Dois Cangurus Arnaud Mattoso Quando abri a porta do elevador e entrei no corredor comprido que leva à porta do apartamento deparei-me com dois cangurus no patamar à beira da escada de serviços. Eles estavam na passagem que dá acesso ao único espaço para abrir a grade. Tentei agir naturalmente para não passar a ideia de que estava com medo. Eu estava apavorado. Parecia ser uma mãe com seu filhote. O menor tinha a minha altura e a maior era pelo menos cinco palmos de mão aberta para cima. - Olá tudo bem? Disse tentando soar o mais natural possível como se encontrar cangurus na porta do apartamento fosse parte da minha rotina diária. Eles continuaram me olhando sem piscar. - Vocês querem uma água, perguntei, e fui andando de cabeça erguida e confiante. Passei a menos de trinta centímetros deles e, por um breve momento, pelo tempo de enfiar e girar a chave no ferrolho da grade fiquei de costas para eles. Fechei os olhos esperando um murro na cabeça. Meus parcos conhecimentos sobre cangurus dizem que eles esmurram bem e, por isso, sempre aparecem com luvas de boxe nos desenhos animados. Abri a grade e entrei apressado. Pensei em fechar a porta de metal e me trancar, mas achei que seria indelicado. Deixei-a aberta, virei-me e dei um sorriso aos cangurus que se mantinham impassíveis sem tirarem os olhos de mim. Abri a segunda porta e fui buscar uma caneca de água limpa. Quando retornei, susto, eles haviam entrado no terraço que separa a porta do apartamento à grade de ferro. Estavam um ao lado do outro, fechando a passagem à saída. Sorrindo, entreguei a cuia de água ao canguru mais alto. Ele a segurou com ambas as mãos - ou patas, não entendo bem de cangurus – e cheirou o conteúdo. Depois, molhou um dos dedos de unhas longas e a experimentou com a ponta de uma língua enorme e fina. Só então a entregou ao canguru menor. Ele a bebeu de um só gole e devolveu ao canguru maior que esticou os braços curtos em minha direção. Hesitei um pouco nesse momento. A olhei seriamente e estiquei apenas um braço para pegar na cuia vazia. Perguntei: - Você quer mais. Não esperei a resposta e virei-me em direção ao interior do apartamento. Quando voltei eles estavam agora mais próximos à porta, quase dentro do apartamento. Tive que entregar o recipiente com água limpa e clara sem sair da sala. A altura da porta era a altura do canguru mais alto. O menor tinha a minha altura. Quando a canguru mãe ou que ao menos eu julgava ser a mãe do canguru menor esticou os braços curtos, repetiu os mesmos rituais de cheirar e experimentar um pouco da água. Então, ela bebeu de um só gole e fazendo bastante barulho de deglutição. Aquilo me arrepiou. Ela deixou cair ao chão a tigela vazia que rodopiou como uma moeda sobre a mesa. O barulho ecoou no corredor bem no momento em que ela me socou o rosto arremessando-me no meio da sala. Rodei sobre meu corpo, bati a cabeça na base do centro da sala e caí esticado junto ao sofá. Ainda zonzo pelo impacto e de costas para a entrada, ouvi quando a porta se fechou e as pegadas das quatro enormes patas dos dois animais vibraram sobre a cerâmica fria. Deitado de bruços, senti a presença dos animais em minhas costas. Outro soco me atingiu, desta vez por detrás, furando o pulmão. Tossi e apaguei, antes que as unhas do canguru mãe cortassem a minha carne de cima abaixo do meu corpo. Uma poça de líquido viscoso molhou o chão ao meu redor e entrou pelas minhas orelhas ao mesmo tempo em que ouvia a carne sendo rasgada e sentia as garras vasculhando o interior. De um puxão levou o meu fígado e, mesmo sem ver, compreendi a cena do canguru maior passando o pedaço de carne sangrenta para o canguru menor. De alguma maneira aquilo me fez feliz. (Recife - PE, 2014)