Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 O SURGIMENTO DOS GRUPOS HOMOSSEXUAIS NO BRASICONTEMPORÂNEO Andrew Feitosa do Nascimento Miguel Rodrigues de Sousa Neto RESUMO O presente estudo aborda o surgimento dos primeiros grupos de afirmação homossexual no Brasil e a conjuntura na qual estão inseridos, qual seja, aquela do declínio da ditadura civilmilitar inaugurada em 1964 e encerrada apenas vinte e um anos depois, bem como, do processo de redemocratização cujos marcos foram a Lei da Anistia, de 1979, a campanha pelas “Diretas Já!” (1983), a campanha presidencial da qual sairia vencedor Tancredo Neves (1985) e, finalmente, a promulgação da chamada “Constituição Cidadã”, de 1988. Inicialmente, faz-se necessário retomar as discussões acerca dos movimentos sociais no Brasil para, em seguida, inserir o movimento LGBT neste campo de estudo para, finalmente, compreender quais são as tensões sociais e as representações colocadas em disputa no corpo social brasileiro das últimas décadas, notadamente no que concerne à população formada por gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, intersexos e transgêneros. PALAVRAS-CHAVE: Movimento LGBT; Grupos Homossexuais brasileiros; Movimentos Sociais; Política; Ditadura. INTRODUÇÃO Este estudo objetiva apresentar os primeiros grupos do movimento LGBT no Brasil e a conjuntura em que os mesmos surgem, partindo da mesma, como uma condicionante na formação identitária dos grupos. Utilizamos a sigla LGBT, que corresponde à lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e trangêneros, para nos referirmos a este movimento. No entanto, a sigla LGBT é uma das várias siglas utilizadas para se referir ao movimento gay no Brasil. Graduado em Educação Física pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB); Graduando em Turismo pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS); Integrante do diretório de pesquisa “Universo Dialógico – Grupo de Pesquisa em Cultura, Política & Diversidade” e da equipe do projeto de pesquisa “Homossexualidade e Homofobia, representações e mídia no Brasil Contemporâneo”. (Orientador) Professor adjunto do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Doutor em História Social pela UFU, líder do “Universo Dialógico - Grupo de Pesquisa em Cultura, Política& Diversidade”, coordenador do projeto de pesquisa “Homossexualidade e Homofobia, representações e mídia no Brasil Contemporâneo” e do Laboratório de Estudos em Cultura & Diversidade, Política & Sexualidade – LabDiS. 1 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 Regina Facchini, na obra “Sopa de Letrinhas? – Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90”, utiliza as siglas MHB (Movimento Homossexual Brasileiro) quando se refere ao movimento. A autora ainda afirma que as siglas foram comumente utilizadas em períodos específicos. [...] como em 1993, esse movimento aparece descrito como MGL (movimento de gays e lésbicas). A partir de 1995, aparece primeiramente como movimento GLT (gays, lésbicas e travestis) e, posteriormente, a partir de 1999 e por iniciativa do grupo a partir do qual realizei minhas observações, passa a figurar como um movimento GLBT – de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros.1 Para além destas terminologias que buscam dar conta de um movimento complexo e de constantes transformações ao longo das ultimas décadas, o movimento LGBT constitui-se como [...] um recorte em uma rede de relações sociais, no qual estão presentes indivíduos e organizações da “sociedade civil”, diferenciáveis pelo fato de compartilharem e atuarem com vistas a um mesmo objetivo geral com relação ao tema da “homossexualidade”: a “emancipação” ou a obtenção de “cidadania plena” para “os (as) homossexuais” ou outras identidades sexuais tomadas como sujeito do movimento.2 Mas antes adentrarmos numa discussão política e social sobre os primeiros grupos do movimento LGBT no Brasil, retomamos a discussão sobre Movimentos Sociais, elucidando a importância dos grupos que compõem e representam frente as questões das minorias. GRUPOS E MOVIMENTOS SOCIAIS Segundo Scherer Warren3 a categoria “movimentos sociais” foi originada por volta de 1840, decorrente ao surgimento do movimento operário europeu. Segundo Facchini, os movimentos sociais recebem vários nomes que buscam dar conta da variedade empírica e de suas mudanças conjunturais, e assim também são chamados de movimentos populares, movimentos sociais urbanos, novos movimentos sociais, movimentos sociais contemporâneos, antigos movimentos sociais, movimentos baseados nas lutas de classe, 1 FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005, p.20. 2 Idem, ibidem, p.25. 