc. Numa destas vielas deparamos subitamente com o Templo Dourado dedicado a Vishveswara (Shiva na sua forma de senhor do Universo), construído em 1776. O original, bastante mais antigo, foi arrasado pelo Imperador Mogol Aurangazeb (bisneto do grande Akbar) no seu fervor islamizante. Não é permitida a entrada a não-hindus, embora estes possam contemplar o templo de uma casa em frente. Não muito longe Baixo relevo do período Gupta (sec.V, DC) na Grande Stupa de Sarnath Paginação1.1.indd 46 ergue-se a Grande Mesquita de Aurangazeb, onde foram incorporadas algumas 07/09/04 22:20:55 47 dossier ÍNDIA Varanasi: vida ou morte na cidade sagrada (para o viajante afoito) das colunas do templo hindu então destruído, uma passar uma tarde. Não deverá perder o Museu Arqueológico adjacente, construído no situação potencialmente explosiva no contexto das tempo dos ingleses e que contém alguns dos mais importantes tesouros arqueológicos tensões religiosas da Índia. A segurança da mesquita é da Índia. O capitel do pilar de Ashoka, descoberto na campanha de escavações de assegurada por guardas armados. 1904/5, encontra-se no museu. Foi adoptado como o símbolo nacional da Índia e Afastando-nos um pouco do centro, sugerimos uma está reproduzido em moedas e notas. Representa quatro leões (símbolo budista e de visita ao templo de Durga, mais conhecido por templo Ashoka) bradando às quatro direcções do mundo a doutrina do Budismo. Durante a dos macacos devido à profusão destes primatas, nem Dinastia Gupta (sécs. IV-VI), Sarnath atingiu a sua maturidade artística, produzindo sempre muito amigáveis e que não hesitarão em escultura budista em pedra calcária que é considerada o apogeu da escultura indiana de saltar sobre o visitante para arrebatar qualquer comida todos os tempos. Alguns dos exemplos mais notáveis desta escola foram encontrados que este inadvertidamente traga à vista. A poucos em escavações no local e estão expostos neste museu. quilómetros deste templo poderá visitar o Museu da Na recente exposição de arte Gupta no Grand Palais em Paris foi possível admirar várias Universidade Hindu de Benares (Bharat Kala Bhavan), destas obras-primas do museu de Sarnath. cujas instalações algo rudimentares contêm, no entanto, Questões práticas: Há em Varanasi várias possibilidades de alojamento. Os hotéis de uma importante colecção de escultura clássica indiana, cinco e quatro estrelas estão todos localizados fora da cidade antiga. O tradicional miniaturas sobre papel (incluindo uma interessante e Clarks Varanasi, do tempo dos ingleses, está um pouco decadente. pouco conhecida representação de Nossa Senhora com O Taj Ganges, da prestigiada cadeia indiana do mesmo nome, é moderno e confortável um manto azul diante uma paisagem de fundo europeia, mas sem o “brilho” da maioria dos estabelecimentos deste grupo. Dois novos hotéis, por um artista da corte mogol não identificado, cerca o Ramada Plaza e o Radisson, oferecem as habituais comodidades impessoais de de 1600) assim como um núcleo interessante de jóias e standard internacional. A opção de alojamento mais fascinante para os mais afoitos objectos preciosos, sobretudo mogóis. será ficar nos Ghats. Evitarão o trauma diário de transitar vários séculos e civilizações A apenas dez quilómetros de Varanasi fica um dos locais entre hotel e cidade. Para esta hipótese recomendaria o Ganges View Hotel, no Assi mais sagrados do Budismo: Sarnath. Varanasi era já Ghat, um dos (relativamente) mais sossegados. É um pequeno estabelecimento com uma cidade florescente quando há cerca de 2500 anos doze quartos simples, mobilados com gosto, com o conforto básico assegurado (casa Buda por lá passou a caminho de Sarnath, depois de de banho privativa, ar condicionado, etc.), uma gerência personalizada e frequentado ter atingido o estado de iluminado em Bodh-Gaya, para por artistas escritores e “habituées” da Índia. Não é luxuoso, nem por sombras, mas se juntar aos seus companheiros e futuros discípulos. estamos em Varanasi! Tem um terraço com vista sobre o Assi Ghat e toda a excitação já Aí, em Sarnath, proferiu, debaixo de uma árvore no descrita, ao sair da porta do hotel. Convém marcar com bastante antecedência. | parque dos veados, o seu primeiro sermão e pôs em marcha a “roda sagrada” da lei (doutrina budista). Supostamente no local exacto onde se deu este evento fulcral na construção do Budismo foi erguida uma stupa (monte sagrado de origem funerária albergando relíquias budistas). O Dhamekh Stupa, magnífico monumento com 34 metros de altura, provavelmente construído cerca de 200 a.C., cerca de 300 anos depois da morte do mestre e reconstruído parcialmente na época Gupta (cerca de 500 d.C.), encontra-se em razoável estado de conservação e pode ser visitado facilmente. Neste parque, que foi sistematicamente escavado em várias épocas, vêem-se também ruínas de outra stupa desaparecida, e de edificações adjacentes, assim como o arranque do famoso pilar do Imperador Ashoka (dinastia Mauria, cerca de 200 a. C.). É um local aprazível para Paginação1.1.indd 47 VARANDA SOBRE O ASSI GHAT DO GANGES VIEW HOTEL 07/09/04 22:20:55 48 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 Dossier ÍNDIA João Alarcão Portugal na Índia Armas de Portugal da Fortaleza do Morro em Chaul Para além da componente lúdica, da necessária fuga do stress, do salutar desejo de conhecer realidades mais afastadas, viajar pode trazer-nos, também, no reavivar de memórias históricas, um enriquecimento da nossa cultura portuguesa. Um duradouro conforto para a nossa consciência colectiva descaracterizada pelas padronizações massificadoras que destroem a arte de viver, a aventura e o prazer de nela encontrar a diferença e a qualidade. Viajar pela Índia, e descobrir na sua variada riqueza cultural a brancura de torres de catedrais a emergirem dos verdes palmares tropicais, é um deleite para os olhos e uma reconfortante emoção para o espírito. Aqui o mito torna-se realidade. A sombra de muralhas quinhentistas, a brisa que agita os coqueirais que as escondem, ou os areais das costas em que repousam de vigílias seculares, decantam-nos a alma e fazem com que o nosso pensamento navegue livre nos mares da memória. Comecemos por descobrir na dureza da grande metrópole (17 milhões) que agora é Mumbai, os sinais da Bombaim de outrora. A Bombaim portuguesa, que D. João IV incluiu no enorme dote de casamento de sua filha D. Catarina de Bragança com Carlos II de Inglaterra, numa frustrada tentativa de recordar à Grã-Bretanha as obrigações da aliança de séculos que nunca cumpriu. O táxi que o levará do Aeroporto de Santa Cruz (não é Holly Cross, é mesmo Santa Cruz) para o bulício das ruas da Colaba e para o conforto do Taj Mahal, a jóia Paginação1.1.indd 48 07/09/04 22:20:56 49 da melhor cadeia de hotéis da Índia, possibilitar-lhe-á parar em Bandra, a nossa portas e janelas que enriquecem a arquitectura das antiga Bandorá, para ver a Igreja seiscentista de Santo André e o pequeno forte do grandes casas baneanes, das quais se destaca a Nome de Deus, que desmentem as omissões dos guias turísticos quanto aos sinais Nagarset Haveli. Se quiser almoçar ou jantar fora do da herança arquitectónica portuguesa. hotel, vá ao Ápana, frente ao braço de mar que liga a Chegado ao Taj, goze da janela do seu quarto a vista para a enormíssima baía que Gongolá, e de onde poderá observar o histórico Fortim deu o nome a Bombaim. E não se deixe impressionar pelo apregoadíssimo Gateway do Mar. of India que se encontra do lado de lá da praça. É o moderno pastiche inglês, ainda Regressado a Bombaim, voe para o extremo sul da que grande, do secular Arco dos Vice-Reis pelo qual, desde o séc. XVI, os Vice-Reis Índia, para Cochim, aquela que foi a mais antiga portugueses da Índia entravam em Goa. Os britânicos levantaram este apenas em 1911 possessão portuguesa. Aí nos mantivemos até para homenagearem a visita de Jorge V. 1664, sendo que as nossas marcas permanecem É do cais que lhe está junto que saem os barcos para a Ilha da Elefanta, onde se situam para além das posteriores presenças holandesa e as grutas do séc. VI esculpidas na rocha, com enormes estátuas de Shiva. De lá partem inglesa. Situa-se em Kerala, na Costa do Malabar, cuja também os catamarans que nos levam ao sul, a Mandwá, de onde podemos atingir as luxuriante vegetação contrasta com a secura da Índia imponentes fortalezas portuguesas do Morro, ou de Chaul, hoje sentinelas mudas dos arábica, do Rajasthan, ou do Gujarate que deixámos bandos de flamingos que pousam nos seus areais. para trás. A magnífica paisagem dos canais que se Se se demorar em Bombaim e gostar de antiguidades ou velharias, dê uma saltada ao estendem para sul, designados por Back Waters, é de Shor Bazar, uma feira da ladra imensa, ou encontre-as nos antiquários das ruas que uma beleza indescritível, justificando-se um passeio circundam o Taj, com destaque para o Philips, o mais antigo e famoso da cidade. com pernoita nos antigos barcos de transporte do No dia seguinte lance-se à estrada, a caminho de Damão, com uma inevitável arroz, hoje divididos em pequenos e rudimentares paragem em Vassai, a nossa antiga cidade amuralhada de Baçaím. As suas igrejas camarotes. Nem os mais citadinos, menos dados às e conventos quinhentistas, apesar de estarem hoje a céu aberto, alguns mesmo incomodidades dos trópicos, deixarão de se deliciar invadidos pela vegetação tropical, conservam a imponência que deu à capital da com a beleza que os circunda e que trouxe a esta Província do Norte o epíteto de Don Baçaím. Pelas inscrições das sepulturas que região a designação de God’s Own Country. cobrem os claustros desses templos, principalmente o de St.º António, é possível adivinhar a vitalidade duma cidade que foi portuguesa de 1535 a 1739. Sé Baçaim Passadas as Praganás de Dadrá e Nagar Aveli, cuja capital, Silvassa, se chamou no séc. XIX Paço de Arcos, em honra do Governador de então, chegamos a Damão. Há pouco para escolher quanto a alojamentos, para além do Miramar Hotel, na praia de Devka, e do Marina, em Damão Pequeno. Aqui impõe-se uma visita à Fortaleza de S. Jerónimo, de cuja praça de armas ressalta a Igreja de Nª Srª do Mar. Nela e na Sé, do outro lado do rio Daman Ganga, grande parte das missas são ainda celebradas em português, língua em que está inscrita na fachada do edifício da Câmara a antiguidade do senado municipal: “Por Nobre e Leal Provisão de 1581”. Entre o muito que há para ver destacam-se as Portas do Mar e da Terra, as ruínas de S. Domingos, a pequena Casa em que viveu o poeta Bocage e, sobretudo, a riquíssima Capela-Mor da Igreja da Madre Deus. Há que regressar a Bombaim para voar até Diu, a Pérola do Gujarate, e respirar as gloriosas muralhas da fortaleza que o heroísmo português tornou famosa com a resistência aos cercos otomanos do séc. XVI, em tempos de Nuno da Cunha e D. João de Castro. Dos dois melhores hotéis da Ilha, o Kohinoor e o Radinka, ambos com simpáticas piscinas, eleja o primeiro, que o manterá mais próximo do centro. Aí visite o Museu da Igreja de S. Tomé e a imponente Igreja de S. Paulo. Um passeio através das estreitas ruas do bairro hindu permitir-lhe-á apreciar as tradicionais Paginação1.1.indd 49 07/09/04 22:20:56 50 dossier ÍNDIA Portugal na índia Um outro agradável passeio de barco é entre as ilhas do estuário que junta a ficam as ruínas de Stº Agostinho, o Convento de Stª cidade velha de Fort Cochin e a moderna de Ernakulam. Os dois melhores hotéis, Mónica, onde hoje está o Museu de Arte Sacra que Taj Malabar e Branton Boat Yard, têm ancoradouros próprios onde os barcos veio de Rachol, e o Priorado do Rosário, no monte podem amarrar. Se não os quiser alugar, apanhe-os nos jettys das carreiras sacro donde Afonso de Albuquerque comandou a normais. Não deixe é de ver as Ilhas de Vaipin, com a sua quinhentista Igreja de tomada de Goa em 1510. A Igreja de S. Caetano Nª Srª da Esperança, as Redes Chinesas, ex-libris da região, ou o mais escondido e o já citado Arco dos Vice-Reis ficam para o lado dos hotéis, o Bolghaty Palace, na ilha do mesmo nome. Por terra vá até á Basílica inverso, por onde se pode seguir para Pondá para ver de Stª Cruz, ao Museu de Arte Sacra e, sobretudo, à Igreja de S. Francisco, onde os templos hindus. De volta, não deixe de parar em em 1520 foi sepultado Vasco da Gama. Depois de almoçar no Branton Boat Yard, Margão ou Loutulim, onde se situam os solares de venha até à Jewish Street, em Mattanchéry, para visitar, porta sim, porta não, os algumas das mais tradicionais famílias bramânicas inúmeros antiquários que enchem as ruas entre a Sinagoga e o abusivamente goesas como as dos Sant’anas da Silva, dos Mirandas, designado Dutsh Palace. O palácio nada tem de holandês. Foram os portugueses ou dos Figueiredos de Albuquerque, este agora em que o erigiram e ofereceram ao Rajá de Cochim para o autonomizarem da turismo de habitação. suserania do Samorim de Calecute. Depois, se tiver tido a sorte de conseguir Quanto a praias, todos os guias lhe falarão das do sul, quarto no Taj Malabar, goze da sua belíssima piscina, faça uma massagem de sobretudo da de Palaolem, mas a beleza de outrora Ayurveda no seu Spa e prepare-se para voar para Goa. sucumbiu ao peso do turismo massificado. Hoje, Colvá, Dos hotéis bons, os mais centrais são o Cidade de Goa, com praia privativa, mais Baga ou Calangute são verdadeiras Algés e Dafundo. As próximo de Pangim, e o Forte da Aguada, na praia de Sinquerim, mais perto de melhores praias situam-se, ao contrário, mais a norte: Anjuna, onde à quarta-feira se realiza a mais exótica feira da Índia. Lá tudo pode Arambol, Morjem ou Querim, já próximas do belíssimo ser encontrado, desde pratas e jóias dos tibetanos aos sacos, mantas, e roupas de mas pequeno hotel (sete quartos) de Forte Tiracol. Para Karnataka. quem goste dos mais completos lugares do mundo, Mas a principal e inevitável visita terá de ser a Velha Goa, cujo coração é a Basílica impõe-se uma estadia ou visita à melhor realização do Bom Jesus, onde o corpo de São Francisco Xavier repousa no rico túmulo de Cláudia e Hari Adjwani, o fechadíssimo Nilaya oferecido por Cosme de Médicis. A Sé e o Convento de S. Francisco, com a Galeria Hermitage, em Arporá, sem dúvida o mais exótico e dos Vice-Reis e a Capela de Stª Catarina, compõem este núcleo central. Para oeste sofisticado de Goa e um dos melhores de toda a Índia. | Cúpulas sobre palmares em Nova Goa Paginação1.1.indd 50 07/09/04 22:20:56 52 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 Dossier ÍNDIA Luís de Andrade Peixoto esplendores dA ÍNDIA outside Índia Paginação1.1.indd 52 07/09/04 22:20:57 53 Arrebatadora, deslumbrante, mágica, complexa, sedutora, hipnotizante... Tantos Com a chegada dos portugueses em 1498, a afirmação e infindáveis adjectivos nunca poderão, totalizando, cobrir as características da do seu poderio comercial e in situ no séc. XVI, e com efervescente arte indiana. a ascensão decisiva do império Mogol (sécs. XVI-XVII), Estamos a falar de manifestações plásticas e de testemunhos que englobam mais elementos, trocas e inspirações estéticas foram um enorme panorama cronológico que abrange, desde os primeiros achados inseridas a este riquíssimo quadro artístico. arqueológicos de c. 2500 a.C - c. 1750 a.C. (com as primeiras culturas em Mais do que o impossível fito de traçar, neste desenvolvimento no vale do Hindukush), passando pelos determinantes sécs. momento, um trajecto da história da arte indiana em IV-III a.C., em que a individualização de estilos e de influências regionais e detalhe, sugerimos um percurso de deslumbramentos de cultos começa a ser evidente (sendo nesta altura assinalado o “início” da desta maravilhosa cultura entre museus e colecções produção artística indiana) até, em contemporânea consideração, aos dias de hoje. da Europa e Estados Unidos da América. De facto, Acrescente-se a este vasto quadro temporal a complexidade religiosa - hinduísmo, vários são os museus de referência que desde o final budismo, jainismo, islamismo e cristianismo - que em conclusão suscitou inúmeras do séc. XIX, inícios do XX, beneficiaram de diversos mestiçagens entre filosofias, estilos, técnicas, materiais e visões. Por outro lado, a factores que alimentaram as suas fabulosas colecções enorme movimentação de diversos povos em interacção pelo poder e soberania e a de arte indiana. consequente profusão de estados regionais, dinastias, reinos e impérios caracterizam Veja-se como o incremento de expedições, algumas uma viva geo-política em constante mutação. Notável aspecto nesta heterogeneidade das quais mais ou menos científicas, canalizaram é sempre a atracção e o incentivo para a abordagem artística da vida. centenas de objectos rumo à Europa. Conjugando Para realçar esta profusão de culturas veja-se a esfera geográfica que dá palco à influência da Índia, sobretudo a partir da forte expansão do budismo (sécs. IVVII) conferindo-lhe imediatamente: Paquistão, Afeganistão, Nepal, Tibete, Butão, Bangladesh, Xinjiang (China), Sri Lanka, o Sudeste Asiático: Myanmar (Burma), Laos, Vietname, Tailândia, Cambodja e a Indonésia. Isto faz-nos compreender por que grande parte das galerias de exposições de arte asiática que visitamos estão divididas em três momentos: Rota da Seda, Subcontinente Indiano e Sudeste Asiático. Estas divisões geográficas ajudam-nos a vislumbrar as individualidades estilísticas e as identidades de cada concreta localização, para além da óbvia e forte influência comum dentro deste quadro geográfico. No início da era de Cristo (sécs. I-V) florescem