A PRISÃO SEM MUROS:
GUARAPUAVA E O DEGREDO NO BRASIL DO
SÉCULO XIX
Universidade Estadual do Centro-Oeste
Guarapuava - Irati - Paraná - Brasil
www.unicentro.br
Francisco Ferreira Junior
A PRISÃO SEM MUROS:
GUARAPUAVA E O DEGREDO NO BRASIL DO
SÉCULO XIX
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CENTRO-OESTE
UNICENTRO
Reitor: Aldo Nelson Bona
Vice-Reitor: Osmar Ambrósio de Souza
Editora UNICENTRO
Direção: Beatriz Anselmo Olinto
Assessoria Técnica: Bruna Silva, Eduardo Alexandre Santos de Oliveira,
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Capa: Marcio Fraga de Oliveira
Imagem da capa: Jean-Baptiste Debret
Foto da capa: Marcio Fraga de Oliveira
Impressão: Gráfica UNICENTRO
Lourival Gonschorowski, Marlene dos Santos Gonschorowski, Agnaldo Dzioch
Rua Salvatore Renna, 875, Santa Cruz
CEP 85015-430 - Guarapuava - PR
Publicação aprovada pelo Conselho Editorial da UNICENTRO.
F383p
Ferreira Junior, Francisco
A prisão sem muros: Guarapuava e o degredo no
Brasil do século XIX / Francisco Ferreira Junior. – –
Guarapuava: Unicentro, 2012.
258 p.; il.
Bibliografia.
ISBN 978-85-7891-122-5
1. Guarapuava – Paraná – História. 2. Brasil –
Degredo – Século XIX. 3. Degredo (Pena de Exílio). 4.
Guarapuava – Degredados – História. I. Autor. II. Título.
CDD 981.622
Ficha catalográfica elaborada por Regiane de Souza Martins -CRB9/1372.
Copyright © 2012 Editora UNICENTRO
Nota: O conteúdo desta obra é de exclusiva responsabilidade de seu autor.
“Senhores, os problemas me
atormentam; resolvei-os para
mim. Quereis, por exemplo,
desacostumar uma pessoa dos
seus velhos hábitos e corrigirlhe a vontade, de acordo com
as exigências da ciência e do
bom senso. Mas como sabeis que
o homem não apenas pode, mas
deve ser assim transformado?
De onde concluís que à vontade
humana é tão indispensavelmente
necessário corrigir-se? Numa
palavra, como sabeis que uma
tal correção realmente trará
vantagem ao homem?”
Fiódor Dostoiévski
– Memórias do Subsolo
Apresentação
Imagino que deve existir, em minha caneta,
uma velha herança do bisturi. Talvez eu trace
sobre a brancura do papel os mesmos sinais
agressivos que meu pai traçava sobre os corpos
dos outros que ele operava. Transformei o
bisturi em caneta. Passei da eficácia da cura à
ineficácia da livre proposta, substituí a cicatriz
sobre o corpo pela grafitagem sobre o papel,
substituí o inapagável da cicatriz pelo sinal
perfeitamente apagável e rasurável da escrita.
Talvez seja mesmo o caso de ir mais longe
ainda. A folha de papel, para mim, talvez seja
como os corpos dos outros.1
O ato da escrita nos desnuda. A descrição inquieta de
Foucault sobre a prática da escrita, além de nos encantar
com seu caráter deveras literário, nos oferece o que há de
mais profundo em seus escritos: o indivíduo Foucault, sua
personalidade, seus anseios, seus sentimentos.
Além dos muitos aspectos enriquecedores deste livro,
que tenho a honra em apresentar - “A prisão sem muros:
Guarapuava e o degredo no Brasil do século XIX”-, em
primeiro lugar preciso apontar o que me tocou de forma mais
nítida: a presença da personalidade do autor que transparece
na serena, firme, segura e ao mesmo tempo aveludada escrita
de Francisco Ferreira Jr.
1
Entrevista de Michel Foucault publicada em 1966, no Le Monde
(concedida a Claude Bonnefoy), após a publicação de As Palavras
e as Coisas. Essa entrevista foi reproduzida em 21 de novembro de
2004 por Clara Allain na Folha de São Paulo.
Francisco Ferreira Junior
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Nesta obra, da qual espero que venha a tornar-se a
primeira de muitas outras, a firmeza e a simultânea delicadeza
do texto proporcionam uma leitura que desliza na perspicácia
deste jovem pesquisador. Ferreira Jr. corajosamente se
embrenhou em decifrar a prática punitiva do degredo
vinculada as políticas de povoamento relativas à região de
Guarapuava no período colonial. Nesse feito, o autor analisa as
rupturas e continuidades do sistema jurídico-penal, lusitano
e brasileiro, frente às transformações culturais, políticas e
econômicas da primeira metade do século XIX. Além disso,
como se não bastasse esse intento, Ferreira Jr. arriscou-se, com
grande êxito, em traçar trajetórias individuais de degredados
internos do Brasil colonial e imperial, que foram enviados
para a Freguesia de Nossa senhora de Belém de Guarapuava,
no período mencionado.
