UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ BRUNA FROGERI FERNANDES “NÓS NÃO VALEMOS NADA!”: UMA ANÁLISE SOBRE O PROCESSO DE TRABALHO E SUBJETIVIDADE DOS MOTORISTAS DE ÔNIBUS DE CURITIBA. CURITIBA 2013 BRUNA FROGERI FERNANDES “NÓS NÃO VALEMOS NADA!”: UMA ANÁLISE SOBRE O PROCESSO DE TRABALHO E SUBJETIVIDADE DOS MOTORISTAS DE ÔNIBUS DE CURITIBA Monografia apresentada à disciplina Monografia II como requisito parcial para a conclusão do Curso de Psicologia do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Profª. Lis Andréa Pereira Soboll. CURITIBA 2013 AGRADECIMENTOS À Professora Lis Andréa por aceitar orientar este trabalho mesmo após a inscrição para disciplina ter encerrado, pelas supervisões, pela confiança e incentivo. Aos motoristas que tão prontamente aceitaram participar da pesquisa. Ao Elver e à Mônica pelo acompanhamento no estágio, por dividirem comigo suas experiências profissionais. Ao Jardel, meu namorado, pelo companheirismo. À minha irmã Krícia, pela amizade. Aos meus amigos. À Jandyra. RESUMO Esta pesquisa objetivou investigar a organização do trabalho do transporte coletivo de Curitiba e sua relação com o sofrimento dos motoristas, sofrimento esse que culmina no processo de adoecimento mental vivenciado por alguns dos trabalhadores desse grupo profissional. A fim de cumprir esse objetivo, a pesquisa contemplou a realização e análise de entrevistas realizadas com quatro desses profissionais e, também, uma pesquisa documental sobre as principais entidades no âmbito do transporte coletivo na cidade. O material foi tratado a partir da análise qualitativa de Bardin e os resultados foram analisados tomando como referência a teoria da Psicodinâmica do Trabalho. A discussão dos dados evidenciou que o sofrimento que os motoristas dizem enfrentar no desenvolvimento de sua atividade laboral estão relacionadas com as normas internas, muitas vezes paradoxais, da organização do trabalho, e em especial no que tange ao controle e a vigilância do trabalhador. Observou-se, ainda, que os profissionais não têm reconhecimento pelo seu trabalho, o que impede a transformação do sofrimento em prazer e leva o trabalhador a engajar-se em estratégias defensivas. As estratégias defensivas utilizadas pelos motoristas visam o seu autocontrole no trabalho e tem a finalidade de suportar ao máximo as irritações do dia-a-dia. A ideologia defensiva tem um valor funcional em relação à produtividade na medida em que por meio do excesso de autocontrole, o que culmina na alteração da afetividade, o trabalhador torna-se mais produtivo e dócil, o que permite a perpetuação do ciclo de exploração. Infere-se, assim, que o trabalho como motorista de ônibus no transporte coletivo de Curitiba, nas atuais circunstâncias, é possível por meio da exploração do sofrimento desses trabalhadores, da defesa utilizada por eles. Concluiu-se que o lugar dado ao trabalhador nessa organização do trabalho tem um impacto negativo sobre a sua identidade, a armadura da saúde mental, o que está relacionado ao sofrimento patogênico do trabalhador e ao processo de adoecimento psíquico vivenciado por uma parcela significativa desses profissionais. Palavras-chave: Motoristas. Saúde mental. Sofrimento. RESUMEN Este estudio objetiva investigar la organización del transporte público en Curitiba y su relación con el sufrimiento de los automovilistas, que culmina en el proceso de la enfermedad mental experimentada por algunos trabajadores de este colectivo profesional. A fin de cumplir ese objetivo, la investigación contempló la realización y análisis de entrevistas realizadas con cuatro de esos profesionales y, también, una investigación documental sobre las principales entidades en el ámbito del transporte colectivo en la ciudad. El material fue tratado a partir del análisis cualitativo de Bardin y los resultados fueron analizados tomando como referencia la teoría de la Psicodinâmica del Trabajo. En la discusión de los datos se evidenciou que el sufrimiento que los conductores dicen enfrentar en el desarrollo de su actividad laboral están relacionadas con las normas internas, muchas veces paradoxais, de la organización del trabajo y en especial en el que tange al control y la vigilancia del trabajador. Se observó, aún, que los profesionales no tienen reconocimiento por su trabajo, lo que impide la transformación del sufrimiento en placer y lleva el trabajador la engajar-si en estrategias defensivas. Las estrategias defensivas utilizadas por los conductores visan su autocontrol en el trabajo y tiene la finalidad de soportar al máximo las irritaciones del día-a-día. La ideología defensiva tiene un valor funcional en relación a la productividad en la medida en que por medio del exceso de autocontrol, lo que culmina en la alteración de la afectividad, el trabajador se hace más productivo y dócil, lo que permite la perpetuação del ciclo de explotación. Se infiere, así, que el trabajo como conductor de autobús en el transporte colectivo de Curitiba, en las actuales circunstancias, es posible por medio de la explotación del sufrimiento de esos trabajadores, de la defensa utilizada por ellos. Se concluyó que el lugar dado al trabajador en esa organización del trabajo tiene un impacto negativo sobre su identidad, la armadura de la salud mental, lo que está relacionado al sufrimiento patógeno del trabajador y al proceso de adoecimento psíquico vivenciado por una cuota significativa de esos profesionales. Palabras clave: Conductores. Salud mental. Sufrimiento SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 7 2. QUADRO DE REFERÊNCIA TEÓRICO ........................................................................ 9 2.1. O CAMPO DA SAÚDE MENTAL E TRABALHO ......................................................... 9 2.2. A SAÚDE MENTAL NO CONTEXTO DO TRABALHO PRECARIZADO ............ 13 2.3. ENTRE O SOFRIMENTO E O ADOECIMENTO MENTAL .................................... 17 2.4. UMA CARACTERIZAÇÃO SOBRE AS CONDIÇÕES DE TRABALHO DOS MOTORISTAS DE ÔNIBUS .............................................................................................. 24 3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS .................................................................... 33 4. RESULTADOS E DISCUSSÃO ....................................................................................... 36 4.1. A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO ........................................................................ 36 4.1.1. As condições de trabalho ....................................................................................... 36 4.1.2. Os horários para o cumprimento do itinerário ....................................................... 38 4.1.3. As relações de trabalho .......................................................................................... 38 4.1.3.1. Fiscais e supervisores ..................................................................................... 39 4.1.3.2. Os passageiros ................................................................................................. 45 4.1.3.3. O relacionamento entre pares .......................................................................... 46 4.1.3.4. O relacionamento com os cobradores ............................................................. 47 4.1.4. “Nossa! Parece que tão me perseguindo!”: o controle sobre o trabalho dos motoristas ......................................................................................................................... 48 4.2. UMA ANÁLISE ACERCA DAS RELAÇÕES DE PODER: OS MOTORISTAS DE ÔNIBUS DE CURITIBA E O IMBRÓGLIO INSTITUCIONAL ................................ 52 4.2.1. A Urbs .................................................................................................................... 53 4.2.2 As empresas de transporte coletivo e a Urbs........................................................... 54 4.2.3. O sindicato dos trabalhadores ............................................................................ 57 4.3. UMA ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO PARADOXAL: O SISTEMA DE TRANSPORTE COLETIVO DE CURITIBA ..................................................................... 62 4.4. UMA ANÁLISE DO SOFRIMENTO NO TRABALHO............................................. 65 4.4.1. O Reconhecimento ................................................................................................. 65 4.4.2. As Estratégias Defensivas ...................................................................................... 70 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 80 6. REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 85 7. ANEXOS ............................................................................................................................. 94 7 1. INTRODUÇÃO “Nenhuma outra técnica para a conduta da vi da prende o indivíduo tão firmemente à realidade quanto à ênfase concedida ao trabalho (Arbeit), pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que esta técnica oferece de deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional (Berufsarbeit) e para os relacionamentos humanos a ele vinculados empresta-lhe um valor que de maneira alguma está em segundo plano quanto ao de que goza como algo indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade” (FREUD, 1930 Das Unbehagen in der Kultur). Seria alentador abordar o trabalho como meio de vi da e de conquista da dignidade humana e observar o alívio do esforço/sofrimento do trabalhador em face dos avanços tecnológicos e do conheci mento cientí fico acumulados na história da humanidade. Entretanto, o que se constata no mundo do trabalho é um dista nciamento crescente entre práticas organizacionais e direitos sociais conquistados pelos trabalhadores. É o paradoxo que encobre o trabalho contemporâneo, sua combi nação com a precarização social, com o adoecimento dos indivíduos e a destruição ambiental (FRANCO; DRUCK; SELIGMANN- SILVA, 2010). A relevância do estudo na área da saúde mental do trabalhador se dá visto que o adoecimento mental relacionado ao trabalho já é considerado uma enfer midade emer gente e preocupante para a Saúde Pública (WATANABE et al., 2010). Além disso, esse adoecimento se reflete nos índices afastamentos e benefícios que, em sua últi ma instância, onera o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) do nosso país (WATANABE et al., 2010). No caso dos motoristas de ônibus da cidade de Curitiba, o adoecimento mental vem sendo apontado na mídia, desde 2007, como um problema que afeta uma parcela signi ficativa desses profissionais. A matéria “Motoristas de ônibus estão no „Li mite‟”, publicada no jornal Gazeta do Povo1, edição de 16 de abril de 2007, deu maior visibilidade ao assunto. Nela, há o relato de que, de acordo com o Sindi moc, si ndicato que representa a categoria profissional na capital e nos municípios vizi nhos, 8% dos filiados estão de licença médica devido a distúrbios psicológicos ou psiquiátricos. 1 MOTORISTAS ESTÃO NO LIMITE. Disponível <http://abp.org.br/2011/medicos/clippingsis/exibClipping/?clipping=4339>. Acesso em: 02/09/2012. em: 8 Além disso, o estudo da Procuradoria Regional do Trabalho da Nona Região (PRT, 2012), em que foram analisados os afastamentos dos motoristas de ônibus pelo INSS, de uma das empresas de transporte coletivo de Curitiba, entre os anos de 2006 e 2012, também mostra a relevância de uma maior investigação sobre o tema. Essa pesquisa , com base no Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (NTEP 2) para o CNAE 49213, evidenciou que dos 50 motoristas que tiveram seu afastamento devido à doença com relação de nexo presumido epidemiologicamente com o trabalho, 29 têm diagnóstico de transtor nos mentais e do compor tamento (CID F), ou seja, 58% dos casos, uma parcela significativa dos afastamentos. A saúde do motorista está relacionada à qualidade do serviço prestado, pois, caso o trabalhador esteja adoecido, isso pode resultar em erros e acidentes que colocam em risco a vida de um grande número de pessoas. O comportamento desses profissionais, assim como as condições de seu trabalho, tem grande relevância social, visto que o transporte coletivo é uma atividade essencial à população e de muita responsabilidade. Além disso, o sistema de transporte público coletivo de Curitiba é bastante enaltecido nas propagandas realizadas pela prefeitura da cidade, dessa forma, é pertinente investi gar a saúde mental dos seus operadores, os grandes atores desse sistema. Como pode ser observado na reportagem e no estudo citado acima, é, sobretudo, o adoecimento mental que vem ocasionando o afastamento dessa categoria profissional de seus postos de trabalho. Diante dessa constatação, vários questionamentos motivaram a realização deste estudo: porque o adoeci mento dessa categoria profissional vem, sobretudo, ocorrendo pela via psíquica? Partindo do principio de que a organização do trabalho está relacionada ao adoecimento do trabalhador, em que medida estudar sobre essa organização pode clarificar reflexões sobre o sofrimento/adoeci mento vivido por esses motoristas? E, de modo inverso, o que o sofri mento pode nos di zer sobre a organização do trabalho? Tem-se como pressuposto o fato de que trabalhar não é apenas uma atividade, não é apenas produzir, “é também e sempre viver junto”, é ainda, uma relação social que envolve 2 O NTEP refere-se a relação que se estabelece entre entidade mórbida/ doença/ agravo à saúde (Agrupamento da Classificação Internacional de Doenças - CID) e o segmento econômico (CNAE) do empregador O NTEP rompe com o paradigma do nexo técnico individual entre o trabalhador e o agravo de sua saúde ao trazer para o núcleo da investigação a figura do meio ambiente do trabalho como elemento antecessor determinante ou condicionante do fenômeno mórbido. . Foi instituído pela Lei 11.430/2006, que modificou o artigo 21-A da Lei nº 8.213/91. 3 Classificação Nacional de Atividades Econô micas número 4921, referente ao transporte coletivo de passageiros, com itinerário fixo, municipal e em região metropolitana. 9 relações de equidade, de poder e de dominação (DEJOURS, 2012b, p. 38). De acordo com Dejours (2012b), é necessário ter em mente que o engajamento da subjetividade do trabalhador ocorre em um mundo hierarquizado, ordenado e repleto de constrangi mentos, ainda perpassado pela luta de domi nação. As questões de ordem técnica, segundo ele, estão mediati zadas pelas relações hierárquicas, "relações de solidariedade, relações de subordinação, relações de formação, relações de reconheci mento, relações de luta e relações conflituais" (DEJOURS, 1994, p. 138). Ressalta-se que esta pesquisa tem como pretensão situar-se no campo político da Saúde do Trabalhador, falar desse lugar e não apenas do lugar técnico da psicologia ao analisar a questão da saúde mental, o sofri mento vivenciado pelos motoristas. Com base no exposto, objetivou-se compreender, neste estudo, a relação entre a organização do trabalho do sistema de transporte coletivo de Curitiba e o sofrimento vivenciado pelos motoristas, tendo como referência a teoria da Psicodinâmica do Trabalho. Contudo, desde aqui se esclarece que o objetivo do estudo não é realizar conclusões sobre o tema, apenas considerações que permi tam refletir sobre a temática. Dessa for ma, sabe -se que essa problemática não se esgotará nesse breve estudo. Tendo em mente as concepções descritas acima, o estudo foi organi zado da seguinte for ma: revisão de literatura dividida em quatro capítulos (o campo da saúde mental e trabalho; a saúde mental no contexto do trabalho precarizado; entre o sofrimento e o adoecimento mental; e, uma caracterização sobre as condições de trabalho dos motoristas de ônibus). A parte dos resultados e discussão da pesquisa contemplou uma análise da organi zação do trabalho do transporte coletivo de Curitiba, o que foi organizado em três capítulos (um sobre a organização do trabalho; outro sobre as relações de poder no âmbi to do transporte coletivo; e um terceiro referente ao paradoxo nessa organi zação do trabalho). A análise também contou com um capítulo sobre o sofrimento dos motoristas no trabalho. 