e afirmam-se três importantes escolas artísticas regionais (Ghandara, Mathura e Amavarati) enquanto que os sécs. IV-VII testemunham o esplendor da arte búdica da Índia, com o decisivo impulso cultural e artístico da dinastia Gupta (sécs. IV-V) e o estender da influência indiana budista. A decadência da dinastia Gupta, que se deu a partir do séc. V devido a invasões exteriores, e a expansão da crença hindu (que germinara desde o período védico, 1500 a.C. - 600 a.C., e se movia ao sabor do trânsito dos seus crentes) dão lugar durante os sécs VII-XIII ao denominado período hinduísta. Através de uma forte consolidação das características estilísticas regionais, com as suas escolas que testemunham um vital particularismo, sincretismo de influências e respeito pelas três grandes religiões em movimento (hinduísmo, budismo e islamismo), a arte indiana floresce de modo imparável em todas as suas manifestações. à Esquerda | ”Shiva Nataraja”, c. 1050 | bronze, estilo imperial Chola | Índia (Tamil Nadu) | c. 83 cm (alt.) | © Museum Rietberg à direita |”Buda erguido”, primeira metade do séc. V | grés rosa, época Gupta | Índia (Mathura) | 142 x 54 cm | © Archives Photographiques du Musée Guimet Paginação1.1.indd 53 07/09/04 22:20:58 54 Arqueologia, Etnologia, Antropologia, História, ”Maharishi” (“o grande sábio”), séc. XII | Agastya: pedra (chloritoid phyllite) | Índia (Bihar-Lakhi Sarai) | História da Arte e um desejo exacerbado pelo © 2007 Museum Associates / Los Angeles County Museum of Art exótico e asiático de mãos dadas com gostos, modas e correntes artísticas, formaram-se colecções significativas que hoje nos possibilitam ver “algum do melhor” da Índia fora da Índia. Isto sem falar das colecções anteriores que foram sendo constituídas ao longo dos períodos de expansão e da presença europeia por terras a Oriente a partir dos finais do séc. XV ou, mais recentemente já no séc. XX, com as desanexações mais ou menos violentas e com os conflitos militares que infelizmente dão rumos vários aos testemunhos. No panorama contemporâneo, é de realçar a forma como belíssimas peças chegam de modo espontâneo e altruísta a diversos museus pela via de doações particulares, revelando um crescente e consciente reconhecimento das artes ancestrais extra-europeias que, cada vez mais, formam atractivos imaginários de sonho e de exotismo. Aliados à dinamização dos estudos asiáticos, à sua crescente divulgação e a uma enorme afirmação de estatuto de rara obra de arte, os seus valores de mercado atingem cotações e disputas sem precedentes em relação às masterpieces de origem indiana e asiática no geral. Não é apenas no mundo ocidental que esta dinamização de mercado é cada vez mais relevante, com os conhecidos exemplos das semanas anuais de Arte Asiática de Londres (Novembro) ou de Nova Iorque (Abril), a boa saúde do antiquariato, os leilões e as feiras internacionais dedicadas exclusivamente a este ramo. Também na Ásia uma efervescente e emergente transacção toma lugar com os destaques para os leilões incontornáveis da Christie’s e Sotheby’s em Hong-Kong, assinalando como que um novo despertar da cultura asiática para si mesma. Em crescente envolvimento com este mecanismo, os museus especializados começam a debater-se pela contínua construção das suas colecções asiáticas, desejadas sempre em consonância com as pretensões enraizadas na civilização do Ocidente, como as mais completas, significativas e belas do mundo. Paginação1.1.indd 54 07/09/04 22:20:58 55 Dossier ÍNDIA ESPLENDORES DA ÍNDIA OUTSIDE ÍNDIA Mas não nos afastemos do nosso cerne, salientando que as lógicas das colecções quadro que traçámos de início) constrói um dos indianas estão directamente e naturalmente inseridas na dinâmica das colecções momentos mais apreciados deste museu. Sem o extra-europeias, e mais concretamente nas asiáticas, sob duas perspectivas dramatismo interessante do Museum für Asiatische predominantes: a artística e a etnológica. Os testemunhos da cultura indiana Kunst-Dahlem de Berlim, esta secção acentua o encontram-se estudados, recolhidos, conservados e apresentados numa carácter escultural aliado à arquitectura, à qual muitas considerável teia museológica na Europa e nos E.U.A. Contudo, e curiosamente, das peças estavam aliadas. A opção cromática das Portugal ainda não se encontra na lista (nós que em 1498 fomos os primeiros a lá paredes e dos plintos faz compreender o núcleo como chegar!!). Porém, dizemos um “ainda” esperançado com esperança na abertura, em parte integrante de uma estrutura maior e o sóbrio 2008, do Museu do Oriente (Fundação Oriente) que com certeza irá potencializar, ambiente expográfico o permite, ao mesmo tempo, além da abordagem típica da Índia portuguesa (na qual representamos um claro uma apreciação estilística descomprometida e pessoal. destaque), um descortinar da complexa cultura com a qual nos deparámos em O Museum für Asiatische Kunst-Dahlem de Berlim, tempos certamente mais aventureiros. remodelado em 2000, tomou um caminho diferente, Provando a vitalidade desta crescente rede, encontramos o mote de partida para mais dramático, obscuro e fascinante. Cuidadoso o nosso percurso de “Esplendores da Índia outside Índia”, com a reabertura do efeito luminotécnico, em que os jogos entre sombras Museum Rietberg de Zurique, em Março deste ano. e diálogo claro/escuro tomam lugar, dá espaço para As mais belas e requintadas artes são indissociáveis das opções expográficas uma aproximação mais mística e misteriosa junto despojadas e subtis no aspecto dramático. Luz, texturas, composições e colocações das esculturas (e das outras colecções, das quais estratégicas dão ênfase a diversas tipologias indianas das quais os bronzes do destacamos a pintura indiana, sobre papel, têxteis período hinduísta se evidenciam. e vidros, e as importantes pinturas de interiores de Shiva Nataraja, o eterno Senhor da Dança Cósmica Anandatandava, aparece-nos templos budistas). A combinação regular em espaço em todo o seu esplendor nas revitalizadas galerias de exposição permanente. A luz expositivo entre arte antiga e contemporânea, cuidada e o lugar de destaque conferem-lhe uma soberba e auspiciosa presença. em que estilos, inspirações, técnicas e temáticas De facto, Anandatavanda constitui o simbólico e poderoso momento de criação e dialogam, fecunda este espaço de um modo especial. de destruição, de eterno retorno da vivência e de suprema força cósmica. Shiva Real desafio museológico e encantamento para os constrói o mundo através do som ritmado do tambor que toca (com a mão direita públicos é a construção dentro do museu de uma posterior); preserva a criação em sinal de protecção (mão direita frontal); destrói estrutura arquitectónica que encerra no seu interior com a potente chama na mão esquerda (posterior); bane o pecado e a ignorância pinturas originais, de stupas (templos budistas), nas do inconsciente pisando o demónio Apasmara-Purusha (pé direito) e concede a paredes e na cúpula perfeita. Sem falar na dificuldade libertação espiritual demonstrando a sua irradiação cósmica através da sua última da conservação preventiva, em todo o processo de mão (esquerda frontal). Toda esta magnífica e simbólica composição concebe ainda incorporação, deslocação e apresentação destes a complexidade dos opostos (através da iconografia complementar masculina testemunhos, a necessária iluminação reduzida vs feminina patente em cada uma das formas das orelhas) e a harmonização e provoca uma desconcentração visual que pouco a equilíbrio universal através da leveza, postura proporcional e estabilidade do deus pouco, em adaptação ao baixo nível, faz da apreciação neste movimento incandescente. É, sem dúvida, um bom e deslumbrante ponto de destas pinturas o momento alto. partida! Momentos obrigatórios neste percurso são os museus As colecções do Museum Rietberg cruzam-se e complementam-se, obviamente, top de carácter universalista - British Museum (que com as tipologias de outros museus. Assinalável é a grande qualidade da colecção neste momento celebra a Índia e os sessenta anos de escultura e de pintura (retratando inúmeras escolas estilísticas regionais e as da sua independência com a exposição de pintura interessantes composições das miniaturas mogóis). indiana: “Fé, Narrativa e Desejo”), V&A - Victoria and Por falar em escultura, destaque para o Los Angeles County Museum of Art (pela Albert Museum (a jóia da coroa dos museus do Reino preciosa escolha desta tipologia e, no fundo, por toda a colecção indiana, que Unido) e o LACMA - Los Angeles County Museum of é completíssima) e o Musée Guimet de Paris, renovado em 2001. No Guimet, a Art. Para além das completas colecções de escultura escultura em pedra budista, jainista e hindu (cruzando geograficamente o amplo em pedra e metais, artefactos arqueológicos, pinturas Paginação1.1.indd 55 07/09/04 22:20:59 56 sobre diversos suportes, gravuras, têxteis raros, relevos, bronzes hindus, jades e jóias (lembremos as requintadas cortes mogóis), pinturas em miniatura ou diversos testemunhos de carácter mais etnológico, algo muito raro e belo os une: esculturas do Buda Sakyamuni. Enquanto que o LACMA beneficiou de uma muito generosa doação, por parte da Fundação Michael J. Connell, o V&A e o British Museum uniram esforços e meios para adquirir a rara peça. Para se ter uma ideia foi preciso combinar o Fundo das Colecções de Arte Nacionais, o Permanente Fundo Broke Sewell do British Museum e doações dos Amigos do Museu V&A, bem como de privados. E o resultado é que o “Buda Radiante”, como lhe chamam no V&A, atinge uma enorme popularidade nas Galerias dedicadas à Índia. Estas preciosas esculturas (apenas um número muito reduzido sobreviveu até hoje) testemunham um período fulcral na formação estilística das representações clássicas de Buda. Sob a alçada da florescente dinastia Gupta (os quais, embora hindus, eram patronos do budismo) os centros artísticos de Mathura e Sarnath originaram esta génese de representação plástica que iria influenciar a figuração e materialização do conceito de Buda pelos diversos países que receberam a corrente À ESQUERDA | ”Buda Sakyamuni”, fim do séc. VI - início séc. VII | terracota revestida a cobre Este da Índia (provavelmente Bihar) | 35,5 cm | © V&A Museum PÁGINA DO LADO à ESQUERDA | “Krishna e Radha” | atribuído a artista da geração dos mestres Nainsukh e Manaku de Guler | guache sobre papel | 17, 7 x 14, 8 cm | c. 1775-1780 | Índia (Pahari-Gebiet, Guler) PÁGINA DO LADO à DIREITA | “Imperador Jahangir triunfando sobre a Pobreza” (reinou entre 1605-1627) | c. 1620-1625 | Tinta guache e ouro sobre papel | atribuido a Abu’l Hasan | Índia Mogol, Da colecção Nasli e Alice Heeramaneck e adquirida pela Associação dos Membros do Museu | imagem: 23,81 x 15,24 cm folha: 36,83 x 24,61 cm | © 2007 Museum Associates/Los Angeles County Museum of Art Paginação1.1.indd 56 07/09/04 22:20:59 57 Dossier ÍNDIA ESPLENDORES DA ÍNDIA OUTSIDE ÍNDIA budista. A sua mão erguida em sinal de benevolência (abhaya-mudra) afirma a Arte da Índia. Directamente ligada à intrincada sua protecção perante os seus crentes, facto que liga de forma inteligente esta religiosidade e aos templos, a sua produção é representação religiosa ao domínio político. Sakyamuni dá corpo aos ideais budistas enorme em pontos de peregrinação e de adoração de yogi e de perfeito regente: fisicamente ágil, elegante, proporcional, com expressão do divino e estas peças são facilmente vendidas serena, contemplativa e delicada e, tal como um soberano deve ser, jovem, com às centenas em mercados onde os pintores fortes ombros, corpo firme e pés e mãos bem torneados e seguros. Sem dúvida uma habilmente reproduzem cânones estilísticos escultura de destaque e excepção! estáveis e constantes durante gerações. Aliadas aos Musée Guimet, Asian Art Museum of San Francisco, The Cleveland Museum textos poéticos e religiosos, inúmeras ilustrações of Art, Los Angeles County Museum of Art, Museum Rietberg ou Museum foram encomendadas tanto por classes religiosas für Asiatische Kunst-Dahlem de Berlim podem ainda ser destacados como civis. As classes reinantes rapidamente pelas completas galerias de exposição dedicadas à pintura indiana, cujas chamam a si os melhores profissionais desta arte, influências, estilos particulares ou temáticas e enredos são tão diversos imortalizando refinados e luxuosos momentos quantas as cores vibrantes e garridas que fazem desta tipologia um mágico da vivência do quotidiano da corte, retratos, momento de sensações visuais. Pintura de interiores, sobre rolos de acontecimentos históricos e estratégicos ideais tecidos, sobre folhas de palmeira e sobre papel (a partir do séc. XIV) são associados ao soberano, afirmando o seu poderio as masterpieces. De facto, a pintura detém um papel lato na História da e excelência. Paginação1.1.indd 57 07/09/04 22:21:00 58 Os estilos da pintura rapidamente adquirem o cunho tecidos, papagaios), tudo de origem indiana e abarcando peças desde o séc. XVIII identitário das cortes a que pertencem ou da região até aos dias de hoje, detém um potencial enorme de nível internacional. de origem, potencializando particulares características O futuro Museu do Oriente poderá equiparar-se, com as suas colecções, às e abordagens estéticas que advêm do cruzamento referências etnológicas europeias, nomeadamente o Musée du Quai Branly do hinduísmo, budismo, jainismo, islamismo (com (inaugurado em 2006 e com uma vitalidade expositiva e de programação cultural as diversas influências persas e mogóis) até às de excepção), Linden-Museum Stuttgart - Staatliches Museum für Völkerkunde; representações cristãs ou gravuras europeias do MEG - Musée d’Ethnographie de Genève e MEN - Musée d’Ethnographie de Renascimento tardio. Neuchâtel. Os portugueses Museus Nacionais de Arte Antiga, Estes quatro museus detêm o poder fascinante de nos fazer mergulhar, sentir e Soares dos Reis, do Traje e da Moda, Museu da até cheirar a fascinante Índia. Recorrendo a grandes reconstituições, artifícios Fundação Ricardo Espírito Santo Silva e o futuro expográficos de última geração, cenografias arrojadas e jogos sensoriais, Museu do Oriente, bem como colecções particulares apresentam-nos os esplendores do quotidiano indiano. Grande destaque deve ser de destaque (Senhor Almirante Alpoim Calvão, Dr. Pires Marques, Rainer Daehnhardt e José Lico), “Brinquedo indiano com rodas representando um elefante, com palanque”, séc. XIX | Madeira pintada policromada, Índia | cobrem a conhecida influência portuguesa na Índia, comp. 52 cm x larg. 31 cm | © Museu da Cidade de Lisboa dando origem ao agora muito discutido conceito de “indo-português” (patente em inúmero mobiliário, objectos e esculturas, tanto de carácter civil como religioso). De cunho mogol podemos deliciar-nos com os contadores das colecções dos Museus Nacionais de Arte Antiga, Soares dos Reis, Museu da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva e com os geometricamente perfeitos tapetes do Museu da Fundação Calouste Gulbenkian (que, entre outras peças, foram destaque da impressionante exposição “Goa e o Grão-Mogol”, em 2004). De facto, embora Portugal não desfrute por enquanto da posição de merecido destaque na rota dos Museus de Artes Asiáticas, podemos ainda realçar algumas peças de interesse no Museu da Marioneta de Lisboa (com a recente aquisição de marionetas indianas) ou o profusamente decorado elefante-brinquedo do Museu da Cidade de Lisboa, que é um exemplar lúdico deveras interessante e característico. Melhor colocados estamos em relação a uma abordagem etnológica, na qual o Museu Nacional de Etnologia é exemplo (veja-se a presente exposição “Pinturas Cantadas” até Janeiro próximo). A fabulosa colecção Kwok-on, da Fundação Oriente, com marionetas (varas, baguetes, luvas, fios, sombras), máscaras, estátuas, instrumentos musicais, jogos, brinquedos, traje, objectos rituais e festivos e iconografia diversa (gravura, poster, papel recortado, Paginação1.1.indd 58 07/09/04 22:21:01 59 Dossier ÍNDIA ESPLENDORES DA ÍNDIA OUTSIDE ÍNDIA feito aos MEG e MEN. O primeiro com a exposição “Les feux de la Déesse”, em projecções de tremores de terra, verdadeiras chamas 2005, que celebrou os homens e os deuses do Kerala através de uma das mais ou reconstituições do cosmos em movimento ou fascinantes exposições dedicadas à Índia. A mais alta qualidade da exposição é Shiva, Parvati e Ganesha (pai, mãe e filho) em bronze resultado de dois factores basilares: contextualizações e interpretações etnológicas do período hinduísta com um presépio cristão feito de e antropológicas sob uma abordagem expositiva moderna e o deslumbramento plástico na China para o Natal deste ano. excepcional face aos testemunhos da colecção, com o apoio das mais cuidadas Independentemente de visões mais clássicas opções expográficas (sem palavras!!). O MEN é para nós, a par com o MEG, o ou controversas, sob perspectivas estilísticas ou momento expositivo de eleição. A “museografia de ruptura” defendida pela etnológicas, em Portugal ou no mundo, a riqueza instituição propõe metáforas e conceitos que dão tema a exposições complexas e artística e cultural indiana far-nos-á sonhar e desafiantes. Cruzamentos temporais e geográficos de testemunhos e mentalidades aproveitar os esplendores da Índia outside Índia atingem-nos no âmago e fazem-nos questionar o mundo presente, passado e até à arrebatadora viagem ao local de origem. futuro. Nunca será de admirar ver em interacção, no MEN, Shiva Nataraja com Esplendores não faltam... deixe-se deslumbrar! | “Manasa “A Deusa Cobra”, meados do séc. XX | madeira, fios têxteis, papel, resina | Índia (Assam, Goalpara) | Doação de Gabriele Bertrand | 60 x 89 cm | © Musée du quai Branly, fotografia de Patrick Gries/Bruno Descoings Asian Art Museum of San Francisco http://www.asianart.org/ British Museum http://www.thebritishmuseum.ac.uk/ Linden-Museum Stuttgart - Staatliches Museum für Völkerkunde http://www.lindenmuseum.de Los Angeles County Museum of Art http://www.lacma.org/ Metropolitan Museum of Art New York http://www.metmuseum.org/ Musée d’Ethnographie de Genève http://www.ville-ge.ch Musée d’Ethnographie de Neuchâtel http://www.men.ch/ Musée du Quai Branly http://www.quaibranly.fr/ Musée Guimet http://www.museeguimet.fr/ Museum für Asiatische Kunst-Dahlem de Berlim http://www.smb.spk-berlin.de The Cleveland Museum of Art http://www.clevelandart.org/ Victoria&Albert Museum http://www.vam.ac.uk/ Fundação Oriente - Colecção Kwok on / Museu do Oriente http://www.foriente.pt/entrada.asp Museu da Marioneta http://www.museudamarioneta.egeac.pt Museu Nacional de Arte Antiga http://www.mnarteantiga-ipmuseus.pt/ Museu Nacional do Traje e da Moda http://www.museudotraje-ipmuseus.pt/ Museu Nacional de Etnologia http://www.mnetnologia-ipmuseus.pt/ Museu Nacional Soares dos Reis http://www.mnsr-ipmuseus.pt/ Paginação1.1.indd 59 07/09/04 22:21:01 62 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 ARTE CONTEMPORÂNEA Dossier ÍNDIA h FILIPA Luís deVICENTE Andrade Peixoto Leilões internacionais Highlights Índia Christie’s: Comprovando a vitalidade e interesse do mercado internacional quanto à Arte Antiga, Moderna, Contemporânea e de outro tipo de itens provenientes da Índia, aqui pomos em evidência diversos momentos, passados e futuros. Grande destaque para o artista contemporâneo Tyeb Metha e para o exótico leilão da colecção Gordon Reece, pela Bonhams, em Outubro. | Sotheby’s: 1. 