PARTE II
A DIALÉTICA DA NATUREZA
“Para a dialética, não há nada de
definitivo, de absoluto, de sagrado...”.
Engels (LF)
50
A REFLEXÃO DIALÉTICA
A vida é uma flutuação da matéria,
no interior dessa flutuação, você tem
outras flutuações.
Ilya Prigogine
Para Engels (1976)120, “muito antes de saber o que era dialética, o homem já pensava
dialeticamente, da mesma forma que antes da existência da palavra escrita, ele já falava”.
Portanto, G.W. Hegel (1770-1831), nada mais fez que formular ou sistematizar nitidamente
pela primeira vez o entendimento da dialética, que adquire sua forma plena através das obras
de Karl Marx e Friedrich Engels.
Hegel121 parte do princípio de que o desenvolvimento histórico é o desenvolvimento do
pensamento, o desenvolvimento da ideia absoluta, e não uma coleção de fatos casuais. Ao
indicar o caminho para a busca de solução para o desenvolvimento em curso, não deixou de
considerar o conceito metafísico de espírito absoluto. Sua tese principal dessa lógica era o
princípio dialético que estabelece que “toda premissa verdadeira tem como correspondente
sua não menos verdadeira, a negação (...) A natureza é assim também, alienação do conceito
ou da razão, no sentido em que nela o conceito está como simples essência, e a razão como
simples entendimento; quer dizer, sob a forma de negação de si. A natureza é, por essa
negatividade dialética, o processo da contradição de si. Contradição essa que não pode ser
resolvida na natureza como natureza, já que o próprio da natureza é ser essa contradição; só
pode ser resolvido na negação da natureza”]122.Hegel, embora entenda a natureza como
processo contraditório, coloca a ideia do conceito como espírito, numa perspectiva idealista.
A maioria dos princípios da dialética foi apresentada por Hegel, se constituindo em uma
série de regras metodológicas: o tratamento do todo como unidade dos contrários; a relação
mútua dos elementos de um mesmo todo e de diferentes todos; a aceitação das contradições
internas de um todo como fonte do movimento autodinâmico; a consideração do movimento e
o desenvolvimento como processo não contínuo, nas quais as mudanças quantitativas
produzem novas qualidades (Topolski, 1973)123.
120
Engels, Friedrich. Anti-Düring, p. 121.
Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio: 1830. I A Ciência da
Lógica. S. Paulo: Loyola, 1995.
122
B. Bourgeois. Apresentação na edição francesa da obra de G.W.F. Hegel, Enciclopédia das Ciências
Filosóficas. I-A Ciência da Lógica, reproduzida sob a forma de apêndice na edição brasileira, p. 421-422.
123
Topolski, Jerzy. Metodologia de la História. Madrid: Cátedra, 1985, 519 p.
121
51
Como se mencionou anteriormente foram Marx e Engels que transformaram a dialética
idealista de Hegel em dialética materialista. Para Hegel, o universo é a ideia materializada, e,
antes do universo existe primeiramente o espírito, subordinando assim a dialética ao
idealismo. “Deste modo a própria dialética dos conceitos se converteu simplesmente no
reflexo consciente do movimento dialético do mundo real, e assim a dialética de Hegel se
situou em sua cabeça; ou melhor, desviou da cabeça sobre a qual se apoiava e se colocou
sobre seus pés” (Engels, 1949)124.
Ao propor uma concepção materialista à dialética idealista hegeliana, Marx e Engels
necessitaram também rever o ponto de vista epistemológico do materialismo mecanicista, que
na realidade era mais primitivo que o idealismo dialético, uma vez que interpretava o mundo
de forma passiva, sem assumir o papel ativo da matéria cognoscitiva. Ao criticar o
materialismo de Feuerbach, Marx (1949)125 escreveu que “o principal defeito de todo
materialismo existente até agora – inclusive o de Feuerbach – é que a realidade,
sensualidade, só é concebida em forma de objeto ou de contemplação, porém, não como
atividade sensível humana, não subjetivamente. Assim ocorria que o lado ativo, em
contraposição ao materialismo, foi desenvolvido pelo idealismo – porém só de forma abstrata,
pois que, desde logo, o idealismo não conhece a atividade real, sensível como tal”.
Para Engels, não se podia aceitar essa percepção do mundo como algo ossificado,
imutável, ou como sistema imóvel de corpos em movimento (DN). Repudia-se então qualquer
versão teleológica para a explicação da realidade objetiva, evidenciando as duas grandes
características do mecanicismo: o antifinalismo e o determinismo. O antifinalismo deve ser
abandonado por ser inútil e destituído de sentido; quanto ao determinismo observa-se que
Engels não o nega porque conscientemente não o pretende negar; nega sim a forma linear e
unidimensional de entender a causalidade.
Assim, o materialismo dialético, ao unir integralmente o materialismo com a dialética,
uniu em um mesmo sistema a tese sobre a realidade material, como objeto do conhecimento.
A tese sobre o papel da realidade material cognoscitiva “configura” o objeto de conhecimento
no curso do processo cognoscitivo (Topolski, 1973)126.
Para ilustrar o processo em questão recorre-se à concepção sistêmica apresentada por
Mao Tsé-Tung, Sobre a Prática, resgatado por Oliveira (1985)127, onde esquematicamente
demonstra que enquanto para o idealismo o conhecimento é elaborado pelo pensamento (o
que explica o artifício obscurantista), no materialismo dialético a prática é que condiciona o
pensamento, o qual elabora o conhecimento.
124
Engels, Friedrich. Selected Works V. II, 1949, p. 350.
Marx, Karl. Selected Works, V.II, 1949, p. 352.
126
Topolski, op. Cit, p. 164.
127
Oliveira,Ariovaldo Umbelino. “Na prática a teoria é outra... in Seleção de Textos – Teoria e Método n. 11,
AGB, S. Paulo, ago 1985.
125
52
Elabora
Pensamento
Condiciona
Conhecimento
Informa
IDEALISMO
Prática
Elabora
Pensamento
Dirige
Conhecimento
Informa
MATERIALISMO DIALÉTICO
Para o materialismo dialético o conhecimento é um processo permeado por
contradições constantes entre o sujeito e o objeto, contradições que são a fonte do
desenvolvimento do processo cognitivo. Portanto, o conhecimento da realidade objetiva em
um dado momento é um estímulo para empreender uma atividade cognoscitiva, se
constituindo, por conseguinte, em critério sobre a validade dos atos de conhecimentos
anteriores. Tal fato demonstra a inexistência das verdades absolutas, decretando o fim das
certezas.
Para Topolski (1973)128, a ideia dialética da superação das contradições, como fonte de
movimento e desenvolvimento tem permitido, no nível ontológico, “mudar totalmente o modelo
de explicação da história como resultado de uma nova interpretação dos fatos passados e
assim explicar o enígma do desenvolvimento”. No nível epistemológico tem permitido “evitar
os erros do inducionismo mecanicista e do deducionismo à priori, preparando assim o caminho
para uma aproximação integral que combine a indução com a dedução”. Como consequência
o nível prático é marcado pela ação transformadora do homem na reprodução das forças
sociais.
Também o materialismo dialético tem estabelecido laços entre as relações entre
natureza e sociedade o que pode ser buscado em Engels (1976) quando das críticas a
Dühring: uma visão uniforme do desenvolvimento da natureza e da sociedade ao longo do
processo histórico. “Quando submetemos ao exame do pensamento, a natureza ou a história
da humanidade, ou a nossa própria atividade mental, o que nos oferece, em primeiro lugar, é o
quadro de uma confusão infinita de relações, de ações e reações, onde nada permanece o
que era, onde era, como era, onde tudo se move, se transforma, vem a ser e passa”129.
Portanto, o que se vê na natureza, na história, no pensamento, é a mudança e o movimento.
128
129
Topolski, Op. Cit, p. 164.
Engels, Friedrich. Anti-Dühring. R. Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 52.
53
A Relação Natureza e Sociedade na Dialética Materialista
A relação entre natureza e sociedade em Marx e Engels fundamenta-se no princípio
materialista dialético, onde os homens aparecem como resultado material do processo
evolutivo da natureza. Quanto mais se afastam dos animais, mais se afastam da natureza,
sem, contudo se “desnaturalizarem”, por ser esta a base de sustentação de suas
necessidades. Portanto, existe uma permanente contradição que se materializa em realidade
objetiva ao longo do processo histórico.
Engels (1979)130, no prefácio de sua obra Dialética da Natureza, apresenta importante
retrospecto da moderna investigação da natureza, que sem dúvida teria fundamentado o seu
trabalho. Ao demonstrar através da ciência a vinculação do homem com a natureza, reportase ao desenvolvimento da Química, a partir de Lavoisier e Dalton, quando a Física, até
meados do Século XVIII, assumia domínio absoluto com relação às concepções sobre a
natureza. A Química transpõe em grande parte o abismo que existia entre a natureza orgânica
e inorgânica, proporcionando com isso os sensíveis avanços da investigação biológica através
do método comparativo. Observa Engels131 o importante papel desempenhado pela Geografia
Física no estudo comparativo entre as condições de vida “das diferentes floras e faunas”.
“A nova concepção de Natureza ficava assim configurada em suas linhas gerais: tudo
aquilo que se considerava rígido havia se tornado flexível; tudo quanto era fixo foi posto em
movimento; tudo quanto era tido por eterno tornou-se transitório; ficara comprovado que toda a
Natureza se movia num eterno fluxo e permanente circulação” (Engels, 1979)132. Recupera,
portanto, as concepções dos grandes fundadores da filosofia grega: “em toda Natureza, desde
o menor ao maior, do grão de areia aos sóis; dos protistas ao homem, há um eterno vir a ser e
desaparecer, numa corrente incessante, num incansável movimento de transformação”.
