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INCURSÕES À GENEALOGIA: DE NIETZSCHE A FOUCAULT
Ivonei Freitas da Silva (Universidade Federal de Santa Maria, RS)
Salientamos que estes escritos congregam as leituras primeiras, as quais, procuram a
aproximação e detalhamento metodológico da pesquisa em andamento, em nível de
doutoramento em Educação, cujo foco são os discursos constantes nos documentos oficiais
acerca do ensino de filosofia no Brasil. Assim, tais escritos abordam o que chamamos, aqui, de
“abertura metodológica”; possibilitada pela genealogia como desconstrução da metafísica e, que,
permite revelar as formas de dominação, expressas nas relações de poder e saber. Para tanto, o
principal referencial teórico são as análises de Michel Foucault. Todavia, intentamos percorrer,
na primeira parte do texto, as referências críticas de Nietzsche à metafísica, desde seus
primórdios de elaboração como ramo do conhecimento no mundo antigo, a partir dos diálogos
platônicos e, especialmente, sua permanência em termos de validade, ainda, na modernidade.
Esse retorno à filosofia nietzschiana justifica-se pelo reconhecimento da influência da mesma
para o grupo daqueles que, taxonomicamente, costumam indexar Foucault, ou seja, enquanto
pós-modernos e/ou pós-estruturalistas; mas, também, por ter sido Nietzsche aquele que
empreendeu passos importantes na aplicabilidade da genealogia, num contexto de niilismo,
típico do final do século XIX.
Palavras-chave: Nietzsche; Foucault; genealogia.
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INCURSÕES À GENEALOGIA: DE NIETZSCHE A FOUCAULT
Como? É o homem apenas um erro de Deus? Ou é Deus
unicamente um erro do homem? (Nietzsche)
A metafísica foi, desde suas origens na filosofia grega, preponderante na história do
pensamento ocidental. Embora, depois da derradeira tentativa hegeliana de conceber a filosofia
como um sistema, diversos pensadores, no século XIX, evidenciam graus diferenciados de crítica
e, muitas vezes, de oposição às bases do modus operantis do exercício filosófico. Nesse
contexto, tem-se, por exemplo, a fenomelogia e a hermenêutica com novos ímpetos. Em termos
de autores, além do esforço marxiano de imbuir a filosofia da capacidade de transformar a
realidade, Nietzsche, ao retroceder ao idealismo platônico, promove um retorno às bases, as
quais calcaram uma significação ética para a existência do mundo e do homem naquele até, pelo
menos, o século XIX. Nesse retorno, Nietzsche salienta que os exercícios teóricos constantes dos
diálogos platônicos expressam a distinção, separação e oposição entre mundo sensível e suprasensível; entre o mundo das aparências e do visível com o mundo das ideias e dos conceitos
abstratos e universais. Daí, que se pode entender a afirmação de Nietzsche, ao considerar sua
filosofia como uma inversão do platonismo, num contexto de niilismo, típico do final do século
XIX.
Nietzsche, ao situar as evidências de um contexto próprio de niilismo, no momento
histórico da passagem do século XIX ao XX, quando de suas especulações filosóficas,
demonstra, igualmente, que tal contexto continua apresentando vinculações com a tradição
metafísica e o platonismo; principalmente, a distinção entre dois mundos que, para Platão,
equivale a considerar dois tipos de conhecimentos provenientes daqueles e, assim como a relação
entre os dois mundos, encerrados numa hierarquia. Enquanto uma espécie de conhecimento
divino e acessível a poucos mortais, o conhecimento racional e, de outro lado, a opinião.
Pois, assim como em Platão deve-se considerar a conversão de todos esses aspectos, o
ponto central da reversão dos valores, como empreendida por Nietzsche, congrega tanto os
valores éticos, estéticos e políticos quanto aqueles diretamente vinculados à teoria do
conhecimento e à ciência; num esforço não só de inversão, mas de supressão derradeira do que
representou, historicamente, aquilo que o platonismo contribuiu para instituir. Somente dessa
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maneira, é possível reconhecermos o que costumeiramente chama-se de crise ou catástrofe da
metafísica, na modernidade.
