A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE HISTÓRIA NA UNIVERSIDADE DO DISTRITO FEDERAL (1935-1939) Este estudo tem por objetivo investigar a formação dos professores secundários de História na Universidade do Distrito Federal.1 Criada na cidade do Rio de Janeiro, em 1935, essa universidade de professores, como a denominou Mendonça (2002), propunha-se concretizar a ideia contida no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, segundo a qual todos os professores, de todos os graus de ensino deveriam realizar sua formação em cursos superiores, no âmbito da universidade, em contato íntimo com a pesquisa e produção do conhecimento. A partir de minha própria trajetória como professora de História e das reflexões sobre a prática desenvolvida em escolas de educação básica e cursos de formação de professores, duas questões me conduziram a essa investigação. A primeira diz respeito à fragilidade teórico-metodológica que marcou a formação de toda uma geração de professores, o que contribuiu consideravelmente para afastá-los das atividades de pesquisa. A segunda se relaciona à dicotomia ainda presente entre os cursos de bacharelado e licenciatura, ou seja, uma formação pedagógica que, sobreposta à formação cultural, tende a ser desqualificada, até mesmo pela pequena possibilidade de diálogo entre esses dois campos de conhecimento. Tais questões me levaram a buscar vestígios que esclarecessem a configuração do primeiro espaço institucional de formação dos professores de História no Rio de Janeiro, que, com algumas alterações, acabou dando origem ao modelo formativo desenvolvido na antiga Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, já denominado por especialistas de “esquema 3+1” e que, na verdade, pouco se alterou até hoje. Tomar o curso de História como modelo para as reflexões que procuro desenvolver significa não apenas levantar questões que contribuem para apreender a complexidade deste campo disciplinar no momento em que ele se constitui no espaço universitário, mas, especialmente, para pensar as condições históricas que acabam por possibilitar a hegemonia de determinados projetos educacionais em detrimento de outros. Para tanto, tornou-se necessário compreender o modelo inicial de formação docente pensado para a UDF, bem como as mudanças instituídas durante o breve período de sua existência. As fontes 1 O presente texto resulta do projeto de pesquisa História da formação docente na cidade do Rio de Janeiro: A Escola de Educação da Universidade do Distrito Federal desenvolvido no âmbito do Programa de Estudos e Documentação Educação e Sociedade (Proedes) da Faculdade de Educação da UFRJ com o patrocínio da Faperj. documentais que servem ao presente estudo compõem-se fundamentalmente de atos administrativos (Instruções) e matrizes curriculares do curso de História, nas quais procurei observar transformações que constituíssem indícios de concepções distintas acerca do processo de formação de professores. Nesse sentido, foi de grande utilidade a leitura de Ivor Goodson (1995) e suas observações sobre a importância de compreender as lutas que precedem e acompanham a definição dos currículos, vistos pelo autor como construções ou tradições inventadas (Hobsbawm e Ranger, 1984) que sempre obedecem a prioridades políticas e sociais. [...] A elaboração do currículo pode ser considerada um processo pelo qual se inventa tradição [...] o currículo escrito é o exemplo perfeito de invenção de tradição. Não é, porém, como acontece com toda tradição, algo pronto de uma vez por todas; é, antes, algo a ser definido onde, com o tempo, as mistificações tendem a se construir e reconstruir. (Goodson, 1995, p. 27) Se o currículo escrito é um testemunho visível, público e também uma escolha que justifica e/ou legitima determinada proposta educacional, torna-se pertinente analisar, ainda sob o escopo teórico, a ideia de projeto. Nesta perspectiva, ao conceito já definido por Alfred Schutz (1979) - uma conduta organizada para atingir finalidades específicas - agrega-se a contribuição de Gilberto Velho (1994) para quem o projeto é “resultado de uma deliberação consciente a partir das circunstâncias, do campo de possibilidades em que está inserido o sujeito” (p. 103). Assim, a adesão a um projeto quase sempre implica reconhecer limitações e conflitos, bem como disposição para negociar e articular interesses e aspirações com outros atores sociais. Por fim, é oportuno observar como aponta Ferreira (2006) que, embora diversos trabalhos tenham se debruçado sobre a experiência da Universidade do Distrito Federal (Paim, 1981, 1982; Schwartzman, 1982; Fávero, 1996, 1998, 2004 e Mendonça, 2002), poucas são as pesquisas que se voltam para o estudo de campos disciplinares específicos. Neste sentido, pode-se destacar o trabalho empreendido pela própria Marieta Ferreira (2006) sobre o surgimento dos primeiros cursos universitários de História no Rio de Janeiro, além da tese de doutoramento de Mônica Machado (2002) sobre a constituição do curso de Geografia e a recente pesquisa de Bruno Dassie (2008) que trata da configuração do campo da educação matemática, a partir da trajetória do professor Euclides Roxo. A formação do professor no espaço universitário 2 A carência de espaços institucionais que promovessem a formação do professor secundário no Brasil tornou-se um desafio para Anísio Teixeira, cujo projeto educacional priorizava a formação do magistério. A seu ver, a docência do ensino secundário