3 SCHERER- WARREN, Ilse. O caráter dos novos movimentos sociais. In. SCHERER-WARREN, Ilse & KRISCHKE.Paulo. Uma revolução no Cotidiano? Os novos movimentos sociais na América do Sul. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. 2 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 movimentos alternativos, movimentos libertários, associações civis, ONGS, redes de movimentos sociais e campos étnicos-políticos.4 No mesmo sentido que a terminologia de movimentos sociais está atrelada a mudanças decorrentes do espaço e tempo, as análises de um movimento social, tendo-o como objeto de estudo, deve-se considerar também a contexto o qual está inserido. Análises sobre grupos e movimentos sociais que não contemplam um esboço da conjuntura em que os mesmos estão submersos, pode trazer significados equivocados quando se busca identificar e analisar os mesmos, até mesmo quando o estudo se propõem a discutir questões intrínsecas e identitária do grupo ou movimento. Esta afirmação, ainda pode ser sustenta quando se entende a política de cada contexto histórico e as condições desiguais na sociedade. Partindo desta realidade, surgem como respostas, grupos representantes de minorias.5 Maria da Gloria Gohn afirma que “[...] os movimentos transitam, fluem e acontecem em espaços não-consolidados das estruturas e organizações socais. Na maioria das vezes eles estão questionando estas estruturas e propondo novas formas de organização à sociedade política.”6 Na ocorrência de melhorias ou de mudanças estruturais e conjunturais da sociedade civil e política, os movimentos e grupos também se transformam, pondo em cena novas reivindicações sobre os “novos” problemas. Após o papel de destaque dos movimentos frente ao regime militar, Gohn afirma que “o tempo passou, surgiram novos campos temáticos de luta que geraram novas identidades aos próprios movimentos sociais, tais como na área do meio ambiente, direitos humanos, gênero, questão étnico-raciais, religiosas, movimentos culturais etc.”7 Segundo Gohn, estes movimentos são considerados por alguns analistas, como forma de fazer política. Visando melhorias de uma sociedade mais justa, tais movimentos possuem reivindicações que vão de encontro ao interesse do grupo e tencionando o Estado á atendê-los. 4 Ver. FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?. Op. cit., especialmente capítulo 4. ver MANTEGA, Guido. Sexo & poder. São Paulo, Brasiliense, 1979. 6 GOHN, Maria da Gloria. Teorias dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2000, p. 12. 7 GOHN, Maria da Gloria. (Org.). Movimentos Sociais no início do século XXI: Antigos e novos atores sociais. 5. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2011, p.7. 5 3 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 E ainda é possível pensar em uma indissocialidade das melhorias na condição de vida de grupos marginalizados para com suas lutas e reivindicações. Christophe Dejours na obra “A loucura do Trabalho - Estudo de Psicopatologia do Trabalho”, que propõem entender a história do movimento operário e sua correlação de forças entre os trabalhadores, patrões e Estado. Afirma que, A evolução das condições de vida e de trabalho e, portanto, de saúde dos trabalhadores não pode ser dissociada do desenvolvimento das lutas e das reivindicações operárias em geral. [...] Além do mais, a “frente pela saúde” só progrediu graças a uma luta perpétua, pois as melhorias das condições de trabalho e saúde foram raramente oferecidas graciosamente pelos parceiros sociais. (Exceto em certos períodos, onde o interesse econômico se reuniu momentaneamente ao dos trabalhadores; as guerras; durante as quais foram tomadas medidas especiais para proteger uma mão de obra que se tornava preciosa.) 8 A esta breve discussão dos movimentos sociais, podemos perceber a importância dos mesmos frente aos problemas sociais e políticos relacionados á grupos ou segmentos da sociedade. Como afirma Gohn que “enquanto a humanidade não resolver seus problemas básicos de desigualdades sociais, opressão e exclusão, haverá lutas, haverá movimentos.”9 OS SURGIMENTOS DOS GRUPOS HOMOSSEXUAIS NO BRASIL E A CONJUNTURA DAS DÉCADAS DE 1970, 1980 E 1990 “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Começamos pelo slogan que caracterizou o mais recente período autoritário da história do Brasil, inaugurado pelo golpe civil-militar de 1964, encerrado vinte e um anos depois, quando da posse de José Sarney como primeiro presidente civil, mesmo que eleito indiretamente (o primeiro presidente civil eleito por meio de eleições diretas seria Fernando Collor de Melo, em 1989). O slogan, de inspiração norte-americana, frisava o patriotismo, a ordem e o progresso da nação nos chamados anos de chumbo, de 1969 até 1974, mas não apenas, encobrindo a violência do regime. Ao iniciarem o que acabaria sendo um período de vinte anos de governo autoritário, de 1964 a 1985, os militares brasileiros, apoiados pelas elites econômicas e a classe média, empenharam-se em um projeto altamente articulado de desenvolvimento tecnocrático que tinha o objetivo de projetar a economia brasileira no moderno 8 DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5 Ed. Ampliada. São Paulo: Cortez – Oboré, 1992, p. 13. 