Em Nietzsche, essa situação de crise, no entanto, refere-se à imanência contra a
transcendência enquanto consequência da falta de fundamentos, mais ou menos, rígidos para a
existência factual dos homens no mundo; como os metafísicos almejavam ao longo da história da
filosofia e da religião cristã. Assim, niilismo caracteriza a experiência histórica da ausência de
fundamentos e requer a busca de entendimento tanto do que significa tal experiência num
determinando tempo histórico, quanto como Nietzsche se posiciona frente à mesma1. Salienta-se
que, Nietzsche fez uso do método genealógico para diagnosticar tal situação niilista, onde,
conforme Heidegger, o nada fez morada. Por analogia, Nietzsche entende a metafísica como um
rio que corre para seu final e estabelece uma situação de desespero e falta de respostas oriundas
de significados e sentidos pré-existentes acerca do mundo e da condição humana nesse. Em
diferentes escritos nietzschianos há a demarcação de momentos distintos na história do
pensamento ocidental e, correspondentemente, da maneira de “estar” no mundo. Obras como O
nascimento da tragédia revelam uma atenção ao período antecedente aquele que é caracterizado
como de “uma obsessão explicativa, que constitui uma espécie de delírio de onipotência da
razão” (GIACOIA, 2007, p.24), que, como foi referido acima, permanece até o século XIX. São
escritos onde transparece a formação em filologia 2 como uma maneira privilegiada para revelar
aquilo que a dialética platônica escondeu ao desconsiderar o conjunto das opiniões e das
manifestações trágicas que se encenava. É a derrocada do dionisíaco e a consequente vitória do
apolíneo.
Todavia, o niilismo apenas refere-se a uma situação histórica determinada e inacabada.
De maneira geral, seria como que o fim de um período onde “quem não sabe pôr a sua vontade
nas coisas põe ao menos nelas um sentido: isto é, crê que nelas existe já uma vontade”
(NIETZSCHE, 1988, p.16). Ou, noutros termos, devemos entender por niilismo o espaço de
tempo aberto que, “quando os valores cardinais são levados até a extração de suas derradeiras
1
A “reconstituição da análise e da crítica genealógica do niilismo por Nietzsche”, afirma Giacoia, “nos permite
compreender melhor como e por que o esforço para a superação da metafísica, que ele considera com um dos
principais resultados de sua transvaloração dos valores, é equivalente à tarefa de interpretar o que ele próprio
entende por niilismo, e de compreender o seu posicionamento peculiar em relação a esse fenômeno” (GIACOIA,
2007, p.39).
2
Foucault, em As palavras e as coisas, ao referir acerca dos segmentos teóricos que permitiram à linguagem ser
tornada como objeto e, especificamente, do segmento cujo foco conduziu a produção discursiva de verdades por
meio da filologia, considera que “Nietzsche inteiro, [é] uma exegese de alguns vocábulos gregos” (FOUCAULT,
2002, p.412-413).
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consequências, revela-se que, por detrás deles, nada mais tem subsistência” (GIACOIA, 2007,
p.27). Pois, foi nesse contexto que Nietzsche se postou a pensar, não tanto uma alternativa ao fim
da metafísica, mas do livre exercício do pensar considerando o perspectivismo possível de tal
atividade3.
Os esforços de Nietzsche, portanto, foram aqueles de traçar cartografias com a ajuda da
genealogia4 que permitiriam escavar, desterrar e emergir, atualizando aquilo que no presente
contexto se apresenta apenas como potência; pois, a única exigência da genealogia é “a minúcia
do saber, um grande número de materiais acumulados, [e] exige paciência” (FOUCAULT, 2004,
p.15), Nietzsche não só promoveu, em certa medida, fissuras e brechas na filosofia do seu tempo,
como foi um dos primeiros a adentrar por essas. Quer dizer, mesmo considerando que o niilismo
representa a intensificação da desvalorização da série de valores considerados como supremos,
nem sempre sua consequência é a do desespero e pode, inclusive, condizer com a noção de
“potência ascendente do espírito”; por mais que a situação de ausência de valor tenda a conduzir,
novamente, a condição de salvação e proteção através de conceitos universais e com sentido.