Após ter se tornado diferente do “mono”, desenvolvido a linguagem articulada e obtido
a formidável expansão do cérebro, o homem imprime seu “selo” sobre a natureza, “não só
transladando plantas e animais, mas também modificando o aspecto, o clima de seu lugar de
habitação; e até transformando plantas e animais em tão elevado grau que as consequências
de sua atividade só poderão desaparecer com a morte da esfera terrestre” (Engels, 1979)133.
Continuando, Engels (1979)134 evidencia que, “com o homem entramos na história (...) quanto
mais se afastam do animal, entendido limitadamente, tanto mais fazem eles próprios sua
130
Engels, F. Dialética da Natureza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
Engels, DN, p. 22.
132
Engels, DN, p. 23.
133
Engels, DN, p. 23.
134
Engels, DN, p. 26.
131
54
história, correspondendo, cada vez com maior exatidão, o resultado histórico aos objetivos
previamente estabelecidos”.
A relação dialética entre o homem e a natureza é tratada também por Marx e Engels
(1991)135 em vários momentos, como ao contestarem Bruno136 ao considerar “as oposições
entre natureza e história (...) como se as duas ‘coisas’ fossem separadas uma da outra; como
se o homem não se encontrasse sempre em face de uma natureza histórica e de uma
natureza natural”.
Essa relação dialética é expressa ainda da seguinte forma (Marx e Engels, 1991)137: “A
relação limitada dos homens com a natureza condiciona a relação limitada dos homens entre
si, e a relação limitada dos homens entre si condiciona a relação limitada dos homens com a
natureza”. Esse fato leva Marx e Engels a entenderem a existência de uma única ciência: “a
ciência da história. A história pode ser examinada sob dois aspectos: história da natureza e
história dos homens. Os dois aspectos, contudo, não são separáveis; enquanto existirem
homens, a história da natureza e a história dos homens se condicionarão reciprocamente (...)”.
Mais à frente observam que “toda historiografia deve partir destes fundamentos naturais e de
sua modificação no curso da história pela ação dos homens”.
Para Moreira (1994)138 o homem se vincula à natureza por ser esta vital, “e se a vida é
o elo que liga o homem à natureza, é impossível dissociar a história da vida do homem da
história da natureza”.
Conforme Engels (1976)139, “o que é certo na natureza (...) é certo do mesmo modo na
história da sociedade em todos seus ramos (...) A história do desenvolvimento da humanidade
demonstra ser essencialmente diferente da história da natureza. Na natureza – na medida em
que ignoramos a reação do homem sobre a natureza – só há agentes cegos, inconsistentes,
atuando um sobre o outro, com uma lei geral que opera fora de sua interação. Nada de tudo
que ocorre – seja nos inumeráveis acidentes aparentes que podemos observar na superfície
ou nos resultados finais que confirmam a regularidade inerente a estes acidentes – ocorre
como um objetivo desejado conscientemente. Na história da sociedade, pelo contrário, os
atores estão todos dotados de consciência; são homens que atuam com deliberação ou com
paixão, trabalhando para conseguir metas definidas; nada ocorre sem um propósito
consciente, sem um objetivo projetado. Porém esta distinção, sendo importante para a
investigação histórica, particularmente sobre fatos e épocas particulares, não pode alterar o
fato de que o curso da história está governado por leis internas gerais”. Embora a natureza
135
Marx, Karl e Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã. S. Paulo: Hucitec, 1991. P. 68.
Bauer, Bruno. Charakteristik Ludwing Feuerbachs, p. 110.
137
Marx & Engels, IA, p. 44.
138
Moreira, Op. Cit, p. 574.
139
Engels, AD, p. 17 ss.
136
55
apresente uma dinâmica regida por processos próprios, ela é produzida socialmente,
considerando os interesses do sistema vigente.
Como observou Engels (1981)140 “os homens fazem a sua história, seja qual for o
caminho que tome, perseguindo cada um os seus próprios fins, conscientemente desejados, e
são, precisamente, os resultados dessas numerosas vontades, atuando
em sentidos
diferentes, e as suas variadas repercussões sobre o mundo exterior que constituem a história.
Trata-se,
também por conseguinte, do que querem os numerosos indivíduos, tomados
isoladamente. A vontade é determinada pela paixão ou pela reflexão... Mas, as alavancas que,
por sua vez, determinam diretamente a paixão ou reflexão, são de natureza muito diversa...
Ainda pode perguntar-se quais as causas históricas que, nos cérebros dos homens que agem,
se transformam nesses motivos”.
De acordo com os princípios da dialética, a história da sociedade é considerada, em
última instância, como a história da natureza. Com relação à ideia, Topolski (1973)141
considera que os métodos de estudar a história da sociedade não necessitam diferir
essencialmente dos que se utilizam para estudar a natureza, evidenciando os ensinamentos
de Marx (1955)142 de que “no futuro, a ciência natural absorverá a ciência humana do
mesmo modo que a ciência humana absorverá a ciência natural: se converterão em
uma só disciplina”.
As obras dos fundadores do materialismo dialético mostram que o que é novo na teoria
e no método da dialética é a solução do problema do movimento e desenvolvimento. Isto
significa que o princípio do autodinamismo, que diz que o movimento e o desenvolvimento têm
lugar através das contradições, e o princípio do holismo saltam ao primeiro plano (Lenin,
1958)143. Os princípios do autodinamismo e do holismo, estreitamente relacionados, mostram
que “o todo” se move e desenvolve como resultado de contradições internas, partindo do
princípio de que “o todo” contém “partes” contraditórias (subsistemas, elementos), que se
condicionam reciprocamente à existência. Tais contradições causam o movimento e o
desenvolvimento, processo esse considerado como unidade dos contrários. Para Topolski
(1973)144, os princípios do autodinamismo e do holismo dão lugar diretamente a outro princípio,
que no curso do movimento e desenvolvimento as mudanças quantitativas produzem
mudanças qualitativas, ou seja, a origem de novas qualidades. “Se aceitamos o
autodesenvolvimento como princípio, assumimos que os fenômenos nascem, tomam forma e
se desvanecem; portanto, assumimos que em certo momento um fenômeno que toma forma
140
Engels, Friedrich. Ludwig Feuerbach et la Fin de la Philosophie Classique Allemande. Paris: Éd. Sociales, 1946,
p. 38-39.
141
Topolski, op. Cit.
142
Marx, Karl. Kleine ökonomische Scriften. Berlin, 1955, p. 38.
143
Lenin, Vladimir I. Filosofkie tetradi. Moscú: Socinenya, 1958, V. 38.
144
Topolski, op. Cit, p. 161.
56
alcança um estado em que é totalmente formado e aparece como uma nova qualidade”. Essa
nova qualidade pode ser a negação da qualidade anterior e a negação dessa nova qualidade
pode conter, de algum modo, a qualidade anterior.
As Leis da Dialética
As leis da dialética fundamentam-se no princípio da contradição da matéria, discutida
por Engels (1976)
145
ao refutar Dühring, apresentando a primeira e mais importante das teses
sobre as propriedades lógicas fundamentais do ser: a “exclusão da contradição”. “Certamente,
desde que nos limitemos a focalizar as coisas como se fossem estáticas e inertes,
contemplando-as isoladamente, cada uma de per si, no tempo e no espaço, não
descobriremos nestas coisas nenhuma contradição”. Continuando, constata que “a vida não é,
pois, por si mesma mais que uma contradição encerrada nas coisas e nos fenômenos, e que
se está produzindo e resolvendo incessantemente: ao cessar a contradição, cessa a vida e
sobrevém a morte”. Necessário se faz observar aqui que a vida implica todos os níveis da
realidade, o que leva a admitir que a morte (indizível na concepção de Bobbio, 1997)
146
, nada
mais é que um estágio da transformação (recorrendo ao princípio materialista lavoisieriano).
Essa observação fica implícita um pouco mais à frente, na obra de Engels (1976)147, quando
refere-se à negação da negação: a vida como negação da morte e vice-versa. Ou ainda com
relação a vida e a morte, quando Politzer (1986)148 demonstra que “as coisas não só se
transformam uma nas outras, mas, ainda, uma coisa não é apenas ela própria, mas outra que
é a sua contrária, porque cada coisa contém a sua contrária”.
As reflexões apresentadas constituem as três grandes leis da dialética desenvolvidas
por Hegel, à sua maneira idealista, que para ele eram puras leis do pensamento. Com a
apropriação materialista das leis da dialética, foi possível a compreensão da unidade do real.
São as seguintes:
1. lei da passagem de quantidade à qualidade;
2. lei da interpenetração dos contrários;
3. lei da negação da negação.
A primeira lei estabelece mudança proclamando que o transitório se estende a tudo o
que existe por tudo estar sujeito ao processo ininterrupto do vir a ser (Engels, 1949)149. Em
145
Engels, AD p. 102 e109.
Bobbio, Norberto. O tempo da Memória. R. Janeiro: Campus, p. 38.
147
Engels, AD, p. 116 e 153.
148
Politzer, Georges, Princípios Elementares de Filosofia. S. Paulo: Moraes, 1986, p. 150.
149
Engels, LF, p. 35.