4. 6. 9. Nova Iorque - 21 de Setembro de 2005 Londres - 21 de Maio de 2007 Nova Iorque - 29 de Março de 2006 Nova Iorque - 22 de Março de 2007 Lote 275 | Tyeb Mehta | “Mahisasura”, Lote 7 | Syed Haider Raza (1924-2002) Lote 25 | Syed Haider Raza (1924-2002) | Lote 114 | Tyeb Mehta | “Untitled” | 1997 | Est.: E 438.305 - E 584.407 | | “La Terre”, 1985 | Est.: E 591.488 - ”Tapovan” | Acrílico sobre tela | Est.:E 584.407 - E 730.508 | Vendido por: Vendido por: E 1.309.000 - E 887.233 | Vendido por: E 1.049.760 Est.: E 584.407 - E 730.508 | Vendido E 847.390 Recorde internacional para pintura © Christie’s Images Ltd. 2007 por: E 1.075.308 indiana contemporânea Recorde pessoal do artista em leilão Recorde pessoal do artista em leilão © Christie’s Images Ltd. 2007 2. 5. 7. 10. Nova Iorque - 30 de Março de 2006 Nova Iorque - 20 de Setembro de 2006 Londres - 23 de Maio de 2006 Nova Iorque - 29 de Março de 2006 Lote 42 | Vasudeo S. Gaitonde (1924- Lote 63 | Tyeb Mehta | “Untitled (Figures Lote 135 | Francis Newton Souza | Lote 80 | Jagdish Swaminathan | 2001), | “Untitled”, 1975 | with Bull Head)” | Est.: E 584.407 - “Amsterdam Landscape” | Est. : E 88.723 - “Untitled” | Est.: E 219.152 - E 219.152 | Est: E 438.305 - E 584.407 | Vendido por: - E 730.508 | Vendido por: E 894.488 - E 118.298 | Vendido por: E 922.722 Vendido por: E 587.206 E 1.226.666 © Christie’s Images Ltd. 2007 Recorde pessoal do artista em leilão © Christie’s Images Ltd. 2007 3. 8. Nova Iorque - 30 de Setembro de 2006 Nova Iorque - 29 de Março de 2006 Lote 23 | Francis Newton Souza, | Lote 81 | Tyeb Mehta | “Falling Figure “Man and Woman” | Óleo sobre madeira| with Bird” | Est.: E 584.407 - E 730.508 | Est. : E 219.152 - E 365.254 | Vendido Vendido por: E 911.674 por: E 1.070.866 © Christie’s Images Ltd. 2007 Paginação1.1.indd 62 07/09/04 22:21:02 63 UM OCEANO INTEIRO h 1. 2. 3. Paginação1.1.indd 63 4. 7. 5. 8. 6. 9. 10. 07/09/04 22:21:03 64 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 ARTE CONTEMPORÂNEA h DOSSIER ÍNDIA LEILÕES INTERNACIONAIS HIGHLIGHTS INDIA FILIPA VICENTE A 2 de Outubro terá lugar, na Bonhams de Knightsbridge - Londres, o de interiores sempre trabalhou nos seus projectos. Apaixonado leilão da colecção de Gordon Reece, dono da Galeria West End. coleccionador e eternamente fascinado pelo exótico, Gordon Reece Estão representados cerca de 600 lotes de artes variadas, põe, deste modo, fim à sua carreira de 26 anos no mundo da antiguidades, arte tribal, escultura religiosa e ritual, cerâmicas, decoração e dos objectos de rara excepção e beleza. templos em miniatura, colunas e outros elementos de arquitectura, Grande interesse recai nas peças de origem indiana directamente mobiliário, joalharia e tantos exóticos testemunhos não europeus, provenientes de palácios de marajás e de cortes reais do Rajastão. sobretudo de África e do subcontinente asiático, assim como Requintada qualidade e elevados preços são esperados! | muitos outros luxuosos objectos com que este consultor de design Bonhams: Leilão 15651: Colecção Gordon Reece 2 de Outubro Knightsbridge - Londres: 1. 3. “Rara e requintada carruagem de “Coluna” casamento real” Madeira teca esculpida Madeira teca trabalhada e metais vários Séc. XIX Comprimento total: 428 cm (carruagem: Rajastão - Índia do Norte comp. 147 cm x alt. 105 cm / diâmetro das Proveniência: estrutura arquitectónica de rodas 74 cm) uma residência aristocrática ou Haveli, Sécs. XVIII-XIX região de Bikaner 1. Rajastão - Índia do Norte Proveniência: Colecção real do Rajastão, previamente usada em casamento de uma princesa do Gujarati com um aristocrata reinante de Jodhpur. Valor anterior de referência: E 21.441 2. “Elegante templo ou santuário” Madeira teca trabalhada, Alt.160 x larg. 112 x comp. 102 cm Sécs. XVIII-XIX Rajastão - Índia do Norte Valor anterior de referência: E 17.744 Paginação1.1.indd 64 2. 3. 07/09/04 22:21:04 66 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 Dossier ÍNDIA Luís de Andrade Peixoto Antiquariato Indiano “Deus Surya”, c. séc. V-VII | grés | Índia central | 51 cm Paginação1.1.indd 66 07/09/04 22:21:04 67 Embora sem a diversidade e a efervescência do antiquariato europeu e de outros com disco perfurado, que assentam sobre os ombros, hot spots internacionais especializados em artes da Índia, em Portugal é possível colar longo de várias fiadas e um cordão ritual simples destacar a oferta de espécimes que, embora limitada, é de elevada qualidade e que (avayanga) à volta da cintura (toda a indumentária, cobre um panorama contextual rico e interessante. sobretudo o calçado, evoca a sua origem em Manuel Castilho, fiel à sua tradição de requinte nas propostas de arte indiana e mitologias das estepes da Ásia Central). asiática, continua a ser a referência por excelência. Pela sua loja e stand de vendas, Por detrás da cabeça vê-se parte de um resplendor em feiras nacionais e internacionais, continuam a passar dos mais belos exemplares circular. Seria originalmente ladeado por Pingala, o testemunhos da Índia, com especial relevo para a arte escultórica. Entre escultura seu escriba que tomava nota das acções dos homens, búdica, hindu e peças de influência mogol e portuguesa, destacamos presentemente e por Dandí, o seu guardião. A pequena figura que se duas distintas esculturas e um baldaquino cerimonial inédito. vê a seus pés é pouco habitual e poderá representar a Escultura de vulto do deus sol védico Surya, representado segundo uma iconografia deusa Terra. estabelecida a partir dos primeiros anos d.C. Posteriormente absorvido pelo Surya, com os dois braços erguidos e as mãos à altura Hinduísmo (no qual esta escultura se inseriria, integrando um altar subsidiário de dos ombros, ostenta duas esplendorosas flores de um templo hindu) é, na sua origem, deus dos invasores arianos (c. 1700 a.C.). lótus abertas, em símbolo de regeneração, do ciclo da O deus em afirmada posição erguida e frontal enverga túnica longa diáfana. Do vida, da vida e da morte. característico pano pendente em U de um braço ao outro, apenas resta a tira que Conjunto escultórico no qual se destaca uma figura passa em frente aos joelhos. Usa uma coroa alta (karandamukuta), grandes brincos masculina com um enxota--moscas (chawri) em “Fragmento arquitectónico”, sécs. X-XII | pedra calcária | Índia (Rajastão) “Baldaquino”, séc. XIX | madeira policromada | Índia Paginação1.1.indd 67 07/09/04 22:21:05 68 postura sensualmente arqueada (tribangha). A figura, irradiando elegância e do belo e da estética, conjuga também produções juventude, encontra-se coroada e ricamente adornada com jóias. Poderá ser um artísticas próprias. yaksha, divindade acessória frequentemente representada ladeando divindades Estas obras complementam um imaginário que se hindu principais ou associada a um Tirthankara jainista. Vê-se ainda uma coluna relaciona directamente com os países de origem, indicando um templo ou palácio e um leão rampante (simba-vyala) subjugando um revitalizando conceitos, inspirações e tecendo elefante, o que evoca o poder da divindade central, representada neste friso. diálogos entre técnicas, materiais, estilos, temáticas Invulgar baldaquino com corpo cónico oitavado assente em base quadrada. e tempos. De realçar as composições em estilo de O corpo apresenta em quatro registos pinturas provavelmente alusivas ao gabinetes de curiosidades, nas quais naturalia e Ramayana, o mais importante épico hindu. Entre as cenas pintadas sobre fundo artificialia vivem em plena harmonia, testemunhando verde vibrante vêem-se divindades como Ganesh, cabeça de elefante e corpo de a acção da natureza e do homem e a sua inevitável homem, invocado para remover obstáculos e determinante para o sucesso de interacção. Dentro destes microcosmos de recolha e qualquer iniciativa, assim como vários rishies, homens santos de barbas e cabelos de acumulação, em aceso deleite e vivência da cultura compridos. Este baldaquino seria um acessório para as inúmeras actividades do objecto, da afirmação da curiosidade e fascínio religiosas deambulatórias hindu e serviria de cobertura para uma imagem portátil pelo exótico, sublinhe-se ainda a série de trabalhos de uma qualquer divindade, retirada do templo para esse efeito. inspirados a partir da cultura nipónica e atente-se Teresa Lacerda, há muito apaixonada pela Índia, sugere-nos, na sua eclética e nos mais clássicos e sublimes elementos da cultura fascinante loja De Natura, uma selecção preciosa de peças. Tendo recolhido desde samurai (kimonos, armaduras e capacetes). Visita cedo testemunhos do quotidiano sagrado e profano de países extra-europeus obrigatória! (sobretudo Ásia e África), bem como peças de arte produzidas com o intuito Fará em Novembro dez anos que, em conjunto com Ana Marchand e Fernando Cardoso, Teresa Lacerda “Naga e Shiva Linga” | bronze e pedra de rio sagrado Índia | c. 50 cm de altura | Fotografia: Luís Gonçalves assinalou os cinquenta anos da independência da Índia com a iniciativa Jornadas da Índia em Montemoro-Novo, na qual se celebraram a vasta cultura indiana e as suas belas manifestações. Num percurso destacado pelas inúmeras viagens a Oriente e perante tantos e tão fascinantes objectos e testemunhos, serão sempre de destaque as dezenas de brinquedos trazidos de uma loja de Banares ou os deslumbrantes pichhavai (pinturas de “pano de fundo” de altar, de uma imagem de um deus, neste caso do culto a Krishna) do Rajastão. Na De Natura, entre várias peças indianas, como um interessante Ganesh montado no seu rato (em madeira policromada, séc. XIX), sublinhamos a impressionante Naga das cinco cabeças em bronze. Esta escultura, em evidente sinal de protecção e escudo de um conteúdo também sagrado à sua guarda, foi adquirida há mais de quinze anos num antiquário londrino. Em composição hindu, um Shiva Linga, pedra lisa de um rio sagrado que simboliza o falo de Shiva, está protegido pela cobra. Segundo alguns autores, este tipo de Naga poderá também ser usado como suporte de incenso, Paginação1.1.indd 68 07/09/04 22:21:05 69 Dossier ÍNDIA ANTiQUARIATO: ÍNDIA certamente recorrendo aos estratégicos orifícios na extremidade da boca de cada importância para as tribos Naga. As Naga são tribos uma das cinco cabeças de cobra. Em associação budista, relembremos o papel da das montanhas que se estruturaram à parte da grande Naga durante a meditação de Buda, protegendo-o da tempestade chuvosa. dinâmica geopolítica e cultural da Índia. Mesmo dentro Um conjunto de dezasseis peças e esculturas do Kerala e de Tamil Nadu compõem da grande comunidade Naga, dividida em centenas de uma interessante e rara oferta. Entre peças utilitárias, carimbos tantra, fragmentos pequenos aglomerados populacionais, as diferenças arquitectónicos, caixas de pós de consagração, esculturas de deuses hinduístas de vivência, organização e até língua e, no fundo, de e outras imagens de difícil identificação, damos evidência a uma escultura de culturas é assinalável. Práticas como o cortar de cabeças, antepassado e duas Devadasi ou Yaksa. sacrifícios de animais, as comuns celebrações variadas Originária de um altar familiar de Tamil Nadu, a imagem de um antepassado, que assinalam diversos momentos da vida, religiosidade em austera, simétrica e firme posição de asceta jainista, com braços afastados do e crenças e as interessantes festividades dadas por corpo, palmas da mão para dentro e pontas dos dedos projectando a energia para o quem se destaca social e estatutariamente dentro das solo, assinala a rectidão física e espiritual do ente perdido e aqui homenageado. comunidades, são momentos-chave e identitários destas Duas Yaksa ou Devadasi mostram o requinte da representação destas deusas- tribos. mãe, originárias do Kerala. As suas formas voluptuosas, complexos penteados, Teresa Lacerda apresenta-nos três xailes directamente trajes marcantes e acessórios variados revelam a riqueza estilística desta relacionados com ritualismo, representação estatutária e divindade associada aos conceitos do primordial, de mãe sagrada e mãe natureza, simbolismo variado dentro das lógicas de comemoração relacionando-a em metáfora e comparação com a árvore (também Yaksa). Delas das crenças do sobrenatural (quer sejam espíritos ou brotam a fertilidade e criação, são fecundas e férteis, são elas que finalmente divindades) ou de momentos cruciais do aspecto cíclico promovem a dádiva da vida. da vida natural e humana (fertilidade, prosperidade, vida Do Nordeste da Índia chegam-nos três têxteis (xailes) de grande simbolismo e e morte). Imagem de Antepassado (Tamil Nadu), à esquerda, e duas Devadasi (Kerala), centro e direita | madeira com vestígios de policromia | Índia | Fotografia: Luís Gonçalves. Paginação1.1.indd 69 07/09/04 22:21:07 70 Dossier ÍNDIA ANTiQUARIATO: ÍNDIA Xaile com círculos e representação antropomórfica elaborados com pequenos búzios. Os pequenos quadrados são, na sua origem e muito provavelmente neste exemplar também, trabalhados com pêlo de cão tingido a vermelho, assinalando uma das mais emblemáticas técnicas das Naga que é o eficaz e complexo tingimento, quer de fibras têxteis e de outros materiais. Este estilo é comum às comunidades Naga: Sema, Chang, Kalyo-Kengyu e Sangtam | Fotografia: Luís Gonçalves. Dentro da imensidão de testemunhos Naga regularmente presenteiam o mercado português (cestaria, joalharia, ornamentos, armas, peças com peças de excepção, indo-portuguesas e de em metais, esculturas e tanta cultura material influência mogol. do quotidiano) os têxteis e traje compõem Destaque para Jandrade - Antiguidades que, no simbolicamente peças de extrema elegância presente momento, dá a conhecer um cativante e significado. De Natura apresenta-nos três e requintado contador mogol (teca, ébano e belíssimos e cada vez mais raros exemplos destes marfim; 310 x 435 x 295mm, final do séc. XVI, xailes cerimoniais (a não perder!!). Índia Mogol) com motivos vegetalistas e de caça. Finalmente, muito comum e apreciado no Além dos raros e refinados pelicanos, grande mercado do antiquariato português, o mobiliário, surpresa paira na representação de um português escultura, pintura, ourivesaria, têxteis, outras empunhando uma espingarda, em traje de época artes decorativas e marfins indo-portugueses, séc. no qual são evidentes as enormes, arejadas e XVI-XVII, podem encontrar-se sem dificuldade. tufadas calças bombachas (ao estilo namban Além dos nomes acima citados, os Casa D’Arte, jin, epíteto criado pelos japoneses para nós, os Galeria da Arcada - Antiguidades, Lda., Jandrade bárbaros do sul), que pode ser apreciado através - Antiguidades, Jorge Welsh ou Pedro Bourbon dos namban byobu/biombo, nos Museus Nacionais de Aguiar Branco - V.O.C. Antiguidades, Lda. de Arte Antiga, Soares dos Reis ou no Museu da são importantes e reconhecidos antiquários que Fundação Ricardo Espírito Santo Silva. | Paginação1.1.indd 70 Manuel Castilho - Antiguidades Rua D. Pedro V, nº 85 1250-093 Lisboa www.manuelcastilho.com Teresa Lacerda - De Natura Rua da Rosa, nº 162 A 1200-389 Lisboa www.denatura.org Jandrade - Antiguidades Rua da Escola Politécnica, nº39 A 1250-099 Lisboa e-mail: [email protected] Jorge Welsh Porcelana Oriental e Obras de Arte, Lda. Rua de S. Bento, nº 440 1250-221 Lisboa www.jorgewelsh.com Pedro Bourbon de Aguiar Branco - V.O.C. Antiguidades, Lda. R. Honório de Lima, nº72 4200-321 Porto www.apa.pt/pab Galeria da Arcada - Antiguidades, Lda. Rua D. Pedro V, nº49 1250-092 Lisboa Casa D’Arte Largo de S. Martinho, nº8 (à Sé) 1100-537 Lisboa www.casa-darte.com 07/09/04 22:21:08 72 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 Dossier ÍNDIA MADALENA