Relação entre o desenvolvimento cognitivo e a produção de atos
comunicativos com função instrumental em crianças com síndrome de Down.
Palavras-Chave: cognição, comunicação, síndrome de Down
A partir da quarta fase do período sensório-motor, por volta dos oito meses de idade,
as ações da criança passam a ser dotadas de intencionalidade e tem início a coordenação
de meios e fins, caracterizada pelo uso intencional de esquemas como meios para se obter
um fim desejado. (1) Tais construções permitem à criança se comunicar de forma intencional,
levando à emergência dos primeiros atos comunicativos com função instrumental, ou seja,
atos comunicativos utilizados como estratégia para regular o comportamento do outro, com
propósitos instrumentais (2).
A literatura tem sugerido que as crianças com síndrome de Down (SD) apresentam
dificuldades específicas quanto às habilidades de resolução de problemas envolvendo a
coordenação de meios e fins, quando comparadas a crianças com desenvolvimento típico
(DT) de mesma idade mental (2 - 4).
Outros estudos têm encontrado que as crianças com SD também apresentam déficits
quanto às habilidades de comunicação instrumental, em comparação às habilidades de
comunicação com propósito social ou de atenção compartilhada (2; 5-7).
Portanto, o objetivo do presente estudo foi verificar a relação entre o
desenvolvimento cognitivo, mais especificamente as habilidades de resolução de problemas
envolvendo a coordenação de meios e fins, e a produção de atos comunicativos com função
instrumental em crianças com SD.
Os procedimentos desta pesquisa foram aprovados pelo Comitê de Ética em
Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(FMUSP), sob número 397/05. Todos os sujeitos participantes tiveram o Termo de
Consentimento Livre Pós-Esclarecido assinado pelos pais ou responsável.
Foram considerados dois grupos de sujeitos: (1) grupo pesquisa (GSD) composto por
10 crianças com SD, frequentadoras do Laboratório de Investigação Fonoaudiológica em
Síndromes e Alterações Sensóriomotoras (LIF-SASM) da Faculdade de Medicina da USP ou
da APAE de São José dos Campos - SP; (2) grupo controle (GDT) composto por 10
crianças com DT, pertencentes à creche ou frequentadoras do Ambulatório de Puericultura
do Hospital Universitário da USP.
Os sujeitos do GSD foram selecionados de acordo com os seguintes critérios de
inclusão: ter diagnóstico de SD confirmado por exame de cariótipo, ausência de cardiopatia
com indicação de cirurgia, ausência de deficiência visual, estar sob acompanhamento
pediátrico e otorrinolaringológico e apresentar resultados normais na avaliação audiológica.
Os sujeitos do GDT foram selecionados de acordo com os seguintes critérios de
inclusão: ausência de intercorrências pré, peri e pós natais, idade gestacional e peso
adequados ao nascimento, estar sob acompanhamento pediátrico e apresentar resultados
normais na avaliação audiológica.
Para a verificação da produção de atos comunicativos com função instrumental, as
crianças foram filmadas em situações de brincadeira livre sempre com o mesmo
examinador. O material utilizado foi composto de brinquedos variados, tais como: bola,
chocalho, carrinho, boneca, miniaturas de utensílios de cozinha, telefone de brinquedo,
entre outros. Foram considerados atos comunicativos com função instrumental todas as
ações da criança dotadas de intenção comunicativa, com o objetivo de regular o
comportamento do outro ou de obter um fim desejado, como os pedidos de ação, os pedidos
de objeto e os protestos.
As habilidades de resolução de problemas e a produção de atos comunicativos com
função instrumental foram avaliadas aos oito e aos12 meses de idade cognitiva. As sessões
tiveram duração de 50 minutos cada, sendo 20 minutos utilizados para a avaliação das
habilidades de resolução de problemas envolvendo a coordenação de meios e fins, e 30
minutos utilizados para a observação dos atos comunicativos com função instrumental em
situação de brincadeira livre.
Com o objetivo de identificar as sessões em que os sujeitos apresentariam oito e 12
meses de idade cognitiva, foram realizadas avaliações cognitivas mensais por meio do
Developmental Assessment of Young Children (DAYC)
(8)
, a partir dos 11 meses de idade
cronológica para o GSD e seis meses de idade cronológica para o GDT.
A idade cronológica média dos sujeitos na primeira e segunda avaliações foram
respectivamente: 15,2 e 20,8 meses para o GSD e 7,5 e 11,8 meses para o GDT.
Os sujeitos foram pareados por gênero, sendo seis participantes do gênero
masculino e quatro do gênero feminino em cada grupo, e por nível sócio-econômico (p-valor
para comparação entre os grupos = 0,35).
O nível sócio-econômico foi estabelecido com base no grau de escolaridade dos pais
e na renda familiar mensal per capita. Para tanto, criou-se uma escala de 1 a 7 pontos para
cada variável, cuja média corresponde ao nível sócio-econômico. Para a determinação das
classes em relação à renda familiar per capita, foi utilizada, como referência, a classificação
proposta pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa – ABEP
(10)
. Para
determinação dos graus de escolaridade que comporiam a referida escala, foi considerada a
classificação de ensino proposta pelo Ministério da Educação (Ensino Fundamental, Ensino
Médio e Ensino Superior). Os dados foram coletados por meio de entrevista com os pais ou
contato telefônico.
