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14 de março de 2014
A sexualidade na relação materno-infantil1
Falar sobre sexualidade do ponto de vista
humano depende não só de sua aparência física, mas
psicanalítico requer, antes de mais nada, que se
principalmente da imagem mental que paulatinamente
estabeleça sua distinção com o sexo no seu sentido mais
vai criando através da estruturação do seu psiquismo.
comum. Em Psicanálise a sexualidade tem uma
O
bebê
humano
tem
uma
diferença
conotação mais abrangente, ela não se reduz ao ato
fundamental para os das demais espécies, pois nasce em
sexual. Ela vai além, ela se relaciona com os
total estado de desamparo, tanto físico quanto psíquico.
investimentos
geral,
Esta condição especial acarreta numa importante
especialmente com a pulsão, a força motriz do aparelho
conseqüência para seu desenvolvimento, posto que o
mental que está constantemente em busca de satisfação.
nenê depende inteiramente de uma outra pessoa para
A pulsão sexual ou libido tem sua satisfação por meio
satisfazer suas necessidades. Aquele que cuida da
da descarga, não envolvendo necessariamente uma
criança - a mãe ou uma substituta – tem extrema
descarga no ato sexual.
importância não só para sua sobrevivência física, mas
afetivos
de
uma
forma
A sexualidade é uma expressão pulsional por
também psíquica. A relação do bebê com sua mãe será
natureza cuja função é o prazer. O sexo, por sua vez,
muito importante na forma como o sujeito construirá a
pode ser compreendido como uma função biológica e
imagem de si e estruturará seu aparelho mental. Por sua
genital cujo objetivo é a reprodução. Da mesma forma
vez, esta estruturação psíquica determinará a maneira do
que, para a teoria psicanalítica, o psiquismo não é
indivíduo lidar com suas demandas internas e com a
redutível ao consciente, a sexualidade não o é ao genital.
sensação perene de desamparo e angústia que
Neste trabalho pretendo trazer a contribuição
acompanha o ser humano ao longo da vida.
da Psicanálise, com sua ótica particular sobre a
No início o bebê sequer tem noção de sua
sexualidade, para abordar a relação da mãe com o bebê.
fragilidade. Graças ao cuidado maternal 2, ele mantém
Mais especificamente, pretendo discutir o início da
temporariamente a ilusão da onipotência infantil e
constituição do ser humano sob o viés do investimento
acredita que a mãe é um prolongamento dele. Esta ilusão
libidinal.
de bastar a si mesmo serve para atenuar o impacto que
Assim como há um desenvolvimento físico que
traria a percepção brutal de sua real fragilidade e assim
acompanha o bebê desde o seu nascimento, também há
evitar uma insuportável angústia de desintegração até
um desenvolvimento mental progressivo e contínuo que
que ele esteja mais fortemente organizado internamente
acontece desde os primeiros dias de vida. Ambos
para elaborar sua fragilidade. Neste início que
ocorrem concomitantemente, se entrecruzam e estão
chamamos de auto-erótico o bebê ainda não tem uma
correlacionados. A construção da identidade do ser
percepção de si próprio com uma unidade, seu ego ainda
1
Trabalho apresentado na mesa-redonda do I Congresso IMIP de Saúde Integral, Recife-PE, novembro de 2007.
Aqui, e todas as vezes que me referir à mãe, estarei falando da função materna a qual pode ser desempenhada também por outra
pessoa que cuide da criança.
2
1
A sexualidade na relação materno-infantil
Ana Cláudia Zuanella
está se constituindo. Ele é um corpo fragmentado e como
fortalecer seu ego para suportar a percepção da
tal o investe em partes disjuntas e desconexas. É muito
separação da mãe.
comum vermos bebês “descobrindo” partes de si próprio
Uma mãe suficientemente boa é aquela que,
gradualmente, olhando pés e mãos como se nunca os
segundo Winnicott (1962), “é capaz de satisfazer as
tivesse visto ou como se fosse algo à parte do seu corpo.
necessidades do nenê no início, e satisfazê-lo tão bem
Lentamente vai investigando-os com os olhos, com a
que a criança, na sua saída da matriz mãe-filho, é capaz
boca e assim desenvolvendo gradualmente a unificação
de ter uma breve experiência de onipotência”. 3
destas partes num todo.