2. QUADRO DE REFERÊNCIA TEÓRICO 2.1. O CAMPO DA SAÚDE MENTAL E TRABALHO 10 De acordo com as esti mativas da Organização Mundial da Saúde, os chamados transtor nos mentais menores afetam cerca de 30% dos trabalhadores ocupados e os transtor nos mentais graves, cerca de 5 a 10% (JACQUES, 2003). Além disso, em nosso país, segundo o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), os transtornos mentais ocupam a terceira posição entre as causas de concessão de benefício previdenciário como auxílio doença, afastamento do trabalho por mais de 15 dias e aposentadorias por invalidez (MINISTÉRIO DA SAÚDE DO BRASIL, 2001). Os dados divulgados pelo Laboratório de Saúde do Trabalhador da Universidade de Brasília também confir mam a relevância do tema, uma vez que demonstram um aumento de 260% do número de afastamentos por doenças mentais de 2000 a 2006. Diante dos números cada vez mais abundantes de transtor nos mentais e do comportamento associados ao trabalho, o que se constata nas estatísticas, verifica-se um interesse crescente nos últi mos anos por questões relacionadas aos vínculos entre trabalho e saúde/doença mental. O campo da Saúde Mental e Trabalho deverá assumir cada vez maior i mportância para os profissionais de saúde e da produção, como também para a or ganizações de trabalhadores que procuram condições mais saudáveis de trabalho (SELIGMANN SILVA, 1986). Segundo Seligmann Silva (1994) nesse campo passaram a ser exami nados os processos saúde/doença vinculados à vida laboral, por meio de uma ótica distinta das anteriormente adotadas, tanto pelo enriquecimento dos eixos de análise, quanto pelo estabelecimento de uma perspectiva em que a fi nalidade das investi gações assumem diretrizes éticas. Os estudos visam investi gar os aspectos “adoecedores” do trabalho, inclusive aqueles que possam estar servindo simultaneamente aos interesses da produção. De acordo com a autora, utilizar a denomi nação Saúde Mental do Trabalho Seria focalizar também a saúde mental como processo onde as agressões dirigidas à mente pela vida laboral são confrontadas pelas fontes de vitalidade e saúde representadas pelas resistências de natureza múltipla, individuais e coletivas, que funcionam como preservadoras da identidade, dos valores e da dignidade dos trabalhadores (SELIGMANN SILVA, 1986, p.59). Segundo Seligmann Silva (1986), o campo da Saúde Mental do Trabalho é fundamental mente sócio-político, entretanto, moldado basicamente por forças econômicas, que atuando por meio de estratégias organizacionais e tecnológicas, utilizam o corpo e a mente do trabalhador como instr umentos de produção, ao mesmo tempo em que o afeta morbigenamente. Essas ações, que causam o adoeci mento psíquico ao trabalhador, se exercem por meio de distintas vias (social, psicológica e do próprio corpo do trabalhador, 11 instr umentalizado pelo processo laboral), em cami nhos que se cruzam numa trama de complexas interações. Dessa forma, a relação entre saúde mental e os aspectos de uma sociedade não pode ser considerada como reducionismo teórico, uma vez que se trata de um binômio i ndivisível. Assim, apesar de teorizações que concebem a doença mental isolando a pessoa do contexto social, o fato é que tal dissociação é indevida (ANGERAMI-CAMON, 1986). A temática da saúde mental e trabalho já tem um cami nho percorrido no Brasil, uma vez que estudos, pesquisas e atividades de intervenção na área surgiram em nosso país na década de 1980. Mesmo anterior mente a esse período já se desenvolviam atividades que enfatizavam a saúde mental daqueles que trabalham, entretanto, tais perspectivas não se enquadram na área da Saúde Mental e Trabalho. Nesse contexto, o trabalho, suas condições e organização eram tomados como pano de fundo, e, se privilegiava a oferta de assistência psicoterápica aos trabalhadores. Além disso, na década de 1940, as denomi nadas ciências do compor tamento também já se ocupavam da saúde mental das pessoas que trabalham, na qual a medicina ocupava-se da esfera psicológica (SATO; BERNARDO, 2005). Para esses autores, ao abstrair as condições concretas e as relações de trabalho, uma vez que ambas as abordagens buscam a gênese dos problemas de saúde mental no universo intra -individual, essas contribuíram para a construção da explicação culpabilizadora da vítima. Ao contrário de concepções individualizantes, a Saúde Mental e Trabalho pertence ao campo da Saúde do Trabalhador e, por isso, confor me a for mulação de Saúde Coletiva descrita por Minayo- Gomez e Thedi m-Costa (1997), toma as relações de trabalho e sua historicidade como matriz de leitura. Tal como é definido por esses autores, a Saúde do Trabalhador refere-se a “um corpo de práticas teóricas interdisciplinares – técnicas, sociais, humanas – e interinstitucionais, desenvolvidas por diversos atores situados em lugares sociais distintos e infor mados por uma perspectiva comum” ( MINAYO-GOMEZ; THEDIMCOSTA, 1997, p. 25). Essa perspectiva é resultante de todo um patrimônio acumulado no âmbi to da Saúde Coletiva, com raízes no movi mento da Medicina Social latino -americana e infl uenciado pela experiência italiana. De acordo com Bouyer (2010), no Brasil, nos anos de 1980 e 1990, o estudo das patologias do trabalho esteve centrado de um lado, na organi zação do trabalho (tida como patogênica e deter mi nante essencial do adoecimento) e nas condições de trabalho; e no outro lado, nas síndromes e nos adoeci mentos q ue acometiam os trabalhadores. Entre estes dois 12 extremos, segundo o autor, permanecia uma lacuna na compreensão de como as mazelas da organização do trabalho se convertiam em adoecimentos na estr utura biológica ou mental do trabalhador. Estes estudos pecavam no estabelecimento de um nexo causal, cientificamente verificável, entre a organização do trabalho e o adoecimento i ndividual. A solução para esta lacuna entre o coletivo e o i ndividual, para Boyer (2010) pode ser equacionada, pela Psicodinâmica do Trabalho, uma vez que essa se concentra na coletividade do trabalho (numa dada organi zação do trabalho) e não apenas em indivíduos isolados. Além disso, os seus conceitos permitem compreender o espaço entre o que está dado na dimensão coletiva (a patogenia de uma deter mi nada organi zação do trabalho) e as suas manifestações na totalidade biopsíquica do sujeito – não apenas a sua “nor malidade sofrente” (DEJOURS, 2012a, p. 36), mas também as patologias ou as descompensações psicopatológicas (BOYER, 2010). Além disso, segundo o autor, a Psicodinâmica do Trabalho tem demonstrado poder de transfor mação nas or gani zações do trabalho em benefício dos que sofrem no ambiente laborativo. A psicodinâmica do trabalho analisa a constituição do sofrimento mental a partir da percepção dos próprios trabalhadores. Estuda as vinculações entre o sofri mento e a organização do trabalho, i nvesti gando também as dinâmicas pelas quais se constroem sistemas coletivos de defesa e de compromisso ético nos locais de trabalho. As for mas de exploração do sofrimento mental e das próprias defesas psicológicas individuais e coletivas também são exami nadas por meio dessa teoria, que se utiliza do referencial psicanalítico para a análise dos fenômenos subjetivos (SELIGMANN-SILVA, 1994). Sobre o tema da saúde mental e trabalho, é nítido que a produção técnico-científica na área teve crescimento nos últi mos anos (SATO; BERNARDO, 2005). Contudo, se os condicionantes dessas investi gações estiverem ligados a interesses ligados à lógica econômica que já influenciou tantas pesquisas, a for ma de conduzir as indagações não irá revelar, de fato, o sofrimento relacionado aos dispositivos organizacionais que visam a maxi mização dos lucros (SELIGMANN-SILVA, 1994). Por isso, de acordo com a autora, o desafio metodológico está associado a um desafio político. Como defi ne Cancrini e Togliatti (1979), quando se reduz o sofrimento mental a um problema orgânico e individual, alia -se aos interesses que procuram negar a influência de condições laborais sobre a saúde mental. Entretanto, os estudos recentes na área vem “oferecendo elementos no sentido de fortalecer os argumentos e socializar o debate acerca da importante participação das 13 condições e da organização do trabalho na vivência dos problemas de saúde / doença menta l” (SATO; BERNARDO, 2005, p. 875). De encontro a isso também se observa o aumento de serviços dirigidos aos trabalhadores. Todavia, mui tos dos problemas que i mpulsionaram o desenvolvimento dessa área ainda persistem. A precarização, consequência perversa do conflito entre capital e trabalho (WATANABE et al., 2010), passou a ser característica central do trabalho contemporâneo e das novas relações de trabalho (FRANCO; DRUCK; SELIGMANN- SILVA, 2010). Nessa conjuntura a saúde do trabalhador é atingida (WATAN ABE et al., 2010). 2.2. A SAÚDE MENTAL NO CONTEXTO DO TRABALHO PRECARIZADO A precarização do trabalho, segundo Franco, Druck e Seligmann-Silva (2010, p. 234) afeta a sociedade como um todo e não se restri nge apenas à di mensão econômica. De for ma mul tidimensional, essa deteriora todo o tecido social, “conduzindo a um processo de desfiliação e de despertencimento social, causa direta de vulnerabilidade social e da desfiliação”. Além disso, “a precarização do trabalho é um processo central, comandado pelas novas exi gências tecnológico-econômicas da evolução do capitalismo moderno” (CASTEL, 19984, p. 409 apud FRANCO; DRUCK; SELIGMANN-SILVA, 2010). É possível definir que no âmbito da sociedade salarial delineia-se, “uma era de precarização global que consolida a perda da razão social do trabalho, com sérios i mpactos no i magi nário social, gerando violência e adoecimentos, caracterizando uma condição de vulnerabilidade e desfiliação social”. O processo de despertencimento social, é produzido no seio da flexibiliza ção, pelo binômio terceirização/precarização, conduz à fragilização dos laços e dos referenciais de pertenci mento social, levando, à desagregação social, com a proliferação da violência social, sofrimento e adoecimento, com ênfase para as patologias muscul oesqueléticas (LER/DORT) e os transtor nos mentais, cada vez mais frequentes, sem limites de classe, gênero, etnia, idade etc. (FRANCO; DRUCK; SELIGMANN-SILVA, 2010, p.234). Outra questão relevante para a análise do trabalho precarizado são os avanços tecnológicos e as novas organizações do trabalho, que não trouxeram o fi m do trabalho penoso, acentuaram as desigualdades e a inj ustiça social e trouxeram for mas de sofri mento 4 CASTEL, R. As metamorfoses da questão soci al: uma crônica do salário. Rio de Janeiro: Vozes, 1998. 14 mais complexas e sutis do ponto de vista psíquico (LANCMAN, 2011). Segundo Gaulejac (2007), as evoluções tecnológicas, que poderiam libertar o homem do trabalho, parecem, ao inverso, colocá-lo sob pressão, uma vez que o alívio do fardo físico, por meio da tecnologia, é compensado por investi mento subjetivo aumentado. Assim, apesar de aliviar a fadiga física, o aparato tecnológico no trabalho aumenta a pressão psíquica sobre o trabalhador. A pressão pelo tempo, pelos resultados e também pelo medo têm consequências terríveis sobre ele, gerando “compor tamentos de adição, estresse cultural, se nti mento de invasão, contra o qual é difícil de se defender, e sofrimentos que o indivíduo esconde; do contrário, se fossem expressos, ele ficaria visado” (GAULEJAC, 2007, p.214). Além disso, de acordo com Bouyer (2010), na produção de diferentes tipos de serviços observa-se o maior controle do trabalho e menor autonomia para a livre elaboração dos modos operatórios e das estratégias de ação, o que i mpacta, signi ficativamente a relação saúde trabalho. Apesar dos elevados patamares tecnológicos alcançados e m nossa sociedade, o mundo da produção conti nua, predomi nantemente, estr uturado e se movendo pela acumulação de capital e lucro, o que leva à progressiva hipotrofia e perda de uma razão social do trabalho, tendo como ressonância a perda do sentido do trabalho (FRANCO; DRUCK; SELIGMANNSILVA, 2010). Para as autoras, a lógica produtiva permanece a mesma que orientavam as relações capital/trabalho no século XIX, aprofundando a apropriação privada da riqueza socialmente gerada e dos elementos da natureza, cons olidando o mercado como eixo da sociedade. Esta lógica, segundo elas, limita, ou mesmo exti ngue, as possibilidades do trabalho se constituir um meio de desenvolver a dignidade, a solidariedade e as potencialidades do ser humano. Segundo Gaulejac (2007), o mundo parece cada vez mais insensato, visto que os ganhos de produtividade não i mpedem as demissões, as ações têm alta ou baixa sem ligação clara com os desempenhos efetivos, e as empresas fecham apesar de serem rentáveis. De encontro com a perda social do trabalho, tal como definido por Franco, Druck e SeligmannSilva (2010), o autor explica que quando a lógica fi nanceira faz sentido por si mesma, as relações entre o mundo do dinheiro e o mundo do trabalho dissipa -se, fazendo com que o trabalho humano perca suas signi ficações primeiras. Para esse autor, o sentido do trabalho é colocado em suspenso quando a atividade é avaliada a partir de critérios que não tem sentido, visto que a constr ução de nor mas preestabelecidas não per mite medir a qualidade do serviç o prestado. Nesse universo gerencialista, “a subjetividade é moldada sobre objetivos, resultados, 15 critérios de sucesso, que tendem a excl uir tudo aquilo que não é útil ou rentável. O valor comercial tende a se i mpor a qualquer outra consideração” (GAULEJAC, 2007, p. 154). Tal como defi nem Franco, Dr uck e Seligmann-Silva (2010), a precarização do trabalho é um processo complexo, uma vez que mantém a relação capital/trabalho em sua essência, ao tempo em que altera as suas for mas de existência. A par tir desse processo, há a neutralização e anulação da regulação social do trabalho (com a conseqüente perda de direitos conquistados pelos movi mentos sociais), naturalizando o trabalho precário, banalizando a injustiça social e a violência no trabalho (principal mente, a violência psicológica). Disseminase, assim, “uma era de precarização social e de trabalho socialmente desagregador, terreno fértil para o sofrimento e o adoecimento dos indivíduos, confi gurando o trabalho patogênico” (FRANCO; DRUCK; SELIGMANN- SILVA, 2010, p. 230). Franco, Dr uck e Seligmann- Silva (2010) apontam que atual mente observa-se a precarização da saúde dos trabalhadores. Essa vem incidindo de modo marcante na saúde mental, que é indissociável da saúde como um todo. Para as autoras, trata -se da fragilização (orgânica, existencial e identitária) dos sujeitos pela organi zação do trabalho com intensificação da multiexposição. No Brasil, essa fragilização é acrescida das limitações impostas, em grande parte das empresas em nome de uma equivocada c ontenção de custos, postura que menospreza o que seriam investi mentos em saúde e segurança dos trabalhadores e revela uma negação do valor da proteção à saúde e a vida. Além disso, a precarização no mundo do trabalho, ao mi nar a identidade individual e coletiva, conduz a fragilização dos agentes sociais e organi zações sindicais, o que enfraquece as possibilidades de enfrentamento dessas condições. Então, a partir da “precarização da organização coletiva, aumenta tanto a vul nerabilidade social quanto a i ndi vidual”. “A insegurança e a desproteção, vivenciados por todos e por cada trabalhador/a, produzem reações e desdobramentos de di ferentes tipos – incl usive transtornos psíquicos” (FRANCO, DRUCK; SELIGMANN- SILVA, 2010, p.233). Segundo Sato e Bernardo (2005), os trabalhadores têm condições de reconhecer as situações de risco do trabalho para sua saúde, entretanto, não têm tido outra opção que não a submissão a essas condições. Essa submissão consciente a condições inadequadas, particularmente no que diz respeito ao ritmo de trabalho e às pressões cotidianas, parece estar se tornando um fator adicional de sofrimento psíquico que merece uma atenção especial da área de Saúde Mental e Trabalho. (SATO; BERNARDO, 2005, p.876). 16 Dejours (2012a) explica que uma das conseqüências da precarização no mundo do trabalho é a insensibilidade frente ao sofri mento al heio, visto que nesse contexto cada trabalhador deve antes de tudo se preocupar em resistir e portanto, a percepção do sofri mento al heio constitui uma di ficuldade que prejudica os esforços de resistência. De acordo com Sato e Bernardo (2005), esse contexto parece ser pouco propício para o desenvolvimento de práticas embasadas no discurso da Saúde do Trabalhador, cedendo espaço para o discurso da Saúde Ocupacional/ Medicina do Trabalho. Como aponta m Vasconcelos e Faria (2008, p.454) o que ocorre na atualidade é que as práticas de Saúde Mental coexistem com uma pressão por produtividade crescente, num ambiente competitivo, no qual os sujeitos devem estar sempre prontos para mudar e se adaptar às demandas do mercado. A sociedade propõe ao sujeito uma ordem alienada: “pede -lhe que mude para se adaptar, que se adapte para obedecer, que obedeça para que nada se altere senão em função dos interesses daqueles que detêm o poder político e econômico” (KALINA; KOVADLOFF, 1983 5 apud ANGERAMI-CAMON, 1986, p.135). Segundo Vasconcelos e Faria (2008), as ações no âmbito da saúde do trabalhador ocorrem nas empresas somente quando os sintomas se transfor mam em doenças e essas se transfor mam em “redução de produtividade”. Além disso, os programas de saúde estão dentro de uma função de tradução ideológica, “mais relacionados à estratégia da competitividade da organização do que com uma real preocupação com a saúde física e mental dos integrantes da organização”. Assim, os programas de saúde acabam sendo intervenções de caráter pontual, paliativo, sem uma i nvestigação das causas de sofrimento e sem o engajamento e apoio dos dirigentes da organi zação (VASCONCELOS; FARIA, 2008, p.458). Gaulejac (2007) afirma que ao i nvés da sociedade estar a serviço do desenvolvimento econômico, é necessário pensar uma economia a serviço do bem comum. Os direitos sociais que defendem a vida são inegociáveis e que é necessário resgatar a dignidade no trab alho e sua função social (FRANCO; DRUCK; SELIGMANN-SILVA, 2010). Segundo Gaulejac (2007), a crise que atravessamos na sociedade atual não é uma crise econômica, uma vez que conti nuamos a produzir riqueza, mas, antes de tudo ela é uma crise simbólica que atinge as relações entre o econômico, o político e o social. Convém, confor me o autor, pensar a gestão 5 KALINA, E.; KOVADLOFF, S. As ceri môni as da destrui ção. Livravia Francisco Alves Editora S.A., Rio de Janeiro, 1983, p. 100. 