não poderia continuar a ser “um biscate com que membros de outras profissões integram o seu orçamento” ou “uma solução encontrada por pessoas que fracassaram em outras profissões” (Teixeira, 1997, p. 217). Na verdade, o magistério secundário estava entregue a autodidatas, os quais, muitas vezes, para ampliar o salário eram obrigados a peregrinar por vários colégios. Para enfrentar esta situação, a Prefeitura do Distrito Federal empenhou-se no ambicioso projeto de criar uma universidade para nela formar os professores que deveriam atuar na rede escolar da cidade. De outra parte, ao assumir o cargo de Ministro da Educação e Saúde no governo provisório de Vargas (1930-1934), Francisco Campos se posiciona a respeito da prioridade conferida aos cursos secundário e superior, voltados especificamente para a formação de quadros destinados ao novo governo e especialmente destinados aos jovens de segmentos sociais mais favorecidos. Em relação ao curso superior, aprovou o Estatuto das Universidades Brasileiras,2 que determinava a composição da estrutura universitária com um mínimo de três dos seguintes cursos: Medicina, Direito, Engenharia e Educação, Ciências e Letras, observando a obrigatoriedade da inclusão deste último. Entretanto, a ambicionada Faculdade de Educação, Ciências e Letras não chegou a ser por ele organizada e a formação profissional de professores secundários permaneceu sem ter nenhuma instituição específica habilitada e fazê-la (Fávero, 2000; Vicenzi, 1986). Como a Universidade do Brasil, modelo que deveria ser seguido em todo território nacional, só se efetivou por meio da Lei nº. 452 de 5 de julho de 1937, duas experiências se anteciparam à política de educação superior engendrada pelo governo federal: a Universidade de São Paulo (USP), criada em 1934 e a Universidade do Distrito Federal (UDF), em 1935. Apesar da existência de uma base comum entre a USP e a UDF, ambas constituídas como expressões do ideário contido no Manifesto dos Pioneiros e voltadas tanto para a pesquisa científica como para a formação de professores, a UDF, por incorporar a concepção educacional de Anísio Teixeira, demonstrava maior preocupação com o preparo do magistério, enquanto a USP resultava de um projeto articulado aos interesses da oligarquia 2 Decreto nº. 19.851 de 11 de abril de 1931. 3 paulista, menos afeita à formação profissional e mais voltada para a pesquisa desinteressada (Mendonça, 2002). Compunha-se a UDF das seguintes unidades: a) Escola de Educação; b) Escola de Ciências; c) Escola de Economia e Direito; d) Escola de Filosofia e Letras; e) Instituto de Artes; f) Instituições complementares para experimentação pedagógica, prática de ensino, pesquisa e difusão cultural.3 Idealizada como centro de documentação e pesquisa dos problemas nacionais, a Escola de Economia e Direito tinha por objetivo estudar a organização econômica, política e social do país. Apesar da previsão de implantação de diversos cursos - formação de bacharéis em ciências sociais e jurídicas, administração, diplomacia, economia e finanças – esta Escola dedicou-se, fundamentalmente, à formação de professores secundários de Geografia, História, Sociologia e Ciências Sociais. Os currículos e programas de ensino ali elaborados evidenciam a preocupação com a construção da identidade nacional, bem como com a renovação dos quadros político-administrativos que se daria pela ampliação de oferta da escola secundária, com demanda social bastante expressiva na época. Para atender aos objetivos a que se propunha, a Escola de Economia e Direito constituía-se de cinco seções de estudos: I) Ciências Econômicas; II) Ciências Sociais; III) Ciências Geográficas e Históricas; IV) Ciências Jurídicas; V) Ciências Políticas e da Administração.4 Embora História e Geografia pertencessem à mesma seção – Ciências Geográficas e Históricas - os dois cursos foram inicialmente desenvolvidos de forma independente, ao contrário do que se processou nas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e, mais tarde, na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, onde a Geografia estava acoplada à História, formando um só curso. Localizada na Rua do Catete, nº. 147, onde funcionava pela manhã a escola secundária Rodrigues Alves, as aulas da Escola de Economia e Direito começavam às 15 horas, prosseguindo por vezes até as 20 horas com algumas matérias ou cursos oferecidos em outras localidades, como o de Antropologia, no Museu Nacional; o de Geografia no Colégio 3 Conforme artigo 3º do decreto de criação da Universidade do Distrito Federal: Decreto Municipal nº.5.513, de 4 de abril de 1935. Esta organização se manteve até a reorganização da Universidade pelo Decreto Municipal nº. 6.215, de 21 de maio de 1938, que modifica, inclusive, a denominação das Escolas. A Escola de Economia e Direito, por exemplo, passa a chamar-se Faculdade de Política e Economia. Arquivo UDF. Série: Atos Administrativos. PROEDES/FE/UFRJ. 4 Consoante o artigo 30 das Instruções nº.1, de 12 de junho de 1935. Boletim da Universidade do Distrito Federal, 1935. Arquivo UDF. Série: Cursos (programas). PROEDES/FE/UFRJ. 4 Pedro II e o de Integração Profissional, no Instituto de Educação - sede da Escola de Educação. Para a inscrição no curso regular do magistério secundário de História era exigida a conclusão do curso secundário fundamental5, documento de identidade comprovando a idade mínima de 16 e máxima de 35 anos, atestado de idoneidade moral, taxa no valor de 20$000 (vinte mil réis), além de exames vestibulares de Português e Literatura, Geografia, História da Civilização, Inglês ou Francês.6 Porém, seriam dispensados dos exames os candidatos que apresentassem certificados de aprovação nas disciplinas correspondentes cursadas em escolas superiores, oficiais ou equiparadas, ou que tivessem prestado exame dessas disciplinas para o ingresso nessas escolas. 