146
57
Dialética da Natureza, Engels assim se expressa com relação a esta lei: “nós podemos, no
quadro do nosso objetivo, exprimir esta lei dizendo que na natureza, de uma maneira
claramente determinada para cada caso particular, as transformações qualitativas só podem
ter lugar por adição ou subtração quantitativas de matéria ou de movimento (a chamada
energia)”. Tais transformações podem ser exemplificadas tanto nas leis da natureza como da
sociedade: a adição de umidade absoluta para uma determinada temperatura ou a redução da
temperatura para uma determinada umidade absoluta (quantidade) podem responder pela
saturação e consequente precipitação pluviométrica (qualidade); a ação prolongada de
deficiência hídrica e grande amplitude térmica (quantidade), como nos climas semiáridos,
implica desagregação mecânica com consequente recuo paralelo das vertentes (modelado de
relevo), com tendência à pediplanação (qualidade); o desmatamento progressivo de
determinada área (quantidade) implica alteração ambiental (qualidade); ou ainda, a
concentração de edificações em determinado espaço (quantidade) responde pelo processo de
urbanização e suas consequências, como derivações ambientais, conforto térmico, fluxo
concentrado de veículos... (qualidade de vida). Portanto, a evolução das coisas não pode ser
indefinidamente quantitativa; transformando-se sofrem uma mudança qualitativa. Embora toda
transformação qualitativa represente saltos na história (o que a referida lei denomina também
de “progresso por saltos”), na realidade resulta da adição ou subtração de elementos
quantitativos do movimento da matéria. Engels150, ao criticar Dühring, observa que a
quantidade como elemento de transformação em qualidade expressa por Marx
151
(com
relação à “mais-valia”), não se refere necessariamente a uma “quantidade aumentada”
qualquer, “quando na realidade, se trata, concretamente, de uma quantidade invertida em
matérias-primas, instrumentos de trabalho e salário”.
Branco (1989)152, ao tratar da segunda lei da dialética refere-se à importância da ação
recíproca no encadeamento dos processos, ressaltando a inexistência de fenômenos
absolutamente isolados na natureza. “Nisto se fundamenta a unidade das ciências como
corolário da unidade estrutural dos fenômenos naturais”. Em Geomorfologia percebe-se
claramente a interpenetração dos contrários: utilizando como exemplo as implicações
climáticas na elaboração do relevo: nos climas secos a desagregação mecânica, num tempo
geológico prolongado, tende a elaborar extensos pediplanos (horizontalização dos
modelados), ao passo que no clima úmido, com a reorganização da drenagem fluvial, a
incisão dos talvegues responderá pela dissecação do relevo (verticalização dos modelados). O
resultado pode ser observado na natureza através da associação de formas, com clara
tendência de destruição das produzidas em condições preexistentes, sabendo que a mudança
150
Engels, AD, p. 106.
Karl Marx. O Capital I
152
Branco, João Maria de Freitas. Dialéctica, Ciência e Natureza. Lisboa: Caminho, 1989, p. 92.
151
58
climática futura implicará destruição gradativa das formas atuais, sobretudo se comandada por
processos morfogenéticos opostos. Com relação à questão socioeconômica, Politzer (1986)153
dá como exemplo o proletariado que se contrapõe ao capitalismo, sabendo ser este fruto do
próprio sistema econômico que leva à divisão da sociedade em classes.
Finalmente, a terceira lei refere-se à importância da contradição existente das coisas,
que constantemente se apresenta e se resolve na generalidade dos fenômenos da natureza e
da vida (Engels, 1976)154. Continuando o exemplo do relevo, determinada forma “nega” a
outra, em função das novas relações processuais, sem, contudo destruir por completo a
“forma negada”, ou seja, a nova forma contém parte de forma antiga. Na história, Politzer
(1986)155 lembra que o feudalismo foi a negação do escravagismo e o capitalismo a negação
do feudalismo (negação da negação), contudo, alguns aspectos, mesmo que de natureza
arquitetônica, permanecem ou continuam incorporando a paisagem. “Para resumir, e como
conclusão teórica, as coisas mudam, porque encerram uma contradição interna (elas próprias
e as suas contrárias); as contrárias estão em conflito, e as mudanças nascem desses
conflitos; assim a mudança é a ‘solução’ do conflito”.
Politzer (1989)156 trata da mudança e da ação recíproca como primeira e segunda leis
da dialética, considerando-as pré-requisitos para a compreensão das leis da contradição. Na
lei do movimento dialético é mostrada a importância do processo como fator de transformação,
resgatando o autodinamismo como essência. Engels (LF), ao refutar o mecanismo teleológico,
evidencia que “para a dialética não há nada de definitivo, de absoluto, de sagrado...”. A ação
recíproca é tratada na perspectiva do encadeamento de processos, onde tudo influi sobre
tudo, o que rechaça todo e qualquer argumento metafísico.
Em síntese, o conceito de contradição é a chave para a compreensão da unidade do
real, bem como do movimento. Tal fato remete à necessidade de se rever o conceito de
“equilíbrio”, que para os ecologistas ortodoxos seria representado com a manutenção das
relações processuais em sua essência. Tragtenberg (1982)157 desperta para a necessidade de
se compreender que não há equilíbrio natural, uma vez que todos os elementos da natureza
foram reciclados pelo trabalho. É necessário situar que cada modo de produção assenta-se
numa forma de equilibração. Da mesma maneira que a ação humana destrói um equilíbrio, ela
cria novas formas de equilíbrio. Portanto, é necessário compreender que a relação homem e
natureza é histórica e que “cada novo equilíbrio resulta da organização das contradições
sociais internas, inerentes aos modos de produção fundantes de estruturas de classes”.
153
Politizer, op. Cit., p. 151-152..
Engels, AD p. 111 ss.
155
Politizer, Op. Cit, p. 160.
156
Politzer, op. Cit, p. 129-144.
157
Tragtenberg, N. Ecologia e Desenvolvimeno. S. Paulo: Cortez, 1982.
154
59
Mesmo com a degradação ambiental, novos equilíbrios podem ser produzidos,
acrescentando-se aqui alguns exemplos de degradação assistidas na atualidade, que
implicam ação de processos que, embora entendidos como destrutivos, podem corresponder à
recuperação de um novo equilíbrio. Em ambiente antropo-resistásico158 constata-se com
frequência problemas erosivos de grande intensidade, decorrentes do desmatamento ou
ocupação de áreas de risco, como encostas ou áreas de alta susceptibilidade erosiva. O
desenvolvimento de processos erosivos, que normalmente culminam em boçorocamentos ou
deslizamentos de massa, indica reação às rupturas de equilíbrio pré-atuais, que tem por
objetivo buscar um novo equilíbrio, determinado pelas novas condições impostas pela ação do
homem. Esse novo equilíbrio tende a ser alterado por novas intervenções com respostas
processuais que novamente alteram a configuração apresentada.
Neste exemplo ficam contempladas as três leis da dialética onde a intensidade
pluviométrica em condições resistásicas implica mudanças na paisagem (passagem da
quantidade em qualidade), buscando o “equilíbrio” resultante de novos processos, sem deixar
de manter formas pré-atuais (a interpenetração dos contrários). Uma nova mudança tende a
“negar” a situação anterior, que havia alterado a antecedente (negação da negação).
O
referido estágio apresenta estreita analogia com a teoria do “atualismo” de Hutton (1797), em
que “o presente é a chave do passado”, partindo do princípio de que conhecendo as relações
processuais evidenciadas nos diferentes ambientes, torna-se possível entender as condições,
como as climáticas, em que foram originados determinados depósitos correlativos,
preservados na morfologia atual. Com o advento de novas relações processuais, a
configuração atual será alterada, deixando marcas que denunciam a sua existência ao longo
do tempo.
Os Processos Evidenciados na Natureza e na Sociedade
Partindo do princípio engelsiano de que “a história do desenvolvimento da humanidade
demonstra ser essencialmente diferente da história do desenvolvimento da natureza”, torna-se
plausível admitir a existência de processos ou leis distintas que explicam o estágio de
desenvolvimento da realidade objetiva. O conceito de estágio aqui empregado refere-se ao
instante que ‘não é mais do que um momento no longo desenvolvimento histórico’, seja da
natureza, seja da sociedade. Caso não tratadas como processos distintos, implicariam um
modo de pensar positivista. Uma primeira diferença reside na própria escala do tempo:
enquanto na natureza as transformações resultantes das relações processuais são
158
Conceito proposto por Erhart (1956) para designar a retirada da cobertura vegetal preexistente, permitindo a
ação direta dos processos morfogenéticos sobre o solo. Embora utilizado como modificação comandada por
mecanismos naturais, tem sido adotado para alterações de natureza antropogênica.
60
evidenciadas numa escala de tempo geológico, as transformações na sociedade são
praticamente instantâneas, numa escala de tempo histórico, principalmente a partir das
grandes revoluções científico-tecnológicas. Esse descompasso normalmente promove um
evidente retardo nas reações da natureza, considerando a diferença temporal entre a
velocidade das transformações produzidas pelo homem, o que seria justificado pelo tempo
necessário para a incorporação desses novos atributos nas ditas relações processuais e os
ajustamentos ou respostas promovidas pela natureza (regularidades diacrônicas)159. Diante
disso, ao mesmo tempo em que as transformações produzidas pela sociedade aparentemente
não afetam as relações processuais da natureza, constata-se, com frequência, a presença de
determinados espasmos ou episódios entendidos como essencialmente naturais, em parte
não contestados em função das limitações dos conhecimentos científicos.
Tal relação pode ser exemplificada de diferentes formas, como os efeitos na destruição
da denominada “camada de ozônio”, pela emissão dos clorofluorcarbonos cuja constatação se
deu principalmente a partir da década de 80, embora os referidos gases têm sido lançados na
atmosfera desde a década de 30; ou ainda, numa relação temporal mais próxima, a ocupação
de encostas, desmatamentos e cortes de taludes, que podem desencadear deslizamentos de
massa alguns anos depois das derivações antropogênicas, uma vez que dependerá das
condições apropriadas para o cisalhamento em questão.
Também os componentes dos processos evidenciados na natureza e na sociedade
devem ser conhecidos independentemente, mesmo considerando a dialeticidade entre ambas,
evidenciada por interações e contradições que resultam mudanças, sobretudo de qualidade.