BRAZ TEIXEIRA Panos Pintados Paginação1.1.indd 72 07/09/04 22:21:09 73 primeira em Baixo | Chitas de Alcobaça, séc. XIX em Cima | O Tabaqueiro, séc. XIX duas Últimas em Baixo Lenços de Alcobaça, séc. XIX AS CHITAS Industrial dos países atrás citados, mas também devido à facilidade de acesso Os estampados de algodão constituem, porventura, os mais emblemáticos dos portugueses aos produtos importados da Índia. exemplos de arte têxtil que se classificam atendendo não só à utilização de um Não é despiciendo referir que as muitas fábricas mesmo material e a uma técnica específica, mas ainda devido à sua característica e fabriquetas de chitas existentes no nosso país, composição. Conhece-se pouco sobre as suas origens, mas a tradição é documentadas na listagem apresentada por Jorge imperativa, tendo sido possível estabelecer analogias formais e encontrar alguma Custódio, se destinavam à estamparia manual dos documentação esparsa que possibilita criar o historial do que é comum tratar por mais diversos adereços, desde os lenços (de mãos, Chitas de Alcobaça. de cabeça e de peito), às blusas e camisas destinadas “A chita não é um tecido, mas um pano de algodão pintado”, e a sua designação à classe média e a gente de poucas posses, pois deriva do hindu, chint. Assim aparece explicitado no Dicionário de Bluteau, data de 1804 uma edição publicada em português publicado em 1712, que se lhe refere como “panos pintados que são da Índia”. sobre a técnica de tingir os algodões, o que indicia a Essa pintura realiza-se por um processo de estamparia manual. É lugar-comum democratização da estamparia a nível nacional. dizer-se que o termo “chita” é anterior ao vocábulo inglês, chintz. Na verdade, sabe- O uso dos algodões indianos na indumentária, que se que os primeiros pintados vieram da Índia com Vasco da Gama e que os ingleses não de chitas, começa por ser divulgado na corte, só tiveram conhecimento deste material muito posteriormente, através das trocas inclusive por pessoas régias como D. Carlota Joaquina, comerciais portuguesas e da sua pirataria. Chintz, segundo o The Oxford Dictionary, substituindo e alternando a utilização das sedas e do deriva do hindu chint, tendo sido utilizado desde o início do século XVII, e é, linho, como até aí era de regra. A partir de 1816, com consequentemente, posterior à chita, ou pintados ou ainda calicô, palavras tornadas o regresso de D. João VI e após as Invasões Francesas, sinónimas desde 1498. Calicô é o aportuguesamento de Calecut, de onde estas o país atravessa uma séria crise política e económica. mercadorias seguiam para Lisboa. Dificuldades de vária ordem, agravadas pela guerra Na língua francesa, não existe vocábulo próprio e este tipo de tecidos eram designados civil em 1832-35, conduziram à preferência por indiennes e, mais tarde, toiles de Jouy, por derivarem da manufactura dos estampados produtos nacionais. Os algodões estampados no executados naquele local, perto da corte de Versailles. Todavia, seria em Mulhouse que país conhecem então um enorme sucesso, dado o se viriam a concentrar e a desenvolver as fábricas de estamparia industrial francesa. seu preço muito acessível. Será preciso esperar por Tanto em Inglaterra como entre os franceses, os tecidos estampados foram, talvez por 1870 para que a indústria fabril ganhe expressão, razões climáticas, essencialmente destinados à decoração de interiores. No entanto, a o que ocorre com o período regenerador de Fontes moda de Verão expande-se na Europa desde os finais do séc. XVIII, e restam algumas Pereira de Melo. É então que as chitas, totalmente peças de vestuário confeccionadas nesse material. executadas no país, passam a ser adquiridas por todas No nosso país, desde 1700 até cerca de 1820, só os verdadeiros tecidos indianos as camadas da população, sendo usadas tanto no traje foram utilizados no traje, dado o atraso da nossa indústria face à Revolução como no bragal. Paginação1.1.indd 73 07/09/04 22:21:09 74 OS LENÇOS Estes acessórios do traje tinham várias funções: desde guardanapos para serem usados à mesa, na limpeza de partes do corpo, como o nariz, até garrotes, sempre à mão, para qualquer eventualidade. É no séc. XVIII que se generaliza o seu uso entre as classes mais abastadas e os clérigos. Eram de grande necessidade para os fumadores de rapé que, com estes acessórios de algodão, executavam o ritual da sua inalação. Este tipo de tabaco Palampore ou pano da Índia, séc. XVIII esteve muito em voga em setecentos, sabendo-se, por exemplo, que o Marquês de Pombal era um inveterado O gosto vacilava entre um Barroco tardio e a voga do Neoclassicismo, de que as fumador. colchas constituem paradigmática manifestação, juntamente com o advento de um O aparecimento dos algodões da Índia faz crer que os primeiro Romantismo pouco afirmativo. lenços de algodão importado, de mais fácil lavagem e de A produção nacional foi posteriormente atendendo a um gosto Neoclássico tardio, mais suave textura para o uso, tanto junto do pescoço, na medida em que, tanto as composições padronadas como as que são organizadas como nas narinas, passassem a ser adquiridos para esta em bandas contêm o léxico gramatical daquele estilo. É perceptível a sua evolução finalidade. O lenço tabaqueiro é uma especialização do para ramagens de sabor romântico, não perdendo todavia a estrutura inicial que dito lenço comum de duas funções usado pelas classes só é desconstruída no final de novecentos. Através da leitura formal das colchas, menos favorecidas e é um fenómeno oitocentista, na é possível indicar-se a respectiva datação, muito embora se tenham vindo a medida em que o nobre e mesmo o burguês sempre manufacturar alguns dos padrões que se mantiveram estáveis até aos anos usaram lenço branco até praticamente aos anos 60 do 30 do séc. XX. séc. XX. “Alcobaça” corresponde a uma tipologia de tecidos de algodão estampados, A decoração destes lenços era subsidiária dos desenhos essencialmente destinados à decoração de interiores, nomeadamente, à e ornamentos usados nas colchas, embora mais confecção de colchas. Caracteriza-se por três elementos fundamentais: o simplificados e geometrizados. A policromia também material, sempre manufacturado em tafetá de algodão, pela sua rica e variada segue de perto o colorido das colchas, tendendo policromia e pela composição, em que predominam os motivos florais mas a escurecerem à medida que o séc. XIX avança, onde também aparecem albarradas, folhagens, animais, ânforas e motivos mantendo-se os tons vermelho e azul-escuro como os de geométricos numa organização padronada que lhe é própria. maior preferência a nível nacional. A técnica, que constitui ainda um processo identificador das colchas de Alcobaça, é executada através da gravura sobre tecido de algodão. A gravação era executada por meio de cunhos de madeira e de ferro. O facto de a composição ser gravada AS COLCHAS no algodão por meio de cunhos faz que os desenhos obedeçam a uma estrutura seriada com marcações repetidas provenientes de diferentes carimbos, quer na manufactura das colchas, quer na dos lenços ou outros acessórios. A decoração Relativamente às colchas, estas também foram era distribuída por módulos para cada uma e para as diferentes partes da peça que usadas no nosso país em setecentos, sendo difícil se pretendia estampar, compondo-se uma série de cunhos que, juntos, cobriam precisar quando se trata de colchas vindas da Índia, a totalidade do algodão cru, podendo deixar parte do suporte à vista quando a as célebres palampor, e quando passam a ser produto organização do desenho assim o definia. nacional. Portugal vivia um acentuado ecletismo, A composição pode classificar-se em dois grandes grupos: as alcobaças de motivado pela ausência de árbitros de elegância e padrão, que correspondem à integral cobertura do fundo com um mesmo de encomendas públicas e privadas, pois tanto a desenho de tipo tapete; e as alcobaças de bandas, cuja organização obedecia à família real como a corte se encontravam no Brasil. listragem (bandas em listras) dos motivos de modo a que os ornatos corressem Paginação1.1.indd 74 07/09/04 22:21:09 75 Dossier ÍNDIA Panos Pintados Colcha de algodão estampado, séc. XIX Lenço com influência oriental, séc. XIX no sentido do comprimento do algodão. Estas Portugal sobre tecidos importados. Também é possível que os primeiros cunhos classificações ainda podem ser subdivididas, o fossem indianos, aos quais se tivesse sucedido a manufactura de carimbos que implicaria a descrição de uma extensa lista de portugueses. Esta hipótese, não documentada, permitiria estabelecer uma série de subgrupos de padronagem destas colchas. fases de manufactura até que o produto nacional tivesse atingido a sua autonomia e se pudesse estabelecer uma evolução no desenvolvimento desta indústria e do próprio gosto que lhe subjaz. O GOSTO Existe, no entanto, uma realidade mítica relativa ao local da génese desta tipologia de arte têxtil que os portugueses se habituaram a considerar como sua, revendose nela como um elemento da identidade nacional, a que não são alheias as Reconhecendo-se hoje que a variedade tipológica eloquentes palavras de Gil Vicente: dos lenços e das colchas de Alcobaça constitui uma realidade incontornável e que estes trabalhos foram E logo dahi a um ano e têm sido considerados, pelo menos a partir de Para ajudar de casar finais do séc. XIX, genuinamente portugueses, torna- Huma orfam mandaste dar se necessário equacionar esta arte têxtil. Como foi Meio covado pano referido anteriormente, De Alcobaça por tosar... as suas origens documentais são pouco precisas e insuficientes para se poder concluir como e quando se Penso que é neste contexto que as colchas e chitas de Alcobaça devem ser iniciou este tipo de fabrico, parecendo, todavia, que a perspectivadas, referenciáveis a uma subjectividade pátria, religada a emoções de indicação de Maria Augusta Trindade Ferreira sobre a ordem afectiva e cultural, fazendo parte de uma história e de um modo de ser com existência no mosteiro de uma fábrica de lençaria nos características peculiares. É o carácter emblemático das peças que está em causa finais do séc. XVIII nos conduz mais directamente à e não tanto a valia histórica, plástica ou etnográfica. O gosto pelo exótico que se probabilidade de ter existido no entorno do mosteiro vem mantendo ao longo dos tempos e que foi esfriado com a Inquisição, que abolia uma manufactura de algodão e/ou de estamparia, tão não só os distintos credos como as suas manifestações sensíveis, explica também o importante ou inovadora que teve o privilégio de ter sucesso desta arte têxtil. Corresponde a uma miscigenação de motivos decorativos sido visitada pela rainha. europeus, islâmicos e indianos, mas também ao apelo pelo diferente que calou bem A tecelagem de linho e de lã constituía uma fundo no cariz voluptuoso do português, que continua a eleger peças de acentuado obrigatória actividade monacal, destinada à execução valor étnico no interior das suas casas como uma moda cultural que permanece. | dos têxteis necessários para uso da indumentária e das alfaias religiosas. Deste modo, uma lençaria não representava uma excentricidade. É plausível que os algodões fossem gravados em Paginação1.1.indd 75 Madalena Braz Teixeira Directora do Museu Nacional do Traje, Lisboa. | 07/09/04 22:21:10 76 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 Dossier PAULA REGO José Sousa Machado | José Cabrita Saraiva [Jornal Sol] ENTREVISTA COM PAULA REGO A Nossa Senhora é a minha neta A propósito da exposição retrospectiva que acaba de ser inaugurada no museu Reina Sofia, de Madrid, visitámos Paula rego no seu atelier londrino e conversámos sobre pintura e sobre a vida, sobre tudo e sobre nada. Artes & Leilões – Como está organizada a sua A&L – Seleccionou as obras que estão expostas em exposição no Reina Sofia e porque é que a realiza conjunto com Marco Livingstone? em Espanha agora? A Paula é conhecidíssima em Paula Rego – Sim. Londres, em Portugal, mas, em Espanha, ainda não A&L – Expõe algumas peças relevantes ou alcançou uma projecção equivalente. emblemáticas do seu percurso que queira destacar? Paula Rego – Não, eu em Espanha só expus…na Paula Rego – Foi feita uma selecção brutal, porque ao Marlborough; expus os meus quadros sobre o aborto, longo de todos estes anos eu fiz muitas coisas, não é mas isso não foi uma coisa pública. verdade? A&L – É, então, a primeira vez que tem uma A&L – Pode destacar algumas das obras? exposição com esta envergadura em Madrid… Paula Rego – Por exemplo, vão construir uma capela Paula Rego – É uma retrospectiva. com as minhas avestruzes dançarinas, que são da A&L – Cobre toda a sua carreira artística? Saatchi; também lá estarão Os cães de Barcelona, entre Paula Rego – Desde 1952, para já… outros. Paginação1.1.indd 76 07/09/04 22:21:11 77 Paginação1.1.indd 77 07/09/04 22:21:12 78 Dossier PAULA REGO a nossa senhora é a minha neta A&L – E as Vivian Girls? Madrid… Paula Rego – Só lá estarão dois quadros dessa série. Paula Rego – Pois, em Espanha o Reina Sofia é um museu importante, não é? E o A&L – Mas também expõe as colagens anteriores? Prado é, do meu ponto de vista, o melhor museu do mundo. Do que eu mais gosto na Paula Rego – De colagens, tem os Cães de Barcelona, vida é visitar o Prado. Também por isso tenho tanto respeito por Espanha e gosto tanto tem um outro quadro que pertence à Tate, que é Os de visitar Madrid. É fantástico aquele museu…vou lá sempre com gosto, ver aqueles bombeiros de Alijó e, ainda, O regicida… E mais alguns santos e o Zurbaran. Também gosto muito da colecção que tem de pintura italiana, os outros. Botticelli… extraordinário! Têm um Bosch, têm tudo. A&L – Expõe obras inéditas? A&L – É o museu do mundo que tem mais obras de Bosch, mas também de Paula Rego – Sim, de toda a minha última exposição Velásquez. de Londres, por exemplo, estão bastantes obras. Acho Paula Rego – Desse nem se fala. Têm sempre uma selecção muito rigorosa e, depois, que pouca gente conhece esta exposição…Para além salas e salas de El Greco. Mas gosto sobretudo de ir lá ver pintura espanhola, do Ribera, disso exponho bastantes desenhos, a série sobre a por exemplo, que tanto aprecio. Até parece que nasci lá. Misericórdia, que são desenhos que eu fiz sobre a idade, A&L – Sente grande empatia ou afinidade com Espanha? e gravuras, as Nursery Rhymes…Tem um pouco de tudo. Paula Rego – Não sei se é afinidade ou empatia, mas gosto muito, porque fui criada A&L – É uma exposição grande, em termos de com aquilo, desde pequena. Cresci acompanhada por dois artistas que eram o Goya e dimensão? o Gustave Dorê, que era ilustrador. O meu pai tinha livros com gravuras destes artistas Paula Rego – Pois é. Espero que caiba tudo lá. e metia-me medo com o Inferno de Dante. Do Goya, tinha os Desastres da Guerra e A&L – Há pouco disse que teve de fazer uma selecção os Disparates, e o Dorê ilustrou tudo o que havia para ilustrar…os contos do Perrault, imensa. Tem uma estimativa de quantas obras já fez o Capuchinho Vermelho, por exemplo. Mas o que eu mais gostava era o Inferno de até hoje? Quanto a desenhos, acho que é incontável Dante ilustrado pelo Dorê. Em dias especiais eu sentava-me ao pé do meu pai e ele mas, por exemplo, telas? abria o livro e eu sentia muito medo; ver os homens todos gelados, pendurados em Paula Rego – Eu tenho fotografados dois mil e tal mastros… era uma festa, eu gostava muito e tinha muito medo ao mesmo tempo. Eu desenhos. Quanto a quadros não sei quantos são, nunca pintei um quadro sobre isso, chamado Fisherman, com o meu pai a mostrar-me esse os contei… livro e a pescar no Cabo da Roca. É o meu último tríptico, que esteve na exposição da A&L – E quanto tempo demorou a organizar esta Marborough e vai estar também na exposição do Reina Sofia. exposição? A&L – A sua obra tem vindo a conquistar muita notoriedade nos leilões da Paula Rego – Bastante tempo. Isto foi combinado há Christie’s e da Sotheby’s. Estava à espera deste súbito interesse pela sua obra? cerca de dois anos. Desde então temos tido um trabalho Paula Rego – Esse interesse que refere não foi assim tão repentino. Eu já tenho 72 incrível. anos de idade. Já trabalho há muitos anos. Esta exposição abarca 52 anos de trabalho… A&L – Quantas peças vão estar expostas na exposição? existem até épocas da minha vida nas quais já nem me lembro o que fiz. E nem sei Paula Rego – Quadros… não sei bem, mas serão entre onde estão, pelo menos, metade dos meus trabalhos. Andam dispersos por Portugal. oitenta e noventa. Mas ainda há que juntar as gravuras Vou ter de encontrá-los. Há coisas que fiz e nunca mais vi. Foram vendidas pelo Pereira e desenhos, que são muitos. Eles lá no museu têm listas Coutinho, que não me disse onde elas estavam e não deixou registo nenhum delas. detalhadas. São muito simpáticos… há um arquitecto, o Tenho-me visto grega à procura de coisas antigas minhas. Encontrei o Regicida, por Marco Corrales, que é fantástico, desenhou o espaço da exemplo, através de pessoas amigas. Se alguém souber do paradeiro de quadros meus, exposição… por favor informe-me. A&L – Desenhou a arquitectura de espaço? A&L – A equipa do Reina Sofia que preparou esta exposição não conseguiu Paula Rego – Sim, redesenhou o espaço todo, porque a descobrir quadros seus? sala é gigantesca e tivemos que a dividir para organizar Paula Rego – Como é que eles podiam fazê-lo se não conhecem Portugal? Esse trabalho as coisas. A exposição realiza-se numa extensão do tem de ser feito por mim, com os meus contactos. Nem sequer