17 reinscrevendo-a em uma preocupação antropológica, “uma gestão humana dos recursos, mais do que uma gestão dos recursos humanos” (GAULEJAC, 2007, p.145) . Além disso, a precarização do trabalho é uma constr ução histórica, e portanto, modificável. Os adoecimentos e acidentes de trabalho também são evitáveis. A prevenção, ainda que envolva diversos níveis de complexidade, aponta para a necessidade de “civiliza r” o mundo do trabalho a partir de elementos básicos, que precisam ser traduzidos em políticas públicas. As práticas de enfrentamento da precarização social do trabalho precisam ser fortalecidas e são uma necessidade em defesa da vida. Essas têm sido exerc idas por agentes sociais diversos, tais como sindicatos de trabalhadores, o Estado - Ministério Público do Trabalho (MPT), Tribunal Regional do Trabalho (TRT), Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), Superintendência Regional do Trabalho e E mprego (SRTE) e Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro) – e universidades. No cotidiano das práticas de Saúde Pública e das atividades clínicas, é necessário que as atividades sejam realizadas em nome da cidadania social que se encontra em retrocesso no mundo (CASTEL, 20096 apud FRANCO; DRUCK; SELIGMANN-SILVA, 2010). Os reflexos da precarização do mundo do trabalho são o aumento extraordinário da produtividade e da riqueza. Porém, por outro lado assiste-se “a erosão do lugar acordado à subjetividade e à vida no trabalho” (DEJOURS, 2012b, p. 43). Nesse ponto abre-se o espaço para o sofrimento e, talvez, posteriormente, para o processo de adoecimento, o que será o tema do próxi mo capítulo. 2.3. ENTRE O SOFRIMENTO E O ADOECIMENTO MENTAL De acordo com Lancman (2011, p.31), o trabalho tem uma função psíquica, uma vez que é um dos grandes alicerces de constituição do sujeito e de sua rede de signi ficados. Segundo a autora, “processos como reconheci mento, grati ficação, mobilização, mobilização da inteligência, mais do que relacionados à realização do trabalho, estão ligados à constituição da identidade e da subjetividade”. Quando esses processos encontram-se impedidos ou 6 CASTEL, R. La montée des i ncerti tudes: travail, protections, statut de l‟individu. Paris: Seuil, 2009. 18 dificultados, abre-se o espaço para o sofrimento e talvez, posteriormente, para as descompensações psicopatológicas. Borsoi (2007) descreve que é preciso considerar que a saúde/doença mental trata de um processo que expressa determi nadas condições da vida e também deter minada capacidade dos indivíduos para o enfrentamento dos desafios, conflitos e agressões apresentados pela realidade na qual vivem. Assim, sofri mento psíquico e doença mental são processos qualitativamente disti ntos e “o espectro da inter -relação saúde mental e trabalho abrange, portanto, do mal estar ao quadro psiquiátrico, inclui ndo o sofri mento mental” (GLINA et al., 2001, p.608). Segundo Dejours (1992), a organi zação do trabalho exerce sobre o sujeito uma ação específica, cujo impacto é o aparelho psíquico e em certas circunstâncias, eme rge o sofrimento relacionado ao choque entre a história individual do sujeito (dotada de desejos e esperanças), e uma organização do trabalho que os ignora. Esse sofrimento, de natureza mental, começa quando o sujeito, já não pode fazer nenhuma modificação na sua tarefa no sentido de tor ná-la mais de acordo com as suas necessidades fisiológicas e a seus desejos psicológicos – isso é, quando a relação homem- trabalho é bloqueada (DEJOURS, 1992). Segundo Dejours (2012a, p.35), “se o sofri mento não se faz acomp anhar de descompensação psicopatológica, é porque contra ele o sujeito emprega defesas que l he permitem controlá-lo”. Os mecanismos de defesa têm a finalidade de evitar a descompensação e conservar um equilíbrio possível, com a condição que se preserve o c onfor mismo aparente do comportamento e satisfaça aos critérios sociais de nor malidade (DEJOURS, 1992). Eles têm o objetivo de mascarar conter e ocultar uma ansiedade particularmente grave frente a um perigo e um risco reais. Além disso, a ideologia defensi va garante a coesão grupal e exclui quem não partil ha do conteúdo da ideologia; tem sempre um caráter vital, necessário, obrigatório e fundamental, substituindo os mecanismos de defesa individuais (DEJOURS, 1992). Dejours (1992) defi ne ainda que a ideologia defensiva tem um valor funcional em relação à produtividade, o que ele designa como exploração do sofri mento. Dessa for ma, o sofrimento mental não pode ser considerado apenas como uma consequência deplorável ou um aconteci mento lamentável, visto que em certos casos ele se revela propício à produção, sendo o próprio instr umento para obtenção do trabalho. “O trabalho não causa o sofri mento, é o sofrimento que produz o trabalho”, e o que é explorado pela organi zação do trabalho é, 19 principalmente, os mecanismos de defesa contra esse sofrimento (DEJOURS, 1992, p.103). O autor explica que para aumentar a produção, basta puxar a rédea do sofrimento psíquico, contudo, se os limites e as capacidades de cada um não forem respeitados, arrisca -se ocorrerem as descompensações. Todavia, a exploração do sofrimento pela organização do trabalho não cria doenças mentais específicas, pois essas dependem, em últi ma estância, da estrutura das personalidades. Com efeito, o autor descreve que a estr utura de personalidade explica a forma sob a qual ocorre a descompensação e seu conteúdo, mas não é suficiente para explicar o momento escolhido. Segundo Dejours (2011a, p. 188), a noção de sofrimento, tal como for mulada pela psicopatologia do trabalho, permite realizar um passo fundamental em relação às concepções clássicas, “deslocando o centro de gravidade das doenças mentais, para os estados que estão aquém da doença, o que permi te pensar o humano e a psicologia do trabalho de forma concreta”. É por isso que a psicodinâmica do trabalho priorizou o estudo da nor malidade: Essa normalidade não é concebida como simples ausência de doença, mas como o resultado, sempre precário, de estratégias defensivas elaboradas para resistir ao que, no trabalho, é desestabilizador, ou mesmo deletério, para as funções psíquicas e para a saúde mental, tornando essa normalidade em si mesma enigmética. No centro da investigação estão o sofrimento e a normalidade, com um conceito arraigado de „normalidade do sofrimento‟.(DEJOURS, 2011a, p. 226). De acordo com Dejours (2011b, p.180), o sofri mento pode ter dois destinos diferentes: a sublimação, por um lado, e a repressão pulsional, a auto-aceleração ou a ideologia defensiva da profissão, por outro. A subli mação, segundo ele, adéqua novas possibilidades para a dialética desejo/sofrimento e “assegura em relação ao sofrimento uma saída pulsional que não faz desmoronar o funcionamento psíquico e somático”. Já no caso dos trabalhadores submetidos à execução de atividades repetitivas, as defesas contra o sofri men to são a repressão pulsional, a auto-aceleração ou a ideologia defensiva da profissão. Essas, acabam que por subtrair os desejos do sujeito, favorecendo o desenvolvi mento de uma lógica da alienação na vontade do outro. Além disso, os coletivos originados p ela sublimação estão, segundo Dejours (2011b) preferencialmente aos , passíveis de ter uma ação significativa sobre a organi zação do trabalho. Para Dejours e Abdoucheli (1994) o sofrimento mental‚ pode ser definido como a experiência subjetiva inter mediária entre doença mental descompensada e o bem-estar psíquico. Para esses autores, o sofri mento i mplica em um estado de luta do sujeito contra as forças (ligadas à organização do trabalho) que o empurram em direção à doença mental. Essa 20 conceituação abarca, tal como eles afirmam, uma defi nição negativa do sofrimento, o que foi designado na teoria de Dejours como “sofrimento patogênico”, isso é, o sofrimento que emer ge quando todas as possibilidades de adaptação ou de ajustamento à organização do trabalho pelo sujeito, para colocá-la em concordância com seu desejo, foram utilizadas, e a relação subjetiva com a or ganização do trabalho está bloqueada. Isto é, quando não há nada além de pressões fixas, rígidas, incontornáveis, inaugurando a repetição e a frustração, o aborrecimento, o medo, ou o sentimento de impotência. Quando foram explorados todos os recursos defensivos, o sofrimento residual, não compensado, continua seu trabalho de solapar e começa a destruir o aparelho mental e o equilíbrio psíquico do sujeito, empurrando-o lentamente ou brutalmente para uma descompensação (mental ou psicossomática) e para a doença. (DEJOURS; ABDOUCHELI, 1994, p. 137). Contudo, Dejours e Abdoucheli (1994) levam em consideração a bivalência do sofrimento, dessa forma, abordam também sobre o sofri mento criativo, o qual, segundo os autores, se refere justamente a um desafio para a psicopatologia do trabalho, ou seja, definir as ações a fi m de modificar o destino do sofrimento do sujeito e favorecer a sua transfor mação em criatividade (e não sua eliminação). Quando isso é possível, ele traz uma contribuição que beneficia a identidade e aumenta a resistência do sujeito ao risco de desestabilização psíquica e somática. Então, dessa for ma o trabalho funciona como um mediador para a saúde. Caso contrário, a situação de trabalho, as relações de trabalho e as escolhas gerenciais empregam o sofrimento no sentido de sofrimento patogênico e o trabalho funciona como mediador da desestabilização e da fragilização da saúde (DEJOURS ; ABDOUCHELI, 1994). Ainda para os autores, o sofrimento é i nevitável e ubíquo, ele tem raízes na história singular de todo sujeito e repercute no teatro do trabalho, ao entrar numa relação de complexidade com a organização do trabalho. Além disso, pode-se definir que o sofri mento não se trata de uma noção puramente descritiva, mas de um conceito possuidor de uma fonte empírica e dinâmica e uma consistência teórica e metapsicológica. É em função dele, ao i naugurar uma lógica essencialmente defensiva ou essencialmente criativa que conhecemos as condições sociais e psicológicas envolvidas nesse processo. De acordo com Brant e Mi nayo- Gomez (2004), a transfor mação do sofrimento em adoecimento pode ser compreendida por meio do poder disciplinar que foi aperfeiçoado como uma nova técnica de gestão dos i ndivíduos. Os autores explicam que com o advento da medicina científica no século XXI, novas for mas de conheci mento e práticas institucionais 21 tornaram o sujeito desvinculado do seu sofri mento. Nessa ocasião, a fim de conhec er o fato patológico o médico precisou abstrair o sujeito e houve um quase silenciamento do paciente. Nesse contexto, os sintomas foram concebidos como deter mi nantes naturais das doenças, deixando de lado a articulação entre o sujeito e o sofri mento. Assi m, os sintomas deixaram de ser representados como tentativa de solução de um conflito, de uma reconciliação do ser e, perdida a sua condição de “um bem” do i ndivíduo, esse passou a se fi gurar apenas como sinal de uma patologia. O sujeito deu, então, lugar ao paciente, representado como um conjunto de órgãos e tecidos, lógica essa que lançou as bases para a construção da identidade do doente. De modo semelhante, quando o sofri mento é manifestado na empresa, os gestores e trabalhadores ficam sem referencial. Em conseqüência, tornam-se necessários, no cotidiano do trabalho, a consulta aos profissionais de saúde. É nesse ponto que se dá o processo de destruição do trabalhador da sua condição de sujeito, processo esse fundado numa relação que envolve profissionais da saúde, gestores, trabalhadores e familiares. No encami nhamento do trabalhador ao profissional de saúde, segundo os autores, “dimensões conti ngentes à existência humana vêm sendo diagnosticados como transtor nos psiquiátricos” ( BRANT; MINAYO-GOMEZ, 2004, p.218). Para esses autores, na esfera do trabalho ocorre um processo de transfor mação do sofrimento em adoecimento caracterizado pela negação e psiquiatrização do sofrimento; atribuição e incorporação da identidade de doente; interpretações individualiza ntes e descontextualizadas; além de um elevado controle disciplinar. Para Freud (1930) a expressão do sofrimento é decorrente da percepção de perigo (real ou i magi nário), iminente. Segundo o autor a vida é árdua e proporciona sofrimentos diversos e o mal-estar sentido pelo sujeito é inerente à condição humana. De acordo com Brant e Minayo-Gomez (2009) essa peculiaridade parece ser esquecida pela maioria dos autores no âmbi to da Saúde do Trabalhador, uma vez que na maioria das pesquisas o trabalhador é relegado à posição de doente ou de víti ma sofredora, distinguindo-se da positividade que Freud atribui à manifestação do sofrimento. Para Brant e Minayo -Gomez (2009, p.239), a demonstração do próprio sofrimento revela-se como um bem do sujeito, i ndispensável para uma “boa vida”. Contudo, “sua i nterpretação como “pré- morbidade” destrói essa condição e contribui para a produção do adoecimento, i ndependentemente da presença ou ausência de doença”. Brant e Mi nayo- Gomez (2009, p.238) consideram que 22 Uma vez manifestado, o sofrimento tem como destinos: somatização – busca de uma etiologia corporal para aquele sofrimento; psiquiatrização – expressões próprias da existência humana diagnosticadas como doença mental; medicalização abusiva ou desnecessária; licença médica excessiva; internação hospitalar e aposentadoria por invalidez inde vida. (BRANT; MINAYO-GOMEZ, 2009, p. 238). Entre outras explicações, essas mani festações do sofrimento nor mal mente são associadas a fraqueza, debilidade cognitiva, desequilíbrio emocional e conflitos familiares. Dessa forma, o sofrimento, visto unicamente como algo decorrente do próprio sujeito, culpabiliza o trabalhador pelas suas vivências (BRANT; MINAYO-GOMEZ, 2009). Como ressalta Foucault (2000 7 apud VASCONCELOS; FARIA, 2008), a doença mental está sempre relacionada a valores e julgamentos de uma dada cultura, e, nas organizações essa está relacionada ao fracasso, ao sujeito com o qual não se pode contar, alguém frágil e “problemático”. Diante dessa situação os trabalhadores se calam, uma vez que a exposição dessa identificação provoca angústia e medo de perder o lugar conquistado na organização (VASCONCELOS; FARIA, 2008). Esses autores apontam que o silêncio e a busca por soluções rápidas têm domi nado o “mundo” coorporativo, especial mente favorecido pela evolução científica da farmacologia. Gaulejac (1997) afirma que convém analisar a “loucura” no âmbito do trabalho como uma violência e não tanto como uma patologia. Para ele, o sofrimento psíquico e os problemas de relacionamento são efeitos dos modos de gerenciamento. Segundo Dejours (2012b), a evolução das for mas de or ganização empresarial, do trabalho e de gestão repousa em princípios que sugerem o sacrifício da subjetividade em nome da rentabilidade e da competitividade. Entre esses princípios se destaca a avaliação quantitativa e objetiva do trabalho, e a individualização. Sobre o primeiro aspecto, o autor explica que as avaliações de grande complexidade e sofisticação, levam a absurdos e a injustiças intoleráveis em relação à contribuição efetiva dos trabalhadores. Visto que o “essencial do trabalhar revela da subjetividade, o que é mensurável não diz respeito ao trabalho”, servindo, sobretudo, como meio de i nti midação e dominação (DEJOURS, 2012b, p. 42). Já a individualização, se gundo principio das novas organi zações do trabalho, refere-se ao efeito do processo de concorrência generalizada entre as pessoas, equipes e serviços. Para o autor, os contratos por metas, a avaliação individualizada dos desempenhos, a concorrência general izada entre os 7 FOUCAULT, M.. Doença mental e psicologi a. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000. 23 trabalhadores e a precarização das for mas de emprego levam ao desenvolvi mento de condutas desleais entre pares e à ruína das relações solidárias. Tais práticas de gestão resultam no isolamento de cada indivíduo, na solidão e a desagregação do viver junto (DEJOURS, 2012b). As conseqüências desses princípios organizacionais do trabalho é o agravamento das patologias mentais do trabalho em todo o mundo ocidental, o aparecimento de novas patologias, os suicídios realizados nos locais de trabalho, o que não ocorria antes do domínio neoliberal (DEJOURS, 2012b). Contudo, nor mal mente tende a se focalizar o problema sobre o comportamento das pessoas, mais do que sobre os processos que o geram. Se contraponto a esse fato, Gaulejac (2007, p.225) explica que “quando o assédio, o estresse, a depressão ou, mais geralmente, o sofri mento psíquico se desenvolvem, é a própria gestão que deve ser questionada”. De acordo com o autor, o estresse, por exemplo, antes de ser uma “doença” pessoal, é um fenômeno social. Quando o sofrimento se expressa sob a forma de sintomas somáticos ou psicossomáticos, ele depende de uma abordagem médica, todavia, na origem, o problema não é médico. Se ele se traduz por sintomas individuais, ele provém de um mal -estar provocado pelas condições de trabalho. Suas fontes não são psicológicas. Elas são inscritas em um modo de funcionamento da organização que „desorganiza‟ os equilíbrios de base dos empregados e provoca mal-estares que desaparecem quando a pressão do trabalho é aliviada (GAULEJ AC, 2007, p.231). Diante dessas constatações, Gaulejac (2007) questiona se nesse contexto é pr udente falar em doenças e aceitar que o seguro-doença assuma os seus custos, visto que a pressão do trabalho é a sua causa. Para o autor, nesse contexto, o encobri mento da responsabilidade da empresa leva a uma dupla armadilha: o agravamento contínuo das perturbações e das despesas de saúde, de um lado; e uma cegueira sobre a degradação das condições de trabalho e de suas conseqüências sociais, por outro. Faz-se necessário restabelecer as ligações entra a gestão dos recursos humanos e a saúde mental, a fi m de sair dessa armadilha. O poder gerencialista tem como propósito canalizar a ener gia psíquica a fi m de transfor má-la em força de trabalho. Portanto, é responsabilidade da empresa “gerenciar” as conseqüências de seu modo de gestão, visto que “os processos de mobilização psíquica têm conseqüências sobre a saúde daqueles que a supor tam” (GAULEJAC, 2007, p. 232). As empresas que praticam um tipo de gerenciamento danoso à saúde do trabalhador, de acordo com o pesquisador, usufr uem de uma i mpunidade total quanto as suas conseqüências humanas, sociais e financeiras. Assim, cabe à coletividade assumir seus custos, ao passo que as mesmas se queixam de pagar excessivos encargos. Gaulejac (2007) afirma que a gestão 24 deveria oferecer instrumentos adequados para avaliar os custos sociais e psíquicos, tal como aqueles que ela criou para avaliar os benefícios e as perdas financeiras. Isso seria o sinal de que essa não é mais uma ideologia a serviço do poder dominante, mas uma ciência a serviço do interesse geral. Como efeito, o alívio da pressão no trabalho permitiria reduzir as despesas de saúde que essa acarreta (GAULEJAC, 2007). Esse estudo tem por objetivo analisar a relação entre a organização do trabalho e o sofrimento vivenciado pelos motoristas de ônibus coletivos de Curitiba. Para tanto, considerou-se relevante realizar uma revisão de literatura sobre as condições de trabalho desses profissionais, o que pode ser visto no próxi mo capítulo. 