Os Processos Naturais
Com o intuito de se demonstrar o significado das leis da dialética nos processos
da natureza, fundamentadas nos princípios da mudança, da ação recíproca, da contradição e
da transformação, utilizar-se-á da sistematização apresentada por S.V. Kalesnick, denominada
de leis da landschaft-esfera.
Kalesnick (1958)160, ao procurar definir o objeto da Geografia como o estudo da
Landschaft-esfera, apresenta as “leis” características da sua existência e evolução, assim
enumeradas: da integridade da Landschaft-esfera, dos processos circulares da matéria, dos
fenômenos rítmicos, da zonalidade e da continuidade da evolução.
1. Com relação à integridade da Landschaft-esfera, o autor observa que os
componentes da natureza estão sujeitos às suas próprias leis. Como exemplo, “as
159
Regularidades diacrônicas referem-se ao espaço de tempo necessário para que chegue um estímulo de um
elemento ou sistema, provocando uma resposta a outro elemento ou sistema.
160
Kalesnick, S.V. La Géographie Physique comme Science e les lois Géographiques Génerales de la Terre. Na.
Géographie, Paris, 67 (363):385-403, sept/oct, 1958.
61
(leis) da formação do solo não são as mesmas dos processos climáticos, as leis do
desenvolvimento da matéria inorgânica diferem das do mundo orgânico”, mas a
interação dos diferentes componentes determina a existência de um sistema único
e integral. A referência do clima no seu conjunto ou em seus diversos elementos
permite compreender as relações evidenciadas entre o clima e o relevo, o clima e a
formação dos solos, o clima e o mundo orgânico, assim como o mundo orgânico ou
o relevo sobre o próprio clima... Exemplo de evidentes transformações num tempo
relativamente curto, considerando que a escala do tempo geológico pode ser
observada com as oscilações climáticas registradas no pleistoceno, ou seja, entre 2
milhões a 13 mil anos antes do presente, que coincide com o aparecimento do
homo-sapiens: enquanto o clima semiárido da fase glacial implicava domínio da
vegetação xeromórfica sobre a tropófita, desagregação mecânica, dessoloagem e
recuo paralelo das vertentes, promovendo tendência localizada de horizontalização
do relevo, o clima úmido da fase interglacial alterou as relações processuais
proporcionando uma nova estruturação da paisagem: predomínio da vegetação
tropófita sobre a xeromórfica, entalhamento de talvegues pela reorganização do
sistema hidrográfico, desenvolvimento de solos... Tudo isso relacionado ao
aquecimento ou resfriamento hemisférico, com formação ou fusão das calotas
polares e consequentes efeitos de regressão ou transgressão marinha, sem falar
das implicações de natureza eustáticas.
2. Quanto aos processos “circulares” da matéria, observa Kalesnick (1958)161 que
os componentes da Landschaft-esfera apresentam movimentos que obedecem ao
princípio da circularidade. Basta lembrar os processos circulares das massas de ar,
entre o Equador e os trópicos, o efeito de Coriolis na deflexão dos ventos alísios, ou
o processo convectivo de natureza termal que explica a formação de nuvens e
ocorrências pluviométricas. O mesmo fenômeno é observado no ciclo hidrológico,
no processo de aquecimento das águas pela radiação solar, nos movimentos
circulares do manto da terra, que embora vinculados a uma escala de tempo
geológico, implicam compensação isostásica, emanações magmáticas e efeitos
tectônicos.
Observa ainda Kalesnick (1958)162 que “os processos circulares existentes por toda
a parte da Landschaft-esfera” são facilmente observados “tanto no metabolismo
quanto na interação dos solos e das plantas, bem como em mil outros processos".
Embora aparentemente fechados, os processos circulares são abertos, contrariando
a concepção mecanicista. “Seria preferível representá-los simbolicamente como
161
162
Kalesnick, op. Cit, p. 397.
Kalesnick, op. Cit. P. 398.
62
uma curva traçada em pontos da circunferência de uma roda que gira em linha reta”.
Como exemplo, a translação feita pela terra, “não voltará ao mesmo lugar em que
havia iniciado a rotação anual, porque todo o sistema solar se move no espaço com
a velocidade de vinte quilômetros por segundo, em direção a um ponto que se situa
entre a constelação de Hércules e da Lira”. Conforme Engels (1976)163, “mesmo
quando ocorrem as repetições, não se dão nunca exatamente nas mesmas
condições”, o que já havia sido observado por Heráclito (540-470 aC)164.
3.
A Landschaft-esfera também é representada por diversas transformações
rítmicas como as diferenças internas das paisagens durante as diversas horas do
dia e da noite, das variações sazonais que implicam alterações nas biocenoses, no
regime dos rios e mesmo no regime dos mares. O ritmo pode ser constatado com
relação ao processo de decomposição das rochas e consequente formação dos
solos, além das reações adaptativas do zooplancton, que também apresentam um
ritmo em função das faixas de concentração de nutrientes pelo efeito da luz.
Mesmo admitindo certa linha de continuidade na interação dos componentes, que se
exerce e se organiza no tempo, o ritmo, embora imperceptível, também se distingue
por seus resultados, o que pode ser explicado pelas particularidades da Landschaftesfera.
4. Como se sabe, a terra é representada por parâmetros zonais determinados pela
própria forma em relação ao sol, que se caracteriza como determinante do poder
radiante. Contudo, “a natureza não se parece com as matemáticas” (Kalesnick,
1958), o que explica a existência de diferentes domínios nas diferentes zonas bem
como em uma mesma faixa zonal, determinados pelas mais diversas implicações
geográficas,
como
efeitos
das
correntes
marítimas,
continentalidade
165
maritimidade, posição altimétrica, dentre outras. Para Kalesnick
ou
“os componentes
da Landschaft-esfera movimentam-se em altitude e em latitude, segundo um ritmo
diferente”, admitindo que a graduação vertical é mais especial que a zonalidade.
Esclarece que “os degraus verticais não são cópia das zonas latitudinais que lhes
correspondem, não sendo sequer as variantes particulares destas últimas, porque
temos causas diferentes na origem dos degraus verticais e horizontais”. (Lembrese aqui Pedelaborde, 1972166, ao afirmar que a altitude corrige a latitude). Conclui o
autor dizendo que a zonalidade não faz sentido em toda espessura da Landschaftesfera, o que pode ser comprovado nas profundidades oceânicas, nas camadas
superiores da troposfera ou nas camadas internas da terra, onde a zonalidade “é
163
Engels, AD, p. 75.
“Nenhum homem toma banho duas vezes em um mesmo rio.”
165
Kalesnick, op. Ci, p. 400.
166
Pedelaborde, Pierre. Introduction à l’étude scienifique du climat, Paris, CDU, 1959.
164
63
criada pela reação da superfície terrestre, por sua estrutura, por sua rigidez, ou por
sua maleabilidade...”.
5. Na continuidade da evolução, Kalesnick (1958)167 mostra que “a íntima unidade,
o intricamento profundo e estreito das partes componentes da Landschaft-esfera
fazem com que ela se desenvolva como formação integralmente unida”. Diante
disso conclui que o processo de evolução da Landschaft-esfera é um processo
complexo e internamente contraditório, numa perspectiva dialética, onde a evolução
parcial de seus componentes não se realiza sem acarretar a evolução de todas as
outras partes integrantes do conjunto. Assim, a continuidade é revelada pela
inexistência do isolamento absoluto entre os componentes da Landschaft-esfera,
constatando-se a existência permanente de um elo de ligação espacial e outro de
ligação temporal.
Conclui Kalesnick (op.Cit) que “a Landschaft-esfera desenvolve-se pela força de
suas contradições internas”, o que pode ser constatado nos diferentes exemplos
relativos às leis da dialética, como as formas diferenciais vinculadas a processos
morfogenéticos
opostos,
que
embora
contraditórios,
se
interpenetram
na
composição da paisagem .
Embora se torne evidente que o desenvolvimento da sociedade fundamenta-se em leis
próprias, deve-se, contudo ressaltar a necessidade de se conhecer melhor os processos
específicos da natureza. Deve ser lembrado aqui que o conhecimento humano das leis da
natureza é que permitiu o desenvolvimento da própria história da sociedade, resgatando-se o
conceito de segunda natureza preconizada por Marx e Engels. Engels (1979)168, ao
demonstrar a diferença entre o animal e o homem em relação à natureza, observa que aquele
a utiliza, enquanto este a domina. O processo de dominação, muitas vezes entendido como
vitória sobre a natureza, deve ser visto com certa preocupação: cada uma (dessas vitórias, “na
verdade, produz em primeiro lugar, certas consequências com que podemos contar; mas, em
segundo e terceiro lugares, produz outras muito diferentes, não previstas, que quase sempre
anulam essas primeiras consequências”. Embora Engels, na referida passagem, valorize a
questão ambiental, sua obra Dialética da Natureza procura resgatar o homem como ser
natural, como forma de superação da subjugação de classe imposta pelo sistema de produção
capitalista. Ao citar o exemplo dos agricultores espanhóis, estabelecidos em Cuba, que
queimaram as matas das encostas das montanhas para obter melhores lucros com a
plantação do café, independentemente dos impactos erosivos dos solos que mais tarde
aconteceriam, expressou-se da seguinte forma: “Em face da natureza, como em face da
167
168
Kalesnick, op. Cit, p. 401.
Engels, DN, p. 223-224.
64
sociedade, o modo atual de produção só leva em conta o êxito inicial e mais palpável...”.”169.