9 GOHN, Maria da Gloria. Teorias dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2000, p. 20. 4 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 sistema capitalista e de manter firmes as barricadas contra a ameaça do comunismo.10 Segundo o brasilianista11 James Naylor Green, o ano de 1968 começou com protesto estudantis contra a ditadura e um sentimento crescente de otimismo quanto a possibilidade de retorno a um governo democrático.12 “Mas terminou com o Ato Institucional, o AI-15, decretando o fechamento do congresso, suspensão dos direitos constitucionais e a cassação de inúmeros mandatos”.13 Como resposta ao Ato institucional AI-5, membros de organizações de esquerda partiram para a luta armada e sequestraram, em setembro de 1969, o embaixador americano no Brasil. Facchini faz ponderações de como o ato institucional interferiu na formação de possíveis grupos de afirmação homossexual. Todavia, parece claro que se o governo militar não tivesse deslanchado uma onda de repressão, ampliado a censura e restringindo os direitos democráticos em fins de 1968 com a imposição do AI-5 além de outras medidas, um movimento politizado pelos direitos de gays e lésbicas possivelmente teria surgido já no início dos anos 70.14 Além de retardar a formação e a organização dos grupos que viriam a ser representantes do movimento LGBT, este período também condiciona a própria formação dos grupos que posteriormente vieram a se formar. Segundo Facchini,15 além da ditadura estimular a formação de resistência em diversos setores sociais, também pode ter sido responsável pelo perfil fortemente anti-autoritário que marcou a primeira onda do movimento homossexual brasileiro. 10 PARKER, Richard. Abaixo do Equador – culturas do desejo, homossexualidade masculina e comunidade gay no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 157. 11 Também chamados de brazilianists, o termo passou a ser utilizado por historiadores brasileiros no período do regime militar para com os estudiosos norte-americanos, que estudavam o Brasil, especificamente, no período conhecido como “milagre econômico”, quando o PIB crescia bruscamente. Cf. FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2004, notadamente o capítulo “Narrativa” (pg. 28–29). 12 GREEN, James Naylor. Além do carnaval – a homossexualidade no Brasil no século XX. São Paulo: Unesp, 2000, 13 Idem, ibidem, p. 391. 14 FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005, p. 91. 15 Idem, ibidem, p. 000. 5 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 Ainda no ano de 1969, o congresso é reaberto no intuito de instaurar a presidência do general Emílio Garrastazu Médici, que “dava início a uma campanha enérgica para divulgar as realizações econômicas, políticas e sociais conquistadas pelos militares.”16 E, Entre os progressos econômicos mencionados pelo governo estavam o aumento das exportações, o incremento do comércio com o Japão, a construção de fábricas de automóveis e de novas estradas e os novos acordos de créditos com os Estados Unidos da América.17 Vale ainda ressaltar que “o modelo econômico militar e as políticas de financiamento favoreceram a concentração de renda nas classes média e altas urbanas e criaram um mercado em expansão para bens domésticos duráveis”18. Passando então, os militares a ter o apoio de muitas pessoas desses setores. Segundo Richard Parker na obra “Abaixo do Equador – culturas do desejo, homossexualidade masculina e comunidade gay no Brasil” este período de fantástico desenvolvimento econômico, sendo conhecido também como “o milagre econômico”, com uma taxa anual de crescimento de 8,6% no início da década de 70, transformou simultaneamente o Brasil na maior nação devedora do mundo no final da década de 1970.19 Também foi nesta década que Segundo Facchini, se verificou um crescimento sem precedentes na produção de estudos sobre as atividades associativas e as ações sem precedentes que se convencionou chamar naquele momento de “movimentos sociais” 20. No entanto, tais movimentos em grande parte, segundo Green, perto do fim de 1972 haviam se desmantelado, e seus membros estavam mortos, presos e exilados, embora ainda existissem pequenos grupos esquerdistas de guerrilheiros urbanos. O autor ainda aponta que o governo de Médici não se limitou a neutralizar a oposição violenta ao governo, impuseram também 16 GREEN, James Naylor. Op. cit., p., 392. Idem. 18 Idem. 19 PARKER, Richard. Abaixo do equador – culturas do desejo, homossexualidade masculina e comunidade gay no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2002.. 