Considerações sobre a relação entre método e metamorfose
Luiz Moreno GUIMARÃES
Introdução
A Teoria dos Campos não é uma teoria, a Teoria dos Campos também não é um
campo, muito menos uma teoria psicanalítica (uma metapsicologia) sobre os campos; de
tal forma que podemos nos perguntar: por que a Teoria dos Campos tem esse nome?
Uma pista inicial surge se inver-termos – em uma operação quiasmática – os termos que
compõem esse nome, ao lembrar que um das principais frentes de trabalho da Teoria
dos Campos é justamente romper o campo da teoria. Um bom exemplo desse quiasma é
perceber que, para aquele contaminado pela Teoria dos Campos, estudar a teoria do
narcisismo ou a teoria do fetichismo é tão importante quanto analisar o narcisismo da
teoria ou o fetichização do conceito. Nesse sentido, o ato de nomeação da Teoria dos
Campos é similar ao que nomeou o oceano pacífico (justamente o oceano mais
turbulento da Terra) ou nomeou a banana nanica (uma das maiores) – ou seja, é um ato
de batismo que evoca o outro pelo que ele não é, pelo seu extremo oposto.
Se a Teoria dos Campos não é uma teoria sobre os campos, o que ela é então?
Ela é uma tentativa de depuração do método da psicanálise. Reparem como se repetem
na obra de ........... – sempre com maestria – os seguintes termos: depuração, solvência,
dissolução. Todos esses termos estão relacionados semanticamente, todos trazem uma
conotação química (eles provém da química) e todos apontam para uma simplificação.
Trata-se da introdução de um menos e não da introdução de um mais. Antiteticamente,
dissolver ou depurar é uma operação complexa que tem como produto algo simples. De
maneira chistosa, usando os termos de Leonardo da Vinci, podemos dizer que depurar é
uma operação per via di levare que é oposta ao per via de porre, por ser em sua
essência um per via de ritirare.
Esse retirar, esse simplificar, insisto, não tem nada de simplista, é na verdade
uma operação complexa que foi pouco examinada, salvo engano. Então, quando .........
define a Teoria dos Campos como uma depuração do método da psicanálise, ele nos
remete não à introdução de um elemento novo (um conceito novo, uma teoria nova),
mas justamente ao contrário: ao retirar, ao introduzir um menos. O que paradoxalmente
ocorre é que é justamente a introdução de um menos que nos conduz a algo novo. O
1
trabalho que segue é uma tentativa de deixar esse processo de depuração um pouco mais
claro.
*
Primeira proposição: todo ato de subtração opera uma ressignificação.
Há uma extraordinária passagem escrita por Marcel Proust, em A busca do tempo
perdido, em que Marcel (o personagem central), utilizando o telefone pela primeira vez,
ele vai falar com sua avó do outro lado da linha. A gente tende a esquecer, ou nunca se
deu conta, que ao falar no telefone ocorre um processo metonímico em que a voz passa
a representar o corpo todo - como se pudesse existir uma voz sem corpo. O que
acontece com Marcel é que essa voz, apartada do corpo, o surpreende. A voz que ele
ouve é de uma medrosa e velha mulher, e não de uma avó gentil e carinhosa como ele
lembrava. E o que ocorre é que essa percepção da voz, apartada do corpo, colore toda
representação que ele tinha da avó. Quando mais tarde ele a visita pessoalmente, Marcel
a percebe de uma outra maneira, como uma estranha. Uma velha meio louca, vulgar,
não mais a charmosa e cuidadosa avó de antes. Que experiência é essa que vive Marcel?
Um elemento é isolado do todo, sobre esse elemento incide uma estranheza, e, ao voltar
para o todo, ele traz a estranheza de tal modo que o todo já não pode ser mais o mesmo.
O que ocorre é uma sorte de ressignificação metonímica, isto é, deixar a parte colorir o
todo.
É nesse sentido que ........... nos diz, na Interpretação dos Sonhos: não
analisemos em massa mas em detalhe. Isto é, de nada adianta pedir uma associação
acerca do sonho como um todo. De nada adianta perguntar ao paciente: esse sonho que
você teve o remete ao que? Geralmente, tal pergunta é respondida com um branco:
“nada, não me remete a nada”. Ou seja, o todo – puro branco – não colore. No entanto,
............. nos propõe que peguemos uma parte do sonho (que pode ser uma cor, um
objeto, um nariz) e pedir ao paciente associações a partir daquela parte. Essas
associações, que provém da parte, colorem o todo do sonho e o permite ser analisado. A
depuração também é um ato de subtração que opera uma ressignificação metonímica.
*
Os tourinhos de Picasso
2
Conversemos um pouco sobre essa obra de Pablo Picasso batizada de As metamorfoses
de um touro1.