Acredita-se, portanto, que na medida em que o homem produz matéria e energia no
interior desse amplo sistema, e esse produto deixa de ser incorporado ou reciclado, surgem as
formas de degradação que são lembradas por Souza e Amaral (1984)170:
•
se produzem em oposição às leis do sistema, no que tange à reciclagem; sua
ação é deletéria, perversa, enfim, biocida. “Devemos, pois, adotar uma posição
contrária a tudo o que nos tem sido ensinado, fundamentalmente desde há dois
séculos: o culto pelo progresso científico, a crença nas vantagens da
urbanização e o fervor pelo progresso industrial”;
•
se produzem com pleno conhecimento das inter-relações do sistema biosfera,
no que se refere à reciclagem e seu equilíbrio. “A noção de poluição transformase, passa a ser a noção de algo fora de lugar”.
Tais considerações resumem-se nas seguintes contradições apresentadas pelos autores:
a) do homem em relação à biosfera. Por um lado se reconhece que estes
estejam inseridos nela por serem seres vivos; por outro, quando visto como um
sistema em funcionamento, “dela são excluídos, justamente por que podem agir
em oposição a ela”;
b) da ação do homem em oposição à biosfera, “considera-se implicitamente
a práxis produtiva humana, o conhecimento humano, a ciência, abordagem
muito coerente com a concepção da queda do pecado capital”;
c) da separação absoluta entre a natureza e o homem, vendo-se a parceria
como uma categoria em si, como se a natureza existisse à margem do homem
ou como se o conhecimento humano existisse à margem da natureza;
Para Marx171 “a natureza, tal como se forma na história humana, é a natureza real do
homem; daí que a natureza, ao ser formada pela indústria, ainda que seja em sua forma
alienada, é a verdadeira natureza antropológica”. A natureza sem a presença do homem não é
nada para ele, reforçando o argumento de que é o sistema de produção e as forças
produtivas que dão à natureza sua existência social. A terra poderia muito bem existir sem
o homem, contudo não existiria quem a concebesse enquanto tal. A partir do momento em que
o homem integra a natureza ao seu mundo, acaba por dar um sentido humano a esta, a partir
do qual se revela sua prioridade ontológica.
169
Engels, DN, p. 226.
Souza, Ailton B. de & Vieira, R.A Amaral. Poluição alienação ideologia. R. Janeiro: Achiamé, 1984, p. 22-23.
171
Marx, Karl. Manuscrios de 1844.
170
65
As Categorias do Desenvolvimento Social
Topolski (1976)
172
, analisando o mundo real como um todo, entende que na relação
natureza e sociedade pode-se conservar o conceito de “autodinamismo”, onde todo o sistema
trabalha “independentemente”. O desenvolvimento da sociedade através das contradições só
pode ter lugar em condições naturais específicas: embora não sejam constantes, estão em
processo constante de movimento e desenvolvimento; processo que neste caso também tem
lugar pela superação das contradições. Para Marx e Engels, o todo compreendido pelas
relações entre a natureza e a sociedade encontra-se mutuamente integrado. Junto com a
soma das contradições que “põem a natureza em movimento”, e a soma das contradições que
“põem a sociedade em movimento” deve haver um ponto de contato desses dois subsistemas
que se constitui no estímulo básico da história da humanidade.
Ainda Topolski (1972) observa que “a principal contradição que condiciona o
desenvolvimento social está situada justamente no limite entre a natureza e a sociedade. É a
contradição entre o homem e a natureza a solução que dá lugar ao desenvolvimento das
forças produtivas”, assim esquematizada por ele.
Natureza
Desenvolvimento das Forças
Produtivas
Homem
Marx173 explica o processo de trabalho (a atividade do homem) como, em primeiro
lugar, um processo em que participam tanto o homem como a natureza, no qual o homem, por
sua própria decisão, descobre, regula e controla as reações materiais entre ele e a natureza.
Enfrenta a natureza com uma força pertencente a ela, colocando em movimento braços e
pernas, cabeça e mãos e as forças naturais de seu corpo, para utilizar o produto da natureza
de uma forma adequada aos seus próprios desejos. Com essa atuação sobre o mundo
externo e transformado, muda ao mesmo tempo sua própria natureza. “Desenvolve seus
poderes adormecidos e os obriga a atuar obedecendo a seu poder”. A contradição resultante
da relação homem e a natureza é dinâmica, tendo como resultado as forças produtivas
responsáveis pelo desenvolvimento continuado.
A
segunda
contradição
que
justifica
o
desenvolvimento
social
encontra-se
dialeticamente vinculada à primeira, correspondendo às relações entre as forças produtivas e
as relações de produção. Para Marx174 “na produção social os homens entram em relações
172
Topolski, op. Cit, p. 169.
Marx, Karl, O Capial I.
174
Marx, SW.
173
66
definidas que são indispensáveis e independentes de seu desejo; relações de produção que
correspondem a um estado definido de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais”.
Dessa relação surge uma contradição entre as forças produtivas, que são mais dinâmicas, e
as relações de produção, que são mais inertes, uma vez que são representadas por aqueles
que se apropriam dos meios de produção, determinando assim a natureza da referida
produção.
Topolski (1973)175 ressalta que a superação dessa contradição dá lugar ao
desenvolvimento das relações de produção (I) que, ao se adequar ao nível das forças
produtivas, se convertem em novas relações de produção (II), conforme esquema apresentado
por ele.
Forças Produtivas
Relações de Produção (I)
Relações de Produção (II)
Como se sabe, as relações de produção referem-se às relações produzidas pelos
próprios homens, considerando o sistema de produção. Nas relações de produção são
definidas, a partir de um determinado modo de produção, as formas de apropriação da
natureza/meios de produção, as relações de trabalho e a distribuição e troca dos produtos, o
que implica diretamente no comportamento das forças produtivas. Como se sabe, o sistema
de produção capitalista é caracterizado pela apropriação privada da natureza/meios de
produção e por uma relação de trabalho assalariada, estrutura essa que permite a acumulação
progressiva da mais-valia e consequente antagonismo das classes sociais. É evidente que a
estrutura
das
176
antropossocial,
relações
de
produção
encontra-se
amparada
pela
megamáquina
ou superestrutura ideológica, com a qual se dá a terceira contradição desse
macrossistema.
A superestrutura é representada pelo Estado, onde as relações jurídico-políticas e
ideológico-culturais respondem pela ordem legal e política que induzem à formação da
consciência social. Marx (1944)177 escreveu que o estado das instituições, opiniões e ideias, tal
como existe em uma sociedade dada, ou estado da consciência humana, “deve explicar-se
mais pelas contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças produtivas
sociais e as relações de produção”.
Topolski (1973)178 discorre sobre as mudanças nas
relações de produção que dão lugar a mudanças de adaptação na superestrutura, “porque a
175
Topolski, Op. Cit, p. 170.
Conceito empregado por Morin (MORIN, E. O Método: a vida da vida. Portugal: Publicações Europa-América,
1980) em analogia ao conceito marxista de Superestrutura Ideológica.
177
Marx, SW
178
Topolski, op. Cit, p. 170-171.
176
67
velha superestrutura (I) impede as transformações das relações de produção. Assim há um
conflito em nível superestrutural, entre os que se servem das relações de produção existentes
e aqueles que favorecem as mudanças. Isto dá lugar à formação de uma nova superestrutura
(II), que, sem dúvida, conserva muitos elementos da velha”. Tais relações são expressas da
seguinte forma:
Relações de Produção
Superestrutura (I)
Superestrutura (II)
Estas três contradições podem ser interpretadas como as leis básicas do
desenvolvimento social, considerando o intento de tratá-las numa perspectiva metodológica,
dada a abrangência explicativa para a compreensão da realidade objetiva, resultado das
relações entre a natureza e a sociedade.
A ciência geográfica se caracterizou, sobretudo a partir da década de setenta do século
passado, por um movimento identificado como “Geografia Crítica”, em oposição ao paradigma
neopositivista dos teóricos quantitativos, tendo como princípio os fundamentos filosóficos
marxistas. Contudo, divergência entre intelectuais tem dificultado a consolidação de uma
perspectiva radical como novo paradigma da Geografia, o que de certa forma tem contribuído
para o desenvolvimento de uma tendência humanista, de base fenomenológica, fundada no
imaginário social.
A tendência crítica à ortodoxia marxista, principalmente em relação à cultura material,
tem implicado certo desprezo ao significado das leis da dialética, bem como das categorias do
desenvolvimento social. Esse fato torna-se mais grave quando se trata da Geografia, que tem
como objeto as relações entre a natureza e a sociedade. Hoje, mais do que nunca, é
imprescindível a compreensão dessas contradições para a formação de uma consciência
crítica.
Como se procurou demonstrar, o novo modelo de desenvolvimento produtivista, ao
mesmo tempo em que leva à privatização do público, reduz o relativo poder da força de
trabalho, obtido no welfare state, através da imposição tecnológica. Esse fato reforça o
significado ideológico da ciência, que ao promover o desenvolvimento tecnológico, ofereceu
ao Estado as bases para a pacificação dos conflitos, levando o trabalhador ao risco iminente e
ao dilema absurdo de submeter-se ao jogo de interesses dos detentores dos meios de
produção, em troca da manutenção do emprego. Assim a ciência assume cada vez mais uma
maior vinculação com as forças produtivas, desconsiderando o papel que apresenta como
componente da superestrutura ideológica, reforçando a histórica alienação. A nova revolução
científico-tecnológica nas forças produtivas, embora mantendo a velha estrutura das relações
de produção (apropriação privada dos meios de produção e preservação da mais-valia com
68
base de sustentação), conta com os auspícios da superestrutura ideológica através da
flexibilização da legislação trabalhista, da política permanente de privatização do público e da
manipulação de índices de desenvolvimento, dentre outros.
É nesse contexto que se espera resgatar as categorias do desenvolvimento social
como alternativa imprescindível à compreensão do espaço em sua essência, fazendo da
Geografia um conhecimento mais do que necessário para a superação da alienação; tratando
a existência humana como consequência do processo histórico da natureza, questionando a
apropriação privada da terra e consequentemente dos meios de produção.