Uma forma de compreendermos a participação
A essa unidade gradativamente formada
materna no começo da vida do bebê é entendendo-na
chamamos de ego. Ele vai sendo desenvolvido através
como uma intermediária na adaptação da criança à
de várias experiências tanto internas como externas, pois
realidade externa, se ela compreende bem seu filho,
ambas estarão constantemente entrelaçadas. O mundo
reconhece e atende às necessidades dele, o choque
interno dá sentido às percepções do mundo externo.
diante da adaptação ao mundo real será atenuado e
Uma experiência muito importante para integração do
realizado com mais tranqüilidade.
bebê é o que Winnicott chama de “holding” que tem o
O
desenvolvimento
mental
da
criança
sentido mesmo de segurar, pôr no colo, aninhar, dar a
prossegue para novos estágios à medida que ela vai
noção física, através do contato com a mãe, dos limites
percebendo que suas necessidades não são totalmente
do corpo do nenê, além de significar também um amparo
satisfeitas, portanto não dependem somente de sua
psicológico, uma sustentação de segurança, um alívio
vontade. Dependem de outra pessoa. O bebê então vai
frente à sensação de desamparo. (mães canguru)
se dando conta da presença do outro. Este outro que na
A mãe, à proporção que toca seu filho, que lhe
realidade é o responsável pela sua satisfação. Este é um
dá banho, que conversa com ele, que o olha, o
momento de intensa frustração diante da perda de sua
compreende, o nomeia, está investindo libidinalmente o
onipotência e também de grande raiva frente à
nenê e com isso vai dando substratos para ele se perceber
necessidade do objeto. É fundamental para o bebê contar
mais integrado, para ele começar a se ver e reconhecer
com uma mãe capaz de sustentar seus anseios e
como separado dela e, portanto como um ser único.
inseguranças para que ele não se sinta ainda mais
Nessa fase, mesmo começando a se perceber
vulnerável e não imagine que suas demandas internas
como uma unidade, o bebê ainda mantém a falsa idéia
sejam incontroláveis e destrutivas, nem que sua angústia
de bastar a si mesmo. Esse estágio inicial que Freud
seja insuportável e o aniquile. Para que a mãe possa dar
denominou narcísico é fundamental para tornar possível
esse suporte é preciso que ela mesma, por sua vez, tenha
o acúmulo de experiências de satisfação suficientes para
tido a chance de construir um ego forte através de suas
começar a construir as bases do amor próprio. Essas
próprias experiências infantis. E, que apesar dela ter tido
reservas narcísicas embasarão a auto-estima do sujeito e
as suas experiências traumáticas diante do desamparo,
permitirão a aceitação da alteridade do outro e a
da angústia de separação, ela tenha sido capaz de lidar
construção de uma imagem diferenciada de si. A
com eles de forma suficientemente adequada e saudável.
sensação inicial de onipotência permite à criança
Winnicott, D.W. – O ambiente e os processos de maturação.
Artes Médicas, Porto Alegre, 1983.
3
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De fato, a relação da mãe com seu bebê está
movimento o mundo interno do sujeito, intermediando
muito marcada por sua própria revivescência infantil.
as representações, simbolizações, o desenvolvimento do
Na realidade a mãe está muito identificada com seu filho
pensamento, a aquisição da linguagem, possibilitando o
e utiliza esta identificação para poder compreendê-lo
aprimoramento da capacidade criativa e o exercício da
melhor e entender suas necessidades. Ela desenvolve
diversidade de cada um.
uma “preocupação materna primária”. A vivência de
Entretanto um mundo exclusivamente de
separação que a criança experimenta nesse momento e
fantasia tampouco se sustenta na criança e é importante
viveu intensamente no nascimento, já foi experimentada
que não o faça. O aparelho mental, e o ser humano por
pela mãe enquanto bebê e repetida na sua angústia de
conseqüência, vai se desenvolvendo a cada etapa
separação revivida no parto. Para a mãe, abrir mão de
frustrada que requer um avanço adiante na procura por
seu filho para o mundo é um momento muito difícil e
outra forma de lidar com o desconforto, com a
ameaçador. Assim como seu filho, a mãe demanda por
frustração, com a busca pela satisfação do desejo.