o Marco tem contactos Museu Reina Sofia, que é um recinto maior. em Portugal para executar essa tarefa. A&L – Será com certeza uma importante exposição A&L – Foi sobretudo em Portugal que a Paula perdeu o rasto das obras mais antigas? e um cartão de visita invejável para a sua estreia em Paula Rego – Sim. Mas há também pessoas que não querem dizer que têm quadros Paginação1.1.indd 78 07/09/04 22:21:12 79 meus. É esquisito, não acha? Esse é um assunto a que terei de voltar quando organizar Paula Rego – O museu deve ser extraordinário. Deve o catalogue raisonée das minhas pinturas. Eu tenho um das minhas gravuras que ser muito diferente dos museus ocidentais, que deixam entretanto já está desactualizado porque fiz muitas mais desde então. imenso espaço vazio à volta dos quadros. A&L – Qual é o papel da mulher na sua obra? A condição feminina é um elemento A&L – Quando visitei o Museu Tetreakov, há já uns preponderante e cada vez mais central na sua obra. anos, estava lá uma exposição de obras desde os Paula Rego – Sempre foi. primeiros construtivistas até aos anos 60, mostrando o A&L – É uma atitude um pouco feminista, não? gesto a ser moldado para propaganda do regime, num Paula Rego – Até bastante. Pois é. As histórias que eu conto, o assunto, são histórias realismo panfletário… contadas a partir da experiência de uma mulher. Só sei contar coisas do meu ponto de Paula Rego – Que coisa extraordinária. É uma pena não vista. Acho muito difícil pôr-me na pele de um homem ou de um bicho. É claro que uso termos a possibilidade de ver com mais frequência essas uma linguagem metafórica; os bichos personificam pessoas, são sempre pessoas. coisas, nem a arte nazi. A&L – Nas suas obras há uma extrema identificação entre as pessoas e os bichos, A&L – Até parece que estamos perante obras num ao ponto de podermos fazer aquele jogo em que cada pessoa se representa como estilo realista e fantástico, ao mesmo tempo, só que sendo um bicho, o animal com que mais se identifica. com uma carga muito ideológica… Paula Rego – Nesse caso, com que bicho se identifica você? Paula Rego – Mas o realismo é sempre um pouco assim, A&L – Com um cágado, mas preferia ser um macaco. não é? Esse tipo de arte política, de propaganda dos Paula Rego – Ai sim, isso é muito engraçado. Havia um actor português, o Ribeirinho, regimes totalitários, embora não seja aceitável no que suponho, que também se parecia com um cágado. representa, deve ser vista. Toda a arte é assim. Em certas A&L – E a Paula, com que animal se identifica? alturas, certas coisas tornam-se impopulares e escondem- Paula Rego – Eu gosto do cão, mas o bicho com que mais me identifico é o porco. nas nos armazéns. É uma pena… Lá em Portugal Mas, está claro, não é um bicho muito simpático. Refiro-me aqueles porcos do Alentejo, também há muitas coisas do séc. XIX que não estão à pretos, que têm pêlos bicudos. Eu gosto de todos os porcos. mostra. A&L – Não é propriamente um animal para se ter em casa… A&L – Se calhar nós, portugueses, também não Paula Rego. – Seria uma grande balbúrdia valorizamos a nossa própria cultura, não é? A&L – A exposição do Reina Sofia vai ter itinerância? Paris, Moscovo… Paula Rego – Isso é uma pena, é uma parte da memória Paula Rego – Não, deve haver aí um engano. A minha exposição de gravuras que que se perde, mas também uma maneira de fazer arte. agora anda a viajar pelo mundo é que vai a São Petersburgo. Esteve recentemente em Por exemplo, há poucas coisas do Columbano expostas Birmingham. Mas esse é outro projecto. Esta exposição vai viajar até Washington, ao e poucos desenhos - que eu adoro - do irmão, do Rafael. The National Museum for Women in the Arts. Agrada-me aquela vitalidade e sentido de humor que é A&L – A Paula conhece São Petersburgo? tão nosso. Paula Rego – Não, ainda não. E você já lá foi? A&L – A Paula envolve as pessoas que lhe são A&L – Sim, já. próximas na elaboração dos seus quadros. De certa Paginação1.1.indd 79 07/09/04 22:21:13 80 Tríptico | “Ler o Inferno de Dante” | “Trindade” | “Pescador” | Papel s/ cartão | 180 cm x 120 cm forma, as suas pinturas são teatrinhos, são quadros vivos, à maneira daqueles jogos A&L – Quando se olha para estes seus desenhos de salão do final do século XIX… percebe-se que a Paula Rego é uma desenhadora Paula Rego – Sim, toda a gente que conheço, as minhas netas, etc., têm de posar para compulsiva. mim. A Nossa Senhora, por exemplo, é a minha neta. Paula Rego – Não desenho fora do atelier. É muito raro A&L – É como se estivesse a criar histórias dentro de histórias. isso acontecer. Certa vez em que precisava de fazer Paula Rego – Sim, claro, mas elas têm de estar quietinhas. Mas eu pago-lhes. Já todas uma série de pinheiros todos torcidos, tive de ir para o elas experimentaram posar para mim, menos a que tem quatro anos, que ainda é muito Guincho desenhar as árvores. Ou seja, se para contar irrequieta. Às vezes, aos domingos, almoçamos todos juntos e depois do almoço as uma história necessito de qualquer coisa que não pessoas mascaram-se como quiserem. Eu tenho caixas com máscaras, fantasias, fatos conheço, vou ao lugar onde ela se encontra e copio-a. espanhóis, de flamengo. As minhas netas dançam, recitam e fazem coisas para nós Mas não sou uma pessoa que esteja sempre com livros vermos. Só que aí eu não dirijo as brincadeiras. É mais ou menos a mesma coisa que se de esboços a desenhar. passa com as minhas pinturas. O meu atelier é um quarto de brinquedos que nem sempre A&L – Quando há pouco falámos do Pinóquio, da é divertido. Também tem coisas que fazem doer. Aquele lado da injecção que faz doer. Branca de Neve, dos contos do Perrot, etc, associando- A&L – Quando fala de injecção que faz doer, refere-se ao tempo de gestação dos os às suas histórias, vem-me sempre à ideia um livro quadros, quando as coisas ainda não estão claras? intitulado Psicanálise dos Contos de Fadas, do Bruno Paula Rego – Refiro-me à necessidade de disciplina, de desenvolver hábitos regulares de Bethleim. trabalho. O hábito e a disciplina são muito importantes para quem faz bonecos. Se não Paula Rego –É um livro importante, que eu já li há se pinta durante muito tempo, perde-se a mão para o desenho. muitos, muitos anos. A&L – Continua a manter uma regularidade de trabalho diária? A&L – A Paula fez psicanálise? Paula Rego –Sim, trabalho todos os dias da semana, de segunda a domingo. Gosto Paula Rego – Fiz psicoterapia jungiana. É um pouco muito de desenhar, de pegar num lápis, num crayon, ou num pastel e desenhar uma diferente. figura, sobretudo gosto de desenhar à vista, uma coisa que tenho à minha frente, e A&L – E isso foi de algum modo decisivo na sua sentir a surpresa de conseguir fazer uma coisa. Sabe que conseguir fazer uma coisa que pintura? está ali à nossa frente é muito difícil, mas também é muito interessante. Paula Rego – Eu acho que desenvolveu ou reforçou o Paginação1.1.indd 80 07/09/04 22:21:14 81 Dossier PAULA REGO a nossa senhora é a minha neta meu interesse nas histórias “ditas” de fadas que são, finalmente, contos tradicionais pais não lhes batiam. Não tem nada de extraordinário… bastante duros. Leram, por acaso, os nossos (portugueses) contos tradicionais, reunidos é a raça humana, raça humana, raça humana… as pelo Leite de Vasconcelos? Contam coisas duríssimas e terríveis. Portanto, a psicoterapia mulheres também fazem muitas maldades. desenvolveu a minha curiosidade em reler esses contos, porque de facto eu sempre A&L – De que é que mais gosta em Portugal? gostei de ouvir essas histórias. Mas, depois, começamos a fazer arte – e fazer arte é a Paula Rego – Quando chego a Portugal demoro sempre pior coisa que há, não é verdade? – e foi por essa via que consegui recuperar o meu muito tempo a reconhecer o cheiro das coisas. É sempre interesse inicial por esse universo fantástico. Comecei pelos portugueses, que são de um choque. É-me muito difícil fazer seja o que for em uma violência e crueldade espantosas. Gostava de ilustrar os mais terríveis contos… Portugal. É-me mais fácil trazer as coisas de lá para cá e talvez ainda tenha tempo para isso, para desenhar a partir dos mais terríveis contos fazê-las aqui Até pensei em fazer um pequeno atelier na tradicionais portugueses. minha casa do Estoril. E nunca consegui, nunca consegui. Todos os contos se parecem, embora variem de país para país. Nós, por exemplo, temos A&L – Mudando de assunto, o que pretende expor no muitas histórias onde aparecem santos. Os contos portugueses são mais estranhos do seu futuro museu que vai ser construído em Cascais? que os dos outros países. Paula Rego – Vou doar ao museu todas as minhas A&L – Estranhos, como? gravuras, um exemplar de cada uma delas. E também Paula Rego – Por exemplo, uma mulher vivia num bosque com o marido que era alguns desenhos seleccionados. Para além disso tenho lenhador e muito pobre… um dia em que não tinha nada para lhe dar para comer, quadros e coisas minhas que ficarão lá guardadas, em cortou um seio e cozinhou-o para o marido que lhe disse ; “Ah, está tão bom!” Os filhos, regime de depósito, e também vamos ter uma sala de claro está, não comeram nada. No dia seguinte não havia outra vez nada para o jantar exposições temporárias, onde gostaria de mostrar essas e a mulher cortou o outro seio e a história repetiu-se. Guisou-o e deu-o ao marido que coisas que não se mostram, coisas oriundas desses ficou todo contente. No terceiro dia continuavam sem ter nada para o jantar e o marido sítios impopulares, de que falávamos há pouco. Gostava pôs-se, como de costume, a refilar. Disse-lhe ela, então: “Olha, já não tenho mais nada de fazer coisas que normalmente não se vêem, como para te dar.” Foi só então que ele reparou que ela estava cheia de sangue e perguntou- ilustração, bonecos, desenho, arte dos prisioneiros, arte lhe: “Mas o que é que tu tens?” “Cortei os seios, para tu teres o que comer”, retorquiu das pessoas que estão internadas… mas que agora já é a mulher. “Mas então o que é que hoje havemos de comer?”, indagou o marido, difícil encontrar porque estão muito drogadas. prosseguindo assim: “Temos de começar a comer as crianças.” É nesse momento que a A&L – Considera que há muito embuste na arte história realmente começa…uma história tipicamente portuguesa. contemporânea? A&L – Nos seus quadros, a mulher é apresentada como heroína e os homens ou são Paula Rego – Não, acho que não, não há mentira. É insignificantes ou fazem os outros sofrer… difícil saber uma coisa dessas, porque na arte há sempre Paula Rego – Não, de todo. Não fazem as pessoas sofrer. Eles às vezes até se mascaram uma transformação e as coisas deixam de ser o que de mulher. eram e passam sempre a ser outra coisa... Pessoalmente A&L – Mas há, pelo menos, uma desproporção na escala com que são interessa-me mais a arte feita à mão. Claro que adoro representados. As mulheres enormes, às vezes até acumulando os papéis cinema, adoro o Almodôvar, o Del Toro; gosto mais de geralmente atribuídos às mulheres e aqueles que são específicos dos homens, e ver filmes do que ver vídeos de arte. É uma chatice, tanto os indivíduos do sexo masculino retratados numa dimensão muito menor, quase tempo às escuras. Não é uma coisa que eu gostasse de inexpressivos e sem nenhuma função de destaque… fazer. Tenho amigos, como o João Penalva, que admiro Paula Rego – Sim, claro, embora agora faça menos isso. Eu não mostro o homem como muito, e que gostam de fazer essas coisas. Eu não sei sendo mau. Até gostava, mas não sou capaz. A maldade no homem é a coisa mais fazê-las. É como o Bill Viola, que dizem que é muito vulgar do mundo. religioso e tudo o mais, mas eu prefiro a Anunciação do A&L – Os assuntos que escolhe para as suas pinturas são quase sempre problemas Botticelli. | muito actuais; a violência sobre as mulheres, os miúdos maltratados, violados, etc. Interessa-lhe reflectir e dar a ver a realidade e a violência do mundo actual? Paula Rego – No fundo é isso que me interessa. Os meninos da Casa Pia, ou os dos Salesianos que, apesar de tudo, tinham a vantagem de ser de boas famílias, porque os Paginação1.1.indd 81 Nota final: Quando convidei a Paula Rego para vir a Lisboa no dia de relançamento da revista Artes & Leilões, disseme que não podia pois estaria em Madrid a montar a exposição do Reina Sofia, mas que se sentia bem representada pelo seu embaixador plenipotenciário. Perguntei-lhe quem era ele. É o macaco, ou um qualquer macaco imaginário que por lá circule. 07/09/04 22:21:14 83 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 Dossier PAULA REGO ENTREVISTA Crítico e historiador de arte, Marco Livingstone é o comissário da retrospectiva de Paula Rego no Reina Sofia que decorre até 31 de Dezembro. Paula Rego |“Cães vadios (Os Cães de Barcelona)”, 1965 | Colagem e óleo sobre tela | 160 x 185 cm | Colecção João Rendeiro Marco Livingstone Sandra Vieira Jürgens Paginação1.1.indd 83 07/09/04 22:21:14 Paula Rego | “O Macaco Vermelho bate na Mulher”, 1981 | Acrílico sobre papel | Paula Rego | “A Pequena Assassina”, Colecção da artista 1987 | Acrílico sobre papel montado em tela | 150 x 150 cm | Colecção particular, Londres A&L: Em que contexto tomou contacto com a obra de Paula Rego? de revelar conexões e continuidades inesperadas no Marco Livingstone: Fiquei a conhecer as pinturas de Paula Rego, e a própria âmbito daquilo que superficialmente podem parecer artista, quando esta começou a expor na Edward Totah Gallery, em Londres, grandes alterações de rumo na sua abordagem. em 1982. Anteriormente tinha realizado apenas uma exposição individual em A&L: Como estará organizada a mostra no Reina Inglaterra, embora já fosse muito conhecida e admirada em Portugal. Sofia? A&L: O que representa comissariar uma exposição retrospectiva de Paula Rego? Marco Livingstone: Estamos a trabalhar nesta Marco Livingstone: Antes de me tornar curador independente, em 1986, já tinha exposição desde Novembro de 2005. Pode parecer trabalhado durante dez anos em museus. Embora trabalhar como freelancer se muito tempo, mas é um período efectivamente curto possa reflectir numa existência precária, possui a grande vantagem de me dar para um projecto desta dimensão, principalmente liberdade para poder trabalhar em contextos e situações diversos, e com artistas pelas dificuldades que surgem quando se trata que admiro. A Paula já tinha iniciado contactos com o Museu Reina Sofia sobre a de encontrar algumas das obras e de garantir um realização de uma grande retrospectiva da sua obra, quando me convidou para tão grande número de empréstimos. A Paula e comissariá-la como independente. Senti-me muito honrado pela confiança que eu trabalhámos juntos na selecção das obras, em depositou em mim e obviamente agarrei esta oportunidade, sobretudo porque colaboração permanente com Lucia Ybarra, do admiro a sua obra há muito tempo. Comissariar esta exposição é um trabalho de departamento de exposições do museu, que tem sido grande responsabilidade, pois sei o quanto é importante para a Paula mostrar o a responsável por toda a coordenação. seu trabalho com tanta profundidade em Espanha, por razões culturais e também A&L: Qual foi o critério que presidiu à sua pela grande importância que a arte espanhola, especialmente de Goya, teve no concepção? O critério é cronológico, abarcando desenrolar do seu trabalho. diferentes períodos da obra de Paula Rego? Ou A&L: Nesta exposição retrospectiva irá experimentar uma nova abordagem à existe uma ideia em torno da qual se estrutura a obra de Paula Rego? exposição? Marco Livingstone: Esta será de longe a maior e a mais exaustiva exposição Marco Livingstone: A exposição desenvolver-se- jamais consagrada à obra da Paula, com cerca de 200 pinturas, desenhos, á mais ou menos cronologicamente nas galerias gravuras e litografias, abrangendo um período superior a 50 anos. Realçaremos (salas), e também no catálogo, permitindo ao todas as principais séries de obras que produziu desde que era estudante na público compreender o modo como as ideias, os Slade School of Fine Art em Londres no princípio dos anos 50, e mostrá-las-emos temas e as técnicas evoluíram na obra da Paula ao numa ordem mais ou menos cronológica. É uma maneira simples de dar sentido longo dos anos. Existem tantos níveis na sua arte às múltiplas mudanças ocorridas na sua produção artística ao longo dos anos, e que nos pareceu preferível não impor uma direcção Paginação1.1.indd 84 07/09/04 22:21:15 Paula Rego | “A Família”, 1988 | Acrílico sobre papel montado em tela | 213,4 x 213,4 Paula Rego | “Guerra”, 2003 | Pastel cm | The Saatchi Gallery, Londres sobre papel montado em alumínio | 160 x 120 cm | TATE, Inglaterra curatorial mas deixar que a obra fale por si. profundamente a sensibilidade de muitos espanhóis, tanto dos homens como das A&L: Por que motivo surge esta exposição neste mulheres. Para muita gente, o confronto com esta arte tão pessoal, tão intensa e momento? profundamente vivida ocasionou um encontro que mudou a sua própria vida. Estou Marco Livingstone: Já deveria ter sido feita há certo de que isso ocorrerá também com os espanhóis. muito tempo! Ainda não houve uma exposição desta A&L: Seria pertinente trazer esta exposição a Portugal? dimensão no Reino Unido, onde a Paula produziu Marco Livingstone: Têm havido óptimas exposições da obra de Paula Rego a maior parte da sua pintura. A última exposição em Portugal, particularmente a extraordinária mostra no Museu Serralves, no deste género realizada na Inglaterra ocorreu na Porto, em 2004, que integrou a sua produção artística desde 1997. A