Para Nietzsche, a possibilidade de traçar novos modos de existência não é, determinantemente,
uma volta como denegação, mas sim, como a vivência do niilismo ativo, da superação e fortaleza
que o próprio espírito humano é capaz de experienciar; é compreender que, com o
desmoronamento dos valores cosmológicos, e “com o devir, nada se alcança, nada é alcançado”
(NIETZSCHE, 2008, p.31). Ou, noutras palavras, a história nada mais é que “o próprio corpo do
devir” (FOUCAULT, 2004, p.20).
Além do perspectivismo como proposto por Nietzsche, a genealogia talvez constitua,
enquanto método, uma das principais ferramentas legadas por aquele para os que o seguiram
temporalmente. Nesse sentido, a genealogia, não somente da moral, é aquele método que
ultrapassa a superficial interpretação das formas discursivas e é capaz de “restabelecer os
diversos sistemas de submissão: não a potência antecipadora de um sentido, mas o jogo casual
das dominações” (FOUCAULT, 2004, p.23). Ainda, cabe referir a força do pensamento
nietzschiano, tornada potência por um conjunto de pensadores, principalmente, após as
3
É o método de análise do perspectivismo que forneceu “a base epistemológica para uma interpretação global do
mundo centrada no conceito de vontade de poder, que, enfim, superaria o pensamento metafísico originado em
Platão e constituiria o resultado final do projeto crítico-genealógico de Nietzsche” (GIACOIA, 2004, p.27).
4
Cf. especificado por Foucault (2004, p.21): “A genealogia não pretende recuar no tempo para restabelecer uma
grande continuidade para além da dispersão do esquecimento; sua tarefa não é a de mostrar que o passado ainda está
lá, bem vivo no presente, animando-o ainda em segredo, depois de ter imposto a todos os obstáculos do percurso
uma forma delineada desde o início. Nada que se assemelhasse à evolução de uma espécie, ao destino de um povo”.
5
experiências totalitárias de corpos e mentes pelos regimes fascistas da Europa das décadas de
1920-1940; cuja saída desses, parece ter intensificado a perda de sentido da existência de
enormes contingentes de pessoas, estarrecidas com o que viram e viveram. Portanto,
perspectivismo e genealogia são legados nietzschianos para o descortinar da pós-modernidade,
“na medida que se pudesse considerar como predicado essencial do pós-modernismo justamente
a decidida rejeição de toda espécie de fundamento”; daí que, “torna-se pertinente relacionar
Nietzsche com seus sucessores pós-modernos, relativamente a essa miríade de acontecimentos
que irrompem com a perspectiva do fim da metafísica” (Cf. GIACOIA, 2007, p.40).
Há, aqui, uma discussão em aberto sobre o entrosamento ou não entre pós-modernidade e
pós-estruturalismo. Aliás, além de aberto, esse entrosamento é difícil de ser aclarado. Por
exemplo, Michel Peters considera que ambos os termos têm sido confundidos entre si e, muitas
vezes, tende-se a subordinar pós-estruturalismo a pós-modernismo. De qualquer forma, esse
mesmo autor sugere que ambos movimentos distinguem-se “por preocupações teóricas
diferentes, as quais estão mais claramente visíveis em suas respectivas genealogias históricas”.