2.4. UMA CARACTERIZAÇÃO SOBRE AS CONDIÇÕES DE TRABALHO DOS MOTORISTAS DE ÔNIBUS De acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações (C.B.O, 2012), os motoristas de ônibus urbano (código 7824-10) trabalham em empresas de ônibus de transporte coletivo de passageiros, urbano, metropolitano e rodoviário de longa distância. Esses trabalhadores são assalariados, com carteira assinada, atuam sob supervisão, de for ma individual ou em duplas. O seu trabalho contempla as segui ntes atividades: condução e vistoria de ônibus e trólebus de transporte coletivo de passageiros urbanos, metropolitanos e ônibus rodoviários de longas distâncias; verificação do itinerário de viagens; controle do embarque e desembarque de passageiros; orientação quanto a tarifa, itinerários, pontos de embarque e desembarque e procedimentos no interior do veículo; também executam os procedimentos a fim de garantir a segurança e o confor to dos passageiros. Segundo a C.B.O (2012), o exercício dessa ocupação requer carteira de habilitação, ensino fundamental completo e curso básico de qualificação, incluindo mecânica e eletricidade de veículos automotores. Esses profissionais, também se habilitam periodicamente para conduzir ônibus, e o pleno desempenho das atividades ocorre após três ou quatro anos de experiência. A CBO (2012) ainda descreve que as condições gerais de exercício da atividade laborativa dos motoristas de ônibus urbano refere -se ao trabalho nos veículos, em horários irregulares, em sistema de rodízio e sob press ão de cumprimento de horário. As atividades desses profissionais são desenvolvidas em confor midade com leis e regulamentos de trânsito e de direção de veículos de transporte coletivo. Esses trabalhadores 25 permanecem em posição desconfortável por longos perí odos de tempo e estão sujeitos a acidentes e assaltos, o que pode provocar estresse; há, ai nda, a ausência de instalações sanitárias nas paradas de ônibus, provocando desconforto. Pesquisa realizada por Sato (1991) aponta que mesmo sendo bastante detalhada, a descrição da C.B.O não contempla todas as variações do trabalho do motorista e, ainda que existam regras a serem seguidas pela empresa e pelo motorista, na realidade verifica -se a existência de uma prática distinta, em mui tos aspectos, daquela planejad a. Sobre a análise das condições de trabalho dos motoristas de ônibus urbano, Mendes (1997) define que essa é uma tarefa complexa, em decorrência dos diversos aspectos que caracterizam a atividade. Diferente de outros profissionais, o motorista exerce suas funções “extra- muros” da empresa, o que os dei xa sujeitos a intempéries como o cli ma, a violência, as condições de tráfego e do trajeto das vias (BATTISTON; CRUZ; HOFFMANN, 2006), acarretando a uma maior possibilidade de imprevistos e tornando ampla a aná lise deste trabalho (MENDES, 1997). Battiston, Cruz e Hoffmann (2006) defi nem que caracterizar essas condições é relevante, uma vez que estas inter ferem no estado psicofisiológico do trabalhador, traduzi ndo-se em irritabilidade (que pode levar a um comportamento agressivo na direção), insônia (associada à sonolência nas horas de trabalho e di mi nuíndo os reflexos) e também os distúrbios na atenção (função cognitiva essencial para a direção segura). Battiston, Cruz e Hoffmann (2006), descrevem que o estudo das condições de trabalho desse grupo de trabalhadores deve analisar os seguintes aspectos: a carga de trabalho (produto da relação entre as exi gências do trabalho e a capacidade de desempenho e de enfrentamento do trabalhador); o posto de trabalho (pouco mais de 1,5 m², causando restrição dos movi mentos, precárias instalações para o conforto e segurança do motorista); o ruído e as vibrações; a temperatura; as posturas forçadas; e os movi mentos repetitivos do membro superior (causando os transtornos musculoesqueléticos) (BATTISTON; CRUZ; HOFFMANN, 2006). Segundo esses autores, as condições de trabalho que i nter ferem no bem-estar do trabalhador incluem a percepção das tarefas, das relações sociais de trabalho, da hierarquia, do controle e do sentido que o trabalho toma para o ele, da carga real ou sentida, das condições físicas e ergonômicas do ambiente, entre outras. Quando essas condições não são adequadas, se traduzem em uma série de problemas de saúde física e mental, visto que, como já mencionado, interferem nos estados psíquico, físico e biológico do trabalhador. 26 A Fundação Joaqui m Nabuco, realizou uma pesquisa sobre as condições de trabalho e de vida dos motoristas de ônibus em Recife no ano de 1982. Esse estudo apontou como dificuldades do trabalho dos motoristas: jornadas de trabalho excessivas e longas, com horas extras de acordo com a conveniência das empresas; defeitos nos veículos; falta de sanitários nos pontos fi nais; pressões de tempo para cumpri mento de horários; esforço físico demasiado; e relacionamento conflituoso com passageiros e com as chefias (FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO, 1982). Transcorridos 30 anos da publicação desse trabalho, os estudos mais recentes apontam que as condições de vida e trabalho desses profissionais não melhoraram. De acordo com Al meida (2002), estas condições apenas se agravaram, o que o autor constata a partir dos relatos dos motoristas no Departamento de Psicologia do Departamento Estadual de Trânsito de Pernambuco (DETRAN-PE). Outros estudos que tratam sobre as condições de trabalho desses profissionais citam a falta de instalações sanitárias, de água potável e de local adequado para as refeições, fazendo com que utilizem das instalações de bares, ainda que contra as regras da empresa (BATTISTON; CRUZ; HOFFMANN, 2006). Segundo Mendes (1997), essas condições de trabalho são apontadas como fator de vergonha e humilhação pelos profissionais. Paes Machado e Levenstei n (2002), em estudo em com os motoristas de ônibus de Salvador (BA), apontam que os intervalos entre as viagens e para a refeição são considerados insuficientes, o que é agravado pelos atrasos nos percursos. E Battiston, Cr uz e Hoffmann (2006) também chamam atenção para o fato de que o tempo da rota i nterfere nos i ntervalos que o profissional pode fazer durante sua jornada de trabalho. De acordo com Smi th (1987 8 apud BATTISTON; CRUZ; HOFFMANN, 2006), as características do local de trabalho do motorista que podem produzir estresse psicológico são: a carga de trabalho inadequada; o ambiente hostil; a ambi güidade de funções; a falta de tarefas estimulantes; a sobrecarga cognitiva; o relacionamento conflituoso; a falta de controle sobre as tarefas ou sobre a tomada de decisões; e a falta de apoio social por parte de supervisores, companheiros de trabalho ou familiares. La ncaster e Ward (20029 apud SOARES; THIELEN, 2010) afirmam haver correlação entre estresse e acidentes de trânsito, 8 Smith, M. J. Occupational stress. In Salvendy, G. (Org.), Handbook of human factors. Nova York: Wiley, 1987. 9 LANCASTER, R.; WARD,R. The contri bution of i ndi vi dual factors to dri vi ng behavior: implications for managing work related road safety. HSE Research Report 020: HSE Books, 2002. 27 além disso, Oliveira e Pinheiro (2007) encontraram uma relação entre os acidentes e o número de horas trabalhadas, ou seja, os motoristas que realizam a jornada de trabalho mais extensa estão mais propensos a se envolver em acidentes. Para Soares e Thielen (2010, p.14), as condições precárias de trabalho “incidem diretamente sobre o desempenho do motorista, sobretudo na sua capacidade de gerenciar os riscos no trânsito”. Esse profissional exerce seu trabalho num ritmo i ntensificado, cujas conseqüências prejudicam suas habilidades e se sobrepõem ao efeito de técnica que enfoca o manejo de comportamentos de risco. Os autores explicam que o motorista pode optar por comportar-se com segurança no trânsito, contudo “está sujeito prioritariamente por condições de trabalho que obscurecem seu j ulgamento”. Tais condições são expressas pelo ritmo intensificado pela pressão do controle minucioso de tempo entre cada parada no itinerário de viagem, o cumprimento de exaustivas horas-extra que podem fazê-lo conduzir como se estivesse alcoolizado, os contratos precários de trabalho e benefícios, ou mesmo o constrangimento ergonômico do posto de trabalho. O ritmo de trabalho não pode ser ditado pelo capital, pois assim gera conseqüências danosas no trânsito como os acidentes ou colisões. (SOARES; THIELEN, 2010, p. 14). Estudos descrevem que as especificidades do trabalho dos motoristas englobam: a falta de controle sobre o trabalho (SATO, 1991); jornada de trabalho irregular e excessiva (OLIVEIRA; PINHEIRO, 2007) ; pressão exercida pelo controle severo do cumpri mento do horário no iti nerário (SILVA; GÜNTHER, 2005); a vulnerabilidade a assaltos e roubos (PAES-MACHADO; LEVENSTEIN, 2002); os acidentes de trânsito e trabalho (SOARES; THIELEN, 2010); e, relacionamentos i nterpessoais instáveis com os passageiros e fiscais (BATTISTON; CRUZ; HOFFMANN, 2006). Como descrito por Battiston, Cr uz e Hoffmann (2006), os conflitos i nterpessoais no trabalho são um fator, dentre outros, que podem produzir estresse psicológico. Os relacionamentos i nterpessoais dos motoristas acontecem com os passageiros, os fiscais, os cobradores e outros motoristas. Com relação aos passageiros, que são a razão de existir o transporte coletivo, a relação é instável, visto que os profissionais citam haver ora um bom relacionamento, ora uma relação de embate. De acordo com Mendes (1997), os passageiros são a causa constante de conflitos e são a eles que os motoristas atribuem suas principais dificuldades no trabalho. Os conflitos são percebidos também, por esses profissionais, como decorrentes de fal has do sistema, tais como horários superlotados e as más condições dos veículos. Eles apontaram que as reclamações de passageiros são excessivas e nem sempre consistentes e que os usuários lhes cobram uma autoridade que muitas vezes eles não 28 possuem. Observa-se, assim, que as cobranças são paradoxais, como, por exemplo, quando o trabalhador cita: “há a necessidade de desenvolver maior velocidade em função do tempo, mas os passageiros quei xam da velocidade” (MENDES, 1997, p.5). Dessa for ma, para superar atrasos devido ao trânsito, muitas vezes os motoristas têm atitudes que poderiam causar acidentes. Por isso, Mendes (1997) descreve que as dificuldades encontradas no trânsito refletem-se diretamente no relacionamento com o passageiro. Essa relação de instabilidade, segundo Battiston, Cr uz e Hoffmann (2006), também aparece quando o assunto são os fiscais. Sobre a questão, o que se destaca é o fato do reconheci mento conferido pelos motoristas ao poder desses profissionais, o que implica na frustração pela impossibilidade de controle da sua própria atividade de trabalho. Com relação ao fato do motorista não ter poder sobre o trabalho, Sato (1995) aponta que isso tem relação com a fiscalização constante sobre esses trabalhadores, seja pelos passageiros, fiscais ou outros motoristas. Já no que se refere à relação entre pares e com os cobradores, Battiston, Cruz e Hoffmann (2006) indicam que ela é amistosa, que esses profissionais compartilham as mesmas condições de trabalho e se solidarizam uns com os outros. Apesar disso, a atividade do motorista é solitária, visto que assumem a responsabilidade pelas vidas que transporta m e pela sua própria, e não compartilham com ni nguém as decisões que tem que tomar para desempenhar sua tarefa com segurança (BATTISTON; CRUZ; HOFFMANN, 2006). Outro aspecto ressaltado por Battiston, Cr uz e Hoffmann (2006) é a i mpossibilidade do controle da própria atividade de trabalho por parte dos motoristas. Apesar desses trabalhadores permanecerem a maior parte da jornada de trabalho fora dos portões da empresa, há a atribuição de normas rígidas de fiscalização no que diz respeito ao cumpri mento de horários e cuidados com o veículo (uma vez que são responsáveis por qualquer dano ao mesmo). Ai nda que cumprir o horário estabelecido não dependa apenas do motorista, e sim, essencialmente, das condições de tráfego (fl uxo de veículos, condições do clima, horário, etc), esses pesquisadores descrevem que o tempo para o cumpri mento de cada rota é predeterminado e o controle do processo de trabalho, por parte do profissional, é quase nulo. “A participação nas decisões da empresa é apontada como tarefa do sindicato , embora os motoristas pouco se engajem em lutas pela melhoria da qualidade de seu trabalho”. Como apontam os autores, a comunicação é falha tanto no que se refere às inovações e mudanças organizacionais e institucionais quanto a projetos e lutas do própr io sindicato. 29 Nesse contexto, entretanto, há for mas de controle por parte das empresas, o que pode ser observado a partir dos descontos feitos no salário sobre avarias nos ônibus. “Qualquer que seja o problema – multas por infrações de trânsito, acidentes com danos ao veículo, rodas danificadas no meio-fio – se considerados culpados, os motoristas arcam com as despesas de reparo, sendo este valor descontado na fol ha de pagamento” (BATTISTON; CRUZ; HOFFMANN, 2006, p.341). De acordo com Souza (1996), as situações de maior incômodo aos motoristas referem-se justamente às responsabilidades financeiras, tais como pagar multas de trânsito, peças quebradas do ônibus e consertos resultantes de acidentes ou colisões. As reclamações dos passageiros também se constituem como uma ameaça aos motoristas, uma vez que representam a possibilidade de uma avaliação negativa do desempenho da sua função e acarreta punições (MENDES, 1997). Sato (1991) descreve que os motoristas têm um conheci mento prévio sobre as possibilidades e limitações do poder que detém e percebem seu trabalho como penoso por não conseguirem lidar com suas variabilidades. De outro modo, eles consideram que a organização do seu trabalho não é flexível o suficiente para que pudessem transfor má -la de acordo com as exi gências de sua atividade. Para a pesquisadora, a percepção de descontrole sobre o trabalho tem por referência o conheci mento anterior de que a programação e a tabela planejadas a priori determinam um andamento diferente do andamento real. Esse desc ontrole é sentido como gerador de nervosismo pelos motoristas de ônibus. Reconhecer a limitação do poder de modificação ou de interferência nos contextos “penosos” de trabalho gera a confor mação de um trabalho “duro de agüentar”, pois o motorista é obrigad o a suportar e a submeter-se a situações complicadas e difíceis (SATO, 1991). Sato (1991), descrevendo sobre a penosidade do trabalho dos motoristas, cita que essa não se refere simplesmente à exi gência de esforços que provocam i ncômodo e sofri mento ao trabalhador, mas que ela passa a existir quando são ultrapassados os limites do supor tável. “A violação do limite supor tável dá-se quando sobre estes esforços, sentidos como demasiados, o trabalhador não tem controle (SATO, 1991, p. 55). Dessa forma, dadas as características, necessidades e limites subjetivos, “o trabalho é „penoso‟ quando o trabalhador não tem conheci mento, poder e instrumentos para controlar os contextos de trabalho que suscitam vivências de desconforto e desprazer”, quando ele não tem contr ole da situação (SATO, 1991, p. 72). Além disso, Estar sofrendo pressão constantemente seja da empresa ou de outras formas de fiscalização, seja dos passageiros ou das intempéries que o trânsito oferece no dia-a-dia de seu trabalho, 30 faz com que essa atividade receba sobrecargas com as quais os motoristas não sabem lidar (BATTISTON; CRUZ; HOFFMANN, 2006, p. 340). A partir da descrição dessas condições, observa-se que a irritação sentida pelo motorista sofre determi nações