cuidados diante de sua fragilidade reeditada nas
Um mundo encerrado principalmente na
situações de parto e puerpério. Em casos mais drásticos
fantasia é um mundo regido unicamente pelo prazer,
há a eclosão da depressão pós-parto que requer cuidado
onde não há espaço para a realidade. Um dos
integral urgente para tratar não só da saúde da mãe e seu
movimentos responsáveis pelo amadurecimento da
bebê,
organização mental do ser humano é a passagem do
mas
também
para
viabilizar
o
bom
estabelecimento da relação entre ambos.
princípio do prazer para o princípio de realidade. É
É através dos cuidados maternos que a criança
preciso que o bebê abra mão da ilusória descarga
experimenta as primeiras sensações de satisfação, que
imediata da pulsão para se adequar à realidade dos
ela se vê diante de um mundo de necessidades realizadas
investimentos e dos objetos mais adequados para tanto.
e passa a partir de então a entrar na esfera do desejo e do
Se isso não for bem elaborado na criança, há o risco do
prazer. No momento em que o bebê tem a fome saciada,
desenvolvimento de patologias mais graves como a
o calor ou frio atenuados fica um registro mental de tais
psicose por exemplo. Ou mesmo em situações mais
sensações de bem-estar. Posteriormente o nenê tentará
brandas nós poderemos ver mais tarde um adulto ou
resgatar essa experiência prazerosa por meio da
adolescente que não tolera frustração, que não admite
rememoração através da fantasia. Esse tipo de satisfação
sua limitação e busca incessantemente ter sua vontade
é da ordem mental, já que nenhuma necessidade
atendida sem respeitar a importância do outro ou
orgânica está sendo efetivamente atendida. No entanto,
reconhecer que precisa se esforçar para obtenção do seu
a experiência psíquica do prazer está apoiada numa
prazer. São pessoas que acham que o mundo deve servi-
experiência fisiológica anterior. Freud se utiliza dessa
los, que o prazer tem que ser imediato. Por isso é tão
noção de apoio para explicar a diferenciação gradual da
necessária a imposição de limites na educação das
pulsão em relação ao instinto. Nesse momento não se
crianças, para elas aprenderem a tolerar as frustrações
trata mais de uma questão de necessidade física, é da
decorrentes. Nesse sentido é importante que uma mãe
esfera mental e do desejo que estamos falando. E
seja também suficientemente frustradora.
também da fantasia, esse recurso imprescindível para o
O bebê precisa reconhecer a presença do
ser humano. A fantasia não só permite outra forma de
objeto, sem que isso se transforme num trauma
descarga da pulsão, como também coloca em
excruciante. Ele não pode se sentir massacrado pela
3
A sexualidade na relação materno-infantil
Ana Cláudia Zuanella
dependência angustiante do outro, nem ameaçado em
Segundo Klein, o bebê interage com os objetos como se
seu aniquilamento diante da magnitude da pressão
eles estivessem divididos, cindidos em bons ou maus. A
pulsional ou da falta de objeto que sirva para a descarga.
criança tende a projetar seus impulsos destrutivos no
O objeto deve ser um aliado do sujeito na busca do
mundo externo, dotando-o de objetos maus, que são
prazer e não fonte de angústia.
persecutórios. Em contrapartida há os objetos sentidos
A relação com a mãe se torna tão importante
como bons, apaziguadores e reconfortantes. O seio é
neste aspecto, pois ela é o primeiro objeto de amor de
percebido ora como um objeto bom quando alimenta,
ambos os sexos e, portanto pode ser considerado o
ora como um objeto mau quando frustra no momento da
protótipo das relações objetais subseqüentes. É preciso
fome. O bebê não compreende que se trata do mesmo
deixar claro que não está se falando que a mãe num
seio, de um objeto único que varia conforme sua carga
sentido exclusivamente concreto e real defina todas as
pulsional projetada sobre ele.