Assim, o termo pós-modernismo deve ser entendido em relação ao movimento modernista e,
portanto, refere-se, de um lado, às transformações e/ou reações aquele no âmbito das artes e, de
outro, num sentido histórico-filosófico, ao próprio período ou, principalmente, a um ethos, a
própria pós-modernidade e, nesse sentido, “representa uma transformação da modernidade ou
uma mudança radical no sistema de valores e práticas subjacentes à modernidade”. Entretanto,
diferentemente, Peters aponta que o pós-estruturalismo é a resposta filosófica ao estruturalismo
das décadas de 1950-1960, que pretendia ser o megaparadigma nas Ciências Sociais e
Humanidades. Essa resposta seria fortemente influenciada pelos trabalhos de Nietzsche e de
Heidegger – afora outros -, que buscaram a descentração das estruturas através da crítica à
metafísica (Cf. PETERS, 2000, p.10-14). Dito isso, nos parece que a dificuldade permanece;
pois, não seria, também, o pós-modernismo possibilitado, em seu conjunto diverso, a partir da
descentração das estruturas?
A genealogia: de Nietzsche a Foucault
Talvez não haja pensador, durante o século XX, que tenha exercido tanto fascínio e
influência nos rumos da filosofia como Nietzsche. Excluindo sua apropriação indevida por
6
setores radicalmente anti-humanistas, como o nacional-socialismo alemão, uma gama diversa de
autores não só leram os escritos de Nietzsche como os tomaram enquanto fonte privilegiada para
suas próprias formulações. Desde Heidegger, ainda na primeira metade do século até os, hoje,
intitulados pós-estruturalistas ou pós-modernos. Aliás, por meio desses que, na França, a obra de
Nietzsche foi “limpa” do nazismo e de confusões quanto as mesmas serem a própria encarnação
do niilismo5. Entre os pensadores pós-modernos, Michel Foucault tem sido um dos principais
interlocutores de Nietzsche, depois de meados do século; a tal ponto daquele declarar que
“Heidegger foi sempre para mim o filósofo essencial, toda minha formação filosófica foi
determinada por Heidegger. Mas reconheço que foi Nietzsche o mais importante” (FOUCAULT,
1984, apud FERRY & RENAUT, 1988, p.95)6. Pois, a partir dessa afirmação, nos atemos a
discorrer sobre as reflexões de Foucault, especificamente, em torno das relações de poder,
considerando que essas sempre expressam determinados tipos de dominação; porque, como ele
próprio referiu, a humanidade “prossegue assim de dominação em dominação” (FOUCAULT,
2004, p.25).
Antes, contudo, referimos que Nietzsche, assim como Freud e Marx, para Foucault, são
aqueles que “situaram-nos ante uma possibilidade de interpretação e fundamentação de novo a
possibilidade de uma hermenêutica”; não que os mesmos tenham multiplicado as formas de
interpretação dos símbolos, entretanto, que foi por eles que se modificou a natureza do símbolo e
passaram a “escalonarem-se num espaço mais diferenciado, partindo de uma dimensão do que
poderíamos qualificar de profundidade, sempre que não a considerássemos como interioridade,
antes pelo contrário, exterioridade” (Cf. FOUCAULT, 1997, p.17-18).
As reflexões de Michel Foucault, por sua vez, têm evidenciado sua importância após o
fim da metafísica, muito, pelo desvelar dos mecanismos e práticas cotidianamente
desempenhadas nas diferentes esperas da vida humana, dentro e fora das instituições – ainda –
modernas e; principalmente, por fornecer bases para a compreensão das mudanças postas em
movimento, desde meados do século XX. Enquanto esquematização dos escritos foucaultianos,
seus comentadores dividem sua obra em três momentos: o primeiro, conhecido como projeto
arqueológico, no qual se dedica à investigação histórica sobre o nascimento dos discursos ou
5
Cabe diferenciar que Nietzsche refere-se a dois modos de niilismo, o negativo e o positivo; sendo que aquele se
posiciona, favoravelmente, a esse último como possibilidade de superação do niilismo enquanto contexto de sua
época.
6
Reconhecer isso, para Foucault, como devido a Nietzsche equivale à afirmação do primeiro que: “A verdade e seu
reino originário tiveram sua história na história” (FOUCAULT, 2004, p.19).