20 Ver também, sobre a historiografia dos movimentos sociais no Brasil: MUNAKATA, Kazumi, 1979; MARSON, Adalberto. Mmmmmm. 17 6 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 pesadas regras de censura, ampliando o controle sobre a imprensa, o rádio, a televisão e as artes.21 Em 1973 as rápidas taxas de crescimento foram interrompidas no Brasil, assim como também em outros países em desenvolvimento, o motivo, segundo Parker, foi que o embargo do petróleo da Organização dos Países Exortadores de Petróleo (Opep) entrou em vigor, causando com isso o aumento acentuado nos preços das mercadorias nos países industrializados e uma grande recessão que levou a decréscimos significativos na demanda de produtos dos países em desenvolvimento.22 Com baixas reservas petrolíferas e uma dívida externa crescente, a inflação no Brasil chega a níveis elevados. Ciente do momento de crise a atual gestão, e, Numa tentativa de manter altos os níveis de crescimento em toda a década de 1970, o governo brasileiro tomou extensivamente empréstimos de uma série de diferentes credores internacionais, e a dívida externa bruta explodiu, de apenas 3,8 bilhões de dólares em 1968 para 43,5 bilhões de dólares em 1978 e, em 1984, para 91 bilhões. No final da década de 1970, apenas o custo do serviço da dívida externa acumulada do país consumia mais de 60% do total das exportações brasileiras. 23 A classe média por sua vez é afetada, passando a não mais apoiar a ditadura e, se junta às classes populares apoiando o partido legalizado de oposição ao regime, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Segundo Green, este partido teve um surpreendente avanço nas eleições legislativas estaduais e federais no fim de 1974, forçando a Geisel repensar sua estratégia de controle.24 Neste período iniciava-se a chamada “abertura”, de 1979 até o ultimo governo militar de 1984, que buscava reconduzir o país a um governo civil. Mas embora as condições favorecem á um processo de redemocratização, o presidente ainda continuou com a censura e cassou mandatos de alguns políticos, até decretando prisões. 21 GREEN, James Naylor. Além do carnaval – a homossexualidade no Brasil no século XX. São Paulo: Unesp, 2000. 22 PARKER, Richard. Abaixo do equador – culturas do desejo, homossexualidade masculina e comunidade gay no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2002. 23 Idem, ibidem, p. 159. 24 GREEN, James Naylor. Além do carnaval – a homossexualidade no Brasil no século XX. São Paulo: Unesp, 2000. 7 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 Novamente, em 1977, mobilizações em massa de estudantes voltam a confrontar-se com o regime vigente. Passando a subseqüentes anos de reivindicações com greves por parte dos trabalhadores do ABC paulista, até o ano de 1978, em que finalmente, a oposição veio a triunfar nas eleições de 1978. A vitória da oposição denotava o maior apoio em todas as classes sociais, que por sua vez, estavam insatisfeitas com o governo dos militares e a situação econômica brasileira. Foi também no ano de 1978, que se iniciou atividades contra o sexismo e uma cultura machista partindo de ativistas gays e de feministas, se inserindo em uma atmosfera política, que por sua vez se encontrava naquele momento, mais flexível á reivindicações. “O desafio das feministas ao patriarcado, à rigidez dos papéis de gênero e aos costumes sexuais tradicionais desencadeou uma discussão na sociedade brasileira que convergiu com as questões levantadas pelo movimento gay a partir de 1978”.25 Cientes de uma certa “oportunidade de espaço”, um grupo de intelectuais aproveitou o momento, assim como as feministas, para lançar fundações para a construção de um movimento gay. Em 1978, um pequeno grupo de intelectuais do Rio de Janeiro e de São Paulo fundou o Lampião da Esquina, um tablóide mensal de ampla circulação dirigido ao público gay. Muitos meses depois, um grupo de homens em São Paulo formou o Somos, a primeira organização pelos direitos gays do país. 26 E é esta fundação intitulada de “Somos” que Facchini associa ao surgimento do movimento homossexual no Brasil; grupo que adquiriu grande notoriedade e visibilidade do ponto de vista histórico, não só por ter sido o primeiro grupo brasileiro, mas por ter se tornado um modelo, tanto para as outras organizações como também para os pesquisadores do tema27. A firmação desta autora também pode ser constatada quando Edward MacRAE descreve a primeira ação deste grupo em sua obra “O que é homossexualidade”: Em fevereiro de 1979, os membros deste grupo já agora batizado de “SOMOS Grupo de Afirmação Homossexual” apareceram pessoal mente em público durante um debate sobre as minorias, promovido na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. A importância deste debate é que marcou mais 25 Idem, ibidem, p. 394. Idem, ibidem, p. 395. 