7 Dos cursos oferecidos pela unidade, o de História foi o que obteve maior procura contando com um total de 23 alunos matriculados. Além dos alunos regulares que se sujeitavam, no ato da matrícula, à organização e à seriação dos cursos para os quais tinham prestado vestibular, havia também a possibilidade de inscrição de alunos avulsos que, embora satisfazendo as condições exigidas para a matrícula, preferiam cursar disciplinas isoladas e escolhidas livremente (até quatro por ano), sujeitando-se ao regime didático, exceto quanto à seriação e de alunos livres que se inscreviam apenas para assistir as aulas teóricas sem quaisquer direitos e/ou obrigações. A inscrição como aluno livre, em cadeiras isoladas, independia do concurso de habilitação e só era admitida em cursos onde houvesse vaga. O projeto original: compromisso com a formação profissional A formação dos professores secundários de História compreendia cursos de conteúdo, fundamentos e integração profissional.8 Enquanto o primeiro reunia matérias específicas a cujo ensino se destinava o professor, o segundo oferecia matérias de cultura geral indispensáveis ao exercício do magistério da disciplina escolhida. Por último, o curso de integração profissional abarcava os estudos de educação propriamente ditos. 5 De acordo com a reforma do ensino do Ministro Francisco Campos que organizou o ensino secundário (Decreto nº. 19.890, de 18de abril de 1931), este nível de ensino subdividia-se em dois ciclos: ciclo fundamental, de 5 anos e ciclo complementar, com 2 anos de duração. 6 Artigo 35 das Instruções nº.1, de 12 de junho de 1935. Centro de Memória Institucional do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (CEMI/ISERJ). Pasta Legislação. 7 Artigo 36 das mesmas Instruções. 8 Conforme publicação da Escola de Economia e Direito sobre a organização dos cursos, programas e informações para admissão (Universidade do Distrito Federal, s.d.). 5 A primeira proposta nesse sentido foi elaborada antes mesmo da inauguração dos cursos, que ocorreu apenas em julho de 1935. Organizada na perspectiva de abarcar os três anos de estudos, esta matriz curricular vigorou apenas no ano letivo de 1935 que se iniciou tardiamente. Curso de Formação de Professores de História / Escola de Economia e Direito da UDF / 1935 Curso de Conteúdo História da Antiguidade História da Idade Média e Moderna História da Idade Contemporânea História das Civilizações na América História da Civilização no Brasil Organização de Programas e Material Didático de História Inquéritos e pesquisas Curso de Fundamentos Inglês ou Alemão (facultativo para alunos com domínio do idioma) Antropologia Geografia Humana Desenho Biologia Educacional Sociologia Educacional Curso de Integração profissional Introdução ao Ensino Filosofia da Educação Psicologia do Adolescente Medidas Educacionais Organização e Programas do Ensino Secundário Filosofia das Ciências Prática de Ensino Carga horária semanal 1º ano 4h 6h 2º ano 3º ano 2h 3h 3h 2h 2h 2h 3h 2h 2h 2h 19h 3h 2h 2h (1º período) 2h (2º período) 17h 2h (1º per.) 2h (2º per.) 2h (1º per.) 2h (2º per.) 2h 1h 6h 17h Fonte: Instruções nº 3, de 22 de junho de 1935 (Universidade do Distrito Federal, 1935b). Um primeiro olhar sobre esse currículo nos leva a perceber a inclusão, no curso de conteúdo, de matérias voltadas para o preparo do material didático e organização dos programas da disciplina a ser lecionada. De forma análoga, no segundo ano do curso de fundamentos, além das disciplinas de cultura geral destinadas ao aperfeiçoamento dos candidatos ao magistério, observam-se também componentes curriculares da área educacional, como os estudos de Biologia Educacional e Sociologia Educacional. Finalmente, reservava-se ao terceiro ano a maioria das disciplinas pedagógicas, cabendo ao curso de conteúdo uma carga horária mais 6 reduzida, com destaque para um componente curricular que ensejava a formação do pesquisador: Inquéritos e Pesquisas. O modelo formativo expresso por este primeiro plano de estudos revela a influência da concepção de Anísio Teixeira para um curso de formação do magistério. Trata-se de um modelo integrado de formação docente (Lopes, 2008) no qual se destaca não apenas um ensaio de articular ensino e pesquisa, mas também a tentativa de integrar as disciplinas específicas com as pedagógicas, conferindo aos cursos uma dimensão mais profissional, característica, aliás, que se transformou em um dos princípios norteadores da UDF. A concepção desta Universidade para Anísio era a de um centro que não deveria se limitar a transmitir um saber pronto e acabado, mas produzir um saber atualizado em função das atividades de pesquisa. Em sua opinião, a formação dos professores deveria se fundamentar em uma sólida base científica que não se restringia à preparação didático-metodológica. O segredo dessa formação residia na ligação mais íntima entre as matérias de conteúdo e aquelas que, efetivamente, dessem ao professor subsídios para que desenvolvesse a complexa “arte de ensinar” (Teixeira, 1957). Por isso, a formação pedagógica deveria permear