7
saberes considerados como verdadeiros e, como num plano horizontal de análise, objetiva
descrever as discursividades locais; o segundo momento, compreendido como projeto
genealógico7, no qual Foucault atrela a questão da constituição dos saberes aos modos de
exercício do poder, agora, numa dinâmica vertical de análise dos processos que compõem as
teias discursivas e; finalmente, o terceiro momento, no qual ele discute o sujeito entendido como
sujeito ético - antes se tratava do sujeito enquanto domínio das relações de poder-saber; agora se
trata de um sujeito capaz de constituir a si mesmo8.
Veiga-Neto refere-se a três domínios, a saber: o ser-saber; o ser-poder e o ser-consigo.
Especificamente quanto aos dois primeiros, poder-se-ia delimitá-los em termos de um método de
análise, respectivamente, a arqueologia e a genealogia. Na fase arqueológica, Foucault dedicouse a analisar as gêneses das transformações dos saberes das Ciências Humanas, tomando aqueles
como correias transmissoras. Na genealógica, no entanto, a sua preocupação era acerca dos
próprios processos de surgimento dos saberes enquanto ordem discursiva e, principalmente,
como o surgir de tais ordens expressavam elementos que se constituem em dispositivos políticos
ou, noutras palavras, como os sujeitos eram objetivados pelas relações de poder (Cf. VEIGANETO, 2005, p.41-49). Aceitando, rigidamente, essa divisão, talvez, possamos afirmar que a
obra As palavras e as coisas (1966) está na bifurcação entre essas as duas primeiras fases
foucaultianas e, numa leitura apressada, as dificuldades de “localizar” numa ou noutra é uma
constância.
Considerando o fim da noção de uma instância supra-sensível e, consequentemente, da
morte de Deus, que se vê emergir do lodo dos discursos racionais e científicos da modernidade,
todo o conjunto de “práticas políticas e os jogos de poder e dominação”. Nessa emergência, a
qual se procurou evidenciar, aqui, como devida, em grande medida, a Nietzsche, foi Foucault
quem “discerniu com exemplar lucidez a extensão e a profundidade da erosão provocada pela
crítica nietzschiana nas categorias tradicionais da metafísica” (Cf. GIACOIA, 2007, p.44). Por
exemplo, quando o pensador francês afirmar que:
7
Cabe salientar, no entanto, que a genealogia “permite apreender de maneira coerente o trabalho de Foucault desde
os primeiros textos (antes que o conceito de genealogia começasse a ser empregado) até os últimos. (Cf. REVEL,
2005, p.53).
8
Ao ser entrevistado por Dreyfus e Rabinow, em 1983, acerca da genealogia da ética (conforme divisão acima, a
terceira fase), Foucault afirma que: “Três domínios da genealogia são possíveis. Primeiro, uma ontologia histórica
de nós mesmos em relação à verdade através da qual nos constituímos como sujeitos de saber; segundo, uma
ontologia histórica de nós mesmos em relação a um campo de poder através do qual nos constituímos como sujeitos
de ação sobre os outros; terceiro, uma ontologia histórica em relação à ética através da qual nos constituímos como
agentes morais” (DREYFUS; RABINOW, 1995, p.262).
8
As diferentes emergências que se podem demarcar não são figuras sucessivas de uma
mesma significação; são efeitos de substituição, reposição e deslocamento, conquistas
disfarçadas, inversões sistemáticas. [...] se interpretar é se apoderar por violência ou
sub-repção, de um sistema de regras que não tem em si significação essencial, e lhe
impor uma direção, dobrá-lo a uma nova vontade, fazê-lo entrar em um outro jogo e
submetê-lo a novas regras, então o devir da humanidade é uma série de interpretações.
E a genealogia deve ser a sua história: história das morais, dos ideais, dos conceitos
metafísicos, história do conceito de liberdade ou da vida ascética, como emergências
de interpretações diferentes. Trata-se de fazê-las aparecer como acontecimentos no
teatro dos procedimentos (FOUCAULT, 2004, p.26, grifo meu).