Para mim, uma historiadora estabelecida de forma
confortavelmente segura, no limite temporal das primeiras
décadas do século XX, aventurar-se na temática abordada
e confrontar-se com uma documentação que exige um
constante, minucioso e atento cruzamento das fontes, é um
feito considerável.
Leiga na temática e nos meandros pertinentes ao
recorte temporal específico da pesquisa, a tarefa que me
coube, permeada por sincera amizade e admiração, é a de
uma curiosa intrusa, uma simples leitora.
E, como uma simples leitora, constato que a temática do
degredo interno na América Portuguesa e no Brasil Imperial
é primordial para a compreensão da colonização da região
A Prisão Sem Muros
de Guarapuava, considerada fronteira última em meados do
século XIX. Primordial para a compreensão das permanências
jurídicas, enfatizadas por Ferreira Jr., frente a um processo
econômico que oscilava entre um moderno capitalismo
e as lutas pela subsistência existentes em ermos sertões.
Primordial às discussões sobre identidade e pertencimento,
não explicitadas no texto, mas que todo instante vem à tona
na discussão posta sobre o degredo em si, como penalidade,
como punição, e frente às peripécias e estratégias de inclusão
e resistência, vivenciadas pelos degredados e degredadas.
Ferreira Jr. inverte a estrutura textual comumente
apresentada. Nos dois primeiros capítulos apresenta a análise
referente à prática do degredo na região de Guarapuava,
e no capítulo final nos presenteia com uma breve, porém,
consistente explanação sobre a questão do degredo na
historiografia brasileira.
Desde Adolfo Varnhagen, passando pelos consagrados
Capistrano de Abreu, Paulo Prado, Manoel Bonfim, Gilberto
Freyre, até os estudos brasileiros contemporâneos (Emilia
Viotti da Costa, Laura de Melo e Souza, Geraldo Pieroni, e
diversas dissertações e teses produzidas em fins do século
XX), Ferreira Jr. didaticamente insere os leitores no intrincado
debate sobre o degredo e a formação da população brasileira.
O autor delineia as diversas posições teórico-políticas que
negam, ora amenizam, ora enfatizam, ou ainda desconstroem
as percepções que recaíram – e recaem – sobre os degredados,
como elementos moralmente nocivos e poluidores da pretensa
nacionalidade brasileira.
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Refletindo sobre a historiografia que trata da
colonização portuguesa nos sertões dos Campos Geraes,
a narrativa de Ferreira Jr. nos apresenta uma Guarapuava
agitada por conflitos, resistências e negociações. O autor
descreve um cenário em que é possível vislumbrar as
possibilidades históricas, as ideias, e os projetos que não
foram levados adiante e caíram no esquecimento, abafados
pelo futuro que se estabeleceu. O autor insiste em deixar
exposto as possibilidades e os sujeitos históricos que foram
apagados por um tipo de memorialismo que perseverou
em firmar um ideário da região focado na supremacia de
classe, gênero e etnia.
Este livro, resultado da pesquisa de dissertação de
mestrado do autor, representa a profissionalização da
pesquisa histórica no que tange aos processos de povoamento
da região de Guarapuava. É um texto que vem coroar a parceria
estabelecida entre a Universidade Estadual do Centro-Oeste
– (UNICENTRO) com o Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Ferreira Jr., em sua escrita, prima em deixar a descoberto
o fazer historiográfico como um ato de montagem, como um
ato de construção de sentido do passado. Sobre a limitação
das fontes, o autor faz questão de deixar à mostra as dúvidas,
as conjecturas, as lacunas e as suposições, as quais são
serenamente apresentadas ao leitor. Dessa forma, o texto
se converte em uma aula sobre o trato com as fontes, por
apresentar um exaustivo cruzamento de informações e
principalmente por deixar expostos os avanços e os recuos,
A Prisão Sem Muros
as idas e vindas, próprios da pesquisa histórica. Ferreira Jr.
se despe da autoridade sobre “o” passado e deixa ao leitor os
rastros traçados pelo ofício do historiador. A compromissada,
porém modesta e despretensiosa postura do autor, para mim
se traduz no dito rosaniano de que à “natureza da gente não
cabe em nenhuma certeza”.2
Essa atitude do autor, frente ao passado histórico,
apresenta um viés teórico que o aproxima da História
Cultural, mesmo que no decorrer do texto esteja firmemente
e constantemente apontando sua filiação com a História
Social da Cultura, e se mostre preocupado em explicitar as
implicações econômicas que estão traduzidas nos mecanismos
penais, nos códigos e na prática jurídica.
Ao elevar a importância do degredo na região de
Guarapuava para a política de povoamento colonial, e dar
visibilidade aos processos de inclusão e resistência dos/
as degredados/as na dinâmica da dita freguesia, Ferreira Jr.
expõe muito mais do que um passado permeado por diversas
lógicas, por incertezas e conflitos de classe e etnia. Este texto
nos remete a um presente ainda deveras marcado pelo uso
político da glorificação de poderosos heróis brancos e europeus
montados em seus briosos corcéis. Um presente que ainda se
encontra assombrado pelo estigma da última fronteira, e que
não se reconhece em seu passado. Um não reconhecimento
que fez por desaparecer a importância capital da região no
período colonial, a se considerar a hipótese levantada por
2
ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. 3. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1965. p. 593.