Como vocês vêem, ou irão ver, trata-se de uma obra dividida em duas pranchas; cada
prancha se divide, por sua vez, em seis partes; somando um total de doze pequenos
quadros. E em cada quadrinho encontramos uma representação distinta de um mesmo
touro. No entanto, não são representações esparsas, ou desconectadas entre si. Tudo se
passa como se os tourinhos de Picasso sofressem de algum mal (ou algum bem) que vai
se agudizando – cronificando – até chegar a sua forma mínima. Assim no começo
vemos um touro soberbo, balançando seu rabo, cheio; na medida em que avança o
trabalho do pintor, as representações vão cada vez mais se distanciando dessa inicial,
indo em direção àquilo que podemos chamar de touro-linha: um touro pura linha, uma
sorte de traços mínimos que compõem a representação de um touro.
Cito um jornalista que acompanhou de perto a produção dessa obra:
Um dia, ele [Picasso] começa o famoso touro. Um touro soberbo. Bem
roliço. Pensei que estava pronto. Não estava. Veio um segundo
estágio, um terceiro. Sempre bojudo. Picasso continua trabalhando. O
touro já não é o mesmo. Vai diminuindo, diminuindo de peso. Picasso
estava tirando em vez de pôr. Ao mesmo tempo ele ia decompondo o
touro. Ele via que estávamos um pouco perplexos. Dizia uma
brincadeira e continuava trabalhando. Outro touro apareceu. E cada
vez sobrava menos touro. Picasso me olhava e ria, e uma vez disse:
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...........
3
“Vamos dar isso ao açougueiro. A dona de casa poderia dizer, quero
este pedaço”.2 Na última prova só restavam algumas linhas. Eu olhava
o artista trabalhar. Ele suprimia, suprimia. Pensei no primeiro touro, e
disse comigo: é curioso; ele terminou por onde normalmente devia
começar. Mas Picasso procurava o seu touro. E para chegar ao touro
de um único traço passou por todos aqueles outros touros. E quando se
vê esse traço único não se pode imaginar o trabalho que o artista teve. 3
Há uma subversão no modo de conceber a produção artística figurativizada
nesses tourinhos de Picasso. Se correntemente pensamos numa obra – qualquer que ela
seja (de arte, uma obra literária, uma construção de uma casa) – e imaginamos que a
produção dessa obra possui o percurso que vai do rascunho ao trabalho final, como
geralmente nós mesmos construímos nossas obras, Picasso, em sua série, subverte essa
lógica. Já não se trata de ir do esboço à sua versão final, mas ao contrario, partindo do
touro-soberbo vamos em direção ao touro-linha (............, 1995): partindo de sua suposta
representação total e final caminhamos em direção à sua representação mínima e inicial,
sem nunca deixar de ser touro. Se aplicássemos tal procedimento a uma casa, nada mais
restaria a não ser seus andaimes
Em termos da semiótica francesa, (e eu me utilizo aqui de uma excelente análise
do semioticista brasileiro .............) podemos dizer que o ponto de partida é um touro
concreto e complexo que vai em direção a um touro abstrato e simples. Retomo: do
concreto e complexo, ao abstrato e simples. Ou seja, trata-se de uma dupla torção, tal
como ocorre na fórmula canônica do mito de ............ Do touro, à sua tauridade, Picasso
opera uma res-taur-ação4.
Mas o que mais se passa com os tourinhos de Picasso? Talvez uma doença
degenerativa cubista seria o diagnóstico psiquiátrico-artistico. Um nutricionista
semioticista poderia dizer que o touro se encontra em uma intensa dieta de
complexidade. Ou talvez, apenas sofra de Picasso. Como nós sofremos de Freud, por
sermos personagens da grande obra freudiana.
Imagine esse touro no sertão rosiano, ou em um conto de Borges, ou ainda em
uma travessia pelo Hades, em uma katabasis: ele vai se purificando (se de-purificando),
ao longo de uma longa catarse, ao final da qual ocorre um ato de revelação... Isso para
2
..................
.............
4
Agra-desço ao amigo Thiago E. Luzzi pelo chiste.
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4
dizer que essa travessia do touro está longe de ser tranquila e se aproxima mais de uma
experiência trágica.
............. faz uma interessante sugestão no Seminário III (1955-56), ele diz que se
você quiser saber se uma obra de Picasso é uma metáfora ou uma metonímia entregue-a
a uma criança (ele não diz a faixa etária, o que dá a entender que pode ser qualquer
criança), se ela sorrir ou rir é uma metonímia, se não, é uma metáfora. E complementa:
as melhores obras de Picasso são sempre metonímicas. Ainda não entendi muito bem
essa relação que ............ formula nessa sugestão (entre o riso da criança e a metonímia;
e o não riso e a metáfora), mas decidi fazer o experimento; e para as três crianças que
dei uma cópia (como essa que entreguei a vocês) todas riram. É claramente uma
metonímia. Mas uma metonímia singular onde é mais importante o que ela mostra
esconder do que o que ela propriamente exibe.