todo o curso, ao invés de sobrepor-se à formação cultural. Dessa maneira, podemos entender sua preocupação em incluir, já no segundo ano do curso de conteúdo e fundamentos, disciplinas pertinentes ao campo pedagógico, embora a carga horária mais expressiva dessas disciplinas – tanto práticas quanto teóricas - apareça no último ano de estudos. Na visão de Anísio, a solução para o problema do ensino secundário exigia uma nova concepção acerca da formação de seus professores, cujo aperfeiçoamento profissional devia incorporar uma compreensão mais exata da função e lugar dos programas escolares, uma reorganização dos livros e material didático e um novo espírito educativo e não só instrutivo. Assim, ele percebia o conflito entre o que chamou de preparação acadêmica e preparação profissional, argumentando que a primeira visava dar ao estudante o preparo da matéria que vai ensinar por meio de um estudo aprofundado do ponto de vista dos especialistas enquanto a segunda buscava habilitá-lo diretamente para o magistério. E acrescentava: Há quem proponha proceder a essa dupla formação, destacadamente, separando o conhecimento especializado das matérias a ensinar dos conhecimentos técnicos de educação e metodologia, na expectativa de que o futuro professor saberá fundir as duas coisas, trazendo para o ensino da matéria os princípios aprendidos nos cursos teóricos de educação. (Teixeira, 1997, p. 114) 7 Apesar de reconhecer que este era o modelo comumente adotado nas universidades europeias, sobretudo as francesas, Anísio apostou em outro projeto, no qual o estudo da matéria e o estudo da teoria da educação e dos métodos deveriam ser perfeitamente integrados, numa perspectiva de articular, o mais intimamente possível, as disciplinas de conteúdo com as pedagógicas, pois “o dualismo da preparação acadêmica e da preparação profissional só pode trazer confusão e ineficiência” (idem, p. 115). Portanto, a escolha feita por Anísio privilegiou a formação do professor secundário em detrimento da formação do especialista; este, mais voltado para investigações e pesquisas que fizessem avançar o campo específico ao qual se dedicou, o outro mais identificado com as questões do ensino, o que não excluía as atividades de pesquisa, embora estas assumissem uma perspectiva mais aplicada. Essa concepção sobre a formação docente certamente foi influenciada pela maior aproximação do educador com o pensamento de Dewey e Kilpatrick, bem como pela experiência peculiar dos Teachers Colleges norte-americanos, por ele incorporada. Por último, vale registrar neste plano a presença das disciplinas Geografia Humana e Antropologia compondo, juntamente com Desenho o bloco de fundamentos relativo ao primeiro ano de estudos, cada uma com duas horas-aula semanais, além da oferta de Inglês ou Alemão para estudantes que demonstrassem dificuldades no domínio da bibliografia, composta quase totalmente por livros estrangeiros. A crise na UDF e as primeiras mudanças no projeto original Em janeiro de 1936, o ex-Ministro da Educação Francisco Campos passa a ocupar o cargo de Secretário de Educação do Distrito Federal no lugar de Anísio Teixeira que pedira demissão no mês anterior. A reitoria da UDF também ficara vaga uma vez que Afrânio Peixoto, em solidariedade ao amigo, deixara o cargo. Após quatro meses de efetivo funcionamento, o projeto universitário que ambicionava coroar o programa educacional imaginado para a capital do país parecia estar seriamente comprometido. No início do ano letivo de 1936 a situação da UDF era, de fato, preocupante, devido ao baixo número de estudantes inscritos para seus cursos. Na Escola de Economia e Direito, por exemplo, a procura caíra consideravelmente, além de uma evasão considerável de alunos, possivelmente em função do momento político vivido pelo país e pela insegurança diante da instabilidade que ameaçava o projeto. 8 A jovem Universidade enfrentava sua primeira grande crise. Após a gestão interina de Francisco Campos e Miguel Ozório, a reitoria foi ocupada por Affonso Penna Junior (março de 1936 a setembro de 1937). Lourenço Filho, entretanto, continuava à frente do Instituto de Educação, sede da Escola de Educação da UDF e, por meio de correspondência endereçada ao novo Reitor, manifesta sua opinião acerca dos cursos de formação de professores secundários, discordando inteiramente das normas baixadas por Anísio Teixeira, na época de sua organização. [...] As Instruções 1 e 2 , baixadas pelo Sr. reitor interino, em data de 22 de junho de 1935, relativas aos cursos de preparação de professores secundários, não tiveram qualquer colaboração deste Instituto, direta ou indireta. [...] A maneira de encarar o problema da organização desses cursos sempre foi, de nossa parte, diversa daquela consagrada nas Instruções acima referidas, razão pela qual aguardávamos a instalação de um Conselho Universitário, a fim de debater nele o assunto, e propor viessem os Estatutos Universitários a modificar a orientação adotada. [...] Não nos parece que a posição mesma dos cursos de formação do professorado secundário, no atual plano de estudos da Universidade, obedeça aos princípios da boa técnica. Pelo menos, não há exemplo de semelhante organização em nenhuma universidade do mundo. E, persistir nessa prática, será reduzir a universidade a uma Escola Normal Superior ou a um “Teachers College”, das organizações universitárias americanas. [...] uma universidade tem objetivos mais amplos e mais complexos, caracterizando-se, sobretudo, pela