Dessa maneira, como afirma Muchail (1995, p.29), Foucault “faz filosofia fazendo
pesquisa histórica” e as histórias que ele “escreve desenvolvem-se no espaço do Ocidente, e o
tempo que percorrem é quase sempre aquele que vai desde o final do renascimento (por volta do
século 16) até nossa modernidade (séculos 19 e 20), atravessando, com realce, a chamada idade
clássica (século 17 e 18)”9. Assim, por exemplo, as relações de poder e dominação, nesse período
histórico, foram por Foucault, identificadas como sendo de soberania, disciplinarização e do
âmbito da biopolítica. Igualmente, foi dessa forma que esse pensador ateve-se à produção de
verdades através das palavras, enunciados e discursos; como aqueles que determinaram
dicotomias quase intransponíveis, como o par razão-loucura. Também, quando identificou entre
os séculos XVI-XVIII, o surgimento do paradigma da governamentalidade, estabelecido pela
vinculação entre território, segurança e população; nesse caso, a tal ponto que na obra “Vontade
de Saber descobrirá outro par matéria-função puras: desta vez, a multiplicidade qualquer é
numerosa, num espaço aberto, e a função já não é impor uma conduta, mas ‘gerir a vida’”
(DELEUZE, 2005, p.53, nota 17).
No deitar-se, pacientemente, em acontecimentos à espreita de desvelar suas dinâmicas
singulares de dominação, a genealogia não é nem branca e nem preta, mas “cinza”. A
preocupação da genealogia não é a de recuar no passado para colocar na linha da história dos
saberes as coisas que foram deixadas de fora e, assim, e evidenciar uma continuidade; nem “sua
tarefa não é a de mostrar que o passado ainda está lá, bem vivo no presente, animando-o ainda
em segredo, depois de ter imposto a todos os obstáculos do percurso uma forma delineada desde
o início”. Dessa maneira, o que a genealogia permite, em última instância, é o restabelecimento
9
Para Foucault, a “história é sua estratégia privilegiada contra o essencialismo; ela reintroduz a contingência e a
mutabilidade lá onde a filosofia da história tradicional via somente o desdobramento de essências em
desenvolvimentos naturais e inevitáveis” (Cf. DUSSEL, 2004, p.47).
9
daqueles sistemas e ordens de submissão enquanto sendo, os mesmos, parte de um “jogo casual
das dominações”. Nesse sentido, considerando que o “devir da humanidade é uma série de
interpretações, a genealogia, ao demarcar os deslocamentos dos sistemas de regras, deve
constituir-se na história das morais, dos ideais, dos conceitos metafísicos, história do conceito de
liberdade ou da vida ascética, como emergências de interpretações diferentes”. Ou seja, noutros
termos, cabe à genealogia esmiuçar e evidenciar como essas emergências aparecerem e tornamse acontecimentos (Cf. FOUCAULT, 2004, p.21-26).
Assim, as relações de poder, por exemplo, não devem ser cartografadas visando
identificar a totalidade das mesmas, seja através de noções de centralismo ou de hierarquia; visto
que elas são mais complexas do que aparentam. Pelo contrário, é “necessário saber até onde se
exerce o poder, através de que revezamentos e até que instâncias, frequentemente ínfimas, de
controle, de vigilância, de proibições, de coerções [porque] onde há poder, ele se exerce”. Não há
um detentor único, um soberano10; mas, forças que operam de todos os lados do campo de luta.
Logo, genealogicamente, designar os focos de dispersão e concentração do poder é retirar da
condição de silenciamento quem, como, interesses, condições e tecnologias; é desvelar uma
forma de “inversão de poder” e, essa, “é um primeiro passo para outras lutas contra o poder”.
Dito e empreendido isso, é que a resistência torna-se possibilidade para “todos aqueles sobre
quem o poder se exerce como abuso, todos aqueles que o reconhecem como intolerável” e, que
assim, possam “começar a luta onde se encontram e a partir de sua atividade (ou passividade)
própria” (Cf. FOUCAULT, 2004, p.75-77).