27 FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. 26 8 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 uma vez a crescente importância do movimento homossexual como interlocutor legítimo na discussão dos grandes assuntos nacionais. Além disso, foi uma experiência catártica que aumentou a confiança dos participantes e deu impulso à formação de outros grupos similares em São Paulo e outras cidades como também em vários estados.28 Dois dos novos grupos que formaram a partir desse debate, segundo Facchini, foi o Eros e o Libertos.29 Nesse debate a polarização entre, [...] a “esquerda” e a “autonomia das lutas das minorias” também passa a marcar o grupo. Essa polarização, posteriormente, seria responsável pelos conflitos internos no grupo, na medida em que militantes do Somos passaram a defender uma estratégia de transformação social que passava por uma aliança com outras minorias, movimento de trabalhadores e grupos de esquerda. 30 MacRae anpud Facchini identifica algumas propostas e características presentes no grupo Somos naquele período, que era, [...] formado exclusivamente por homossexuais; as palavras “bichas” e “lésbicas” deviam ser esvaziadas de seu conteúdo pejorativo; na análise das relações de gênero, as assimetrias entre o homens e mulheres deveriam ser combatidas, bem como a polarização ativo/passivo e os estereótipos efeminado/masculinidade; a “bissexualidade”, como identidade ou subversão de todas as regras; a monogamia e a possessividade nos relacionamentos eram questionados; o prazer era visto como bem supremo, e o autoritarismo devia ser combatido em todas as suas manifestações tanto fora quanto dentro. Neste mesmo sentido de “esvaziar” o conteúdo pejorativo das palavras “bichas” e “lésbicas”, o jornal Lampião da Esquina, como aponta MacRae, “foi de grande importância, na medida em que abordava sistematicamente, de forma positiva e não pejorativa, a questão homossexual nos seus aspectos políticos, existenciais e culturais.”31 De fato, a proposta e o modo da discussão que se propunha o jornal, passa a incomodar, e Apesar do abrandamento da censura e do fato de a homossexualidade nem sequer ser mencionada no Código Penal Brasileiro, em 1979 instaurou-se um inquérito policial contra os editores do Lampião, que seriam acusados de infringir a Lei de Imprensa por contrariar a “moral e os bons costumes”. 32 28 FRY, Peter; MacRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 12. FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. 30 Idem, ibidem, p. 95. 31 FRY, Peter; MacRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 11. 32 Idem. 29 9 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 Os editores do Lampião são defendidos pelos advogados do Sindicato dos Jornalistas. Embora tenham passado por meses de intimidação e humilhação, as ações policiais e judiciárias foram arquivadas. Segundo Green, muitos os fatores convergentes facilitaram o surgimento do movimento LGBT no Brasil. Como, O espaço social conquistado pelos “bichas” e “bonecas”na década de 1960, a difusão de idéias a partir do movimento gay internacional, o desenvolvimento de uma crítica brasileira ao machismo e à homofobia e a influencia dos movimentos políticos e sociais de esquerda sobre os principais líderes. 33 Na difusão de idéias a partir do movimento gay internacional, é importante ressaltar que apesar da censura como marca do governo durante a década de 1970, não obteve as informações do surgimento e do crescimento do movimento gay internacional chegaram ao Brasil e divulgava pela imprensa, a mesma trazia “um retrato positivo dos movimentos de gays e lésbicas em outras partes do mundo.”34 Neste sentido, aproximando a comunidade homossexual da organização da produção econômica ou das estruturas de poder político e a globalização, Parker afirma que [...] é impossível compreender plenamente os acontecimentos das ultimas décadas sem alguma referencia à natureza do desenvolvimento dependente na medida em que ele determinou os processos de industrialização e urbanização, ou a história em evolução de políticas autoritárias, redemocratização e consolidação a sociedade civil que ocorreram a partir do final da década de 1970. Esses acontecimentos, por sua vez, foram formulados por processos e fatos que ocorreram em nível global e tiveram impacto na vida brasileira.35 A vida gay no Brasil contemporânea está relacionada aos processos globais mais amplos. “Os enclaves e comunidades urbanos que surgiram no Brasil foram inevitavelmente 33 GREEN, James Naylor. Além do carnaval – a homossexualidade no Brasil no século XX. São Paulo: Unesp, 2000, p. 396. 