Para a análise estatística, foram utilizados os testes Wilcoxon, Mann-Whitney e teste
de correlação de Spearman. O nível de significância adotado foi de 0,05.
Dois juízes fonoaudiólogos foram utilizados para análise de 20% dos DVDs. Um
treinamento prévio foi realizado para análise dos atos comunicativos com função
instrumental. O índice de concordância foi de 82% para o juiz 1 e de 87% para o juiz 2.
Os resultados revelaram aumento significante para ambos os grupos em relação à
produção de atos comunicativos com função instrumental (GSD: p = 0,02; GDT: p = 0,001) e
às habilidades de resolução de problemas envolvendo o pensamento meios e fins (GSD p =
0,048; GDT: p = 0,034), ao compararmos as duas sessões de observação.
Porém, diferenças significantes entre os grupos foram observadas quanto à
resolução de problemas envolvendo a coordenação de meios e fins aos 12 meses de idade
cognitiva (p = 0,049) e quanto ao número de atos comunicativos com função instrumental
produzidos aos oito e 12 meses de idade cognitiva (p = 0,035; p = 0,001, respectivamente),
com maior número apresentado pelo GDT nas duas sessões. (Gráfico 1)
Gráfico 1: Comparação entre os grupos quanto às habilidades de resolução de problemas
envolvendo a coordenação de meios e fins e a produção de atos comunicativos com função
instrumental aos oito e 12 meses de idade cognitiva.
O teste de correlação de Spearman revelou correlação positiva e estatisticamente
significante (p = 0,045) entre o desenvolvimento das habilidades de resolução de problemas
envolvendo a coordenação de meios e fins e a produção de atos comunicativos com função
instrumental para ambos os grupos.
Os dados desta pesquisa corroboram estudos anteriores, os quais sugerem que as
crianças com SD apresentam déficit específico quanto às habilidades de resolução de
problemas envolvendo a coordenação de meios e fins, o que não se observa em relação às
demais habilidades cognitivas tais como a imitação, as relações temporais, espaciais e
causais, quando comparadas a crianças com DT de mesma idade mental (2-4).
Apesar de ambos os grupos terem apresentado aumento significante do número de
atos comunicativos com função instrumental dos oito aos 12 meses de idade cognitiva,
índices significantemente mais baixos foram observados para o GSD em ambas as sessões.
Este dado reforça a idéia de que essas crianças também apresentam déficits em relação à
comunicação com função instrumental, como relatado em outros estudos (2; 5-7).
A forte correlação entre as habilidades avaliadas, encontrada para ambos os grupos,
sustenta a hipótese de que o desenvolvimento cognitivo, mais especificamente as
habilidades de resolução de problemas envolvendo a coordenação de meios e fins, favorece
de forma positiva o desenvolvimento das habilidades de comunicação com função
instrumental, contribuindo para que a criança consiga se comunicar de forma cada vez mais
efetiva.
Assim, os déficits apresentados pelas crianças com SD quanto à coordenação de
meios e fins parecem estar relacionados aos déficits nas habilidades de comunicação
instrumental, influenciando também o desenvolvimento da linguagem expressiva. Nesse
sentido, a terapia fonoaudiológica com enfoque nessas habilidades pode ser de grande valia
para essa população.
Referências:
1. Piaget J. Nascimento da inteligência na criança. 3a ed. Rio de Janeiro: Zahar; 1978. [edição
original 1936].
2. Fidler DJ, Philofsky A., Hepburn SL, Rogers SJ. Nonverbal requesting and problem-solving by
toddlers with Down syndrome. American Journal on Mental Retardation. 2005; 10(4):312-322.
3. Dunst C. Stage transitioning in the sensorimotor development in Down’s syndrome infants. Journal
of Mental Deficiency Research. 1988; 32:404-410.
4. Ruskin EM, Kasari C, Mundy P, Sigman M. Attention to people and toys during social and object
mastery in children with Down syndrome. American Journal on Mental Retardation. 1994; 99:103-111.
5. Mundy P, Sigman M, Kasari C, Yirmiya N. Nonverbal communication skills in Down syndrome
children. Child Development.1988; 59: 235-249.
6. Wetherby AM, Yonclas DG, Bryan AA. Communicative profiles of preschool children with
handicaps: Implications for early identification. Journal of Speech and Hearing Disorders. 1989; 54:
148-158.
7. Mundy P, Kasari C, Sigman M. Ruskin E. Nonverbal communication and early language acquisition
in children with Down syndrome and normally developing Children. Journal of Speech-Language and
Hearing Research. 1995; 38: 157-167.
8. Voress JK, Maddox T. DAYC – Developmental Assessment of Young Children. Pro-ed. Austin,
Texas, 1998.
9. Bühler KEB, Flabiano FC, Limongi SCO, Befi-Lopes DMB. Protocolo para Observação do
Desenvolvimento Cognitivo e de Linguagem Expressiva. Revista da Sociedade Brasileira de
Fonoaudiologia. 2008; 13(1): 61-8.
10. ABEP Critério de Classificação Econômica Brasil. São Paulo, 2003. Disponível em:
www.abep.org/codigosguias/ABEP_CCEB.pdf.
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