organização de vários núcleos de estudo, no mais alto nível de pesquisa, investigação e ensino. (Lourenço Filho, 1936, grifos do autor) No entender de Lourenço, os estudos dos professores secundários deveriam ser integralizados em três anos através de dois cursos autônomos. O primeiro corresponderia em cada uma das Escolas da UDF aos estudos especializados, com a duração mínima de dois anos, findo os quais os estudantes obtinham a licença cultural. O segundo, de preparação técnicopedagógica, com duração de um ano, seria realizado na Escola de Educação, concedendo a licença magistral aos futuros professores. Lourenço Filho criticava também a estrutura do curso de integração profissional, à medida que percebia um excesso de matérias pedagógicas, tornando-se impraticável seu aprofundamento. Sugeria, então, a substituição de tais matérias por um “paciente ensaio de prática de ensino e fundamentos da metodologia da especialidade” (idem). A seu ver, a redução das matérias pedagógicas evitaria um conhecimento pulverizado e artificial, ao mesmo tempo em que a prática e a metodologia específica de cada curso ficariam mais apuradas. O argumento do Diretor do Instituto foi corroborado pela mensagem enviada à Câmara Municipal pelo Prefeito do Distrito Federal, Cônego Olympio de Melo. O texto, publicado nos 9 Arquivos do Instituto de Educação (1936), faz referências à UDF observando que a Escola de Educação, sediada no Instituto, seria responsável pela expedição da licença magistral aos candidatos ao magistério que tivessem obtido a licença cultural nas outras escolas da Universidade. Um novo modelo de formação docente começava a ser desenhado afastando-se da proposta inicial, tal como fora imaginada pelo idealizador da UDF. Em meio à crise deflagrada pela saída de Anísio Teixeira da administração municipal, chegam ao Brasil para o início do ano letivo de 1936 os professores franceses que Afrânio Peixoto contratara para lecionar na UDF.9 A atuação desses docentes, especialmente na área da História e da Geografia, tornou-se conhecida devido a trabalhos já publicados sobre o tema (Ferreira, 1999; Machado, 2002). Especificamente no campo da História, Eugène Albertini e Henri Hauser ofereceram importantes contribuições para a reestruturação dos cursos, sendo responsáveis por algumas mudanças na proposta original. As análises elaboradas pelo professor Eugène Albertini (s.d.a), do Collège de France, a respeito do plano de estudos existente, sugeriram o desdobramento de História Antiga em dois cursos: um com ênfase no Oriente e Grécia e outro sobre a Civilização Romana, ambos com duração de três horas semanais, ampliando assim a carga horária da disciplina. Responsável por História Romana introduziu no programa abordagens que tendiam a privilegiar questões socioeconômicas e elementos da vida cotidiana da população, em detrimento de uma história factual e eminentemente política que se limitava às fontes oficiais. Essa orientação, segundo ele, devia-se ao desenvolvimento das ciências auxiliares da História, tais como a Epigrafia, Arqueologia e Numismática que possibilitavam a análise de um repertório mais diversificado de fontes documentais. Em sua compreensão, as atividades que envolviam a pesquisa histórica exigiam raciocínio, desenvolvimento do senso crítico e gosto pela precisão (Albertini, s.d.b). Henri Hauser, membro do Institut de France e professor da Sorbonne, participou do grupo fundador dos Annales, tendo como companheiros Marc Bloch e Lucien Fèbvre. Professor especialista em História Econômica da Idade Moderna introduziu a disciplina no curso de História da UDF, cujo programa contemplava as transformações econômicas da sociedade europeia desde o Renascimento até a Revolução Francesa. Além das aulas teóricas, propunha exercícios práticos tais como leitura e crítica de textos, investigações nos arquivos 9 Para compor o corpo docente da UDF Afrânio Peixoto, primeiro Reitor da UDF, segue para a Europa a fim de contratar professores para algumas áreas nas quais não havia no Brasil profissionais considerados competentes. De acordo com o trabalho de Marieta Ferreira (1999) havia interesse das autoridades francesas em atender a essas solicitações para garantir sua influência no processo de estruturação das universidades brasileiras. 10 sobre a história econômica do Brasil, apresentação oral e escrita dos trabalhos produzidos pelos alunos. Sem dúvida, as contribuições trazidas por esses professores alargaram a concepção de história que se tinha até então. Familiarizados com as ideias inovadoras do movimento dos Annales, que procurou renovar radicalmente o discurso histórico, Albertini e Hauser, por meio de suas aulas, possibilitaram a aproximação dos jovens estudantes brasileiros com as mais modernas tendências historiográficas da época. Vale lembrar que a revista Annales d’Histoire Économique et Sociale fora criada recentemente (janeiro de 1929) e que Henri Hauser nela se destacava como o principal colaborador para questões relativas ao período moderno (século XVI ao XVIII). A produção da revista definiu-se em direção contrária aos discursos e análises políticas, propondo o alargamento do campo da História e orientando o interesse dos historiadores para outros horizontes: a natureza, a paisagem, a população e a demografia, as trocas, os costumes. Em consequência dessas novas abordagens ampliam-se as fontes e métodos do historiador, os quais passam a incluir a Estatística, a