objetivas e subjetivas, pois depend e tanto dos contextos de trabalho, como das características de cada motorista (SATO, 1991). Contudo, Sato (1991) alerta para o fato de que as determinações objetivas parecem ser relevantes na vivência da irritação desses profissionais. Ela descreve que o adoecimento dos motoristas ocorre quando não é possível manter o equilíbrio que permi te ao trabalhador exercer o controle sobre os contextos de trabalho que o incomodam, o irritam e que exi gem dele esforço a mais, ou seja, “quando há uma exi gência do trabalho maior do que é possível corresponder, havendo transgressão do ritmo e li mite subjetivo” (SATO, 1991, p. 72). A ruptura, para os motoristas de ônibus, se expressa na saúde. “É quando as coisas saem dos seus l ugares, quando força demais, provoca nervosismo, estado de nervo abalado” (SATO, 1991, p. 72). Não havendo mecanismos adequados para lidar com esses estados emocionais, dá -se um “processo de transfor mação da subjetividade e a pessoa fica doente, fica nervosa, fica irritante” (SATO, 1991, p. 73). Isto leva a um desgaste mais rápido desses profissionais e, consequentemente, à aposentadoria precoce (SATO, 1991). Sato (1991) explica que o esgotamento da saúde do motorista a ponto de tor ná-lo incapacitado para o trabalho, mesmo que temporariamente, ocorre quando os motoristas sentem que foi violado o seu li mite subjetivo do suportável. Nesse processo se dá o desarranjo da subjetividade, que é objetivado em manifestações psicológicas e fisiológicas. A autora explica que aquilo que se exterioriza como descontrole ocorre em função do excesso de autocontrole adotado pelo trabalhador, visando suportar o máxi mo possível as irritações. Observase que o poder para interferir no trabalho a fi m de respeitar o limite subjetivo é o elemento que parece ter maior peso no jogo de forças que possibilita o controle ou leva à ruptura (SATO, 1991). Sobre o adoecimento nessa classe trabalhadora, vários estudos têm demonstrado que os motoristas de ônibus apresentam um adoecer e morrer diferenciado da população geral. Em uma revisão de literatura produzida por Santos Júnior (2003), que analisou trabalhos publicados em um período de 15 anos (1987- 2001) sobre morbidade e mortalidade de motoristas de ônibus, verificou-se que estes trabalhadores estão expostos a uma enor me gama de fatores nocivos (físicos, quí micos, biológicos e ergonômicos), os quais podem produzir 31 diversas categorias de doenças relacionadas ao trabalho. De acordo com o Winkleby et al., (1988), motoristas de ônibus têm alta morbidade e mortalidade por três principai s grupos de doenças: doenças do aparelho cardiovascular, doenças do aparelho gastrointestinal e doenças do aparelho osteomuscular, essas últimas sendo causadas principalmente pelo sedentarismo e a vibração do corpo inteiro. Estudos realizados em Campi nhas (SP) demonstraram uma associação positiva tanto entre o tempo acumulado de trabalho e a pressão arterial (CORDEIRO et al., 1993), como entre o tempo acumulado de trabalho e as perdas auditivas (CORDEIRO et al., 1994). Outro estudo com os motoristas do transporte coletivo urbano da cidade de Florianópolis, realizado por Battiston, Cr uz e Hoffmann (2006), apontaram que o alto índice de dores na coluna e nas pernas (76,2%), cabeça e pescoço (81%), representam a fadiga resultante da atividade desempenhada por esses profissionais. Sobre o grande número de adoecimento desses trabalhadores, Winkleby et al. (1988) observaram altos índices de absenteísmo. “Entre os principais impactos organizacionais das condições de trabalho penosas, destacam-se o aumento do absenteísmo, da rotatividade e dos conflitos” (MENDES, 1997, p. 7). Sobre o assunto, Dejours (2011b), ao explicar as estratégias defensivas individuais, descreve que em certas circunstâncias pode acontecer de o trabalhador não conseguir, isoladamente, manter os ritmos de trabalho ou manter seu equilíbrio mental. Assi m, a saída será individual e duas soluções lhe são possíveis: a saída do emprego ou as faltas contí nuas. Observa-se, então que é a ausência ao trabalho que per mite a conti nuidade na empresa. Contudo, do ponto de vista da or ganização, os absenteísmos causam uma série de transtor nos, em especial relacionados à sobrecarga de trabalho para outros funcionários (MENDES, 1997). Com relação ao adoecimento mental entre os motoristas de ônibus, Ramos (1991) descreve sobre a maior incidência, entre outras doenças, de desordens mentais, psiconeuróticas e distúrbios da personalidade destes trabalhadores em relação a população geral. Em um estudo realizado em São Paulo (SP), que analisou a presença de distúrbios psiquiátricos menores em motoristas e cobradores de ônibus, também encontrando uma prevalência destes distúrbios de 20,3% no conjunto dos dois grupos de trabalhadores (28% em cobradores e 13% em motoristas) (SANTOS, 1992). Lei gh e Fries (1992), identificaram em 1992 que os motoristas de ônibus estavam entre as ocupações com maiores índices de incapacidade . Pesquisa mais recente confir ma a manutenção deste quadro, uma vez que Santos Júnior (2003) aponta que o exercício dessa 32 profissão nas atuais condições de trabalho a que estão submetidos os motoristas em praticamente todo o mundo, danifica a saúde destes trabalhadores, causando adoecimentos, variadas formas de sofrimento físico e/ou mental e mortes prematuras. “O trânsito, o contato com passageiros e a press ão decorrente das exi gências de cumpri mento dos horários são fatores que tornam o cotidiano de trabalho extremamente estressante e criam um cli ma de per manente nervosismo” (MENDES, 1997, p.6). Além destas repercussões, outro aspecto relevante que amplia as consequências nocivas do trabalho é a contami nação da vida fora do trabalho pelos fatores ansiogênicos da função (DEJOURS, 2011b). Dessa for ma, as condições de trabalho causam i mpacto no relacionamento do trabalhador com familiares e amigos, podendo levar até mesmo à comportamentos auto destrutivos e de grande risco para a sociedade, como o consumo de álcool (MENDES, 1997). Entretanto, não podemos estabelecer uma relação de causalidade direta entre essas condições e o aparecimento de distúrbios, pois uma série de componentes sócio-psico-biológicos interferem neste processo (MENDES, 1997). Sato (1991), ao delimitar o conceito de trabalho penoso a partir do conheci mento prático dos motoristas de ônibus da cidade de São Paulo, refere que o modelo monocausal pautado na objetividade e adotado na legislação para compreender a relação saúde e trabalho se mostra limitado para estudar a penosidade, visto que não é possível identificar e eleger um agente específico da condição de trabalho do motorista profissional, ca paz de sintetizar a noção de “trabalho penoso”. A pesquisadora descreve que os motoristas concebem o trabalho como unidade, como totalidade, cuja configuração é deter minada pela interação dinâmica entre os seus componentes, que se apresentam sempre na sua interação com os demais. Dessa for ma, diferente da concepção dos arti gos que tratam das condições de trabalho dos motoristas, Sato (1991) descreve que seria fictício atribuir apenas a componentes isolados a causa da penosidade do trabalho. Para Sato (1991), uma intervenção pautada na elimi nação ou a mi ni mi zação da ação de elementos identificados como motivo de penosidade, isoladamente, através de medidas de proteção individual e coletiva, não garantem o êxito da atuação preventiva, já que modi ficar os conte xtos de trabalho necessita repensar o trabalho na sua totalidade. Para assim proceder, é preciso considerar, simultaneamente, a dimensão objetiva e subjetiva, a saúde física e mental, tendo-se por referência a busca do equilíbrio que garante o controle sob re o trabalho. Para tanto, as for mas de organi zação do trabalho devem ser repensadas de modo decisivo, já 33 que a centralização do poder desempenha um papel importante na oscilação entre controle e ruptura e nucleia a delimitação do conceito de Trabalho Penoso. Considera-se essa reflexão de Sato (1991) de extrema relevância, uma vez que a maioria dos estudos sobre o tema, tal como o de Battiston, Cruz e Hoffmann (2006), apesar de trazerem significativas contribuições para a análise das reais condições de trabalho dos motoristas de ônibus, acabam que por concluir apenas a necessidade de mudanças pontuais no processo de trabalho, tal como a existência de programas de educação para o trânsito, programas educacionais e de conscientização que levem até esse profissional o ensino de técnicas de alongamento e auto-correção postural, e o redesenho das cabines e do posto de trabalho. Como aponta Ramos (1991), não bastam mudanças pontuais sem uma intervenção real nas condições de operação. De acordo com Mendes (1997) as mudanças nas condições de trabalho dos motoristas de ônibus são de responsabilidade dos diversos atores envolvidos no processo. Além disso, a melhora das condições de trabalho desses profissionais pode ter um efeito positivo no desempenho da atividade, considerada prioritária à população. 3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Esta pesquisa teve por objetivo investigar a organi zação do trabalho do transporte coletivo de Curitiba e sua relação com o sofri mento dos motoristas, sofri mento esse que cul mi na no processo de adoeci mento mental vivenciado por uma parcela significativa dos motoristas na cidade. A fim de cumprir esse objetivo, a execução da pesquisa contemplou a realização e análise de entrevistas realizadas com esses profissionais e, também, uma pesquisa documental sobre as principais entidades no âmbito do transporte coletivo na cidade. Entrevistas Foram entrevistados 4 motoristas de ônibus da cidade de Curitiba, no período de dezembro de 2012 e janeiro de 2013. Optou-se por entrevistar os profissionais em seus próprios postos de trabalho, durante a execução da sua atividade laborativa. Foram convidados para responder a entrevista apenas os profissionais que trabalham em linhas sem a presença de cobradores. Esse foi o critério para a realização das entrevis tas, visto que se considerou que a presença desses últimos poderia interferir nas respostas dos motoristas, prejudicando análise dos resultados deste estudo. Respeitando -se essa exigência, os 34 profissionais entrevistados foram definidos por acessibilidade e adesão nos ter minais de ônibus/ pontos de ônibus da cidade, em horários em que não há grande circulação de passageiros. No contato com os motoristas, foi lhes explicado que a entrevista ti nha caráter sigiloso e que essa seria utilizada para a realização de um estudo que trata das condições de trabalho dos motoristas de ônibus da cidade de Curitiba. Optou-se por não falar que o estudo ti nha como foco de investigação a saúde mental desses profissionais, a fim de não tendenciar as respostas durante a entrevista. Todos os profissionais aceitaram participar da pesquisa. Eles responderam uma entrevista semi-estr uturada, a qual o roteiro pode ser visto em anexo ( p.94). Como define Minayo (1999), o “roteiro é sempre um guia, nunca um obstáculo”. É dentro dessa visão que o roteiro foi elaborado e utilizado nesta pesquisa, visto que o diálogo entre trabalhador e pesquisadora extrapolou, em todas as ocasiões, os questionamentos previamente elaborados no roteiro. Cada entrevista durou cerca de uma hora e posteriormente elas foram transcritas. Foram respeitadas todas as condições éticas para a realização desta pesquisa. Caracterização dos participantes TABELA 1 – CARACTERIZAÇÃO DOS PARTICIPANTES Participantes Tempo de trabalho Posto de trabalho Motorista 1 16 anos Motorista 2 10 anos Motorista 3 10 anos Motorista 4 2 anos Trabalha em ônibus com via exclusiva de circulação. Trabalha em ônibus com via exclusiva de circulação. Trabalha em micro ônibus convencional, que ligam os bairros ao centro. Divide o trânsito com os demais automóveis. Ingressou no setor de transportes como cobrador e posteriormente passou para função de Ingressou no setor de transportes como cobrador e, posteriormente passou para função de Trabalha em ônibus que realiza integração entre alguns ter minais e tubos da cidade. Divide o trânsito com os demais automóveis. Ingressou no setor de transportes como motorista. Já trabalhou em diversas linhas de ônibus, Ingressou no setor de transportes como cobrador e posteriormente passou para função de 35 Experiência Profssional motorista. Já trabalhou em diversas linhas de ônibus, sempre na mesma empresa. motorista. Trabalha cerca de 2 meses por ano como motorista no transporte coletivo de passageiros, e durante os outros meses do ano desempenha essa função em outro ramo. Já trabalhou em diversas linhas de ônibus, sempre na mesma empresa. sempre na mesma empresa. motorista. Já trabalhou em diversas linhas de ônibus, sempre na mesma empresa. Atual mente exerce dupla função (dirige e cobra a passagem dos usuários). Os sujeitos da pesquisa têm idade entre 45 e 56 anos. Análise das entrevistas O material foi tratado a partir da análise qualitativa de Bardin. Os resultados foram analisados tomando como referência a teoria da Psicodinâmica do Trabalho. Pesquisa Documental A pesquisa documental foi realizada a partir de uma análise das notícias referentes aos motoristas de ônibus de Curitiba e das principais entidades no âmbito do sistema transporte coletivo na cidade. A coleta de dados foi realizada nos se guintes meios de comunicação: no site do jornal Gazeta do Povo, jornal de grande circulação na cidade; no site da Radio Banda B, estação de rádio que publica na sua pági na da inter net denúncias anôni mas realizadas pelos motoristas; e no site G1, portal de notícias da emissora Rede Globo. Além disso, também foi realizada uma busca no site da Urbs e nos documentos que regem a instituição, a fi m de investigar a criação e desenvolvimento do transporte coletivo na cidade. A pesquisa documental também contemplou uma análise referente ao Sindicato dos motoristas e 36 cobradores de ônibus de Curitiba e Região Metropolitana (Si ndi moc) e ao Si ndicato das empresas de ônibus de Curitiba e Região Metropolitana (Setransp), realizada por meio de uma investigação no site dessas instituições, assim como por meio das notícias de jornal. Também foi utilizada a análise de conteúdo qualitativa proposta por Bardin para análise destes dados. 4. RESULTADOS E DISCUSSÃO Segundo Dejours (1992, p. 25), o sofri mento mental está relacionado à organi zação do trabalho. Essa é defi nida como “a divisão do trabalho, o conteúdo da tarefa (na medida em que ele dela deriva), o sistema hierárquico, as modalidades de comando, as relações de poder, as questões de responsabilidades etc.”. Pautando-se no princípio de que a relação do sujeito com a organi zação do trabalho pode gerar fragilizações mentais e causar adoecimento (DEJOURS, 1992), considerou-se relevante realizar uma análise mais abrangente sobre a organização do trabalho do sistema de transporte coletivo de Curitiba. 4.1. A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO Como beber dessa bebida amarga Tragar a dor e engolir a labuta? Chico Buarque - Cálice 4.1.1. As condições de trabalho Observa-se que as condições de trabalho dos motoristas de ônibus de Curitiba assemelham-se bastante daquelas encontradas em outras regiões do país, descritas anterior mente na revisão de literatura sobre o tema. Três dos profissionais entrevistados ingressaram no setor de transporte como cobradores de ônibus e posteriormente passaram para a função de motorista. Além disso, todos eles trabalham na mesma empresa desde que ingressaram nesse setor. Esses profissionais trabalham de 6 a 7 horas diárias, dependendo da tabela de horários que têm que cumprir, têm fol ga de um dia por semana, que alter na a cada mês entre o sábado e o domingo e dizem não serem obrigados a fazer horas extra. Entre as atividades do motorista, está a de chegar à garagem al guns minutos antes do horário definido para a saída do ônibus, para conferir se tudo está funcionando no veí culo, como também para 37 marcar o tempo da saída. Além disso, em deter minados trechos da viagem eles marcam o horário em uma tabela impressa, modelo que está em substituição pelo computador de bordo. A remuneração pela atividade profissional, segundo os entrevistados, é de 1500 reais, porém alguns motoristas disseram que esse valor sofre descontos devido às multas aplicadas pela Urbs. Um dos entrevistados relatou sua insatisfação quanto às tabelas de horário estipuladas pela empresa, uma vez que alguns motoristas têm uma pausa não remunerada na sua jornada de trabalho. Assi m, o trabalhador está disponível por um período de 9 horas para a empresa, durante todos os dias de trabalho, mas apenas 6 horas são remuneradas. No que se refere às férias, são de 30 dias, normal mente não sendo possível tirá-las no mês de venci mento, podendo atrasar alguns meses. Já um dos motoristas infor mou que na empresa na qual trabalha, por uma nor ma i nter na, os motoristas tiram férias somente quando estiver para vencer os dois anos consecutivos de trabalho, o que resulta em estresse e cansaço por parte dos profissionais. Sobre a questão do banheiro, o profissional que trabalha no micro ônibus relatou que devido aos horários apertados estipulados pela Urbs, normal mente não sobra tempo p ara ir ao banheiro durante a jornada de trabalho. Ele disse que nor mal mente está atrasado em relação aos horários, principalmente durante a semana, já que o trânsito e o fl uxo de usuários são maiores. Além do tempo apertado, outro agravante citado por esse entrevistado é a falta de sanitários, visto que na linha a qual opera não há banheiro que possa utilizar. Já os outros três profissionais, que trabalham em li nhas que fazem integração com ter mi nais, relatam conseguir utilizar os sanitários enquanto os passageiros embarcam no ônibus; dois deles disseram utilizar os sanitários quando necessário, mesmo que esteja atrasado, já o outro profissional admi tiu ir somente se estiver sobrando tempo, de acordo com a tabela estipulada pela Urbs. 4.1.2. “É trânsito, fiscal, passageiro e horário: os quatro inimigos da vida de motorista” Observou-se que as di ficuldades apontadas pelos motoristas durante a execução da sua atividade laborativa são de fundamental importância para o entendi mento da organizaçã o do trabalho na qual esses profissionais estão inseridos. Por isso uma análise pautada nessas dificuldades mostrou-se relevante nesta etapa do estudo. Contudo, neste capítulo foram 38 analisados também os aspectos para além daqueles defi nidos pelos motoristas como dificuldades, de modo a englobar as relações de trabalho de um modo mais amplo. 