sua última Tate Liverpool há exactamente dez anos, e a Paula grande retrospectiva, que foi inicialmente mostrada na Tate Liverpool em 1997, produziu entretanto um número extraordinário de transitou imediatamente para o Centro Cultural de Belém, em Lisboa, onde foi pinturas, incluindo algumas das suas melhores obras. magnificamente recebida. A Fundação Calouste Gulbenkian, que tem dado um A&L: Qual será a importância desta mostra de grande apoio à Paula ao longo dos anos, possui quadros dela na sua colecção Paula Rego em Madrid? Sendo o seu trabalho já permanente e já realizou diversas exposições da sua obra. Por isso achámos que muito conhecido em Portugal e Inglaterra, será esta não era necessário trazer esta exposição a Portugal, e também porque os seus fãs uma oportunidade de reforçar a sua visibilidade portugueses poderão facilmente deslocar-se ao Reina Sofia - um bom pretexto para noutros países europeus? Qual espera ser a reacção ir a Madrid! do público espanhol? A&L: Tem seguido o percurso de outros artistas portugueses? Marco Livingstone: Uma exposição tão ambiciosa Marco Livingstone: Nos últimos cem anos existiram alguns artistas portugueses de e exaustiva como esta dará certamente impacto ao grande mérito, incluindo alguns contemporâneos que são amigos e conhecidos da reconhecimento internacional da obra da Paula, e Paula Rego. Mas, sem querer diminuir a sua relevância, penso que a Paula Rego se isso conseguir-se-á também através do catálogo, que situa num plano singular, sendo uma das artistas mais imaginativas, talentosas e chegará a um grande número de pessoas que não influentes a trabalhar hoje no mundo. | poderão ver a exposição pessoalmente. Mas, acima de tudo, é uma oportunidade para a obra da Paula ser muito mais apreciada em Espanha. Porque, no fundo, as suas memórias de infância sob a ditadura fascista em Portugal, e a sua vasta experiência enquanto mulher numa sociedade latina, devem tocar Paginação1.1.indd 85 Marco Livingstone Autor de referência no estudo da Pop Art, organizou várias retrospectivas itinerantes e assinou uma das obras mais destacadas sobre o movimento - a Pop Art: a continuing History. Ao longo da sua carreira escreveu sobre o trabalho de numerosos artistas, entre os quais David Hockney, R.B. Kitaj, Allen Jones, Peter Phillips, Jim Dine, Tom Wesselmann, George Segal and Duane Michals. | 07/09/04 22:21:16 86 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 Dossier PAULA REGO José Sousa Machado ENTREVISTA com Eduardo souto moura não há arte sem delito Claríssimo no discurso, poético na forma, desconcertante nas ideias, o arquitecto Eduardo Souto Moura conversou connosco acerca do projecto da Casa das Histórias e dos Desenhos Paula Rego, que será construído em Cascais, na antiga Parada. Arte & Leilões – Como entende a relação entre a arquitectura e as artes plásticas, nomeadamente no que se refere à concepção de espaços expositivos? E.Souto Moura – Como uma consequência do tipo de afinidades entre as duas disciplinas, cujas fronteiras são cada vez mais ténues. Dizer que isto é pintura, ou que isto é escultura, que o Cabrita Reis é escultor ou é pintor, ou que o Ângelo é escultor ou é pintor faz cada vez menos sentido. E isto não acontece apenas no domínio das artes, mas também no da ciência, quando parte da investigação da biologia é desenvolvida pela física, a da física pela química, etc. A arquitectura é cada vez mais pictórica e os pintores cada vez se sentem mais próximos da arquitectura. Quando conheci o Donald Judd, ele disse-me que ia deixar de ser artista plástico e queria ser arquitecto porque precisava do programa do cliente; já não aguentava mais a angústia da posição tradicional do artista que só é confrontado consigo, sem feedback, nem julgamento do exterior. Portanto, o museu é, hoje em dia, cada vez mais uma obra de arte autónoma, na mesma medida em que as obras de arte que se colocam nos museus estão cada vez mais perto da arquitectura, como as instalações que, muitas vezes, são fragmentos de arquitecturas. Muitas vezes os campos confundem-se e, também por isso, os artistas não querem que os arquitectos assumam um grande protagonismo, porque isso pode abalá-los. Repare como cada vez mais, na construção dos museus e galerias, são escolhidas estruturas industriais, porque estas construções não têm intencionalidade. Quem as concebe pensa unicamente que têm de ter quatro paredes e um tecto. Paginação1.1.indd 86 07/09/04 22:21:16 87 Paginação1.1.indd 87 07/09/04 22:21:18 88 A&L – Deduzo do que afirma que o museu que de altura, onde vão decorrer as exposições temporárias. Pode-se subir e descer o tecto desenhou para a Paula Rego tem uma forte marca e construir os cenários que se quiser. Se, à partida, não tivermos como base de trabalho autoral… uma colecção definida, é muito difícil decidir sobre a forma que o museu vai assumir. E. Souto Moura – Claro que sim, porque sou Neste caso, considerei necessário adaptar os espaços à escala das obras de arte que arquitecto e a Paula Rego escolheu-me a mim - e não estarão expostas, porque há obras que precisam de um pé direito de quatro metros, outro arquitecto – para projectar este museu, e eu outras de seis metros, etc. Tentei responder ao leque mais plural possível. não me posso limitar a fazer um barracão cinzento. Acho que a Paula Rego foi inteligente, a começar pela escolha do nome do museu Tentei ser comedido nas minhas opções, pois sei – Casa das Histórias e dos Desenhos Paula Rego -, não só porque ela é uma artista que há obras que exigem maior intervenção autoral que está pujante, está em plena actividade, mas também porque pretende que este e outras menos, há certas obras mais densas do que museu seja um laboratório, uma oficina de experimentação artística, com crianças outras. Um museu pode e deve ter impacto exterior ou seja lá quem for. e beleza, mas deve também definir a sua identidade Hoje em dia os museus não são apenas locais onde se visitam exposições, mas - as salas, os espaços – em termos não concorrenciais também lugares de convívio e ponto de encontro entre pessoas, com livrarias, sítios de com o que lá se expõe. Deixei o espaço ter alguma lazer diversos, restaurantes, esplanadas… Procurei desenvolver esta faceta menos usual neutralidade, usando a luz natural - abri janelas. - há uns anos atrás isto teria sido considerado um pecado de “lesa majestade”. A&L – Foi por considerar que este museu pretende A&L – Este seu projecto estrutura-se a partir do diálogo com a obra da Paula Rego, ser também um espaço cultural dinâmico e por um lado, e com o meio ambiente, por outro, integrando o museu no meio lúdico, ao invés da ideia tradicional que temos dos ambiente envolvente e fazendo os módulos estruturantes do edifício funcionarem museus, que optou por organizá-lo em módulos que como negativo do mundo natural… lhe conferem uma enorme polivalência? E. Souto Moura– Eu acho que a arquitectura – e não só ela – é uma disciplina que E. Souto Moura – Eu tentei que as formas e não tem nada a ver com a natureza, antes pelo contrário. Enquanto que para os volumes da arquitectura pudessem corresponder ao clássicos, a perfeição consistia em os artistas imitarem a natureza, a modernidade, dimensionamento do que julgo serem as obras da de que um Almada ou um Rimbaud são exemplos, nasceu em ruptura com tudo Paula Rego e do seu marido. Fundamentalmente, há isto. Neste caso, a natureza é que tem de copiar a arte. Eu gosto mais das coisas uma sala laboratório, que é uma sala com 10 metros feitas pelo homem do que das coisas feitas por Deus… se Deus fez as uvas, o Paginação1.1.indd 88 07/09/04 22:21:21 89 Dossier PAULA REGO NÃO HÁ ARTE SEM DELITO homem fez o vinho, que é muito melhor, Deus fez as pedras, mas o homem fez A&L – Este seu projecto de museu cita a Acrópole. Ser arquitecto é, justamente, entender que a natureza é defeituosa. implicitamente o Raul Lino… Aceitei fazer aquele projecto porque acho que aquele sítio ficará melhor com uma E. Souto Moura – Eu achei que o museu devia ser intervenção de arquitectura. Se ficar pior, o projecto falhou. fragmentado, devia ter escalas diferentes. Quando vi Também me parece que Braga ficou muito melhor com aquele estádio instalado na ali perto uma casa do Raul Lino, gostei da articulação pedreira do que com a pedreira ao ar livre, parada. Quando o colectivo se apropria de volumes, com hexágonos e torreões de diferentes dos projectos é porque estes fazem sentido e então, nesse caso, o arquitecto fica alturas. Ele resolvia-me a questão que tinha em mente satisfeito com o que fez. e, então, pus-me a estudar a sua obra, fazendo, como A&L – Mas, em sua opinião, a própria topografia do terreno determinou a de costume, exercícios de cópia, como fazíamos na sua intervenção arquitectónica. Certos elementos naturais sugeriram-lhe primeira classe. Faço sempre assim: ponho o livro à apontamentos à maneira dos jardins japoneses. frente e desenho até interiorizar o que ali está, até E.Souto Moura – É que as coisas boas têm de ter vazios. Disse, com muita razão, o que um dia me sai qualquer coisa do género, sem eu Herberto Helder que: “É com o silêncio que se fazem as vozes”. E é com os vazios que sequer pensar no assunto. se faz a poesia. Se tudo estivesse perfeitamente encadeado não seria poesia; faltaria Recentemente, comecei a fazer uma arquitectura o ritmo, os espaços, a música. Os intervalos dos sons são tão ou mais importantes do mais desarticulada talvez porque neste momento que os próprios sons. Mas há uma coisa muito perigosa na arquitectura e, se calhar, não existe nenhuma teoria que me satisfaça. também na arte, que é o “bonito”… está muito próximo da elegância e da amabilidade. Talvez por causa da idade, ou por nunca ter E isso conduz facilmente ao facilitismo. A arte, por natureza, tem de ser contra-natura. experimentado, comecei a interessar-me por Não há arte sem delito. arquitectos mais complexos, mais barrocos. Vivemos A&L – A sua própria linguagem é muito poética. Preocupa-se com este tipo de numa época sem ideologia. Hoje tudo é possível. questões quando projecta? Por exemplo, um bom arquitecto barroco sabia E.Souto Moura – Não é consciente. A arquitectura, em minha opinião, não deve ser o que era a contra-reforma e um arquitecto neo- narrativa; quem quiser ter esse tipo de postura que vá para o cinema ou para a literatura. clássico provavelmente seria panteísta, mas hoje, A arquitectura é abstracta, rege-se por regras próprias que devem corresponder a uma neste mundo plural, podemos ser tudo, sem nos determinada intenção programática colectiva. A arquitectura é uma arte social. comprometermos com nada. | Paginação1.1.indd 89 07/09/04 22:21:23 90 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 CRÍTICA Gisela Leal FRANÇOIS DUFRÊNE EM SERRALVES O VERSO E O VERSO #41 A 27 de Outubro de 1960, por proposta do crítico de arte Pierre Restany, oito artistas assinam a “Declaração Constitutiva do Nouveau Réalisme” em casa de Yves Klein. Um desses nomes (a par dos próprios Yves Kleins e Pierre Restany, Arman, Raymond Hains, Martial Raysse, Daniel Spoerri, Jean Tinguely e Jacques Villeglé) é o de François Dufrêne, que podemos actualmente visitar no Museu de Arte Contemporânea de Serralves. Trata-se da primeira exposição retrospectiva realizada fora de França de um artista cuja obra está sobretudo marcada pela superação dos limites entre géneros artísticos. A irreverência e o inconformismo foram o motor de um percurso que procurou incessantemente desmontar a realidade e mostrar o seu verso. E se bem que o seu nome não seja dos mais referenciados quando se fala do “Novo Realismo”, certo parece ser que Dufrêne terá sido dos mais originais artistas franceses do pós-guerra FRANÇOIS DUFRÊNE | ”Encore”, 1965 | Avesso de cartaz montado sobre tela | 130 x 195 cm | Colecção FRAC Bretagne Fotografia: Guy Jaumotte | © ADAGP, Paris, 2007. a dedicar o seu trabalho à crítica da linguagem e à crítica sociológica. Numa França pré-Maio de 68, um Dufrêne ainda adolescente aproxima-se de Isidore Isou e do seu movimento letrista, onde desde logo inicia um convívio com nomes como Guy Debord, dando os primeiros passos para a construção de um corpo de trabalho singular. Mais tarde, o manifesto dos “novos realistas” propõe um regresso ao real, por oposição às correntes institucionalizadas à época. E são precisamente as “novas abordagens perceptivas do real” (definidas no manifesto) e o cruzamento das gramáticas particulares de práticas artísticas diversas que trarão a Dufrêne a sua singularidade artística. “Músico da linguagem”, serão os jogos de subversão - da palavra e da imagem - a servi-lo na exploração de “novas possibilidades de construção de significantes que resistem à convencionalidade dos seus possíveis significados”, como refere João Fernandes, comissário da exposição juntamente com Guy Schraenen. François Dufrêne aproxima-se e simultaneamente afasta-se de cada um dos FRANÇOIS DUFRÊNE | “Bobino”, 1973 | Avesso de cartaz montado sobre tela | 55 x 81 cm | Colecção Privada | Fotografia: Marc Domage movimentos a que se foi associando: ao mesmo tempo que recolhia cartazes das ruas de Paris com Raimond Hains ou Jacques Villeglé numa prática de “respigação” das suas gravações sonoras - muito do trabalho de e re-apropriação do real, Dufrêne ia mais longe e mostrava os avessos dos mesmos Dufrêne ficou assente na performance e no registo (os seus “dessous d’affiches”); ao mesmo tempo que procurava no contexto da sonoro -, bem como variado material editado pelo poesia sonora a subversão e re-utilização da palavra, Dufrêne experimentava os artista (revistas, livros, cassetes). A presente exposição limites físicos da poesia, criando o Crirythme [Gritoritmo]; até no filme Dufrêne parece-nos, assim, querer fazer justiça a um nome procurou o verso da imagem - em Trois Minutes en Vitesse pour Mettre à Jour fundamental da arte contemporânea francesa no pós II Quelques Dessous de Visions, Dufrêne mostra uma Paris reflectida. Guerra Mundial, mais comummente associado à poesia Em Serralves é agora apresentado um vasto conjunto de telas, dois filmes e algumas sonora do que às artes visuais. | Paginação1.1.indd 90 07/09/04 22:21:24 91 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 CRÍTICA NUNO CRESPO ZONAS DE ESCULTURA #41 O conceito de “escultura social”, cunhado por Beuys, não é estranho a este modo de pensar, sobretudo por dizer respeito não ao ponto de vista sobre a escultura que a vê como um processo acabado ou um objecto, mas antes como o colmatar de um processo dinâmico e expansivo. Trata-se de uma relação que conhece fundamentalmente três eixos: as obras, a cidade e o público. Por isso, a própria história da cidade e dos seus agentes não é um elemento estranho aos processos que a cada dez anos são postos em movimento. Se se trata, por um lado, de descobrir novas linguagens escultóricas, também se trata, por outro, de as colocar em confronto com o passado dessa mesma cidade e com a própria história da escultura. Nesta edição, um dos projectos mais emblemáticos Mark Wallinger | “Zone” | Fotografia: Roman Ostojic/sp 07. é de Mark Wallinger (n. Reino Unido, 1959). Um cordão praticamente invisível delimita uma zona da Os trinta anos que decorreram desde a primeira edição do Münster Projectos cidade de Münster: as questões que o seu projecto de Escultura fazem prova de que o escultórico é um campo mutante que conhece levanta prendem-se, naturalmente, com o impulso múltiplas transformações e desenvolvimentos. O campo expandido que Rosalind primordial de delimitar uma área no interior da qual Krauss identificou parece dar agora lugar ao reconhecimento topográfico das acontece a escultura e uma zona exterior a esse diferentes zonas que o compõem. Os 34 projectos apresentados em Münster gesto de delimitação. A invisibilidade da fronteira não se destinam a fazer qualquer tipo de balanço ou a realizar o levantamento que estabelece mostra a ineficácia das tentativas das tendências da escultura contemporânea; o seu âmbito é o da detecção dos de rigidamente determinar zonas de exclusão, de diferentes modos de compreender o gesto escultórico. Em qualquer dos casos, o contacto e permanência. A ocupação total que faz do eixo não é localizado em nenhum tipo de linguagem, nem numa revisão histórica espaço é simultaneamente invisível e, assim, consegue dos diferentes estilos. O denominador comum é a utilização do espaço público erigir um discurso estético-político sobre as fronteiras que em nenhum dos casos conhece constrangimentos formais, materiais ou entre os diferentes tempos, espaços e linguagens. conceptuais. Mas se a questão da relação da escultura com o As esculturas espalhadas pelo tecido urbano revestem-se de um ímpeto espaço público é central, também o é a relação com sismográfico de descoberta das diferentes capacidades que cada uma delas a história da cidade e a própria história da escultura. possui de interagir e moldar o espaço que ocupa e que é sua condição. Trata-se Guillaume Bijl (n. Bélgica, 1946) criou uma instalação da exploração das qualidades do espaço público enquanto espaço expositivo e que recupera a tradição das igrejas cristãs da cidade. deste enquanto reflexo da vida pública e suas interacções. O pressuposto é que a No interior do que parece ser uma escavação utilização da esfera pública é sintomática das diferentes dinâmicas que apresenta. arqueológica, o artista cria um trompe l’oeil que num Paginação1.1.indd 91 07/09/04 22:21:25 92 crítica zonas de escultura Bruce Nauman | “Square Depression“ | Fotografia: Arendt Mensing/sp 07. Guillaume Bijl | “Archaeological Site (A Sorry-Installation)” | Fotografia: Roman Mensign/sp 07. registo quase surrealista faz surgir a igreja envolta numa espécie de chamas. Já Martha na cidade, quer na própria convivência pública com o Rosler (n. EUA, 1944) permutou certos símbolos (históricos e religiosos) da cidade, deslocamento de perspectiva que Nauman opera numa integrando-os noutros contextos e testando a sua validade iconográfica no interior praça pública. do discurso histórico local, o qual passa, inevitavelmente, pelas guerras mundiais, É sem dúvida o grande acontecimento mundial da pela Religião e pela própria história da Escultura. Mas o pendor histórico em Münster escultura. Não só porque resiste ao tempo, mas também tem o seu auge com a construção da pirâmide invertida de Bruce Nauman (n. EUA, porque permite colocar em confronto o que se fazia e 1941), projectada em 1976 para aquele mesmo lugar. Além de ser uma intervenção o que se faz, o que se pensava e o que se pensa. Um emblemática, as suas consequências estão relacionadas com a própria validade de um confronto destinado, não a validar determinados artistas, projecto que é construído trinta anos depois. Os constrangimentos sociais, históricos, circuitos ou tendências, mas a aprofundar o olhar sobre artísticos e arquitectónicos não são os mesmos. Da sua rejeição ou integração o sítio em que se desenvolve a Escultura e que as depende a pertinência e actualidade de um pensamento que se vem afirmando quer esculturas desenvolvem. | Paginação1.1.indd 92 07/09/04 22:21:25 94 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 EXPOSIÇÕES ”UM ATLAS DE ACONTECIMENTOS /Plataforma 3/ o estado do Mundo” | Fundação PAULO MENDES | Galeria REFLEXUS Arte Contemporânea | Calouste Gulbenkian Lisboa | 6 OUT - 30 DEZ 07 | Sergio Vega | “Crocodilian Porto | 21 SET - 3 NOV 07 | “S DE SAUDADE, RETRATOS DA VIDA PORTUGUESA” Fantasies”, 2006 | Vista da instalação | Cortesia: Palais de Tokyo/Kleinefenn, Paris. AUGUSTO ALVES DA SILVA | Galeria Fonseca Macedo | Ponta Delgada | Açores | 11 OUT - 27 NOV 07 | JEAN-LUC MOULÈNE | Culturgest | Lisboa | 22 SET - 25 NOV 07 | “Documents/Chef Paris, “Veado”, 2001 | c-print | 60 x 90 cM 11 Avril 1998” Paginação1.1.indd 94 07/09/04 22:21:26 95 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 Quem é Quem na Arte Portuguesa? Todos sabemos ou julgamos saber. Quem Será Quem? Não sabemos ainda, mas apostamos. Quer apostar connosco? A escolha é sua. O risco é seu. Nós limitamo-nos a sugerir nomes: uns óbvios, outros menos. Paginação1.1.indd 95 07/09/04 22:21:27 96 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 QuemÉquem Pedro cabrita reis Lisboa, 1956 Fotografia: João Ferro Martins / PCR Studio Paginação1.1.indd 96 07/09/04 22:21:28 Paginação1.1.indd 97 07/09/04 22:21:28 98 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 QuemSERÁquem JOÃO SERRA Lisboa, 1976 João Serra concluiu o Curso Avançado de Fotografia do Ar.Co em 2006 e é actualmente finalista do curso de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O artista desenvolve os seus projectos artísticos no domínio da fotografia, com a apresentação de obras que exploram a subtil fronteira existente entre as imagens e as coisas. A fotografia que reproduzimos assinala esse seu interesse e marca a sua distinção com os prémios BES Revelação e Anteciparte, ambos em 2006. | Paginação1.1.indd 98 Fotografia: Jed Graça. 07/09/04 22:21:29 João Serra | “Sem Título”, 2006 | Fotografia a cor | impressão lambda | 120 x 156 cm. A minha proposta é um convite a uma reflexão acerca da ténue distância que há entre as imagens e as coisas. Interessava-me deixar emergir o potencial estético, pictórico e escultórico do assunto, substituindo o olhar quotidiano por um olhar que reconhecesse outro tipo de valores. Ou seja, dando a ver o que toda a gente já viu, a banalidade dos objectos, mas investindo-a de novas possibilidades. A fotografia tem sido o médium que permite dar conta da posição dos objectos no aí do mundo, salvando-os do seu carácter efémero. Mas mais do que isso, permite que os objectos venham a ser de outro modo, pelo menos aos olhos do espectador. Paginação1.1.indd 99 07/09/04 22:21:29 101 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 CRÓNICA Jorge Barreto Xavier NOMES INVISÍVEIS Os nomes podem ser invisíveis pelas mais diversas razões. Nem sempre é o melhor, revelar certos nomes. Melhor que permaneçam na sombra. Por outras vezes, vale a pena o ritual de os chamar. Falo, claro, de pessoas, coisas, situações, relevantes para o domínio onde esta revista exerce o seu papel: a Cultura, as Artes. Este espaço mensal pretende propor comentários sobre alguns temas/nomes, sendo que, por vezes, há nomes que escondem nomes. LEONOR ANTUES | ”UNCERTAINTY AND DELIGHT IN THE UNKNOWN (1)”, 2007 | VISTA DA INSTALAÇÃO | LONDRES Internacionalização da Cultura Portuguesa #41 1. Em Genève, Newark, Joanesburgo, Frankfurt ou Caracas, Portugal está mais presente através dos portugueses ditos “comuns”. Para certos portugueses “cultos”, os portugueses “comuns” são uma espécie de clube da terceira divisão: esforçados mas sem relevância ou qualidade assinalável. Desprezíveis, até. Apesar de haver, aproximadamente, cinco milhões de portugueses espalhados pelo mundo, no fundo, onde é que eles estão? Onde é que eles estão no nosso quotidiano, no nosso imaginário? Numa pequena gaveta colectiva onde se guarda a recordação dos parentes de que não queremos falar aos amigos. Muitos desses portugueses já se afirmam na “divisão de honra” e na “primeira divisão”. Vai ser bonito de ver, daqui uma geração ou duas, políticos, artistas, empresários, a disputar espaço numa qualquer fotografia, ao seu lado, em Paris, Sidney, ou Luxemburgo. Nessa altura, haverá razão para eles nos quererem na fotografia? As solidariedades demoram gerações a construir e a verdade é que uma linha prioritária de internacionalização está nesse grupo assinalável de portugueses. Ao tratamento envergonhado ou mesmo agressivo do período do Estado Novo, seguiuse uma política pública de enquadramento, nesta III Paginação1.1.indd 101 07/09/04 22:21:30 102 República. As chamadas “remessas dos imigrantes” já Se se perguntar à Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, ao Instituto tiveram um papel significativo na economia portuguesa Camões, ao Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, ao ICEP, ou a outras mas, nem essa ajuda ao desenvolvimento de quem saiu estruturas públicas, qual o grau de articulação entre elas junto dos emigrantes, antevejo por aqui não conseguir viver, comoveu. que a Secretaria de Estado apoia a “baixa cultura”, o Camões a “alta cultura”, o IPAD Falando ainda dos emigrantes da “3ª divisão”, dirá que o seu caminho é o apoio ao Desenvolvimento, e o ICEP que o seu negócio é como é que podem esquecer décadas de indiferença, números. ou mesmo políticas de desinvestimento, que têm Claro que isto é uma caricatura. O que quero dizer é que é habitual não operar levado, recentemente, ao fecho de consulados, à articulações e potenciar intervenções. Ainda mais evidente será essa ausência de limitação de apoio aos leitorados/leitores de português, articulação se se perceber que há dezenas de municípios que promovem geminações e à criação de escolas portuguesas, à falta de apoio ao intercâmbios internacionais e que as Regiões Autónomas da Madeira e Açores também funcionamento de aulas de português, à falta de apoio às desenvolvem uma série de programas de interacção. Não defendo uma intervenção suas actividades comunitárias, etc.? Como é que podem unitária nem uma via única. É saudável e desejável uma intervenção plural, mesmo a esquecer a ausência de organizações portuguesas da nível público. Mas é difícil de perceber uma articulação muito deficiente ou nula em área da cultura e da educação junto deles? Claro que há objectivos que são (ou deveriam ser) comuns: a melhoria da percepção da cultura outros que marcam presença: instituições ligadas à Igreja portuguesa pelos emigrantes e seus descendentes; a aprendizagem do Português; o Católica, instituições bancárias, o jornal A Bola. suporte a projectos de portugueses nos países de residência. LEONOR ANTUNES | ”THE SPACE OF THE WINDOW”, 2007 | VISTA DA INSTALAÇÃO | PARIS Paginação1.1.indd 102 07/09/04 22:21:30 103 CRÓNICA NOMES INVISÍVEIS Falo do espaço estrangeiro ocupado por emigrantes como território primeiro da internacionalização da cultura portuguesa. Tanto as artes contemporâneas como os #41 projectos de promoção do livro e da leitura, do património, da língua, podem ter junto destes destinatários uma porta de entrada privilegiada. Porque não terão eles direito ou poderão achar estranho receber Pedro Cabrita 3. De Junho a Setembro, na Smithsonian Institution, Reis, Julião Sarmento, Ângela Ferreira? Claro que se tem de fazer um trabalho em Washington, decorreu uma grande exposição de preparação. Mas os portugueses de 2ª geração, de 3ª geração, os que agora sobre o papel de Portugal no mundo nos séculos XVI têm vinte anos e nasceram “lá”, não têm nostalgia de Amália ou do chouriço, da e XVII, referida com orgulho em Portugal e sardinha assada ou de Quim Barreiros. As suas referências culturais estão “aí”. inaugurada pelo Presidente da República, Aníbal O Portugal contemporâneo tem muito de modernidade, pode gerar símbolos fortes, Cavaco Silva. Na primeira página do site do também no sistema das artes. Será preciso trabalhar a sua recepção, certamente Smithsonian, o relevo era dado a cinco outras mais difícil que a do futebol e dos seus ídolos, mas necessária para a construção de exposições, sendo necessário procurar em “more” uma identidade portuguesa contemporânea na diáspora. para lá chegar... Ao lado destes portugueses “indiferenciados” tivemos sempre os outros: os filhos Ocorreu-me a patética e repetida situação: cada de boas famílias enviados a estudar nas universidades estrangeiras, os artistas vez que, por exemplo, o Financial Times, o El País, à procura do banho de cultura, os bolseiros da Gulbenkian, etc. Mas esses não o Herald Tribune, o Le Figaro dedicam duas linhas contam para o filme da mala de cartão. Nem os que, no fim dos anos 80 e nos anos a Portugal, logo vêm as televisões debitar a nossa 90, beneficiaram do Programa Erasmus ou outros, do alargamento de circulação “presença”. Veja-se a revoada de citações dos de pessoas como consequência da nossa adesão à então Comunidade Económica media nacionais do que dizia a comunicação social Europeia, hoje União Europeia. estrangeira sobre a situação do desaparecimento de Maddie. Mais do que à situação da criança desaparecida, dava-se relevo ao facto de se ser falado #41 no “estrangeiro”. É preciso ir mais longe para perceber o quanto se tem de percorrer em internacionalização? 2. Berlim e os artistas jovens portugueses que lá residem é o exemplo das Quem realmente é cosmopolita, não tem de andar dificuldades que Lisboa e Porto oferecem em muitos campos. sempre a falar dos outros. Um cosmopolita pertence, A internacionalização não tem de se fazer “lá fora”, pode ser feita “cá dentro”. por natureza, ao mundo. É essa capacidade de Mas nenhuma cidade portuguesa se internacionalizou, ainda, o suficiente para ser estatuto próprio que falta conquistar como país referência no domínio artístico: pense-se em Avignon, Kassel, Bilbao, só para referir contemporâneo. Não queremos ser um “Allgarve” cidades que no circuito internacional são conhecidas pelas artes. qualquer (ou queremos?). Lisboa e Porto perdem na comparação com Madrid ou Barcelona. Se pensarmos Por isso, a afirmação de identidades é importante. bem, porque é que o turismo vem a Lisboa e Porto? A colecção Berardo, Não se trata de um lusitanismo ou nacionalismo o Museu de Arte Antiga e o Museu do Chiado, versus Prado/Reina Sofia/Thyssen? A passadista. Trata-se de salvaguardar o património Fundação de Serralves e a Casa da Música versus MACBA/Museu Picasso/Fundação e suportar a liberdade criativa contemporânea como Miró/ La Caja/Gaudi/Tapiés ? E se formos até Valência e Bilbao... acto de construção de nós relevantes da(s) rede(s) Alugar casa e atelier em Berlim compensa mais do que fazê-lo em Lisboa. E a global(ais). comunidade artística internacional que aí se encontra permite uma circulação de Sem uma clara definição de objectivos de pessoas e ideias incomparavelmente superior. internacionalização, de articulação de esforços Em Lisboa, exterminam-se eventos de grande dimensão como mosquitos e públicos e privados, será difícil. Há oportunidades, pululam festivais pequeninos. De facto, não estamos no calendário internacional a todos os dias, que raramente se repetirão. Outras não ser marginalmente. E, ao longo de décadas, não soubemos criar espaço para virão, mas, entretanto, aqueles com quem queremos programas de referência, apesar de algumas iniciativas terem tido potencial para o estar já terão avançado. O mundo não ficará à nossa efeito. Fica-se a aguardar. espera. | Paginação1.1.indd 103 07/09/04 22:21:30 104 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 OPINIÃO Nuno Crespo JUÍZO ESTÉTICO OU JUÍZO POLÍTICO? #41 Nas mais importantes exposições do mundo inteiro - e este Verão é uma altura propícia a esta reflexão - verifica-se que muitas das obras adquirem a sua validade e legitimidade não por razões estéticas. Antes, a sua pertinência é conquistada na esfera política e são instrumentos de intervenção social. Documenta 12 | Museu Fridericianum, Kassel | © Fotografia: Julia Zimmermann / documenta GmbH Simon Wachsmuth | “Where We Were Then, Where We Are Now”, 2007 | Plano do filme | © Simon Wachsmuth A modernidade trouxe consigo a prova de que as sensíveis em que possamos inscrever quer as obras, categorias estéticas são insuficientes para dar conta quer a própria experiência estética. da totalidade da produção artística. A proliferação de As vanguardas artísticas, com as suas múltiplas linguagens, meios e estilos criou uma enormidade de transformações, operaram uma espécie de abismo géneros e subgéneros artísticos que muitas das vezes entre as obras produzidas pelos artistas e a resistem ao mais tradicional pensamento estético. percepção humana mais comum. Isto é, se até um A estética, tal como a conhecemos, mostrou-se determinado momento para a experiência estética inoperante quando confrontada com criações que bastava estar-se equipado com o aparelho perceptivo, mais dizem respeito a uma leitura e interpretação do passou-se a um paradigma em que à percepção tem presente e da história do que à descoberta de lugares de estar aliado um certo conhecimento histórico e Paginação1.1.indd 104 07/09/04 22:21:31 105 digerir e mal consegue compreender. Que a realidade parece estar para lá da nossa capacidade em compreendê-la é o novo dado com que a arte do nosso tempo tem de lidar e a expectativa é que as obras de arte interfiram na realidade e sejam agentes da sua transformação: uma ambição tão antiga como o gesto artístico. A presente edição da Documenta XII estabelece um confronto interessante entre não só diferentes culturas, mas entre diferentes tempos: a distância e a proximidade regem-se não só pelo distanciamento geográfico (Ocidente/Oriente), como pelo distanciamento temporal (antigo/contemporâneo). Simon Wachsmuth |“Where We Were Then, Where We Are Now”, 2007 | Vista da instalação | © Simon Wachsmuth, fotografia de Roman März /documenta GmbH É assim que a arte antiga (muitas vezes documentos etnográficos) convive com a arte contemporânea das diferentes zonas do globo. Fundamentalmente, trata-se de colocar o problema de saber até que ponto o nosso olhar sobre a arte se pode desenvolver livre de um contexto político, social e artístico que é radicalmente diferente do nosso. O olhar, que é outra forma de dizer o nosso juízo ou pensamento, regese por diferentes constrangimentos que é preciso avaliar e determinar. Não se trata de fazer um genealogia do olhar, mas de saber se o olhar livre e desinteressado, que tão bem pode caracterizar a contemplação de obras de arte, ainda é uma instância válida ou se deve ser substituído pela avaliação política, social, antropológica. Talvez se trate de uma falsa questão, porque a metáfora do político pode servir para Simon Wachsmuth | “Where We Were Then, Where We Are Now”, 2007 | Vista da exposição | © Simon Wachsmuth, fotografia de Roman März /documenta GmbH descrever a quase totalidade dos gestos humanos. Mas o que aqui está em causa é um determinado tipo de arte que assume o político como o seu centro artístico. Os artistas passaram a ser testemunhos de um mundo decadente, cruel - na sua forma de combate e propaganda. Um bom e terrífico e transformaram-se em actores políticos obrigados a tomar partido, exemplo é o da instalação de Simon Wachsmuth (n. a assumir posições, a denunciar os factos do mundo e a registar esta mesma Alemanha, 1964), que tenta recuperar uma certa realidade. ideia do Irão através do olhar ocidental e detectar Nas mais importantes exposições do mundo inteiro - e este Verão é uma altura o local em que as suas imagens são formadas. propícia a esta reflexão - verifica-se que muitas das obras adquirem a sua validade A linha de contacto que o artista tenta desenhar e legitimidade não por razões estéticas. Antes, a sua pertinência é conquistada na transforma-se em zona de contacto e de negociação. esfera política e são instrumentos de intervenção social. Uma posição que o espectador é obrigado a tomar, O mundo, aparentemente