Como se viu até aqui, o que a ciência moderna continua querendo, através do
“desencantamento do mundo”, é a teorização sobre as regras de conduta, as construções
pedagógicas e políticas, as construções normativas, cujo objetivo é tornar o homem eficaz e
eficiente. Repetindo, “o homem moderno, o cidadão, é, portanto, o Aufklärer, silhueta que
abriga um misto de cientista cartesiano e libertino altivo. Ele quer, como meio e meta, ou
melhor, como meio que é meta, a ‘feliz apatia” (Ghiraldelli, 1994)179. Para o autor, “também o
professor deve arrancar o véu. Ele deve descortinar, desnudar, desmitologizar, desideologizar,
desanalfabetizar, desinfantilizar, desencantar. Deve averiguar, experimentar (no sentido de
experimento, e não de experiência), nominar, educar (que de certo modo é ‘puxar para cima’,
pelos cabelos! )... profanar. Deve fazer intervir o logos, a palavra, a palavra que enumera, que
classifica, que logiciza, que racionaliza, que quebra o ritmo do corpo de modo a impedir os
fluxos normais que possam dar continuidade à imaginação”.
A analogia do professor ao Aufklärer, feita por Ghiraldelli (1994) é no sentido de que
esse ilumina, esclarece sem, contudo, provocar a necessária desmitologização. Adorno e
Horkheimer (1986)180 observam que “o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por
remeter à mitologia”. Em um jogo de espelhos, o homem esclarecido, autônomo, o cidadão
aparece como elemento da massa, que aceita a dominação e só se rebela no sentido de
continuar sua implementação. “A modernidade que produz a apatia, precisa criar mecanismos
para, pelo menos por alguns momentos, reavivar esse homem para que a sociedade, ou
melhor, o aglomerado de seres, continue a existir” (Ghiraldelli, 1994)181.
Tal fato leva a concluir que a educação só tem sentido ao proporcionar a autorreflexão
crítica, embora sabendo que as diversas forças – como o produtivismo lilberal – jamais
patrocinarão qualquer crítica. Só resta a expectativa apontada por Adorno e Horkheimer
(1986)182, de que embora o sistema procure “proteger pela negação a união indissolúvel da
razão e do crime, da sociedade burguesa e da dominação”, não consegue distorcer as
consequências do esclarecimento, o que justifica a necessária insistência de “proferir
179
Ghiraldelli, op. Cit, p. 18.
Adorno & Horkheimer, op. Ci.
181
Ghiraldelli, op. Cit, p. 15.
182
Adorno & Horkheimer, op. Cit p. 111.
180
69
brutalmente a verdade chocante”. Nesse contexto, a Geografia, que foi intensamente
abalada pela “feliz apatia” do iluminismo, deve rever seus conceitos e promover um conteúdo
que possa desmitologizar e desalienar o homem abstrato, transformando-o em verdadeiro
cidadão.
Assumindo a Geografia uma nova postura epistemológica, fundamentada na
dialeticidade da natureza, ao mesmo tempo em que deixará de tratar o espaço como soma de
conteúdos distintos, aparentemente desconexos, assumirá efetivamente uma postura política,
capaz de oferecer a formação de uma consciência crítica, imprescindível a uma nova prática
social, produzindo uma geografia que “desvende o véu”.
A DIALÉTICA DA NATUREZA
João Maria de Freitas Branco183, em Dialética, Ciência e Natureza, procura “provar a
justeza de uma intuição de Engels que se pode traduzir na seguinte asserção: para as
ciências da natureza a dialética é a mais importante forma de pensamento”.
O trabalho busca com isso pôr em evidência, no quadro atual do pensamento científico,
a necessidade de recuperar uma concepção de natureza nas próprias ciências. “O grande
dilema que a nova ciência nos coloca é o da necessidade de pensar de outra maneira”, o que
justifica o enorme valor dessa obra que propõe a concepção do mundo de forma analítica e de
o pensar dialeticamente. A intenção aqui é a de seguir, mesmo que de longe, os passos dados
por Branco (1989), considerando a dimensão de sua obra, procurando num primeiro momento
apresentar o significado da concepção dialética da natureza, para posteriormente apresentar
os pressupostos materialistas como alternativa ontológica e epistemológica para a Geografia.
A intenção de Engels foi o de cooperar na reificação do corpo teórico do marxismo,
uma vez que Marx nunca teria a disponibilidade de tempo suficiente para se ocupar das
implicações teóricas da sua obra e do seu pensamento nos mais diversos domínios do saber
humano.
A intenção inicial de Engels foi a de realizar uma crítica ao materialismo vulgar de
Büchner, considerando a dialética como “a forma mais importante do pensamento para a
moderna ciência da natureza, já que é a única que nos oferece o “análogo” (analogon),
portanto, o método para explicar os processos de desenvolvimento da natureza, as conexões
nos seus traços gerais, as transições de um domínio e outro” (MEW 20, 330-31)184. Engels é
claro na declaração de intenções para o seu projeto de apresentar “uma concepção da
natureza ao mesmo tempo dialética e materialista”. Branco (1989)185 observa que a referida
183
Branco, DCN, p. 35.
Citado por Branco, DCN, p. 54.
185
Branco, DCN p. 55.
184
70
passagem permite concluir que “ser dialética
significa deixar de ser não-dialética: e ser
materialista significa não ser idealista”, expressão esta que se manifesta numa dupla
oposição: a) o antiIídealismo, ou seja, a ideia exteriorizada que se impõe à mesma: e b) o
antimecanicismo que se refere ao combate crítico ao materialismo vulgar (metafísica) presente
no interior das ciências exatas. Em síntese, a intenção é a de superar as contradições entre
ciência e filosofia da natureza.
O projeto engelsiano fundamenta-se nas “três grandes descobertas” da época que são:
1. a transformação da energia (R. Mayer, Joule e Colding), um verdadeiro golpe
aplicado no espírito metafísico;
2. a descoberta da célula orgânica (Schwann e Schleiden), superando o “fixismo”
como base do raciocínio;
3. a descoberta da teoria da evolução (Charles Darwin), onde todos os produtos da
natureza (inclusive o próprio homem), resultam de um longo processo de
desenvolvimento, tendo como origem a célula.
Portanto, tais descobertas representam novas concepções científicas que se revelam
incompatíveis com as categorias metafísicas, impondo a necessidade de um método de
pensamento diferente: o dialético. Às três descobertas, Engels acrescenta uma quarta: “Assim
como Darwin descobriu a lei da evolução da natureza orgânica, Marx descobriu a lei da
evolução da história humana” (MEW 19, 335)186.
Após introduzir a noção de tempo na natureza, Engels (DN) concebe-a como processo,
em última instância dialético, como pode ser observado em sua crítica a Bacon e Locke: “(a
ciência natural provou) que a natureza, em última instância, as coisas se processam dialética
e não metafisicamente, que ela não se move na monotonia eterna de um ciclo
permanentemente repetido, que passa, antes, por uma verdadeira história...”(SU, MEW, 19,
205)187.
Portanto, a natureza entendida como processo, compreendendo-o como conjunto
contínuo de mudanças no tempo, oferece a ideia central e revolucionária da passagem da
história natural à história da natureza, onde se dá a incorporação do homem como
consequência do processo evolutivo. Para Engels188, “nada na história da natureza ocorre
isoladamente”. É nessa trajetória que Engels (DN) enuncia as três leis da dialética
desenvolvidas por Hegel, que eram apenas do pensamento, para uma dialética da natureza
numa perspectiva materialista.
186
Citado por Branco, DCN p. 57, referindo-se ao discurso de Engels junto ao túmulo de Marx.
Citado por Branco, DCN p. 85.
188
Engels, DN p. 20.
187
71
Para Politzer (1989)189 deve-se insistir que “a ciência, a natureza e a sociedade devem
ser vistas como um encadeamento de processos, e o motor que trabalha para desenvolver tal
encadeamento é o autodinamismo”
Engels (DN), ao mencionar que “nas ciências da natureza, através do seu próprio
desenvolvimento, tornou-se impossível a concepção metafísica”, faz-se acompanhar da
convicção de abandonar o horizonte do idealismo em detrimento do materialismo filosófico,
abreviando o regresso à concepção materialista da natureza (Branco, 1989)190.
O Materialismo da Natureza
Branco (1989)191, ao tratar da questão ontológica no materialismo da natureza, recorre
ao conceito de unidade do real, utilizado por Hegel, resgatado de Spinoza: “A asserção
fundamental que se pretende justificar é a da unidade imanente do próprio ser”. Se para Hegel
o fundamento da unidade do real é a matéria como “criação do pensamento e pura abstração”,
em Engels (DN), fica clara a necessidade da “unidade matéria-forma no plano da existência
sensível”. A matéria deixa de ser entendida como conjunto de propriedades imóveis, absolutas
e finitas, da concepção materialista mecanicista, assim como substrato, matéria universal
constitutiva dos seres particulares, para se tornar o “real objetivo que se dá através da
aparelhagem sensitiva, existindo independentemente da nossa consciência, e neste sentido
identifica-se com a própria natureza” (Branco, 1989)192. Lenin (1962)193 evidenciou que “a
noção de matéria exprime apenas a realidade objetiva que nos é dada pela sensação”.
. Conclui-se que o conceito de natureza se identifica integralmente com os conceitos de
“matéria” e de “realidade objetiva, o que leva a admitir que a natureza em sua integridade,
representada pela categoria da matéria, compreende não apenas os fenômenos da natureza,
mas também os da sociedade (o ser social).Trata-se aqui da categoria filosófica de matéria e
não do conceito científico da matéria. Constata-se ainda, que a matéria entendida em sua
dialeticidade, é essencialmente móvel e dinâmica, o que leva a concluir que “a matéria, sendo
o fundamento da unidade do real, é consequentemente o fundamento ontológico da dialética”,
numa posição monista194.