Demografia, a Linguística, a Psicologia, a Numismática e a Arqueologia. Portanto, ao alimentar-se de conceitos, métodos e hipóteses importados de outras ciências sociais, a Écolle des Annales rompe com a história tradicional e realiza uma verdadeira revolução historiográfica (Dosse, 1992). As sugestões de Hauser para o curso de História Moderna confirmavam as prescrições de Albertini para História Antiga e indicavam uma ampliação de carga horária para as disciplinas de conteúdo, em detrimento de certas matérias do programa que não seriam “diretamente essenciais à formação do professor de História”. Em sua opinião, a formação pedagógica deveria ocorrer apenas no último ano (Hauser, s.d.). Nessa perspectiva, a opinião dos professores franceses parecia estar em sintonia com as ideias dos novos gestores da universidade: um curso de conteúdo mais alargado e uma formação pedagógica feita a posteriori, menos preocupada em articular-se à formação cultural. De acordo com as novas Instruções baixadas pelo reitor Affonso Penna Junior. em agosto de 1936, o curso de História da UDF seria estruturado para os dois primeiros anos do seguinte modo: Curso de Formação de Professores de História / Escola de Economia e Direito da UDF / 1936 Curso de Conteúdo História Antiga (Oriente e Grécia) 1º ano 2º ano 2h 11 História da Civilização Romana História da Idade Média História Moderna e Econômica História da Idade Contemporânea História da Civilização na América História da Civilização no Brasil Curso de Fundamentos Inglês/Alemão Antropologia Geografia Humana Desenho Carga horária semanal 2h 3h 3h 3h 3h 2h 1h 19h 3h 3h 3h 3h 2h 2h 17h Fonte: Instruções nº 14, de 18 de agosto de 1936 (Universidade do Distrito Federal, 1936a) Pela mesma resolução ficavam transferidas para o curso de integração profissional, oferecido no terceiro ano de estudos, as seguintes disciplinas: Biologia Educacional, Sociologia Educacional e Organização de Programas e Material Didático de História. (artigo 2º das Instruções nº. 14). As duas disciplinas teóricas que compunham o elenco das ciências da educação, antes oferecidas no 2º ano do curso de fundamentos, bem como a terceira que, apesar do teor pedagógico, compunha o curso de conteúdo do 2º ano, ficariam definitivamente apartadas do rol dos conhecimentos específicos. A intenção em legitimar a nova vocação do curso de História aparece no texto curricular e se justifica a partir do discurso autorizado dos professores franceses, especialmente contratados para conferir alto nível de excelência ao curso. De outra parte, as prescrições abalizadas de um especialista em educação, como era o caso do professor Lourenço Filho, que acumulava as funções de Diretor da Escola de Educação com a ViceReitoria, parecem apontar para uma nova orientação que acabaria por se tornar hegemônica nos cursos que se dedicaram à formação dos professores para a escola secundária. A opção em formar especialistas Aparentemente recuperada da crise, a UDF parecia entrar numa fase mais promissora no ano letivo de 1937. Esta, ao menos, é a impressão que se depreende da leitura do relatório elaborado pelo Diretor da Escola de Economia e Direito, Edmundo da Luz Pinto (1937) e da 12 carta escrita pela Secretária da Escola, Odette Toledo (1937), dirigida ao educador Anísio Teixeira.10 Em ambos os documentos há referências aos “notáveis cursos dos professores franceses”, especialmente os de Pierre Deffontaines e Eugène Albertini e os bons resultados conseguidos pelos alunos. De maneira semelhante, o curso e as conferências pronunciadas pelo professor Henri Hauser em vários estados tiveram grande repercussão, levando o Reitor a negociar com o representante do governo francês, George Dumas, a contratação de uma nova equipe de cinco professores para a Universidade. A carta da Secretária chama a atenção para o “considerável aumento do corpo discente” com a integração de 235 novos alunos aos mais de 200 já existentes e para os novos recursos incorporados ao orçamento da Universidade que foram destinados ao pagamento de professores, laboratórios e biblioteca. Mencionava ainda o projeto de instalar a instituição num prédio em construção na Avenida Venezuela, fato que acabou não acontecendo. É nítido o entusiasmo de D. Odette em relação ao “êxito da obra” iniciada por Anísio e na qual ela assumia o papel de guardiã. Ao final do documento, no entanto, percebe-se que o otimismo inicial cede lugar a uma preocupação com a instabilidade política vivida pelo país e que se refletia na esfera educacional: “E apesar de tudo, continuamos a pensar que estudar e trabalhar ainda é o melhor que se pode fazer nesta crise da educação, que seria desoladora se não fosse transitória” (Toledo, 1937, p.2). Por fim, com nítida intenção de animar o amigo ausente, a Secretária comunica que a reintegração do professor Anísio Teixeira à Escola de Educação acabara de ser solicitada por meio de um abaixo- assinado onde constava o nome de todos os professores. O relatório feito pelo diretor Edmundo da Luz Pinto ao Reitor contém informações mais detalhadas sobre os cursos da Escola de Economia e Direito, enfatizando a contribuição dos professores franceses, as reuniões sistemáticas com o corpo docente, os debates e sugestões que tiveram como propósito melhorar os resultados do trabalho acadêmico. 