34 Idem, ibidem, p. 416. 35 PARKER, Richard. Abaixo do Equador – culturas do desejo, homossexualidade masculina e comunidade gay no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 294. 10 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 alterados por forças externas”36, como as que Parker vai denominar de “cultura externa”, que por sua vez, é absorvida e reelaborada dentro da organização de vida brasileira. É nessa interação que a apropriação de significados locais como parte de uma economia cultural global também ocorreu – que uma variedade de imagens sobre a vida e as homossexualidades brasileiras tomaram forma e lugares distantes como Nova York, Paris ou Sidney. É o tipo de interação que é claramente característico de uma série de formas culturais do final do século XX e que talvez seja especialmente evidentemente na forma em processo de mudança da homossexualidade e da vida gay. De modo geral podemos afirmar que a transformação neoliberal presente nas ultimas décadas condicionou a vida e a formação de comunidades gays no Brasil, como exemplo o surgimento recente de uma economia cor-de-rosa, que aflorou na década posterior. “O pleno compromisso com as políticas sociais e econômicas neoliberais no final dos anos de 1990, contudo, resultou em um mercado gay em crescimento explosivo, mesmo nas cidades pequenas fora de São Paulo e Rio.”37 Terminamos este sub-capítulo com a reflexão de Parker sobre a formação identitária da vida gay. Bem ou mal, foi dentro desse contexto – de desenvolvimento dependente, autoritarismo e redemocratização, capitalismo industrial e neoliberalismo no mundo moderno cada vez mais globalizado – que as vidas de homens e mulheres gays evoluíram no Brasil durante as últimas décadas. É nesse contexto que suas esperanças, imagens e esforços devem ser compreendidos. CONSIDERAÇÕES FINAIS No inicio do movimento homossexual brasileiro, é possível identificar sua forma politizada e sua postura contra discriminação sexual. As campanhas contra os valores machistas e o autoritarismo do regime político vigente, que por sua, entrava em declínio, e consequente, propiciava espaços para reivindicações, marcam fortemente a identidade dos grupos. Assim é possível entender a formação identitária dos primeiros grupos que se formam no período de abertura a partir da conjuntura, ainda mais se elucidarmos a teoria dos movimentos sociais de Maria da Glória Gonh, que além de nos mostrar a importância das reivindicações de grupos e segmentos da sociedade perante questões desiguais sociopolíticas, 36 37 Idem, ibidem, p. 295. Idem, ibidem, p. 173. 11 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 como as que sofrem e sofreram o movimento LGBT, contribui também para o entendimento da formação dos grupos, afirmando que os mesmo surgem como respostas a forma desigual de atuação da gestão política. Mas também é preciso refletir, na afirmação de Parker, de um processo de formação maior sobre movimento LGBT e das comunidades gays, no qual está ligada a uma economia global e um fenômeno globalizante, que nem a censura brasileira, por mais repressora que tinha sido, não conseguiu burlar as informações sobre a formação e o crescimento do movimento gay internacional. Esses são os fatores extrínsecos ao território brasileiro, que apontamos como influenciadores locais de uma identidade gay, que passa a ressignificar elaborando uma cultura gay, que por sua vez, responde antes de tudo as possibilidades econômicas e geográficas locais. 12 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5 Ed. Ampliada. São Paulo: Cortez – Oboré, 1992. FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de identidades nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2004. FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1983. GOHN, Maria da Gloria. (Org.). Movimentos Sociais no início do século XXI: Antigos e novos atores sociais. 5. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2011. GOHN, Maria da Gloria. Teorias dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2000. GREEN, James Naylor. Além do carnaval – a homossexualidade no Brasil no século XX. São Paulo: Unesp, 2000. LAURITSEN, John & THORSTAD, David. 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