4.1.2. Os horários para o cumprimento do itinerário Uma das dificuldades apresentadas pelos profissionais foi o tempo estipulado pela Urbs para a realização do trajeto. Esse horário, segundo os entrevistados, foi estipulado há mui tos anos (26 anos, segundo um dos entrevistados), e naquela época as condições da cidade (expansão e número de pessoas), assim como as condições do trânsito, eram outras. Além disso, três dos profissionais entrevistados relataram que se pudessem modi ficar algo em seu trabalho, alterariam os horários para o cumpri mento das viagens, de modo a dei xá -los mais flexíveis. Dois dos trabalhadores disseram que durante a semana é mais complicado cumprilos. De acordo com um deles, durante o fi m de semana “eles aumentam a tabela, aumentam o horário”, contudo, durante a semana, período em que “tem mais passageiro, pára mais para entrar, demora mais para subir e para descer, (...) eles diminuem o tempo. (...) Tem mais gente, mais fluxo e diminui o tempo!”. De acordo com entrevista à Rádio Banda B, do dia 16 de fevereiro de 2010, disponível on line, um motorista relatou que os motoristas estão submetidos à pressão psicológica e condições inadequadas de trabalho. Segundo ele, maior pressão é com relação aos horários que os motoristas são obrigados a cumprir, obrigatoriedade que também foi mencionada nas entrevistas. Sobre o assunto, os motoristas de ônibus com i ntegração com ter minais responderam que não sofrem penalidade se não conseguirem cumprir o horário estabelecido; já o motorista do microônibus disse que uma prática na empresa a qual trabalha é tirar da escala os motoristas que nor mal mente não conseguem cumprir o horário, mudando os de linha. 4.1.3. As relações de trabalho De acordo com Dejours (2012b, p. 38) trabalhar não é apenas uma atividade, não é apenas produzir, “é também e sempre viver junto”. Dessa for ma, entende -se “por „relação do trabalho‟ todos os laços humanos criados pela organização do tra balho” (DEJOURS, 1992, p. 75). No caso dos motoristas de ônibus, os laços que, durante a entrevista, se mostraram relevantes para essa análise foram: com os fiscais da Urbs, supervisores da empresa, 39 passageiros, outros motoristas e com os cobradores. As relações traçadas no trabalho são importantes em ter mos de preservar ou prejudicar a saúde mental (CODO, 2002). 4.1.3.1. Fiscais e supervisores Apesar de qualificado como necessário o trabalho de fiscalização realizado pelos fiscais da Urbs, dois dos motoristas entrevistados referem uma visão bastante negativa sobre esses profissionais. Segundo esses entrevistados, os fiscais por “qualquer coisa querem meter a caneta”, são “sarna”, ficam dando multas “para dizer que são bons” e “arrecadar dinheiro para a Urbs”. Na visão dos entrevistados, ao invés desse profissional primeiramente “advertir, (...) explicar, para na segunda vez ele punir, não! Eles já não querem saber!” . Observa-se, por essas expressões utilizadas pelos motoristas, um conflito bastante pessoalizado em relação aos fiscais. Isso não foi observado apenas na fala dos trabalhadores, visto que confor me descrito em matéria pública10 sobre as multas abusivas da Urbs, o então prefeito de Curitiba, Luciano Ducci, não questionou as nor mas dessa instituiçã o ou a posição das empresas diante dessas nor mas, mas “a falta de coerência dos fiscais” na aplicação das mul tas. Observa-se na fala do prefeito, assim como na dos próprios motoristas, que os fiscais são vistos como os verdadeiros opressores dos demais operadores do transporte coletivo. Contudo, uma das denúncias do motorista entrevistado pela Rádio Banda B, no dia 16 de fevereiro de 2010, foi em relação às multas abusivas às quais os profissionais estão submetidos no trabalho, situação que ocorre com freqüência e envolve tanto as empresas do setor quanto a Urbs, responsável pela fiscalização do transporte coletivo na cidade. Outra notícia sobre esse assunto, publicada no jornal Gazeta do Povo, no dia 7 de março de 2009, descreve que os motoristas e cobradores ficaram assustados após a mudança na for ma de cobrança realizada pela Urbs, uma vez que os possíveis erros durante a jornada de trabalho passaram a ser motivo de desconto no salário ao final do mês. Segundo a reportagem, até dezembro de 2007, a Urbs co municava a infração com base no relatório do fiscal, antes de mul tar. Entretanto, após a mudança, uma notificação de multa é expedida pela Urbs e as empresas agem de acordo com as suas nor mas, podendo recorrer em caso de dúvida. 10 LUCIANO DUCCI DETERMINA SUSPENSÃO DE MULTAS A COBRADORES. Banda B, 26 agosto 2011. Disponível em: < http://ba ndab.pron.com.br/j orna lis mo/ luc ia no-ducc ideterm ina- suspens ao-de-m u ltas-a- cobrado res-272 98/>. Acesso em: 20/12/2012. Curitiba, 40 A respeito das multas abusivas, uma notícia disponível no site da Rádio Banda B, datada do dia 26 de agosto de 2011, explica que Luciano Ducci, prefeito de Curitiba na época, deter minou à Urbs uma revisão no estatuto que rege a atividade de motoristas e cobradores de ônibus e a suspensão de multas admi nistrativas. O prefeito disse que “não se pode multar alguém por sentir frio”, fazendo referência à situação enfrentada pelos cobradores das estações-tubo da cidade que eram mul tados por utilizarem agasalhos que não faziam parte do unifor me para se protegeram do frio durante o inver no. Após discutir o assunto com o presidente da Urbs, Marcos Isfer, o prefeito determinou as medidas e disse confiar na competência e sensibilidade da Urbs para resolver a situação. De acordo com o edital 11 do concurso público para os agentes de fiscalização da Urbs, algumas das atribuições desse cargo são: Verificar em campo e orientar o cumprimento dos regulamentos do sistema de transporte coletivo, táxis, transporte comercial e equipamentos urbanos, fazendo cumprir a legislação pertinente, e regulamentos específicos, informando à Unidade ocorrências e sugerindo alterações visando melhorias dos sistemas. Emitir registros de ocorrências e/ou autos de infração. Prestar informações e orientações aos usuários. Fazer cumprir o regulamento interno, normas, termos de permissão de uso (...). Tomar providências em situações de emergência para garantir a operação de transporte coletivo. A indi gnação para com esses profissionais, por parte dos motoristas, aumenta na med ida em que eles citam irregularidades na função do fiscal. De acordo com um entrevistado, ocorrem casos em que em deter mi nado horário o motorista é multado, pelo fiscal, em um ponto da viagem, sendo que naquele período ele estava em outro trecho, o que, se gundo o profissional, “não tem lógica”. Sobre as multas, um dado relevante encontrado nas entrevistas foi que o participante da pesquisa que exerce o cargo há menos tempo apontou que o abuso das multas aplicadas pelos fiscais decorre das próprias normas or ganizacionais, ou seja, por motivos para além daqueles pessoais, como citado pela maioria dos entrevistados. Esse profissional afirmou que, na empresa na qual trabalha, havia um motorista que era ex fiscal. Segundo o entrevistado, “ele foi mandado embora da Urbs porque a Urbs obrigava que eles tivessem uma cota de multa mensal. (...) Daí ele falou „vou multar se precisar‟. (...) Ele foi mandado embora por justa causa, até! Daí entrou na justiça, recorreu e ganhou!”. 11 http://www.pciconcursos.com.br/concurso/urbs -urbanizacao-de -curitiba-sa-pr-vagas-ate-1039>. Acesso no dia 21/02/2013. 41 Com base nessa explicação realizada pelo motorista, infere-se que a noção de “carrasco”12 se aproxima da fi gura do fiscal do transporte coletivo de Curitiba. O trabalho desse profissional “carrasco”, como é o caso dos fiscais, tendo metas de aplicação de penalidades a serem atingidas mensal mente, como explicou o entrevistado, “consiste em cometer uma inj ustiça contra outrem, sem que este tenha a possibilidade de se defender, sem que ele esteja preparado, às suas costas, sem face a face, sem que ele o saiba, a coberto” (DEJOURS, 2012ª, p. 80). Já quem ordena o “trabalho sujo”, segundo Dejours (2012a, p. 80) está, na maioria dos casos, “protegido (...) por toda uma série de inter mediários que o executam e for mam um a nteparo entre ele” e os sujeitos a serem punidos. Dessa for ma, infere-se que é por meio do trabalho do profissional fiscal que se forma a engrenagem entre a Urbs e as empresas de transporte para com os motoristas, permi tindo o exercício do controle hierárquico no transporte coletivo de Curitiba. Além disso, o trabalho dos fiscais, sendo incumbidos de realizar o que é próprio da organização do trabalho, pode gerar o que Dejours (2012a) denomi nou de “sofrimento ético”. Segundo o autor, esse é o sofrimento que o sujeito experi menta ao cometer, por causa de seu trabalho, atos que condena moral mente. Ainda pode-se mencionar que essa concorrência generalizada entre os funcionários, equipes e serviços, como reflexo da gestão do transporte coletivo (visto que segundo o trabalhador, os fiscais teriam metas de multas a atingir mensalmente ), acaba levando ao desenvolvimento de condutas desleais entre os trabalhadores e à ruína das relações solidárias. Dejours (2012b) explica que tais práticas de gestão resultam no isol amento de cada i ndivíduo, na solidão e a desagregação do viver junto. Como o próprio autor aponta, entre as conseqüências desse tipo de prática organizacional está o aparecimento das patologias mentais do trabalho. Da mesma for ma que é com os fiscais, os motoristas percebem o conflito com os supervisores da empresa também como um problema pessoal. Na fala do entrevistado mais novato na profissão, a razão de a maioria dos motoristas não gostar dos supervisores está relacionada à própria função deles na empresa: 12 A origem dessa palavra, segundo site, está relacionada historicamente ao trato com pessoas que não queriam seguir os ditames da lei, dessa forma, para que a lei fosse cumprida, o trato para com esses indivíduos era mediado por um profissional. Quem se ocupava dessa tarefa, para que os outros não precisassem “sujar as mãos” era o carrasco. (HTTP://origemdapalavra.com.br/palavras/carrasco/ . Acesso em:03/02/2013). 42 Se a pessoa é meu supervisor, tá me supervisionando, tá vendo como a gente tá trabalhando, o que que tá fazendo...daí o que ele faz? Ele faz o relatório e manda para a empresa, daí esse motorista é chamado lá, pra responder a algum erro que ele cometeu. Aí que dá os problemas, que o motorista acha que é pessoal. Como pode ser percebido por meio dos relatos, a questão do trabalho fica escamoteada e o debate se desloca para questões pessoais. Para Dejours (1992), esse deslocamento que se dá no âmbito das relações de poder é uma situação típica do setor terciário, em que a atmosfera de trabalho tem como efeito principal o envenenamento das relações entre os empregados, criando suspeitas, rivalidades e perversidade de uns para com os outros. Considera -se essa reflexão pertinente, no caso do Sistema de Transporte Coletivo de Curitiba, pois pelas próprias normas institucionais aos quais os trabalhadores estão submetidos, esti mula -se o conflito entre eles, o que certamente tem conseqüências no trabalho e na s ubjetividade dos mesmos. Dessa for ma, “de um conflito no sentido vertical, as contradições passam a se dar então no plano horizontal” (DEJOURS, 1992, p.76). Segundo o autor, essa é uma das for mas de controle no setor terciário e uma trama assim elaborada é densa e coerente, sendo difícil a fuga ou a não participação no sistema. Além disso, de acordo do Dejours (1992, p. 75) “não podemos considerar como epifenômeno ou como questão acessória a discriminação que opera a hierarquia com relação aos trabalhadores”, visto que essa “faz parte i ntegrante das táticas de comando”. Segundo um dos entrevistados, as multas ainda conti nuam ocorrendo, mesmo após o decreto que proíbe a sua aplicação ter sido assinado. Ele explicou que quando é mul tado por um fiscal, um comunicado da Urbs, sobre a mul ta, é encami nhado à empresa. Na fala do profissional, Se você não concorda, você tem que falar com a empresa, você tem que falar com o chefe lá. (...) E aí ele fala, „ele é seu e assina aí‟, é assina ou assina! E depois que você assinar, ele até recorre, mas não é assim! Você não tem que assinar... você tem que primeiro fazer a defesa, ser julgado, para depois né? Mas não. (...) Ou assina ou fica sem trabalhar... Percebe-se, embutido nessas práticas, “nada de imprecisões, de sutilezas capazes de despertar a curiosidade, o questionamento, a perplexidade” do trabalhador (DEJOURS, 2012a, p. 68). É como se o motorista acusado estivesse desarmado diante de toda a parafernália que instrumentaliza a produção das provas ao seu respeito: relatórios realizados pelos fiscais e supervisores sobre o cometi mento de infrações e as circunstâncias nas quais foram realizadas (por quantos quilômetros o motorista dirigiu na ilegalidade), e demais 43 documentos enviados para a empresa, como as reclamações dos usuários que entram em contato com a central de atendi mento e i nfor mações da Prefeitura Municipal de Curitiba. “É uma luta desigual: de um só lado todas as forças, todo o poder, todos os direitos” (FOUCAULT, 2002, p.76), de outro, o trabalhador solitário, não podendo contar nem mesmo com o seu sindicato diante dessa prática injusta, o que será abordado posteriormente. Ainda sobre a postura da empresa diante dessas penalizações, o profissional responde que a empresa “não quer nem saber”, “pensa só em lucro e não está nem aí para você”. Visto que as multas eram aplicadas de acordo com a quilometragem, em algumas circunstâncias essas acabavam acarretando uma perda significativa no salário. O mesmo ocorre quando acontecem acidentes de trânsito com batida do veículo em outros automóveis. Nesses casos, o motorista paga a franquia do seguro do outro automóvel (cerca de 1000 reais) e mais o conserto do ônibus, segundo um dos entrevistados. Um dos motoristas contou, também, que pelo letreiro da lateral do ôni bus com o nome da linha ter quei mado, já foi obrigado que pagar cerca de 150 reais, o que precisou parcelar em três vezes. As mul tas, segundo ele, vinham diretamente descontadas na fol ha de pagamento. A maioria das multas que acontecem, de acordo com um motorista, são por excesso de velocidade. Outro entrevistado afirmou que na época anterior a questão do abuso das mul tas por parte da Urbs ser noticiado na mídia, se você estava com a barba um pouquinho por fazer, você era multado, daí multava a empresa e descontavam da gente. É... de boné, por exemplo, (...) tem gente que usa boné branco. Você era multado! Você só pode usar boné preto, azul ou cinza, entendeu? Só por coisas banais. Que nem aconteceu do rapaz da estação tubo lá, que colocou um cobertor, um negócio lá para se proteger do frio e foi multado. A Urbs multou por ele estar deixando tudo fora do padrão, e não sei o que, da onde se viu uma coisa dessas? Pelas situações relatadas pelos entrevistados, observa -se a presença da penalidade diante de mi nuciosidades, detalhes e banalidades. Além disso, observa -se que essas não têm relação de proporção direta com os atos cometidos. Contudo, após os abusos na aplicação das multas serem expostas na mídia e após a mudança de gestão no sindicato dos trabalhad ores, o motorista explica que a Urbs “deixou um pouco mais flexível”. Segundo ele, como a Urbs não é uma empresa 100% do município, tendo uma par te dela que é privada, os fiscais da urbs não poderiam multar os motoristas. “Se não se transforma na indústria da multa. O dinheiro das multas, que era para ir para o município está indo para a pessoa, né. É ações da Urbs” . 