11 10 A carta de Odette Toledo fornece informações sobre os novos professores, os alunos e o andamento dos cursos da UDF. 11 Consta também deste relatório o balanço feito pelo Diretor da Escola de Economia e Direito no final de 1937 em relação ao número de alunos matriculados nos cursos oferecidos pela Escola que indica um quantitativo de 32 alunos efetivamente matriculados no curso de História, assim distribuídos pelos três anos letivos: 13 no primeiro ano, cinco no segundo e catorze no terceiro. Levando-se em conta os dados de 1935, que contabilizavam o ingresso de 23 alunos nesse curso, pode-se apontar uma evasão de quase 40% do corpo discente. 13 Pudemos, em fins de 1936, proceder a uma reorganização da seriação existente, atendendo a melhor distribuição das disciplinas no currículo a fim de favorecer os objetivos de especialização em cada seção. [...] Na seção de História tiveram êxito as modificações introduzidas. A história da civilização romana teve a direção brilhante do professor Eugène Albertini assistido pelo competente e dedicado professor Roberto Accioli. [...] O professor Jayme Coelho continuou o curso de História Antiga na parte do Oriente e Grécia, o que permitiu maior desenvolvimento do programa. Em História Moderna, os alunos que no ano passado haviam recebido as notáveis lições do professor Henri Hauser prosseguiram seus estudos com os professores Delgado de Carvalho e Isnard Barreto que, sem prejuízo de funções, lecionaram as cadeiras de História Contemporânea e História Medieval, respectivamente, por medida de economia. Prosseguiu, nos moldes novos em que foi instituído, o curso do professor Affonso Arinos sobre História da Civilização Brasileira e o professor J.B. de Melo e Souza alcançou, igualmente, resultados compensadores na disciplina História da Civilização da América. (Pinto, 1937) O currículo do curso de História foi alterado em função das Instruções nº. 16, expedidas pelo Reitor em abril de 1937 (Universidade do Distrito Federal, 1937). O bloco de conteúdo seria ainda mais valorizado com a introdução da disciplina Pesquisas Históricas e Bibliografia no terceiro ano sob a responsabilidade do professor Luiz Camillo de Oliveira Netto que, em viagem à Europa, empreendeu o trabalho de coligir nos arquivos de Lisboa e do Porto várias cópias fotográficas de documentos raros, enviando esse material para os alunos se dedicarem à pesquisa das fontes históricas. As matérias pedagógicas só eram oferecidas ao final, no 3º ano, com carga horária reduzida. Como o ano letivo da Escola de Educação se organizava trimestralmente, cursava-se por um trimestre apenas cada um dos componentes do bloco de integração profissional, destacando-se nesses estudos a disciplina Organização e Prática do Ensino Secundário que se desenvolvia em seis horas semanais, num exemplo claro de valorização da prática e das técnicas sobre o aparato teórico. Quadro 3: Curso de Formação de Professores de História – UDF (1937) Curso de Conteúdo História Antiga -Oriente e Grécia História Antiga -Roma História Medieval História Moderna História da Civilização na América História da Civilização no Brasil História Contemporânea 1º ano 3h 2º ano 3º ano 2h 3h 3h 3h 3h 3h 1h 3h 14 Pesquisas Históricas e Bibliografia Curso de Fundamentos Francês ou Inglês (facultativo para alunos com domínio do idioma) Inglês ou Alemão (idem) Geografia Humana Curso de Integração profissional Biologia Educacional Psicologia Educacional Sociologia Educacional Educação Comparada Organização e Prática do Ensino Secundário 1h 2h 2h 2h 2h 2h 2h(1trimestre) 2h(1trimestre) 2h(1trimestre) 2h(1trimestre) 6h Fonte: Instruções nº 16, de 24 de abril de 1937 (Universidade do Distrito Federal, 1937). Por outro lado, a valorização da pesquisa desinteressada e dos estudos monográficos tornou-se a marca distintiva do curso. Vale realçar, neste sentido, as iniciativas dos estudantes encampadas pelo Diretório Acadêmico, visando promover uma série de conferências, das quais participam os alunos Guy de Holanda com a comunicação “O atual conceito de Idade Média”, Eremildo Vianna com o “Conceito de História” e Marina Vasconcelos a respeito da “Situação da mulher na Idade Média” (Universidade do Distrito Federal, 1936b). Questões conceituais, metodológicas e abordagens inovadoras da pesquisa histórica foram debatidas nessas conferências motivando os alunos a criar um centro de estudos para investigação da história romana – o Centro Eugène Albertini. Como se pode depreender pelo nome do patrono, havia grande interesse dos estudantes em prosseguir e aprofundar os estudos iniciados com o professor do Collége de France que acabou sendo condecorado com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul pelo governo brasileiro. Considerações finais Em janeiro de 1938, a UDF formou a primeira turma do curso de História e, dos vinte e três alunos matriculados em 1935, apenas catorze foram diplomados.12 Em maio do mesmo ano, a Universidade foi reorganizada pelo Decreto Municipal nº. 6.215, quando a Escola de Economia e Direito passou a se denominar Faculdade de Política e Economia com o 12 Constam da relação dos formandos na primeira turma do curso de História da UDF os seguintes alunos: Antonia Paca Lima Jobim, André Petrarca de Mesquita, Carlos Otávio Flexa Ribeiro, Ciro Augusto Pinto, José Francisco Carvalhal, José Vieira Filho, Lucy Paula Ramos, Maria do Carmo Clarck do Amaral, Maria da Glória Maia e Almeida, Maria Nazareth Clarck do Amaral, Marta Leite de Rezende, Vicente Costa Tapajós, Guy José Paulo de Holanda, Meryam Benjamin de Viveiros. Arquivo UDF. Série Corpo Discente (diplomados). PROEDES/FE/UFRJ. 