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Ferreira Jr. de que Guarapuava foi o único lugar no Brasil em
que o degredo interno foi posto em prática no século XIX, até
o ano de 1834.
Além do que já foi aqui exposto, o autor, no primeiro
capítulo, revira os postulados da história tradicional sobre
a região de Guarapuava. Analisando, a partir da famosa
Carta Régia de 1809, os motivos que alçaram a dita freguesia
a lugar de degredo interno, Ferreira Jr. aborda as políticas
pombalinas de povoamento. O autor enfoca as preocupações
relativas aos “selvagens” indígenas e as estratégias de
convencimento para o estabelecimento dos brancos pobres
na região. Personagens, tais como o Comandante Diogo
Pinto de Azevedo Portugal, o Coronel Afonso Botelho,
o Capelão Francisco de Chagas Lima, etc., aparecem
desmistificados, sem, contudo, terem sido diminuídos em
sua importância histórica como agentes representantes dos
poderes, respectivamente, militar e religioso.
Ferreira Jr., gentilmente de mãos dadas com o leitor,
apresenta a relação entre as estratégias de povoamento e o
desenvolvimento de um pragmático sistema jurídico-penal
português. O autor não se furta em explicitar questões
pertinentes a lógica jurídica construída em séculos
anteriores. Ferreira Jr. se mostra atento aos diferentes
significados e usos dos termos e nomenclaturas referentes
ao degredo, aos coutos, ao homizio, vadio, prezídio,
etc., analisando a fluidez dessas categorias. Além disso,
ainda no primeiro capítulo, está posta a relação entre as
práticas de recrutamento militar e o sistema punitivo, em
A Prisão Sem Muros
que aqueles considerados ameaçadores a boa sociedade
metropolitana, na região colonial adquiriam serventia
política e econômica.
Através da análise das chamadas Guias, o autor prepara
o leitor para o capítulo seguinte, apresentando dados gerais
referentes aos degredados, e discutindo a tipologia dos crimes
por eles cometidos e os respectivos significados.
No capítulo dois, Ferreira Jr., nos brinda em tracejar
as histórias individuais desses desterrados. Antes disso,
no entanto, o autor se concentra em explicitar ao leitor o
contexto da produção das fontes militares e eclesiásticas
que possibilitam vislumbrar essas trajetórias. Partindo das
querelas sobre a fundação da dita freguesia, o autor explana
a todo instante a labuta da investigação meticulosa que se
deu através das chamadas Guias, das listas de nominativas
dos habitantes, das correspondências, e processos-crime, etc.
Ferreira Jr. passa então a concentrar-se no que é
claramente sua tarefa mais prazerosa: narrar os infortúnios
das pessoas consideradas criminosas pelo sistema jurídicopunitivo vigente no período. Pessoas que foram apagadas
da memória e da História. Homens e mulheres olvidados e
descarnados. Sujeitos que foram penalizadas com a perda
do sentido de pertencimento; punidos com a “morte”
perante a comunidade de origem, e castigadas a levarem
consigo, para um ermo lugar de assento, o estigma da
expulsão e do banimento.
O autor acompanha a vivência desses delituosos
mapeando as estratégias de inclusão e de resistência no
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Francisco Ferreira Junior
cumprimento da pena, contudo, sem deixar de lembrar os
limites e as incongruências das fontes documentais. Com
entusiasmo e um quê de admiração Ferreira Jr. especifica,
em um item em separado, a interessante via-crúcis de um
degredado artista/falsário.
Para finalizar, é preciso dizer que este livro de Ferreira
Jr., além de dar vida a uma Guarapuava até então ausente dos
livros de história, nos sensibiliza, tanto pela materialização
da presença de homens e mulheres desgraçadamente
degredados, no passado e pela historiografia tradicional,
quanto pelo delicado olhar que sobre eles incide.
Degredados, desterrados, banidos, também somos nós
frente ao isolamento eu/outro. E, como nos ensina Lispector,
pela escritura também ansiamos pertencer.
Profa. Dra. Rosemeri Moreira
Guarapuava , 10 de Fevereiro de 2012
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Sumário
Introdução, 19
Capítulo I - “Para que não fiquem desertos tão
dilatados sertões”: degredo e políticas de povoamento
em Guarapuava no século XIX, 35
Capítulo II - Prisioneiros na prisão sem muros: os
degredados em Guarapuava no século XIX, 119
Capítulo III - O degredo na historiografia brasileira, 211
Considerações Finais, 239
Fontes, 247
Referências, 249
Lista de abreviaturas
AESP
AHU
ANRJ
APP
APBT
Arquivo do Estado de São Paulo
Arquivo Histórico da UNICENTRO
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
Arquivo Público do Paraná
Arquivo Particular Benjamim Teixeira,
Guarapuava – PR
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