“A natureza, entendida como sinônimo de realidade objetiva precede a atividade
cognitiva: nisto consiste o primado do ser em relação ao pensar”. Com esse parágrafo, Branco
189
Politzer, op. Cit., p. 141.
Branco, DCN p. 131.
191
Branco, DCN p. 132 ss.
192
Branco, DCN p. 136.
193
Lenin, Vladimir I. Matérialisme et Empiriocriticisme. Paris: Éd.Sociales, 1962, p. 230 (Oeuvres, T.14).
194
A palavra "monismo" é usada para indicar toda doutrina ou sistema de pensamento que afirme certa unidade de
explicação (redução a um só princípio, a uma só causa, a uma só tendência ou direção) para um domínio limitado
de ideias ou de fatos (JACOB, 1990).
190
72
(1989)195 consegue demonstrar que é através da existência da matéria, enquanto realidade
objetiva, constatada através dos órgãos sensitivos e independentemente da nossa
consciência, que se elabora o conhecimento, ao contrário da concepção idealista, onde a
matéria é concebida no pensamento, independentemente de ser sentida como realidade
objetiva.
Acrescente-se que a matéria só é cognoscível através do movimento, portanto torna-se
necessário entendê-la também na sua dialeticidade, ou seja, por essência, não-repetitiva.
Nega-se ainda a finitude do conhecimento, acompanhando o desenvolvimento da própria
ciência da natureza. ”Nunca, em parte alguma, existiu, nem pode existir, matéria sem
movimento” (Engels, 1976)196. Aristóteles, nos Livros II e III da Física já considerava o
movimento como princípio intrínseco à matéria, dando a ela uma existência infinita.
Engels (1976)197 afirma que a unidade do real consiste na sua materialidade, tem-se,
então, a prova de que essa materialidade é dada pelo progresso do conhecimento vulgar e do
conhecimento científico, em particular.Toda discussão fundamenta-se no primado da natureza,
na preexistência da natureza (da realidade material objetiva) em relação ao pensamento
humano, o que levou a pensar que o desenvolvimento da vida biológica apresenta-se como
um fenômeno moderno, portanto, uma fração de tempo ao longo da história da natureza. Essa
relação é discutida também por H. Reeves, 1986198 .
A ciência moderna tem proporcionado evidências sobre a existência de uma base
molecular e química que viabilize o pensar, o que torna mais clara a unidade homem-natureza
na óptica de Engels (DN), provando a impossibilidade de se estabelecer qualquer tipo de
oposição entre espírito e matéria. Assim sendo, “o conhecimento é um processo de
assimilação (termo biológico) e não de transposição; processo dialético e não mecânico”
(Branco, 1989),199 ou melhor, não-idealista.
O reconhecimento de que a prática humana sensível é a base do processo cognitivo,
contido nas concepções de Engels (DN), é a clara negação da clássica dicotomia
conhecimento-atividade prática. “A instauração da Práxis como elemento mediador inviabiliza
a oposição sujeito-objeto, sendo aquele entendido em todas as circunstâncias como
transindividualidade dinâmica”.
Torna-se ainda necessário compreender que se a matéria existe fora da consciência
humana, o que refuta a concepção idealista da matéria e consequentemente da realidade
objetiva, necessariamente ela existe no tempo e no espaço. Enquanto os idealistas pensam
que o tempo e o espaço são ideias nascidas no espírito do homem, defendida por Kant, os
195
Branco, DCN p. 141.
Engels, AD, p. 51.
197
Engels, AD p. 52 ss.
198
Reeves, Huber. Um Pouco mais de Azul. S. Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 99ss.
199
Branco, DCN p. 145.
196
73
materialistas afirmam o contrário, ou seja, que o homem está contido no espaço e que o
tempo é uma condição indispensável ao desenvolvimento da própria vida. Conforme Engels
(1976)200 “... as formas fundamentais de todo o ser são o espaço e o tempo, e um ser fora do
tempo é um absurdo tão grande como um ser fora do espaço”.
Conclui-se, portanto, que não há uma realidade independente da consciência. Mesmo
antes de o ser humano existir o mundo ou a natureza já existia. Mesmo não conhecendo ou
não pensando em determinado lugar, ele não deixa de existir. Para Lenin (1962)201 “as
ciências da natureza afirmam positivamente que a terra existiu em estados tais que nem o
homem, nem nenhum ser vivo a habitava, nem podia habitar. A matéria orgânica é um
fenômeno tardio, o produto de uma evolução muito longa”.
A Dialeticidade da Relação Homem e Natureza
Ao entender o homem como resultado do processo evolutivo da natureza, torna-se
evidente, e ao mesmo tempo banal, afirmar que este não deixa de ser natureza, mesmo
considerando as diferenças entre ambos. Embora trivial, essa afirmação tem se constituído em
objeto de críticas e discussões que passam a ser brevemente apresentadas.
Com relação à crítica à Dialética da Natureza engelsiana, a posição de Schmidt em
relação à noção de natureza, contida na referida obra, é simplesmente incompatível com o
marxismo. Diz Schmid (1978)202 que “em Engels, a natureza e o homem não se unem
primariamente através da práxis histórica; o homem aparece apenas como produto evolutivo e
espelho passivo do processo da natureza, não como força de produção”. Também Lukács
(apud Prestipino, 1977) contesta o conceito de natureza engelsiano como realidade. Para
Lukács (1979)203 considera dois tipos distintos de dialética: a primeira posta e objetivada pelo
ser genérico social e a segunda independentemente deste, correspondente ao próprio
movimento da natureza. Assim como há dois movimentos da dialética, há também dois
movimentos de objetivação: o movimento do ser social e o movimento da natureza. Apesar de
serem movimentos dialéticos de objetivações distintas, pode-se notar uma conexão, uma
relação umbilical entre ser social e inorgânico.
Essa interpretação subverte o pensamento engelsiano, ficando claro que falar de
dialética da natureza significa, entre outras coisas, a associação da história à natureza,
estando o homem sempre associado a esta pelo processo social do trabalho. Conforme
200
Engels, AD p. 84.
Lenin, op. Cit, p. 52.
202
Schmidt, Alfred. Der Begriff der naur inder Lehre von Marx. Frankfurt: Basis, 1978, p. 51.
203
Lukács, Gyorgy. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. Trad.Carlos Nelson
Coutinho. São Paulo:Ciências Humanas, 1979.
201
74
Branco (1989)204, “há uma relação ela própria dialética entre o mundo natural e o históricohumano. É isso mesmo que o conceito-chave de produção nos dá a conhecer. A natureza énos apresentada invariavelmente como a base real da história. Mas o fato de se considerar
que natureza e história se unem numa totalidade não significa que se estabeleça uma
completa indiferenciação entre ambas. A unidade dialética reafirmada a cada passo não quer
dizer que os dois elementos se confundem”. Conclui dizendo que “em face desses abusos
interpretativos não será demais voltar a repetir que no plano gnosiológico, o sujeito do
conhecimento não é nunca entendido como ‘espelho passivo’. Ao contrário do que Alfred
Schmidt afirma, o pensar não se esgota no reflexo do factual”.
Ao demonstrar a “dialeticidade” da natureza, Schmidt (1978)205 apresenta o homem
como sujeito transformador. Observa Branco (1989)206que na concepção não-engelsiana” de
Schmidt, a dialética da natureza passa a ser “mera consequência da interação do homem (...)
É o homem que introduz a dialética na natureza” deixando de ser da natureza, perdendo seu
fundamento objetivo, ficando a um passo da separação dialética e materialismo. Mais à frente
(Branco, 1989)207, rebatendo as críticas de Sartre208, que qualifica a dialética da natureza como
“hipótese metafísica”, conclui que a razão dialética se fundamenta em si própria: “Não
encontramos na natureza senão a dialética que aí introduzimos”, o que mostra que “a
objetividade da dialética só é passível de percepção em termos corretos se conseguirmos
compreender que a afirmação – aliás não discutida – da unidade do homem com a natureza é
conducente à tese fundamental de que o processo do pensamento é ele próprio elemento da
natureza, processo natural. Por isso o movimento do pensamento não está isolado do
movimento da matéria”. Acrescenta ainda que no quadro da dialética, o subjetivo e o objetivo
não são passíveis de separação, razão pela qual a dialética não se resume à função de
método, ganhando uma concepção gnosiológica materialista.
Assim, a dialética da natureza ao mesmo tempo em que traz consigo uma profunda
crítica à filosofia como domínio reservado, exclusiva do “pensamento”209, reveste-se de um
caráter científico, proporcionando a possibilidade de diálogo com as ciências da natureza. As
ciências da natureza apresentam a interdisciplinaridade como necessária, partindo do princípio
da inexistência de sistemas absolutamente isolados, o que requer, portanto, o diálogo entre as
ciências e cada uma delas com a filosofia, o que pode ser resumido por Morin (1986)210: “de
204
Branco, DCN, p. 261.
Shmidt, Op. Ci, p. 58.
206
Branco, DCN p. 263.
207
Branco, DCN, p. 265.
208
Sartre, Jean Paul. Critique de la Raison Dialecique. Paris: Gallémard, 1968, p. 127-129.
209
Conforme Hyppolite (1972)209, sempre houve entre os filósofos o desejo de que a filosofia se tornasse “saber do
saber científico, a sua consciência em si”
210
Morin, Edgar. O Méodo III. Portugal: Publ. Europa-América, 1986, p. 23-24.
205
75
fato as grandes questões científicas tornaram-se filosóficas porque as grandes questões
filosóficas tornaram-se científicas”.