Quando Foucault reflete sobre o poder disciplinar, seu mérito não é o de evidenciar que
as relações de poder expressas por modos disciplinares são uma constância na história da
humanidade; no entanto, de cartografar que, num determinado momento histórico, diversos
acontecimentos e rearranjos permitiram que, enquanto um conjunto de fundamentos, princípios e
técnicas, os mecanismos disciplinares deixassem de ser fragmentados e sem conexão entre si,
tornando-se totais como “uma nova técnica de gestão dos homens”, como evidenciou-se no
exército e nas escolas do século XVIII; a tal ponto que, aí sim, a “disciplina exerceu seu controle,
não sobre o resultado de uma ação, mas sobre seu desenvolvimento”, enquanto uma técnica de
poder de vigilância por olhares e registros (Cf. FOUCAULT, 2004, p.105-106). Igualmente,
10
No diálogo entre Foucault e Deleuze acerca dos Intelectuais e o poder, o último afirma que “não se pode tocar em
nenhum ponto de aplicação do poder sem se defrontar com este conjunto difuso que, a partir de então, se é
necessariamente levado a querer explodir a partir da menor reivindicação” (Cf. FOUCAULT, 2004, p.78).
10
Foucault inquietou-se acerca dos poderes que determinados saberes científicos expressam em seu
interior, interrogando-se sobre as ambições e pretensões dos mesmos. Quer dizer,
genealogicamente, revisitar as relações de dominação, para Foucault, não é somente olhar o que
está aparente, o que constitui os fios da cabeleira, mas, além de olhar o que está na superfície, o
que é visível a todos, esmiuçar as ramificações mais profundas, as raízes próprias dos fios do
poder; pois, esse é “capilar” e difuso. Assim, ao finalizarmos, deixamos o registro de Deleuze
acerca do seu amigo Foucault, quando afirma que “tudo seja sempre dito, em cada época, é
talvez o maior princípio histórico de Foucault: por detrás da cortina nada há para ver, mas muito
mais importante era descrever sempre a cortina, ou o soclo, pois nada existe por detrás ou por
debaixo” (DELEUZE, 2005, p.77-78).
Considerações finais – mas nem tanto
De maneira geral, todos aqueles que se aventuram a realizar investigações acadêmicas,
independentemente do fôlego e do escopo dessas, parece repetir práticas e, algumas vezes,
equívocos. Por exemplo, há ocasiões que nem terminamos de “devorar” determinada obra e já
estamos utilizando-a para “ler” fenômenos. Mas até aí, nada demais e nenhuma lástima maior;
para não dizer, que faz parte do “entrosamento” com o campo e o habitus investigativo e,
detidamente, no aspecto da relação entre teoria e prática, especialmente, quando dos primeiros
passos, a compreensão que de “conceitos e teorias existem para serem mergulhados numa
prática, para o entendimento de uma realidade que instiga, que acena em sua
incompreensibilidade, em sua beleza, poesia ou mesmo em sua potencialidade destrutiva”
(FISCHER, 2007, p.41). Noutros termos, a noção da “indissociabilidade” entre teoria e prática.
Essa interpretação, a meu ver, constitui o cerne daquilo que se espera de todo e qualquer agente,
seja ele um professor ou um pesquisador. É a compreensão que os limites entre teoria e prática
são muito tênues e, se há limites, esses constituem uma zona imperceptível, gasosa, diluída. No
fundo, o que existem são movimentos que partem de um lugar e dirigem-se ao outro e que, o
retorno é uma condição.