Percebam que o touro aqui é contingente, ele poderia ser substituído por
qualquer outro objeto: uma pedra, por exemplo, que chega ao seu átomo; ou poderia ser
meu amigo Thiago, que chega ao seu chiste. De tal forma que fica a questão: qual é o
objeto de Picasso? O seu objeto é o próprio processo de solvência a que está submetido
o touro: seu objeto é a metamorfose do touro: não o touro em si, mas o si do touro. Restauro do sido touro.
Lembremos da noção de solvência, em A psique e o eu de ...........:
Falando com rigor, o verdadeiro objeto da Física não é a pedra nem o
átomo em que esta se dissolve diante do olhar teórico, mas o próprio
movimento de solvência cinematrográfica que representa tal
dissolução – ainda se vê a sombra de pedra, já se notam as minúsculas
partículas, mas o foco é a representação do movimento teórico que
leva de uma às outras, e do átomo às partículas sub-atômicas etc.;
analogamente, na Psicanálise, o objeto não é certa consciência
racional ou o inconsciente relativo em que esta se dissolve a cada
ruptura de campo, mas o mesmo momento mágico de solvência, como
entre pedra e átomo, quando o pensamento põe suas entranhas à vista,
sob forma de vórtice, e o movimento metodológico entra em foco.
(1999, p. 40)
“Minhas entranhas ao vento, se as vejo, me desentranho”.5
São raros os momentos em que ............... faz uma analogia, até porque “Uma
interpretação alegórica”, diferente da interpretação metafórica, “põe em paralelo duas
5
.................
5
histórias, das quais a segunda é o sentido correto da primeira” (1999, p. 14) e é
justamente essa operação que a Teoria do campos vem criticar: de que uma história é a
verdade da outra, de que a fala do analista é a verdade do paciente, por exemplo. No
entanto, quando se trata de tentar evidenciar a forma como trabalha o analista é comum
o recurso à analogia; e isso se dá não só em ..........., mas também em Freud –
lembremos da analogia do trabalho do analista com o trabalho do arqueólogo, ou do
processo de uma análise com a partida de xadrez – e também em ............. – que coloca o
psicanalista como uma criança de cinco anos, de certa forma, rompendo com esse
paralelo de uma ciência com outra.
Enfim, eu diria que o touro caminha em direção aos seus andaimes. Mas o que é
um andaime? Esse termo – pouco analisado, mas que eu penso ser de suma importância
– se encontra no título da trilogia Andaimes do real (O método da psicanálise, A
psicanálise do quotidiano, Psicanalise da crença) escritos em diferentes momentos da
obra de ............... Em O método da Psicanálise, .................. define a noção de
andaimes:
Ergue-se um edifício de apartamentos. Os andaimes são desmontados,
mas sua forma persiste, integrada na do prédio. A amarração do
concreto, as linhas insubstanciais de força, os pilares de sustentação
embutidos nas paredes (exceto no porão ou nas garagens) perpetuamlhe a forma. Habitado o prédio, os moradores já os desconhecem;
porque suas próprias vidas tomaram as formas dos andaimes também:
duramente esquinadas, incompletas, provisórias e sem raízes, formas
feitas para durar o tempo certo até a desmontagem, dando lugar a
outras vidas análogas que, por isso mesmo, hão de ignorá-las. A vida
rotineira se ignora, enquanto os andaimes sonham, talvez. (2001, p.
148)
Andaime não é propriamente a estrutura, mas é aquilo que permite a estruturação da
estrutura; os andaimes estão aquém (ou além) da estrutura.
Segunda proposição: analisar é promover um retorno aos andaimes.
A noção de andaimes parece estar mais próxima do traço unário (formulado por
.........) ou a noção de esboço (que não foi formulada por ninguém, salvo engano).
Esboço é uma palavra que se encontra na ultima grande tentativa de síntese de .........,
Esboço de psicanálise – que ele iniciou a escrita em 1938, salvo engano e ficou
inacabado, de tal forma que o próprio texto parece ser um esboço de um esboço. Por
sinal, a obra de ........... pode ser mapeada começando com o Projeto para uma
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psicologia científica de 1895 (uma representação soberba inicial) e vai até O esboço de
psicanálise (uma representação-linha final). Anos e anos de trabalho para se chegar ao
esboço.
O que é um andaime senão uma sustentação provisória (sem raízes no real) que é
utilizada para se erguer uma sustentação permanente, a partir da qual pode-se iludir-se
de que há sustentação no real. Os andaimes são a verdade de uma construção.
Se ............. em 1937, no texto Construções em análise, divide o trabalho do
analista entre interpretar e construir, com ............... podemos dizer que o trabalho do
analista também é construir, no entanto, essa construção em análise é sempre paradoxal,
antitética: trata-se de uma construção dos andaimes: oximoro perfeito.
Caminhar em direção aos seus andaimes significa caminhar em direção ao gesto
radical de sua fundação. Uma análise termina quando se revela para o sujeito esses
traços mínimos que compõem o seu destino.
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