relações futuras do ser humano, mas sim que a maneira
Num segundo momento, na posição depressiva,
como a criança apreende e introjeta essa relação inicial
a compreensão de que existe um objeto inteiro com
é muito significativa para relações subseqüentes,
partes boas e más se dá e a criança vivencia a culpa pelo
inclusive
relação
ódio que sentiu, e ainda sente, em relação ao objeto
compreende justamente essa idéia de troca entre duas
amado. Esse avanço é imprescindível para emergir a
pessoas, cada qual com seu mundo interno particular,
capacidade de reparação. Adultos que não têm essa
com sua percepção individual. Um bebê mais voraz
posição bem internalizada tendem a persistir na cisão
tenderá a se sentir mais frustrado que outro cuja
dos objetos ou situações, reforçando sua angústia
intensidade pulsional seja menos incontrolável, uma
persecutória de que tudo e todos estão contra eles. Eles
mãe deprimida mais provavelmente será pouco
tampouco conseguem admitir sua culpa nos seus
gratificante, mesmo para um bebê facilmente saciável,
fracassos, sendo-lhes muito difícil o movimento de
uma mãe simbiótica dificilmente permitirá que o bebê
reparação dos seus erros. O amor pelo objeto percebido
efetue o processo de separação de maneira saudável, e
na sua totalidade, faz com que se tolere a culpa por odiá-
assim por diante. Cada dupla se formará da interação
lo em alguns momentos, sabendo-se que se é capaz de
entre as particularidades de ambas as partes.
reparar possíveis danos causados ao mesmo.
consigo
própria.
A
palavra
Esta interação entre a dupla mãe/bebê é tão
primordial
que
alguns
importantes
teóricos
Mesmo enfatizando a relação dual da mãe com
na
o bebê, até porque este é o objetivo desta discussão, vale
psicanálise de detiveram especialmente nela. Uma
salientar que o pai tem um papel fundamental nesta
destas teóricas foi Melanie Klein que definiu dois
relação e na estruturação do psiquismo do sujeito. Ele é
momentos iniciais no desenvolvimento mental do bebê
importante desde o início, primeiro no apoio dado à mãe
intermediados pela relação com a mãe. Ambos são
para que esta desenvolva uma relação tranqüila com seu
deflagrados no esforço do nenê em se defender de
bebê e depois será fundamental no deslocamento da
ansiedades primitivas de destruição. O primeiro ela
relação dual mãe - filho para uma relação triangular mãe
chama de posição esquizo-paranóide e o segundo,
– pai – filho. Ele é um outro objeto de investimento da
posição depressiva. Na posição esquizo-paranóide o
mãe para que ela deixe espaço para a experiência de
bebê não vê o objeto como um todo, é aquela fase em
frustração na criança e esta vivencie a interdição. A
que a criança ainda não tem uma noção de unidade.
triangulação edípica é um marco na história do
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desenvolvimento libidinal do ser humano, quando um
ímpar em cada indivíduo. O psiquismo do homem se
complexo de experiências, sentimentos e conflitos são
forma e se mantém justamente para poder lidar com essa
vividos e elaborados. Como resultado desta fase há o
gama de possibilidades que a pulsão nos coloca. Assim
direcionamento da identidade do sujeito e de sua
como não há uma forma fixa de estruturação, não existe
personalidade. No entanto, infelizmente, foge ao nosso
uma rigidez absoluta criada pelas relações iniciais do
tema e ao nosso tempo, uma discussão pertinente sobre
indivíduo.
este assunto de tamanha riqueza.
reeditadas, restauradas, reorganizadas de maneira a
Para finalizar, gostaria de enfatizar que não
As
histórias
individuais
podem
ser
proporcionar uma vida mais inteira e menos sofrida. É a
existe uma forma específica de constituição do ser, pois
isso que a Psicanálise se propõe.
a história de cada um é única e se rearranja de maneira
Ana Cláudia Zuanella
Psicanalista
Membro Titular e Didata da Sociedade Psicanalítica do Recife
Mestranda em Psicanálise pela Universidade Católica de Pernambuco
[email protected]
data de publicação: 14/03/2014
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