Destaca-se, no entanto, que essas primeiras incursões investigativas acerca da genealogia
permitem a “correção” de ideias distorcidas que eu tinha sobre a “teoria do discurso” em
Foucault; basicamente, que consistia em acreditar que há sentidos, interesses e significados não
11
evidentes por detrás do que venha a constituir-se em práticas discursivas. Entendo que tal ideia
remonta à tradição do método da análise do discurso, que surge na Linguística e se espalha pelas
Ciências Humanas de forma quase universal. Contudo, são coisas distintas e, compreender isso, é
requisito para o “bom uso” dos escritos foucaultianos. Enfim, nada há por detrás dos discursos,
pois, esses são mais que a designação das coisas, eles formam as próprias coisas; quer dizer,
inexistem estruturas permanentes que constituam a realidade, pois os discursos inserem-se no
âmbito da história. De outro lado, o que há são “enunciados e relações, que o próprio discurso
põe em funcionamento” e, a nós pesquisadores que utilizamos as ferramentas foucaultianas, cabe
se debruçar, justamente, nas “relações históricas, práticas muito concretas, que estão ‘vivas’ nos
discursos” (Cf. FISCHER, 2001, p.198-199); ou ainda, não tanto perguntar pelo porquê, mas
pelo como ou pelo o quê da ocorrência e sedimentação de determinadas práticas discursivas, no
tempo e no espaço.
Dito isso, somos arremessados, como de imediato, ao ponto que considera a estreita
vinculação/elo entre os discursos e as relações sociais; porque essas são constituídas
discursivamente. E, referir à constituição é, igualmente, referir acerca do binômio saber-poder.
Assim, por exemplo, o discurso econômico de determinada época que se impõe ao conjunto
social, não pode ser “entendido” apenas pela sua relação com outras formações discursivas de
cunho econômico, mas deve ser “analisado” em decorrência dos saberes que o torna
preponderante, internamente, entre o conjunto dessas formações e, externamente, da sua
“eficiência” social.
Cabe registrar, a título de encerramento, que estes escritos convergem, de um lado, à
pesquisa em Educação e, de outro, à Filosofia da Diferença. No entanto, saliento que me restrinjo
à primeira delas, pelo menos, no aspecto formal deste um texto rabalho acadêmico. Digo isso,
pois, no quadro de minhas atividades futuras, acredito que discorrer acerca dos aspectos
metodológicos da pesquisa em Educação e, desde já, particularmente, das contribuições de
autores da Filosofia da Diferença sobre aquela é de suma importância. Assim, noutras palavras,
mesmo que não dedique nenhuma linha de escrita ao tema da Educação, friso que, por trás, ou
melhor, no entre-linhas, meu foco de análise é a Educação; principalmente, no contexto de
transformações do mundo contemporâneo e da incidência dos espaços escolares formais em tal
contexto, para bem ou para mal, quando, conforme Veiga-Neto (2006, p.34), “boa parte da
subjetivação operada na e pela escola […] preponderantemente pelo poder e pelas práticas
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disciplinares – ou se deslocou para o espaço social mais amplo ou, mesmo ainda ocorrendo no
espaço escolar, deixou de contar com aquele tipo de poder e com aquelas práticas para a
fabricação de sujeitos”.
No nosso caso, as “inquietações” circulam o ensino da filosofia na etapa final da
educação básica brasileira, que se aproxima da sua plena efetivação através da obrigatoriedade.
Entretanto, dedicar-se a isso exige determinados recortes, considerando os textos e documentos
elaborados e tornados fontes primeiras para a problemática, entre esses, os Parâmetros e
Orientações Curriculares Nacionais para desvelar os pressupostos da argumentação para que os
saberes filosóficos sejam justificados. Especificamente poderíamos pensar essas questões por
meio de diversos questionamentos; mas podemos começar a interpelar sobre quais são os
pressupostos políticos que amparam e justifica a efetivação do ensino da Filosofia como ordem
discursiva? O que vem a ser legitimado via o ensino do saber filosófico? Por que tal perspectiva
ganha importância? Por que nas diversas fontes documentais oficiais sobre a Educação Nacional
não se encontram as concepções e sequer as especificidades deste componente considerado como
sendo indispensável para a formação dos jovens e, em inseparado, de pretensos cidadãos?
Por fim, assim como referiu Deleuze acerca de Foucault, compreende-se que estes
exercícios de escrita condizem, mesmo que preliminares ou deficientes, com a “tripla definição
de escrever: escrever é lutar; é resistir; escrever é devir; escrever é cartografar” (DELEUZE,
2005, p.65).
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