‘TAMBÉM PODEMOS TE DAR DINHEIRO PELO INCÔMODO’
O GLOBO
09/04/2006
A luta de um professor de futebol negro por justiça para o crime de racismo de que foi
vítima durante um jogo
— Pode falar, coronel.
— O que você acha de retirar a queixa? (...) Eu prometi ao Chiari que ia conversar com
você.
— O processo já está no Fórum, coronel.
— Nós estamos dispostos a te dar estabilidade aqui no clube. Pensa bem, Zé. Se você
continuar trabalhando bem, você não vai ficar desempregado por um bom tempo. Nós
podemos te garantir...
— Nós quem?
— Estou aqui com autorização do Chiari. Também estamos dispostos a pagar os honorários
dos teus advogados. Melhor fechar acordo, me faz esse favor.
— De coração, coronel, eu não quero retirar a queixa, não. Mas vou ouvir a opinião da
minha advogada.
— (...) Também podemos te dar um dinheiro pelo incômodo.
O diálogo acima é parte de uma conversa de quase meia hora ocorrida duas semanas atrás
na lanchonete da Associação dos Oficiais da PM de São Paulo. Ela não sai da cabeça de
José de Andrade Neto. É empregado do clube, onde trabalha há dois anos e meio como
professor de futebol. Em dezembro, durante um jogo do campeonato interno no qual atuava
como árbitro, foi vítima de humilhação racial pesada e pública por parte de um jo gador em
campo — o coronel da reserva Antonio Chiari. Após 45 dias de hesitação, o negro José
decidiu processar o coronel e o caso ganhou notoriedade. Seu desenrolar retrata uma gama
de aspectos da vida nacional — classe social e raça, cidadão e Estado, indivíduo e
instituições, Justiça civil e militar. O desenlace ainda é incerto. Mas o curso da vida dos
principais protagonistas parece definitivamente alterado.
Telefonema para deixar confuso
Quando recebeu telefonema de Zacarias Peixoto, seu interlocutor no diálogo acima, José de
Andrade ficou confuso. O coronel Zacarias é um dos sócios mais joviais do clube, participa
dos campeonatos de bola. Ele queria uma conversa informal, propôs apanhar José na casa
de barro em que mora. José preferiu marcar no clube, à vista de quem ali estivesse.
Acabaram numa lanchonete. Primeiro passaram em revista a instabilidade de sua situação e
emprego — ele bate cartão e recebe salário, mas está afastado das funções de professor de
futebol até regularizar os documentos profissionais. Foi quando Zacarias fez menção a
“algum dinheiro, pelo incômodo” que José de Andrade se agitou. Nestes tempos de CPI e
arapongagem nacional, chegou a imaginar que pudesse estar sendo gravado.
— Vou repetir bem alto que não quero dinheiro nenhum, nem do coronel Chiari nem de
ninguém. Nem quando meus advogados solicitaram uma procuração por danos morais, eu
topei assinar — respondeu José.
O coronel Zacarias, ouvido por telefone pelo GLOBO na tarde de sexta- feira, tem
lembrança diversa do encontro. No tom, no conteúdo e no propósito. Acrescenta que
ofereceu garantia de emprego ao funcionário com o aval do presidente do clube. Mas
concorda que José se mostra “irredutível” quando se aventa uma compensação financeira.
Posição de difícil compreensão até mesmo para seus advogados.
— É uma proposta boa, Zé. Ela vai pagar nossos honorários (R$3 mil) e se te garantir
emprego e for registrada em contrato, assina, retira a queixa e morre o assunto. Ele (Chiari)
vai viver mais tranqüilo e você vai tocar sua vida — advogou Margarete Evaristo Leite, um
dos três nomes que compõem a defesa.
Só se passarem por cima da indignação surda de dona Ana, sua mãe.
— Estão esfregando dinheiro no nariz do meu filho porque sabem que ele precisa. Não é
por aí. Eles não sabem como a gente se sente. Uma ofensa dessas, tão mais profunda, e ser
tratado como mercadoria... — lamenta baixinho a matriarca dos Andrade.
Telma Villas-Boas, admiradora de longa data da família e advogada titular de José, seguiu
estratégia mais dura:
— O senhor peça ao coronel Chiari que venha ao meu escritório acompanhado de
advogado, caso queira fazer algum tipo de proposta a meu cliente — determinou dias atrás,
ao ser contatada pelo emissário de Zacarias.
— Estou inseguro, não sei quem devo ouvir. Tenho três advogados e parece que não tenho
nenhum — diz José, cuja vida extrajudicial já é uma fervura.
Ele é pai de oito filhos, com pensão alimentar a dividir entre três ex- mulheres. Faz bico
apitando jogos nos fins-de-semana e dá aulas de futebol à noite. Mas as contas nunca
fecham. Esta semana conseguiu juntar os R$295 que lhe faltavam para correr atrás do
certificado de Educação Física. Sem isso, o clube não o reintegra ao cargo que sempre
ocupou: professor de futebol. O empregador para quem trabalhara antes (13 anos sem
carteira assinada) só aceitou emitir uma declaração se José desembolsasse o valor do
registro do documento.
Filha sofre acidente
Antes que a semana terminasse, a filha Sâmara, de 5 anos, foi atropelada por uma bicicleta
e precisou de atendimento odontológico de urgência. E onde estava José? Do outro lado da
cidade, cuidando de uma ex-sogra doente e abandonada pelos filhos. Coube à irmã
Estefânia, que acabara de doar R$10 para ajudar uma creche de aidéticos do bairro, fazer a
romaria com a sobrinha. Coisas da rotina desse pedaço do Brasil.
Só que José teve cabeça para ir buscar seus direitos junto ao Estado brasileiro, ao ser
chamado de “pele cor de merda” e “macaco” por um coronel. Talvez nem acreditasse, mas
a sua denúncia andou. Do 20º distrito policial onde foi lavrado o boletim de ocorrência
inicial, o caso migrou à 4ª seccional. Ali recebeu do próprio delegado-geral a adição de um
segundo inquérito, por infração do Artigo 20 (“incitação ao público”), visto que a ofensa se
dera perante um público de quase 300 pessoas e poderia incentivar atos semelhantes. O
B.O. original citava o coronel Chiari apenas nos crimes de difamação e injúria. A queixa crime lavrada no Fórum da Barra Funda aguarda o parecer do juiz.
A resposta mais ágil, até agora, foi dada pela própria corporação do acusado.
— Nosso regulamento disciplinar prevê punições tanto para oficiais da ativa quanto
inativos — explica o corregedor da PM, coronel Clovis Santinori.
Pelo rito da apuração preliminar, foram ouvidas a vítima e suas testemunhas. Como havia
indícios de transgressão, passou-se rapidamente à etapa seguinte, com a abertura de
procedimento disciplinar.
— Por se tratar de um coronel inativo, o processo só pode ser encaminhado por um coronel
da ativa. No caso do coronel Chiari, o termo acusatório veio assinado pelo comandantegeral — esclarece o corregedor.
Faltas graves podem receber dois tipos de punição: a permanência disciplinar, que obriga a
pessoa a ir até o quartel para cumprir a pena, ou a detenção. Neste caso, além da
permanência no quartel, a pessoa perde os vencimentos correspondentes ao número de dias
da punição.
— Estamos apurando este caso como uma falta grave, pelo conjunto de circunstâncias.
Naturalmente o coronel terá amplo direito e espaço para se defender —- conclui Clovis
Santinori.
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