44 Além disso, segundo ele, como os fiscais não são da Secretaria Municipal de Trânsito (Setran) ou do Departamento de Trânsito do Paraná (Detran), não podem mais multar os motoristas, apenas a empresa. O trabalhador conta que após as mudanças referidas acima, “ a empresa vem e cobra da gente, né. Tipo assim „você tá barbudo, cara, fica aí e não vai sair na escala hoje‟, „cara, você não pode trabalhar com esse boné, cara‟”. Dessa for ma, percebe-se por meio dessa prática um remanejamento do poder de punir, que outrora era realizado pela Urbs. Se antes o trabalhador era punido fi nanceiramente pela Urbs (por meio dos fiscais) por trabalhar com a barba por fazer, agora é constrangido pela própria empresa, não podendo trabalhar nessas ocasiões, a fim de que essa não seja penalizada. Infere -se que atual mente, é por meio dessa tática que a organização do trabalho ati nge seus objetivos. Analisam-se três aspectos a partir dessa situação: que a proibição das multas aplicadas aos motoristas não ocorreu por uma nova sensibilidade do lugar do trabalhador nessa organização do trabalho (visto que ele ainda é penalizado); que a nova política em relação às “ilegalida des” cometidas pelos motoristas, exemplificada acima, se configura como um terreno fértil para o desenvolvimento do assédio moral organi zacional; e que a organização do trabalho utiliza e reorganiza o poder de punir confor me seus objetivos econômicos. Outro motorista explicou que as multas foram substituídas por palestras em que se explica ao profissional o modo correto de atuação. Essas diferentes respostas podem referir a diferença no posicionamento de cada empresa após o decreto que proíbe a aplicação de multas aos cobradores e motoristas ter sido assinado. Porém, o que é comum a todas essas possibilidades é o exercício da disciplina. As estratégias de disciplina que são operadas dentro das instituições tem a fi nalidade de tornar o trabalhador mais produtivo e eficiente. A combi nação dessas operações de poder com a vigilância garante o controle da força de trabalho dos trabalhadores (FOUCAULT, 2002). Dessa forma, as relações hierárquicas estabelecem o lugar que cada um deve ocupar nas organizações, infl uenciando a conduta dos trabalhadores (GONÇALVES; BUAES, 2011). 4.1.3.2. Os passageiros Como descrito acima, outra dificuldade apontada por esses profissionais no exercício de seu trabalho é a relação com os passageiros. Tal como no caso dos fiscais, foi observada uma visão negativa por parte de alguns profissionais sobre os usuários do transporte coletivo: “xucrão”, “tiozão” e “povo enchendo o saco” foram algumas das expressões para qualificá- 45 los. Segundo um dos entrevistados, a maioria das pessoas “embarca, passa a catraca e tá beleza, não incomodam! Mas tem pessoas que vem, sabe, e parece que vem predisposto a arrumar confusão”. Os motoristas sentem que são mal vistos pela população e explicaram que os usuários cobram e reclamam demais, sendo difícil satis fazê-los. De acordo com um profissional “é complicado! Você anda demais, „você está louco, você está louco‟. Se você anda de menos „ô, motorista, tá se arrastando?‟”. Contudo, dois entrevistados mencionaram ter uma boa relação com os passageiros. Infere-se, ainda, que essa visão negativa sobre a população, por parte dos motoristas, decorre do fato de que os passageiros são vistos como uma ameaça a esses profissionais, o que remete as próprias nor mas que os motoristas são submetidos em seu trabalho. Isso po de ser percebido, por exemplo, quando o motorista explica que os usuários podem ligar para a central de atendi mento e i nfor mações da Prefeitura Municipal de Curitiba reclamando da sua postura profissional. As conseqüências desse fato, segundo ele, é que a infor mação é repassada para empresa e essa aplica uma penalidade ao motorista. De acordo com um profissional, “você pode ligar e inventar um monte”, e nessas ocasiões a palavra do usuário é sempre vista como correta. Um dos motoristas ainda comenta que os conflitos com passageiros são constantes: “eles te xinga, te grita e vem em cima de você aqui. Teve uns rabudo aí que já tomou uns tabefe! Já teve casos de neguinho apanhar no volante! Vários, vários...”. Contudo, o motorista entrevistado que trabalha no transporte coletivo de passageiros apenas durante alguns meses do ano, refere que uma das razões da irritação dos passageiros para com os motoristas se deve a falta de conheci mento desses últi mos em relação às suas condições de trabalho: Eles não entendem muito assim, não sabem que é horário, não sabem das condições da gente. Chega lá e não querem saber. Eu acho injusto também, né. Uns ajuda, outros não ajuda, sobra para você resolver o problema. „Mas você está atrasado, motorista‟. O tempo é curto, você te m bastante passageiro para pegar e a empresa não colabora para te ajudar, a resolver o seu problema, eles querem te punir ainda. A fala do motorista evidencia que as falhas da or gani zação do trabalho são assumidas individual mente pelo trabalhador (é um problema dele, o qual ele tem que resolver). Além disso, é sentida, por esse profissional, uma falta de solidariedade tanto da empresa, quanto em relação aos passageiros. Tal como definido por Mendes (1997) sobre a realidade do trabalho dos motoristas em Belo Horizonte, observa-se que, pelo menos em parte, o relacionamento 46 entre motoristas e passageiros do transporte coletivo de Curitiba é instável devido as próprias questões que per meiam a organi zação do trabalho, o que Mendes (1997) referiu como “falhas do sistema”. Quando os motoristas citam suas relações no trabalho, observa-se o desgaste que essas trazem ao trabalhador, evidenciando relações que produzem sofri mento. No que se refere à saúde mental no trabalho, pode-se afir mar que essa desestruturação das relações afetivas no ambiente laborativo é fonte suplementar de sofrimento e a “desorganização dos investi mentos afetivos provocada pela organização do trabalho pode colocar em perigo o equilíbrio mental dos trabalhadores” (DEJOURS, 1992). 4.1.3.3. O relacionamento entre pares Todos os motoristas entrevistados afirmaram ter relações amistosas para com os outros motoristas, o que pode ser percebido pela for ma que uns denomi nam os outros: “companheiros de trabalho”, “amigo” e “parceiro”. Um dos motoristas explicou que quando esses trabalhadores estão reunidos, o que nor mal mente acontece no i ntervalo entre as tabelas, o clima é de descontração. Contudo, durante a entrevista um dos profissionais reclamou da falta de envolvi mento quanto à luta por mel hores condições de trabalho, o que pode ser percebido quando ocorrem as greves. Segundo ele, você tá fazendo a greve, ao invés de ir na assembléia, eles vão para porta da empresa, para saber o resultado da assembléia pra já ir trabalhar. Porque a maioria das vezes a gente perde, né! (...) Tem 6 na assembléia, 200 na porta da empresa, esperando o resultado. (...) „Ah, não sei, não vou ficar perdendo tempo lá não‟, é o que eles falam! Tem 12 mil funcionários em geral, cobrador e motorista, se vai 2 mil vai muito.(...) Tivemos conquistas, mas dava pra conquistar mais, bem mais. Mas um só não ganha, né? Mas ninguém levanta as mão, uns 2 levanta a mão e ninguém quer levantar. Na visão desse profissional, a categoria, apesar de ter relações amigáveis, é desunida na l uta por seus i nteresses, o que prejudica a mudança das condições de trabalho. Para ele, “na convivência beleza, mas vamos pro pau? Ninguém vai!”. Ele ainda refere que os trabalhadores têm responsabilidade quanto a essa situação vivenciada, visto que “ se fosse unida, a categoria, e exigisse alguma coisa” a situação teria se alterado, contudo, “o patrão tem a categoria na mão”. Segundo Dejours (2012a, p. 19) a mobilização coletiva tem sua principal fonte de ener gia na cólera contra o sofrimento e a i njustiç a considerados 47 intoleráveis, contudo, “o sofri mento somente suscita um movi mento de solidariedade e de protesto quando se estabelece uma associação entre a percepção do sofrimento alheio e a convicção de que esse sofri mento resulta de uma inj ustiça”, caso contrário, “não se levanta a questão da mobilização numa ação política, tampouco a questão de justiça e injustiça”. Além disso, observou-se durante as entrevistas uma postura desacreditada por parte dos motoristas quanto as melhorias nas suas condições de trabalho, uma vez que eles afirmaram que não há como a situação ser alterada, que “não tem como mudar” que “é isso ou não é”. Observa-se, assim, uma tolerância dos trabalhadores quanto às injustiças e uma postura de resignação diante de “um fenômeno” sobre o qual não se pode exercer nenhuma infl uência e, ai nda, a atenuação das reações de indignação por parte de alguns entrevistados. Diante desse paradigma da precariedade da mobilização coletiva contra o sofri mento, Dejours (2012a) explica que o problema passa a ser o do desenvolvimento da tolerância à injustiça. Essa discussão será mais bem desenvolvida adiante, quando abordada a questão das estratégias defensivas. Por enquanto, basta dizer que essa passividade coletiva é consequência da falta de perspectivas (econômica, social e política) alternativas (DEJOURS, 2012a), e que ela possibilita o aumento progressivo da exploração. 4.1.3.4. O relacionamento com os cobradores Visto que três dos motoristas entrevistados entraram no setor de transportes e posteriormente assumiram o cargo de motoristas, observou-se uma visão respeitosa sobre esses profissionais, apesar de um entrevistado ter explicado que um comentário comum dentre os motoristas é que “cobrador não faz nada” e, um entrevistado ter referido que o cargo de cobrador demanda menos responsabilidades em comparação com o cargo de motorista. Além disso, todos os entrevistados afirmaram já ter trabalhado em ônibus com cobrador e quando perguntados como era a relação entre eles, evidenciou-se certa falta de co municação entre esses profissionais, visto que eles disseram que cada um fazia a sua tarefa sem interferir na atividade de trabalho do outro. Alguns dos entrevistados ainda explicaram algumas condições, semel hantes as vivenciadas pelos motoristas, as que e stão submetidos os cobradores, tais como assaltos, vandalismo e nor mas rí gidas por parte da Urbs. Segundo um motorista, “sabendo disso, tudo certo, amiguinho!”. 48 4.1.4. “Nossa! Parece que tão me perseguindo!”: o controle sobre o trabalho dos motoristas De acordo com Soares e Thielen (2010) há uma avançada tecnologia aplicada no maqui nário dos veículos e no sistema infor mati zado de gerenciamento do transporte coletivo urbano, o que visa ampliar a produtividade do serviço. Isso pode ser observado na cidade d e Curitiba a partir do Sistema Integrado de Monitoramento, um sistema de controle de tráfego que visa dar mais fluidez ao fl uxo de veículos nas ruas da cidade. De acordo com reportagem do site G1 (10/04/2012), esses sistema foi colocado em operação pela Urbs e a Prefeitura de Curitiba em abril de 2012. Os ônibus do transporte coletivo foram adaptados com computadores de bordo, com GPS, tela e botões de alarme que per mitem contato i mediato com o Centro de Controle Operacional (CCO). O Sistema Integrado de Monitoramento que monitora mais de 1,9 mil veículos da Rede Integrada de Transportes (RIT) da região metropolitana de Curitiba e teve o custo de 71,8 milhões de reais para sua implantação, foi apelidado pelos motoristas de ônibus, segundo reportagem de Marchiori para Gazeta do Povo (09/2012), como “dedo-duro”, visto que “o que os olhos dos fiscais da Urbs não vêem, as câmeras do Centro de Controle e Operações (CCO) têm flagrado”. De acordo com a reportagem, 21 operadores do CCO controlam aproxi madamente 21 mil viagens diárias dos ônibus da cidade e para alcançar a precisão quanto as metas de horário. O sistema conta com aparelhos GPS i nstalados em 1.920 ônibus e, além de comunicar imprevistos, esses equipamentos indicam, o status do cumpri mento de metas de horários, “dedurando” os ônibus atrasados. Segundo reportagem de Marchiori (18/08/2012), com essas infor mações, “os técnicos das empresas responsáveis pelas linhas enviam mensagens de até 140 caracteres para alertar sobre as metas”. Apesar disso, Marchiori ainda relata que segundo a Urbs, há um cuidado para que o motorista não seja pressionado com essas mensagens que chegam ao pai nel de controle dos veículos e eles só podem ler ou responder com o carro parado. Segundo a reportagem, o CCO também comunica sobr e vias interditadas e outras ocorrências que interferem no dia a dia do motorista e a fluidez do tráfego. No que se refere a esse aparato tecnológico instalado nos ônibus, três dos profissionais, durante as entrevistas, julgaram o como sendo válido, e um deles disse que a empresa tem o direito de monitorar os ônibus, que é um patri mônio dela. Os profissionais afirmaram que a tecnologia não i nter fere muito no trabalho e um deles mencionou que est á 49 havendo muitos problemas com o sistema, visto que ao i nvés de agilizar o processo, a tecnologia não está consegui ndo oti mi zar o trabalho em algumas das situações para qual se destina. Segundo esse profissional, a nor ma diante de um i mprevisto (como por exemplo, uma pista com trânsito intenso devido a colisão entre veículos), é que os motoristas devem esperar uma mensagem no computador de bordo (a ser enviada pela CCO) que prescreve o que deve ser feito (desviar o itinerário ou esperar, por exemplo) . Para o profissional, isso vem demorando mais do que se os motoristas pudessem decidir por si próprios o que deve ser feito diante de um i mprevisto. Percebe-se, assim, que objetivo do aparato tecnológico era um maior controle sobre a atividade laboral dos motoristas visando otimi zar o processo, contudo, como pode ser percebido pela explicação do entrevistado isso ainda não foi possível em algumas situações. Como aponta Soares e Thielen (2010), o trabalho dos motoristas de ônibus vem sendo controlado mi nuciosamente por i nstr umentos de gestão que servem à oti mi zação dos procedimentos de trabalho e essa tecnologia de gestão tor na o trabalhador supostamente descartável e desvalorizado. Além disso, observa-se no exemplo aci ma que o saber intelectual do trabalho é transferido para as máquinas infor mati zadas, “que se tornam mais inteligentes”, distanciando a subjetividade do exercício de uma cotidianidade autêntica (ANTUNES; ALVES, 2004, p.347), e negando o saber-fazer do trabalhador. Segundo o profissional entrevistado que está a menos tempo na profissão, Para nós não interfere muita coisa, né. Na verdade isso é mais para eles fiscalizarem a gente do que para a gente ter uso. Porque não interfere em muita coisa, o horário tá ali para ser cumprido e pronto, tem que fazer, não altera muita coisa. Altera porque dá uma controlada e tal , mas para nós eu não vejo muita coisa. Mandar mensagem para eles, isso pode ser pelo telefone. Dessa for ma, na visão do profissional o aparato tecnológico instalado nos ônibus não tem utilidade senão como meio de controle, já que suas outras funções são facilmente substituíveis por métodos até então utilizados. Contrasta-se com essa “falta de utilidade” apontada pelos trabalhadores, que di zem i nclusive que atual mente “eles não te obrigam a cumprir o horário”, a explicação dos entrevistados sobre a utilização do instrumento, onde se evidencia o controle exercido pelo aparato. Apontando para o computador de bordo um dos motoristas explica: “verde eu estou no horário, vermelho eu estou adiantado e amarelo eu estou atrasado”. Com referência nessas sinalizações e algumas marcações de horário no painel, o profissional diz que ti nha o prazo de um mi nuto para arrancar dali, “se não acusa 50 atrasado”, segundo ele, “tem que cumprir direitinho”. Dessa for ma, confor me apontado acima, se observa que a finalidade maior do instr umento remete a uma pressão para o cumpri mento do horário, ou seja, uma fi nalidade de controle. Acredita-se que esse instrumento, por meio do controle sutil que desempenha, sendo quase que i mperceptível pelos motoristas (que afir mam que atual mente não há a obri gação do cumpri mento do horário), seja o meio pelo qual a organização atinge seus objetivos na atualidade, em uma época na qual foram escancarados para sociedade os abusos das multas aplicadas aos trabalhadores do setor de transportes (e assina do o decreto que proíbe a sua aplicação). Por esse motivo, a organi zação do trabalho, não pode mais se valer desse artifício (multas) para alcançar a precisão quanto as metas de horário e aumento de lucratividade. Contudo, isso pode ser alcançado com a i mplantação do aparato tecnológico nos ônibus e do Centro de Controle Operacional (CCO). Sob o ponto de vista da lucratividade o controle do tempo é algo relevante, pois quanto maior o número de viagens que um ônibus fizer, menos recursos a organização do trabalho terá que dispor (ônibus, funcionários, etc.) e sua lucratividade será aumentada. Ainda é preciso ser dito que com o apelo da organi zação do trabalho ao controle por meio do aparato tecnológico instalado nos ônibus, o conflito personificado na figura do fiscal pode deixar de existir, uma vez que nesse contexto não haverá mais uma pessoa para a qual os trabalhadores podem dirigir sua fúria frente à pressão que a organi zação do trabalho lhes impõe. Além disso, como já dito, a tecnologia é um meio de controle quase que i mperceptível aos trabalhadores, algo neutro. Nesse novo paradigma, acredita -se que o controle quanto ao cumpri mento de horário é internalizado pelo trabalhador, visto que o ele afirma que a organização não obriga mais o cumpri mento do horár io. Da mesma for ma, o conflito entre a organização do trabalho e o trabalhador continua não sendo visível. Além disso, perante a população o aparato tecnológico nos ônibus, meio sutil de controle sobre o trabalho do motorista, é visto como ícone de moder nidade de uma cidade “modelo”, desenvolvida. Dessa for ma, o controle excessivo sobre a atividade laborativa desses profissionais se perpetua, contudo, não sem dei xar marcas na subjetividade do trabalhador , como evidenciado no relato de um dos entrevistados. Nesse, ao explicar