15 oferecimento dos seguintes cursos: Ciências Sociais, Administração Superior, Economia e Finanças e Jornalismo. Os candidatos ao magistério secundário de História deveriam ingressar no curso de Ciências Sociais (menção História) onde estudariam por três anos os conteúdos específicos do campo disciplinar e, posteriormente, fariam mais um ano de integração profissional na Faculdade de Educação. A formação de professores, portanto, ampliava-se em um ano, pois não era permitida a concomitância das disciplinas pedagógicas com o terceiro ano do curso básico. Segundo as considerações do legislador, essa ampliação do curso traria vantagens, seja pelo maior desenvolvimento dos estudos científicos que deveriam ser ministrados especialmente aos candidatos que desejassem prolongar os estudos para o doutorado, seja pela necessidade de um estudo intenso das questões pedagógicas que, se feito em conjunto com as matérias do terceiro ano, acarretaria prejuízos para ambos os cursos. A meu ver, o que de fato transparece nessa mudança é a prioridade conferida à formação específica obtida no curso de conteúdo em prejuízo de uma formação mais voltada para o domínio dos saberes profissionais, conferindo à dimensão pedagógica um caráter meramente complementar. Pelo artigo 2º, inciso a, do novo decreto, o “desenvolvimento de uma cultura superior e desinteressada” passa a figurar entre as finalidades da UDF que se distancia, assim, de seus objetivos iniciais. O exame de ingresso de alunos no curso de Ciências Sociais, menção História, para o ano letivo de 1939, passará a exigir provas escritas e orais de Latim, Geografia, História e Sociologia,13 conferindo ao curso um perfil humanístico, característica que irá se refletir nos programas e currículos do curso secundário a partir daquele momento. Com a dissolução da UDF pelo Decreto-lei nº 1.063, de 20 de janeiro de 1939 e a transferência da maioria de seus cursos para a Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, o curso de História acaba por perder sua autonomia, sendo atrelado ao curso de Geografia.14 Após três anos de estudos, conferia-se ao egresso deste curso o título de bacharel em Geografia e História e, com mais um ano do curso de Didática, realizado na 13 Conforme Instruções nº. 22, de 15 de janeiro de 1939. Arquivo UDF. Série: Atos administrativos (Instruções). PROEDES/FE/UFRJ. 14 O Decreto-lei nº 1.190, de 4 de abril de 1939, que organiza a Faculdade Nacional de Filosofia, prevê para o curso de Geografia e História o seguinte currículo: 1º ano: Geografia Física, Geografia Humana, Antropologia, História da Antiguidade e Idade Média; 2º ano: Geografia Física, Geografia Humana, História Moderna, História do Brasil, Etnografia; 3º ano: Geografia do Brasil, História Contemporânea. História do Brasil, História da América e Etnografia do Brasil (Brasil, 1939b, artigo 14). 16 mesma Faculdade, obtinha-se o diploma de licenciado necessário ao exercício do magistério do curso secundário. Embora a realização de pesquisas constasse dos objetivos declarados desta Faculdade 15 não se constatou no currículo do novo curso de Geografia e História a presença de disciplinas que favorecessem ou estimulassem qualquer atividade investigativa. Ao que parece, a prática da pesquisa restringia-se ao bacharel que, após dois anos de estudos sob a orientação do professor catedrático da disciplina de seu interesse, fosse capaz de defender “tese original de notável valor.”16 Essa matriz, que se tornou hegemônica, atravessou décadas e de certa forma a tensão permanece ainda hoje nos cursos de formação docente. Ao examinar a breve trajetória da UDF, tendo como foco de análise o curso de formação do professor de História, foi possível verificar que o projeto original, mais comprometido com a profissionalização e com a formação orgânica do professor, na perspectiva de promover uma articulação estreita entre conteúdos específicos e pedagógicos, perdeu sua especificidade em razão de uma opção da Universidade pela formação de especialistas. Após a incorporação de seus cursos pela Universidade do Brasil essas características tornam-se ainda mais evidentes e, com apreciável margem de acerto, pode-se afirmar que até os dias atuais os cursos de formação docente são marcados pela clivagem existente entre os bacharelados, que ainda detêm algum prestígio, e as licenciaturas oferecidas pelas Faculdades de Educação, quase sempre desvalorizadas não apenas no espaço acadêmico, mas também entre os próprios alunos. Como se procurou demonstrar neste trabalho, a proposta inicial que serviu de modelo à universidade de professores ensejou ultrapassar essa dicotomia ao apostar na possibilidade de uma formação integrada, na qual os conteúdos pudessem ser pensados à luz do ensino e fertilizados pelas atividades de pesquisa. A meu ver, enquanto os cursos que formam especialistas não assumirem a responsabilidade de formar professores esse impasse permanecerá sem solução. Referências bibliográficas 15 . Artigo 1º do Decreto-lei nº 1.190/1939: a) preparar trabalhadores intelectuais para o exercício das altas atividades culturais de ordem desinteressada ou técnica; b) preparar candidatos ao magistério do ensino secundário e normal; c) realizar pesquisas nos vários domínios da cultura, que constituíam objeto de seu ensino. 16 Parágrafo único do artigo 48 do Decreto-lei nº. 1.190. 17 ALBERTINI, Eugène. Cours de Formation des Professeurs d’Histoire. 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