liberto dos regimes políticos totalitários, mas também assumindo-se, em conjunto com o artista, numa das utopias libertadoras, vê-se a braços com uma realidade que não consegue espécie de inusitado etnógrafo. | Paginação1.1.indd 105 07/09/04 22:21:32 106 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 Notícias FIAC 2007 FRIEZE ART FAIR PARIS: 18 - 22 OUTUBRO LONDRES: 11-14 OUTUBRO A 5º edição da Frieze Art Fair realiza-se no Regent’s Park, em Londres, entre 11 e 14 de Outubro próximos. Promovida pela revista homónima, esta importante feira de arte permitirá a todos aqueles que apreciam arte contemporânea a oportunidade de visitar as 150 galerias de arte mais importantes do momento. Pela quarta vez consecutiva, a Frieze tem o Deutsche Bank como principal sponsor. Chris Evans, Lara Favaretto, Elin Hansdóttir, Janice Kerbel, Renata Lucas, Kris Martin, Gianni Motti e Richard Prince foram os artistas seleccionados para integrarem a Frieze Art Projects, este ano comissariada por Neville Wakefield. O programa prevê ainda os projectos Frieze Commissions, Frieze Talks e a atribuição do prémio Cartier. Consultando o site www.friezeartfair.com, poderá encontrar informações sobre como visitar a feira, sobre o calendário e programa das conferências, bem como sobre a forma de fazer GABRIELE PICCO | “Nuvola”, 2006. | Galeria Francesca Minini | Cortesia Francesca Minini, Milão. encomendas. Os bilhetes de acesso à feira estão disponíveis ao público desde o passado dia 1 de Julho. | A 34ª edição da FIAC decorre entre os dias 18 e 22 de Outubro, em Paris, repartida entre o Grand Palais e o Louvre. No dia 20 será conhecido o vencedor do 7º Prix Marcel Duchamp, no valor de e 35,000€, atribuído pela Association pour la diffusion internationale de L’Art Français. Os candidatos anunciados são: Tatiana Trouvé (1968), nascida em Itália, mas residente em França; Adão Adach (1962), Pierre Ardouvin (1955) e Richard Fauguet (1963). Para mais informações consulte o site: www.fiacparis.com | SHOPPING DE ARTE O Centro Comercial Visconde da Luz, em Cascais, vai inaugurar uma Frieze Art Fair 2006. Fotografia: Linda Nylind cadeia de lojas relacionadas com as diversas áreas de intervenção artística, como antiguidades, velharias, galeria de arte com exposições temporárias, um instituto de formação em conservação e restauro e, finalmente, um espaço para a realização de leilões de ARTE GAY arte quinzenais no primeiro e terceiro sábados de cada mês, pelas 20h. Os responsáveis pela realização dos leilões aceitam a inscrição Acha que a arte exprime necessariamente a opção sexual de quem gratuita de todo o tipo de objectos artísticos, sem nenhuns encargos. a faz? Ou seja, faz algum sentido aquela velha polémica, estafada, (Art Shopping - piso -1, Centro Comercial Visconde da Luz (em frente mastigada e inútil (?) sobre a existência de uma relação de causalidade à PSP), 2750-282 CASCAIS). | entre a sexualidade a expressão artística correspondente? Se acha que Paginação1.1.indd 106 07/09/04 22:21:32 107 sim, que a arte e o sexo caminham de mãos dadas, que existe uma Museum, contribuições de diversos museus como o Ashmolean expressão feminina e uma expressão tipicamente masculina, então, Museum, de Oxford, o Museum für Indische Kunst, de Berlim, o a partir de agora, em Lisboa, no bairro de Santa Catarina, Eduardo Musée Guimet, de Paris e o Rijksmuseum, de Amsterdão. | Henriques - Didi, para os amigos - está empenhado em mostrar que também existe uma forma de expressão artística especificamente gay. E porque assim é, inaugurou a primeira galeria gay portuguesa com o exclusivamente sobre esta temática. O Bico funciona entre as 17h e O TAPETE ORIENTAL EM PORTUGAL: Tapete e Pintura - sécs. XVI a XVIII as 22h e a exposição inaugural intitula-se, muito apropriadamente, Museu Nacional de Arte Antiga - até 18 NOV 07 sugestivo nome de Bico, um bar-galeria cujas obras expostas reflectem “Ho(t)mens”. | Esta exposição aborda, pela primeira vez, a história dos tapetes orientais em Portugal, partindo da significativa colecção do MNAA, Faith, Narrative and Desire: obras-primas da pintura indiana no British Museum com a colaboração de instituições públicas e privadas, nacionais e estrangeiras. Estrutura-se em quatro núcleos - Península Ibérica, Turquia, Pérsia e Índia -, associando os tapetes à sua imagem em pinturas dos sécs. XVI a XVIII. O tapete oriental é um objecto artístico, uma superfície composta Nas comemorações dos 60 anos da independência indiana, o por fios de teia, trama e nós, um produto de trocas comerciais, um British Museum exibirá, entre 9 de Agosto e 11 de Novembro, relevante elemento decorativo da pintura e, também, um objecto que uma excelente colecção de pinturas representando, ao longo dos encerra valores simbólicos e define hierarquias. | séculos, os vários panoramas da pintura na Índia. A exposição exprime as tradições dramáticas do povo indiano através de imagens dinâmicas, de cariz intimista e com a riqueza e elegância próprias da cultura indiana. Em grande destaque estarão as pinturas datadas de 1820 da Companhia da Índia Oriental, recentemente adquiridas, onde se ilustram deuses e deusas hindus do Sul da Índia. Para mais informações, consulte o site www. thebritishmuseum.ac.uk | A ARTE E A DEVOÇÃO BARCELONA: até 18 NOV 07 Em parceria com a obra social “La Caixa”, o Victoria & Albert Museum e o British Museum de Londres organizaram uma exposição na Caixa Forum de Barcelona intitulada La escultura en los templos índios. El arte de la devoción, a qual está em exibição desde 27 de Julho e que terminará a 18 de Novembro de 2007. Resultado de um trabalho de investigação em que participaram museus e coleccionadores privados, esta exposição é a mais importante das iniciativas dedicadas à escultura figurativa indiana a partir de colecções europeias. Nela se destacam, além das obras do Victoria & Albert Museum e do British Paginação1.1.indd 107 Gregório Lopes (atrib.) | Anunciação (pormenor) | c. 1540 | MNAA | Fotografia: José Pessoa, DDF, IMC 07/09/04 22:21:33 108 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 Leilões 1. 2. 1. 2. € E 310.000 | E 220.000 | COLUMBANO BORDALO PINHEIRO PAULA REGO | “A MADASTRA” | | “O SERÃO” | PALÁCIO DO CORREIO VELHO | 16 DE MAIO, 2001. 5. € 12. 7. 9. € E 205.000 | E 200.000 | E 161.000 | AMADEU SOUZA – CARDOSO | AMADEU SOUZA – CARDOSO JÚLIO POMAR | PALÁCIO DO CORREIO VELHO | 28 DE “COMPOSIÇÃO COM INSTRUMENTO | PASTOR, PALÁCIO DO CORREIO “LE METRO” | PALÁCIO DO CORREIO NOVEMBRO, 2006. MUSICAL” | PALÁCIO DO CORREIO VELHO |17 DE OUTUBRO, 2005. VELHO | 8 DE MAIO, 2007. 8. 10. VELHO | 22 DE OUTUBRO, 1999. € € € 4. E 220.000 | E 210.000 | E 200.000 | E 190.000 | E 160000 | SOUZA PINTO | “O AMUADO” | JOSÉ MALHOA | ADELAIDE AMADEU SOUZA – CARDOSO | AMADEU SOUZA – CARDOSO | JOÃO VAZ | “COSENDO AS REDES PALÁCIO DO CORREIO VELHO | 18 DE – PERSONAGEM DE “O FADO” | “CABEÇA DE HOMEM” | PALÁCIO DO PAISAGEM, PALÁCIO DO CORREIO NA PRAIA” | PALÁCIO DO CORREIO FEVEREIRO, 1998. PALÁCIO DO CORREIO VELHO | 4 DE CORREIO VELHO | 9 DE DEZEMBRO, VELHO | 17 DE OUTUBRO, 2005. VELHO |10 DE NOVEMBRO, 2004. DEZEMBRO, 2000. 2002. Paginação1.1.indd 108 € 6. 2. 07/09/04 22:21:33 20 14. nacional #41 13. 10. 15. € 17. 13. € 15. € 19. 17. € 19. € E 160.000 | E 140.000 | E 114.000 | E 105.000 | E 90.000 | COLUMBANO BORDALO PINHEIRO | JÚLIO RESENDE | JOÃO VAZ | “VISTA DO TEJO JÚLIO POMAR | “SEM TÍTULO” | JÚLIO POMAR | “ENTRE DEUX” | “CONCERTO DE AMADORES” | “A VELHA” | CABRAL MONCADA | COM TORRE DE BELÉM” | CABRAL PALÁCIO DO CORREIO VELHO | 8 DE PALÁCIO DO CORREIO VELHO | 8 DE PALÁCIO DO CORREIO VELHO | 30 DE 13 DE MAIO, 2002. MONCADA | 13 DE MAIO, 2002. MAIO, 2007. MAIO, 2007. MAIO, 2005. 12. ´ € 14. € 16. € 18. € 20. € E 155.000 | E 125.000 | SOUSA LOPES | E 107.500 | E 92.500 | E 85000 | SOUZA PINTO | “PROCISSÃO NO TURCIFAL” | ANÓNIMO (ESCOLA CHINESA) | ANÓNIMO (ESCOLA ALEMÃ) | BALTAZAR GOMES FIGUEIRA | “O PESCADOR” | CABRAL MONCADA | CABRAL MONCADA | 5 DE MARÇO, “VISITAS DE HONG KONG, CANTÃO, “NATUREZA MORTA COM FIGURAS” “NATUREZA MORTA COM PEIXES, 14 DE NOVEMBRO, 2005. 2007. XANGAI E DE WAMPOD” | CABRAL | CABRAL MONCADA | 23 DE CRUSTÁCEOS, CEBOLAS E GATO” | MONCADA | 6 DE NOVEMBRO, 2006. OUTUBRO, 2000. CABRAL MONCADA | 6 DE NOVEMBRO, 2006. Paginação1.1.indd 109 07/09/04 22:21:34 110 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 Leilões 1. 2. 3. 1. 3. 5. 7. 9. US$ 104.168.000 | US$ 87.936.000 | US$ 78.100.000 | US$ 72.840.000 | US$ 71.502.500 | PABLO PICASSO | “GARÇON A LA GUSTAV KLIMT | “PORTRAIT OF PIERRE-AUGUSTE RENOIR | MARK ROTHKO | “WHITE CENTER VINCENT VAN GOGH | “PORTRAIT PIPE” | SOTHEBY’S NOVA IORQUE | ADELE BLOCH-BAUER II”, 1912 | “AU MOULIN DE LA GALETTE” | (YELLOW, PINK AND LAVENDER OR DE L’ARTISTE SANS BARBE” | 5 DE MAIO, 2004 CHRISTIE’S NOVA IORQUE | SOTHEBY’S NOVA IORQUE | ROSE)” | SOTHEBY’S NOVA IORQUE | CHRISTIE’S NOVA IORQUE | 8 DE NOVEMBRO, 2006 17 DE MAIO, 1990 15 DE MAIO, 2007 19 DE NOVEMBRO, 1998 2. 4. 6. 8. 10. US$ 96.216.000 | US$ 82.500.000 | US$ 76.700.000 (£ 49.506.650) | US$ 71.720.000 | US$ 60.502.500 | PABLO PICASSO | “DORA MAAR AU VINCENT VAN GOGH | “PORTRAIT SIR PETER PAUL RUBENS | ANDY WARHOL | “GREEN CAR PAUL CEZANNE | “RIDEAU, CHAT” | SOTHEBY’S NOVA IORQUE | OF DR. GACHET” CHRISTIE’S NOVA “MASSACRE OF THE INNOCENTS” | CRASH (GREEN BURNING CAR I)”, CRUCHON ET COMPOTIER” | 5 DE MAIO, 2004 IORQUE | 15 DE MAIO, 1900 SOTHEBY’S LONDRES | 10 DE JULHO, 1963 | CHRISTIE’S NOVA IORQUE | SOTHEBY’S NOVA IORQUE | 2002 16 DE MAIO, 2007 10 DE MAIO, 1999 Paginação1.1.indd 110 07/09/04 22:21:35 20 internacional #41 4. 7. 8. 20. 11. 13. 15. 17. 19. US$ 55.006.000 | US$ 51.650.000 (FFR 315.000.000) US$ 48.402.500 | US$ 45.102.500 | US$ 40.700.000 | PABLO PICASSO | “FEMME AUX | PABLO PICASSO | “LES NOCES DE PABLO PICASSO | “LE RÊVE” | PABLO PICASSO | “NU AU FAUTEUIL PABLO PICASSO | “AU LAPIN AGILE” | BRAS CROISES” | CHRISTIE’S NOVA PIERRETTE” | DROUOT-BINOCHE & CHRISTIE’S NOVA IORQUE | NOIR”, 1932 | CHRISTIE’S NOVA SOTHEBY’S NOVA IORQUE | IORQUE | 8 DE NOVEMBRO, 2000 GODEAU PARIS | 30 DE NOVEMBRO, 10 DE NOVEMBRO, 1997 IORQUE | 9 DE NOVEMBRO, 1999 15 DE NOVEMBRO, 1989 1989 12. 14. 16. 18. 20. US$ 53.900.000 | US$ 49.502.500 | US$ 47.850.000 | US$ 43.160.000 (£ 21.580.000) | US$ 40.336.000 | VINCENT VAN GOGH | “IRISES” | PABLO PICASSO | “FEMME ASSISE PABLO PICASSO | “SELF-PORTRAIT FRANCIS BACON | “SELF-PORTRAIT” GUSTAV KLIMT |“BIRCH FOREST” | SOTHEBY’S NOVA IORQUE | DANS UN JARDIN” | SOTHEBY’S NOVA : YO PICASSO” | SOTHEBY’S NOVA | SOTHEBY’S LONDRES | 21 DE 1903 | CHRISTIE’S NOVA IORQUE | 11 DE NOVEMBRO, 1987 IORQUE | 10 de novembro, 1999 IORQUE | 9 DE MAIO, 1989 JUNHO, 2007 8 DE NOVEMBRO, 2006 Paginação1.1.indd 111 07/09/04 22:21:36 112 ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007 paladarte Miguel Júdice componentes que a tornam uma forma de cultura, de arte mesmo. É também à mesa que o Homem demonstra que possui “razão”, que consegue discernir, criar, que valoriza a estética. A gastronomia é um dos mais importantes traços culturais dos povos, da sua identidade, do seu ADN. É influenciada pelas tradições, pela religião, pelo clima, pela morfologia do terreno, pela presença ou ausência de certos elementos naturais (mar, rios, florestas). A gastronomia espelha a essência de cada povo e a sua história. A gastronomia portuguesa é um bom exemplo disso, tendo sido muito influenciada pelos povos que visitámos ou que nos visitaram ao longo dos séculos, desde os árabes aos povos de África e Ásia. Mudam-se os tempos, muda-se a alimentação. As artes plásticas foram desde sempre uma preciosa ajuda para perceber as mutações que foram sendo introduzidas pelos novos padrões de vida. A arte conta a História da Humanidade, também no que diz respeito ao que comemos e a como comemos. Alguns dos mais famosos quadros de sempre tratam este tema. Veja-se a Última Ceia de Da Vinci, que tanta tinta fez correr nas páginas do Código de Dan Brown. Da Vinci, como muitos outros artistas, era um apaixonado pela gastronomia, tendo criado receitas que hoje estão compiladas em livro. A lista de quadros famosos onde a comida assume o #41 protagonismo é riquíssima. O Peru Depenado de Goya, os Comedores de Batatas de Van Gogh, o Banquete de A arte e os paladares sempre estiveram de mãos Casamento de Bruegel, entre muitos outros quadros dadas. Dos primitivos italianos aos pintores da escola de artistas como Rembrandt, Manet, Renoir, Matisse, holandesa, dos impressionistas aos surrealistas, não Chagal, Picasso, Dali. A lista é verdadeiramente há seguramente nenhuma corrente artística (quase infindável. nenhum artista) que tenha deixado de fora do seu Os pintores da Escola Holandesa foram dos primeiros espectro de temas inspiradores a arte da mesa e a a pegar na cozinha como tema, tendo criado gastronomia. A explicação é, a meu ver, simples, naturezas mortas de enorme beleza e sensibilidade, e tem a ver com o facto de a alimentação ser algo e em Portugal esse tipo de obras encontrou dois permanente nas nossas vidas desde que nascemos grandes mestres: Josefa de Óbidos e José António até que morremos. Poucas necessidades há que Benedito Soares da Gama de Faria de Barros, Morgado nos acompanhem tanto. Para além do seu carácter de Setúbal. O pintor maneirista Giuseppe Arcimboldo fisiológico essencial à vida, a alimentação tem outras trouxe inovação e humor às naturezas mortas, Paginação1.1.indd 112 07/09/04 22:21:37 113 utilizando os alimentos como “ingredientes” para criar quadros extraordinários em que estes compunham rostos humanos. Se algum surrealista existiu antes dos surrealistas, terá sido Archimboldo. Alguns séculos depois, outros grandes artistas dedicaram metros quadrados de tela à alimentação. Um dos melhores exemplos foi Paul Cézanne, que um dia disse: “Irei surpreender Paris com uma maçã”. O pós-impressionista pintou centenas de maçãs ao longo da sua vida, olhando-as de formas diferentes, compondo cenários para elas, desde toalhas de mesa a arranjos de flores. A maçã era a sua musa inspiradora, o seu alimento fetiche. Um contemporâneo de Cézanne, Pierre-Auguste Renoir, era tão apaixonado por gastronomia que lhe foi feita uma homenagem no livro Renoir, à mesa de um impressionista, prefaciado por Pierre Troigros, um dos maiores chefes de cozinha do mundo. Já no século XX, outros pintores provaram que a alimentação pode ter tratamentos mais contemporâneos e conceptuais. Um desses casos foi o americano Edward Hopper, que focou não exactamente a comida mas sim os seus locais de Jantares PALADARTE em 2007: consumo, nomeadamente os diners, usando-os como 21 de Setembro | ELEVEN, Lisboa imagem da solidão que tanto gostava de retratar. 24 de Outubro Mais recentemente, Andy Warhol, um dos maiores 28 de Novembro | HOTEL TIVOLI, Lisboa expoentes do movimento Pop Art, usou latas de 28 de Dezembro | FUNDAÇÃO ANTONIO PRATES, Ponte de Sôr | SERRALVES, Porto sopa Campbell’s como inspiração recorrente ao longo da sua vida. Para Warhol, que dizia que tinha bebido sopa Campbell’s todos os dias durante vinte anos, a lata Campbell’s era usada como um ícone da sociedade moderna, um objecto inspirador como as maçãs tinham sido para Cézanne. As razões atrás expostas legitimam os jantares “Paladarte” que irão ser organizados com o lançamento de cada número da revista Artes & Leilões. É que para além do longo casamento entre arte e alimentação, evidente em séculos de quadros e outras peças, os cozinheiros são também artistas, que criam no prato, a sua tela, obras que tocam os sentidos. | Paginação1.1.indd 113 Receita de Joachim Koerper Joachim Koerper nasceu no dia 25 de Dezembro de 1952, na cidade alemã de Saarbrücken. Começou a estudar administração de empresas, mas muito cedo, levado pelo amor à cozinha, vai trabalhar como aprendiz nos hotéis Falken (Konstanz) e Kempiski (Berlin). Desde 1971 até 1990 trabalhou em grandes hotéis de luxo de toda Europa, cozinhando para figuras célebres do mundo da política, da arte e do espectáculo, como Carolina do Mónaco, Gunter Sachs, Maximilian Schell, Cristina Onassis e Niarchos von Opel. Nos anos 70, Joachim Koerper começa a viajar frequentemente a terras mais quentes como a Grécia, a Sardenha ou a Costa Francesa. Rapidamente, Joachim enamora-se decisivamente pelo sul da Europa, aprende o espanhol e deixa-se seduzir pelos produtos mediterrânicos, com os seus sabores, cores e aromas, graças aos quais se converte num mestre da alta “cozinha mediterrânica”. Joachim Koerper trabalhou quase sempre em restaurantes com duas ou três estrelas Michelin, tais como L’ Ambroise de Paris, Moulin de Mougins na Costa Francesa, Guy Savoy Paris, Hosteleria du Cerf em Marlenheim, e Au Chapon Fin em Thoissey. Joachim Koerper trabalha sempre com produtos “naturais e frescos”, como ele mesmo costuma dizer, “por isso, utilizo sempre os produtos próprios da zona onde trabalho”. Joachim é um profissional tão disciplinado como imaginativo, capaz de integrar na sua cozinha ingredientes autóctones. O principal passo dado por Joachim Koerper no sentido da sua afirmação enquanto grande chefe de cozinha deu-se quando decidiu criar o restaurante Girasol, en Moraira (Alicante). Nove meses depois, o guia Michelin concedeu-lhe a primeira estrela Michelin, e três anos mais tarde a segunda estrela. No Eleven obteve uma estrela Michelin ao fim de um ano de abertura. Para além do restaurante Eleven, Joachim Koerper trabalha actualmente em regime de chefe consultor de cozinha com o Hotel Quinta das Lágrimas Relais&Châteaux (Coimbra). | 07/09/04 22:21:38