A dialética da natureza leva ainda a ausência de um sistema doutrinário, pondo fim “a
todas as ideias de uma verdade absoluta e definitiva, e a um consequente estágio absoluto da
humanidade. Diante dela nada é definitivo, absoluto, sagrado; ela faz ressaltar o que há de
transitório em tudo que existe; e só deixa de pé o processo ininterrupto do vir-a-ser e do
perecer, uma ascensão infinita do inferior para o superior cujo reflexo no cérebro pensante é
esta própria filosofia (...). O conservantismo desta concepção é relativo; o seu caráter
revolucionário é absoluto – o único absoluto que ela deixa de pé” (LF, MEW 2l, 267-268)211.
Embora aparentemente absolutista, a dialética se caracteriza pela inexistência de
conceitos ou verdades acabadas, de uma natureza portadora de uma ordem variante. A razão
dialética demonstra a insuficiência do senso cartesiano face a um inimigo que não pode mais
ser descrito como um gigantesco relógio funcionando de forma regular, “o discurso
entusiástico anunciador do fim da história converteu-se na declaração de que atravessamos
ainda uma fase pré-histórica” (Branco, 1989)212.
O exercício de definir conceitos, leis, é relegado para um plano de menor relevância
científica. “Falar de dialética envolve pensar no movimento, na contradição e na sua
integração numa totalidade. A sua autêntica vocação é a de ser instrumento para um diálogo
sempre aberto com o real (...). O pensamento dialético materialista recusa por princípio a
atitude de se munir de uma cartilha estabelecida a priori para encetar o diálogo com a
natureza” (Branco, 1989213). Para Reeves (1986)214, “a natureza não tem de se adaptar à nossa
maneira de pensar. É a nós que cabe mudar a maneira de pensar para que ela se adapte à
natureza”. “O imperativo que nos coloca não é, portanto, o de ‘mudar de mundo’, como diz
Edgard Morin (‘il nous faut changer de monde’) , mas sim o de mudar a maneira de pensar o
mundo, de forma a ajustá-lo às novas faixas do real...”(Branco, 1989215).
Portanto, a concepção dialética implica contradição das relações processuais que
integram a natureza, imprescindível à compreensão da unidade do real, ou seja, “pensar a
contradição como passo para a intelecção dos processos do universo” (Lenin, 1976)216. Nesse
contexto incorpora-se o conceito de matéria e movimento como interdependência absoluta,
partindo do princípio de que “na natureza o movimento é sempre movimento de alguma coisa,
211
Citado por Branco, DCN p. 271.
Branco, DCN p. 279.
213
Branco, DCN, p. 273-274.
214
Reeves, Op. Cit, p. 161.
215
Branco, DCN p. 276.
216
Lenin, Vladimir I. Sur la quesion de la dialeique. Cahiers Philosophiques. Ouvres. 38. Paris: Sociales, 1976 p.
343-344.
212
76
e não há fenômenos naturais observados que nos revelem uma matéria isenta de movimento”
(Branco, 1989)217.
Branco (1989)218 retoma a discussão do em si ao para nós contida em Kant, numa
perspectiva materialista, como vital para a inteligibilidade do pensamento engelsiano. Nesse
sentido busca explicar que a expressão “dialética da natureza” não exclui o caráter subjetivo
do reflexo constitutivo do conhecimento, estando, portanto, bem patenteado no imperativo da
transposição do em si no para nós. “Este considerar da ligação cognoscitiva entre o ‘subjetivo’
e o ‘objetivo’ afigura-se condição necessária para a correta compreensão do sentido preciso
da expressão dialética da natureza” (1989)219.
Quando se fala da natureza e se diz que a dialética é da natureza, torna-se evidente
em Engels (DN) de que natureza está se falando: realidade objetiva, refletida pela consciência
humana já que o reflexo cognitivo está objetivamente limitado pela situação histórica,
resultante do intercâmbio entre o homem e a natureza. Embora “o projeto da dialética da
natureza tenha permanecido inconcluso, sou tentado a supor que se pretendeu ter em
consideração essa dupla manifestação do Natural”, afirma Branco (1989)220. Essa intenção,
ainda que não tratada de forma evidente, parece estar clara em Engels (1979)221 quando diz
que “é precisamente a transformação da natureza pelo homem e não apenas a natureza
enquanto tal, que constitui o mais essencial e direito fundamento do pensamento humano”.
Engels deixa claro que “o principal fundamento objetivo da nossa consciência não é apenas a
natureza em si, mas uma natureza transformada e a própria ação transformadora que sobre
ela se exerce” (Branco,1989)222, tornando absurda a ideia da dicotomia entre pensamento
humano e o real, entre o espírito e a matéria, e em última instância, entre a natureza e a
sociedade.
Portanto, a dialética da natureza implica apropriação ou reapropriação das forças
produtivas (Badaloni, 1976)223 ao estabelecer uma relação entre a prática social e o trabalho
prático das ciências. “Se a ação prática transformadora da natureza fundamenta o próprio
pensar, este, por sua vez, viabiliza novas formas de intervenção do homem junto à natureza, e
desse modo a ciência pode concorrer para uma definição contínua da relação do homem com
o mundo” (Branco, 1989)224.
Para compreender tal relação, Engels (DN) aponta para a impossibilidade de basear o
momento do pensamento apenas no interior do próprio pensar. O fundamento não se encontra
217
Branco, DCN, p. 100.
Branco, DCN p. 102-107.
219
Branco. DCN, p. 107.
220
Branco. DCN p. 109.
221
Engels, DN, p. 20.
222
Branco, DCN, p. 110.
223
Badaloni, Nicola. Sulla Dialettica della Natura di Engels e sull’aualià di una Dialeica Materialista. Annali
V.XVII. Milano: Feltrinelli, 1976, p. 53.
224
Branco, DCN, p. 111.
218
77
só no plano interno, ou seja, nas leis do pensamento, mas na necessidade de se externalizar,
situando-se também nas leis da natureza. Tal fato demonstra que a atividade prática humana
através da qual transforma a natureza é que constitui o fundamento do pensar, e não apenas
a natureza intransformada. Essa reflexão evidencia que é através da prática que se condiciona
o pensamento, o qual elabora o conhecimento, e não partindo do pensamento em si, conforme
concebe o idealismo.
A propugnação feita por Engels da dialética da natureza como ciência das conexões, o
velho princípio da estabilidade e o conhecimento da natureza como algo de separado (em si)
são banidos, observando que “enquanto houver homens a história da natureza permanecerá
inseparável da história desses mesmos homens, dado que se condicionam mutuamente”
(Marx & Engels, 199)225. Ao entender o homem como natureza, esta passa a caracterizar-se ao
mesmo tempo como sujeito e objeto, sem implicar necessariamente que as realidades
naturais, enquanto tais sejam consideradas puramente “recursos humanos”.
Torna-se aqui imprescindível apresentar, mesmo que de forma sintética, os diferentes
planos filosóficos que implicam necessária compreensão da importância da dialética da
natureza, numa perspectiva engelsiana.
No plano ontológico a unidade do real consiste em sua materialidade. A dialética da
natureza implica conceito de matéria ontologicamente aberta, partindo do princípio de que a
realidade objetiva existe independentemente da consciência que a reflete, onde “a categoria
da matéria abarca não apenas os fenômenos naturais (fenômenos da natureza, o ser físico),
mas também o ser social, aspecto fundamental que exprime a originalidade contida nesta
definição categorial” (Branco, 1989)226. Propõe o retorno à evidência, à compreensão da
natureza tal qual se apresenta, pondo fim aos sucessivos idealismos vividos ao longo dos dois
milênios.
No plano gnosiológico a natureza é entendida como sinônimo de realidade objetiva,
precedendo a atividade cognitiva: o primado do ser em relação ao pensar, ou seja, apenas se
pode conhecer o que existe. Assim, o conhecimento se caracteriza também como um
fenômeno aberto, não limitado, que além de refutar os caracteres da metafísica, contrapõe-se
à concepção de verdades acabadas. Conforme Engels (1976)227,
se a unidade do real
consiste na sua materialidade, a prova dessa materialidade é dada pelo progresso do
conhecimento em geral e do conhecimento científico em particular. Portanto, ao mesmo tempo
em que o sujeito busca a compreensão da realidade objetiva, que se converte em
conhecimento, também se constitui objeto desse complexo processo natural. Isto quer dizer
que “a estrutura do sujeito é inseparável, desde a sua origem, da realidade objetiva. O sujeito
225
Marx, Karl & Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). S. Paulo: Hucitec, 1991, p. 27.
Branco, DCN, p. 138.
227
Engels, AD.
226
78
do conhecimento integra essa própria objetividade de que pretende dar conta” (Branco,
1989)228. Afirma Piaget (1969)229 que “... não há mais um direito de fronteira entre o sujeito e o
objeto”. A ruptura das concepções duais implica a urgência da transdisciplinaridade como
progresso do conhecimento da realidade objetiva.
No plano da práxis tem-se a prática social, que constitui a base do processo cognitivo,
negando a clássica dicotomia entre conhecimento e atividade prática. A instauração da práxis
como elemento mediador se caracteriza como atividade transformadora do mundo natural e
social, ou seja, da realidade objetiva.
Com base em tais pressupostos, torna-se possível superar a concepção externalizada
da natureza (plano gnosiológico) e entender a materialidade da realidade objetiva, desprovidas
das tradições mistificadoras, expressas tanto pelo idealismo quanto pela metafísica (plano
gnosiológico e, por conseguinte, epistemológico), para, através da prática social, tendo a
práxis como mediadora, proporcionar a necessária transformação com vistas a uma
apropriação social da natureza, em busca da justiça social.
228
Branco, DCN, p. 144.
Piaget, Jean. Logique et Connaissance Scientifique. Paris: Gallimard, 1969, p. 1244 (Enciclopedie de la Pleiade
n. 22).
229
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Dialética da Natureza