sobre o trabalho dos fiscais e sobre mecanismos institucionais do sistema de transporte coletivo, o trabalhador parece ter tido um insight, que remete a um próprio efeito subjetivo que essas condições de trabalho provocam: 51 É necessário: fiscal da Urbs, fiscal de itinerante, fiscal secreto... Nossa! Parece que tão me perseguindo!Perseguindo porque o GPS aqui é para cuidar do carro, aí tem o fiscal itinerante que vem à paisana dentro do carro, te multa. Tá dirigindo, tem o aparelho te cuidando, tem mais o fiscal te cuidando dentro do carro. Aí, tem o telefone que é disponível, você (passageiro) pode ligar e inventar um monte. Eles não estão nem aí, eles escrevem. Você pode fazer isso aí. Eles não querem saber se você está certa. Se você ligou lá, você está certa. E isso não é certo. Pelo sistema de vigilância e controle (evidenciado pelos múltiplos mecanismos citados pelo trabalhador acima), percebe-se que essa organi zação do trabalho assemel ha-se do panoptismo, tal como é conceituado por Foucault (2012). O panoptismo é um sistema caracterizado por uma inspeção constante, em que “o olhar está alerta em toda parte” a fi m de observar os indivíduos, de for ma que o sujeito é visto, mas não vê. Isso pode ser percebido na organização do trabalho do transporte coletivo de Curitiba por meio, por exemplo, da figura do fiscal itinerante ou até mesmo do fiscal de rua que o multa e ele fica sabendo do fato apenas posteriormente (já que parece não haver comunicação entre esses profissionais), como também pelo uso do aparato tecnológico nos ônibus, que per mite localizar e vigiar o trabalhador. Além disso, algo relevante nessa organi zação é o fato de que o exercício da disciplina, finalidade do panoptismo, se di funde no campo social, visto que se i nstr umen taliza os passageiros e a sociedade em geral, a fim de exercer esse controle também para com o trabalhador, garanti ndo a eficácia do sistema de vi gilância e controle: o funcionamento da disciplina de maneira difusa, múltipla e polivalente. Esse sistema induz o sujeito a um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder e faz com que esse não se acrescente de fora. O i mpacto subjetivo desse sistema pode ser percebido quando o trabalhador diz sentir-se perseguido e ameaçado por esse métodos e pelas pessoas as quais vive cotidianamente, que passam a ser percebidas como “i ni mi gas” (fiscais e passageiros), como foi abordado acima. Evidencia-se, dessa forma, que a desagregação dos laços entre os trabalhadores está relacionado com a for ma de gestão e seus mecanismos de controle/ vigilância do trabalhador. Quando per guntado ao entrevistado sobre quem eram, então, os ami gos da vida de motorista, ele responde: “amigo só você mesmo e Deus!”. A partir das falas do profissional, podemos perceber o impacto subjetivo dessas formas de controle para os motoristas, que cul mi nam na sua solidão e na falta de solidariedade no trabalho. Assim, cada indivíduo fica sozinho, na solidão frente à injustiça. Evidencia-se que a isso ocorre como conseqüência do modelo de gestão do sistema de transporte coletivo de Curitiba. 52 Tal como apontam vários pesquisadores que investi garam as condições de trabalho dos motoristas (SATO, 1991; BATTISTON; CRUZ; HOFFMANN, 2006), o excesso de controle sobre a atividade laborativa desses profissionais foi um dado encontrado também na realidade curitibana. Analisa-se, que as dificuldades que os motoristas dizem ter no exercício de sua profissão estão bastante relacionadas, direta ou indiretamente, ao controle da organização do trabalho sobre sua atividade laboral. 4.2. UMA ANÁLISE ACERCA DAS RELAÇÕES DE PODER: OS MOTORISTAS DE ÔNIBUS DE CURITIBA E O IMBRÓGLIO INSTITUCIONAL De que me vale ser filho da santa? Melhor seria ser filho da outra Outra realidade menos morta Tanta mentira, tanta força bruta Chico Buarque - Cálice O trabalho dos motoristas de ônibus de Curitiba é influenciado tanto pelas deter minações do órgão gestor do serviço, no caso, a Urbanização de Curitiba S.A ( Urbs), como das deter mi nações das empresas prestadoras do serviço. Dessa forma, ai nda no âmbito da organização do trabalho no transporte coletivo de Curitiba, é conveniente contemplar neste estudo uma análise sobre as relações de poder que envolvem essas entidades, assim como o sindicato dos trabalhadores (Sindi moc) e o sindicato das empresas de transporte coletivo (Setransp). De acordo com Faria (2004) é por meio das relações de poder que o sentido do poder pode ser compreendido, e esse pode ser definido como a Capacidade de um grupo (social ou politicamente organizado) de definir e realizar os seus interesses objetivos e subjetivos específicos, mesmo contra a resistência ao exercício desta capacidade e independentemente do nível estrutural em que tal capacidade esteja principalmente fundamentada (FARIA, 2004, p. 141) 4.2.1. A Urbs De acordo com o Estatuto Social da Urbs (2012, p.2) a Urbs “é uma sociedade por ações e de economia mista, com personalidade jurídica de direito privado, declarada de utilidade pública e constituída e com as atribuições e responsabilidades definidas pela Lei 53 Municipal nº 6.155, de 26 de junho de 1980 e por suas alterações”. De acordo com o site 13 da URBS, a Sociedade foi criada com o objetivo de admi nistrar o Fundo de Urbani zação de Curitiba (FUC), para desenvolver obras de infraestrutura, programas de equipamentos urbanos e atividades relacionadas ao desenvolvimento urbano da cidade. Contudo, ao longo dos seus 47 anos, às suas funções origi nais foram acrescidos demais tarefas. No histórico da empresa, disponível no site 14, consta que a Urbs é a empresa responsável pelas ações estratégicas de planejamento, operação e fiscalização que envolvem o serviço de transporte público, além do gerenciamento e administração de equipamentos urbanos de uso comercial da cidade, instalados em bens públicos. Nesse histórico consta que em 1986 ela passou a gerenciar o Sistema de Transporte Coletivo de Curitiba e em 2010 realizou a pri meira licitação do transporte público urbano da cidade. De acordo com o Estatuto Social da Urbs (2012, p. 2) essa entidade, “na qualidade de admi nistradora do Fundo de Urbanização de Curitiba, agirá como concessionária de serviços públicos, nos ter mos dos contratos de concessão fir mados com o Executivo Municipal”. Além disso, esse estatuto estipula que a participação da Prefeitura Municipal de Curitiba no capital da Urbs, sempre será de no mí ni mo 51% das ações com direito a voto. Segundo nota de esclarecimento de 2011, no site 15 da Câmara Municipal de Curitiba, atualmente 99,9% das ações da Urbs pertencem ao município, e 0,1% aos demais acionistas, o que é necessário para caracterizar a participação do capital privado na entidade. Sobre essa instituição, foi dito pelo pesquisador Mansur Gibran (em matéria publicada no jor nal Gazeta do Povo (03/04/2011) pelos jornalistas Köni g, Boreki e Azevedo) que a escolha dos acionistas não ocorre de forma aberta e que o processo seguramente não é transparente. Segundo ele, os 0,1% das ações da Sociedade dão o poder de decisão a 13 pessoas (dois vereadores ocupantes ou ex-ocupantes de cargos públicos e quatro instituições). Em 1963, momento de criação da Urbs, os sócios eram necessários para que ela funcionasse como uma sociedade anôni ma (S/A). O Departamento Inter sindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos ( Dieese), na mesma matéria, também apontou a falta de critérios claros da instituição para definir o valor da tarifa de ônibus. Ai nda com relação a essa instituição, foram 13 http://www.urbs.curitiba.pr.gov.br/institucional/atuacao>. Acesso em:16/12/2012. 14 http://www.urbs.curitiba.pr.gov.br/institucional/nossa-historia>. Acesso em: 16/12/2012. 15 http://www.cmc.pr.gov.br/ass_det.php?not=16696 . Acesso em: 23/12/2012. 54 vários os fatos noticiados nos meios de comunicação que remetem a abuso s da Urbs na aplicação de multas aos motoristas e cobradores do transporte coletivo , como foi abordado no capítulo anterior. 4.2.2 As empresas de transporte coletivo e a Urbs No que se refere ao sindicato patronal, no site 16 do Sindicato das empresas de ônibus de Curitiba e Região Metropolitana (Setransp), consta que a entidade sur giu em 1949 e atual mente tem 29 empresas associadas. Sobre a relação entre a Urbs e as empresas de transporte coletivo de Curitiba, em texto de opinião da Gazeta do Povo (07/04/2010), Lafaiete Neves, doutor em Desenvolvimento Econômico pela UFPR, apontou o favorecimento da Urbs em relação a algumas empresas no seu processo de licitação, em 2010. Isso, pois dentre outros aspectos, o edital determinava experiência de mais de 20 anos no modal de transporte coletivo típico de Curitiba e o pagamento de 250 mil hões de reais para aquelas empresas que vencessem o edital. Já em outras circunstâncias a Urbs e as empresas parecem entrar em relação de embate, principalmente quando o assunto são os interesses econômicos, o que engloba os direitos dos trabalhadores. Isso pode ser percebido pelas notícias relatadas adiante. Em matéria da Gazeta do Povo, do dia 13 de fevereiro de 2012, Geron, Trisotto e Leitóles explica m que os motoristas e cobradores decidiram entrar em greve por tempo indeter mi nado após a recusa da proposta apresentada pelo Setransp. O sindicato patronal apresentou uma proposta de 7% de aumento total (cerca de 1,37% aci ma das perdas da inflação), enquanto os trabalhadores exi giam 40% de aumento. Além de reivindicações por mel horia salarial, a reportagem afir ma que os trabalhadores apresentaram uma pauta com mais de 50 reivindicações. De acordo com a matéria, a Urbs se pronunciou sobre o assunto da greve dizendo que se trata de uma negociação entre o si ndicato patronal e o dos trabalhadores e que não vai se manifestar. Como aponta uma reportagem do mesmo jornal, datada do dia 15 de fevereiro de 2012, após quase dois dias de paralisação, motoristas e cobradores aceitaram a proposta feita pelo sindicato patronal e encerraram greve. Com esse acordo, os trabalhadores vão receber reajuste salarial de 10,5%, vale-alimentação de 200 reais e abono único de 300 reais. 16 http://empresasdeonibus.com.br/2011/index.php/setransp/. Acesso em: 26/12/2012. 55 O embate devido às questões econômicas entre as empresas e a Urbs pode ser percebido por meio do i nfor me publicitário do Setransp, disponível no dia 30 de dezembro de 2012 no site17 do jornal Gazeta do Povo. O infor me, na página on-line do jornal, ocupava o espaço destinado à propagandas de serviços e produtos. Dessa for ma, observa -se que a infor mação não se refere a uma notícia do jornal, mas a uma opinião do Setransp que ocupa um l ugar destinado à publicidade. O documento, intitulado “transporte coletivo vive a maior crise da sua história, empresas estão em situação financeira grav íssima e pedem socorro” refere que as empresas de ônibus da cidade vêm passando por uma grave crise econômico financeira, como nunca se viu na história do transporte coletivo de Curitiba e Região Metropolitana. Nesse, as empresas questionaram “as decisões equivocadas da Urbs”, apontadas como causa da crise financeira que as empresas vêm passando. Segundo a publicidade, “o rombo nas contas das empresas ultrapassa dezenas de milhões de reais, fora ações judiciais que cobram outros prejuízos causados pelo não cumprimento de clausulas contratuais” com a Urbs. No infor me publicitário, o sindicato patronal ainda critica a lei que proíbe a dupla função dos motoristas dos microônibus, pois “na contramão de tudo que existe de mais moder no em ter mos de bilhetagem eletrônica, a Prefeitura Municipal sanciona uma lei que obriga o retor no de cobradores em veículos onde a própria Urbs deter mi nou que não mais existisse esses profissionais”. Essa medida ocasionará custos às empresas, tanto no que se refere à contratação de mão de obra, quanto a readequação dos veículos, custos que, segundo o Setransp, não serão ressarcidos. De acordo com a matéria publicada na Gazeta do Povo (05/12/2012) por Trisotto e Senkovski, foi sancionada (em 27 de novembro de 2012) a lei que proíbe as empresas concessionárias de serviços de transporte coletivo em Curitiba de determinar aos motoristas a cobrança das passagens. Diante dessa situação, o Setransp infor mou que irá questionar judicialmente a constitucionalidade da medida. O único motorista en trevistado que desempenha a dupla função, disse considerar que a cobrança de passagens é a principal dificuldade durante o exercício da sua atividade laborativa, visto que essa tarefa tira o foco do motorista diante da sua principal função. Contudo, ele mostra-se descrente de que a dupla função realmente será proibida. De acordo com a reportagem do dia 15 de maio de 2012, o exercício da dupla função coloca em perigo a população, visto que devido as determinações 17 http://www.gazetadopovo.com.br>. Acesso: 30/12/ 2012. 56 de horário estipuladas pela Urbs, o trabalhador não tem tempo de primeiro cobrar e depois dirigir, o que acarreta em atrasos e excesso de velocidade. Para Trisotto e Senkovski, o fi m da dupla função é uma reivindicação da categoria, contudo a medida deverá onerar o sistema já deficitário. Segundo a matéria publicada por esses autores, a Urbs acumulou um prejuí zo de cerca de 53 milhões de reais entre março e novembro de 2012. Já as empresas de transporte alegam um déficit de 100 milhões de reais em seus cofres, provocado pelo desequilíbrio entre as obrigações previstas no contrato com a Urbs e o pagamento recebido por elas. Entretanto, em matéria publicada no jornal Gazeta do Povo em 4 de dezembro de 2012, a Urbs afir ma estar rigorosamente em dia com todas as suas obrigações contratuais perante as empresas operadoras do sistema e descartou possíveis pendências, despesas estas que são custeadas, segundo a Urbs, pelo governo do estado. Devido a essa crise financeira a qual dizem passar as empresas do transporte coletivo, de acordo com reportagem de Senkovski e Trisotto no jor nal Gazeta do Povo (30/11/2012), elas dividiram o 13º salário dos motoristas e cobradores em 4 parcelas. Sobre o assunto, a Urbs em nota de esclarecimento 18 infor ma que o poder público está rigorosamente em di a com todas as suas obrigações contratuais perante as empresas operadoras do transporte público, inclusive no que se refere à verba relativa ao 13º salário dos funcionários, referindo em reportagem de Senkovski para o jornal Gazeta do Povo (28/11/2012) que “vai se posicionar de maneira fir me no caso de haver atrasos”. Sobre esse assunto, um dos motoristas questionou as empresas, durante a entrevista, quanto a esse parcelamento e, principalmente, o lugar dado aos trabalhadores no “ranking” de prioridades dessa instituição. Segundo e le, Os cara falam que não tem dinheiro, o nosso décimo foi pago em quatro vezes! Não tem como os cara falar que não tem dinheiro! Pô, você vai pegar um ônibus, você vai na Urbs e você carrega o seu cartão 30 dias, paga a vista, e tão dizendo que não tem dinheiro. (...) Só esse ano que acabou agora compraram mais duas empresas e falam que não tem dinheiro para pagar nosso décimo terceiro. Pagou em 4 vezes. Nem pagou, falta mais uma parcela ainda. Além disso, um dos motoristas entrevistados denuncia uma relação de cumplicidade entre a Urbs e as empresas que acaba por prejudicar os trabalhadores, como é no caso das mul tas. Ao explicar essa questão o motorista percebe relações de poder entre as empresas e a 18 http://www.urbs.curitiba.pr.gov.br/noticia/nota-de-esclarecimento. Acesso em: 26/12/2012. 57 Urbs que estão relacionadas às penalizações que sofre no exercício do seu trabalho, que o prejudicam. Segundo ele, Que o meu patrão, a empresa e o grupo patronário têm ações na Urbs, com certeza! Na verdade é quase um monopólio. (...) A Urbs é uma sociedade anônima. Com certeza tem um dedinho lá deles.(...) O patronato é dono de todas as empresas. Tem um grupo aí e esse grupo tem 37%. Esse grupo pioneiro aí. Fora o que tem por fora, tem até avião. (...) Eles que mandam, né. A Urbs pune nós, os funcionários. Nós pagamos o mesmo patrão, porque o dinheiro vai para eles mesmos, né. Os patrões punem nós, paga de um lado e tira do outro. Paga pouquinho de um lado e tira quase tudo. (...) É o mesmo patrão, é o mesmo dono, o mesmo grupo... Frente a situação paradoxal dessa organização do trabalho, que remunera o trabalhador pelo exercício de sua atividade laborativa, ao mesmo tempo em que recebe novamente parte dessa remuneração por meio das multas, o trabalhador refletindo sobre o assunto chegar a conclusão de que a Urbs e a empresa na qual trabalha têm relações mui to próxi mas, se constitui ndo como “o mesmo patrão”, um “mesmo gr upo”. Essa é a explicação encontrada por ele como passível de justificar as nor mas e punições abusivas para com os trabalhadores. Um dos motoristas também afirmou acreditar que entre a Urbs e as empresas há uma relação de dependência, uma vez que a Urbs cria as normas e as empresas têm que cumpri -las. Também foi ressaltado o fato de que a Urbs “fiscaliza a empresa de uma maneira complicada”, e que essa também tem que pagar multas diante de i mprevistos. Quando perguntado como a empresa se posiciona diante das multas dadas aos funcionários por parte da Urbs, dois dos trabalhadores referem que é de for ma “totalmente conivente”. De acordo com um trabalhador, “a Urbs sempre multou as empresas, isso aí sempre aconteceu, mas sempre quando tinha a negociação” dos interesses dos trabalhadores “lá na Urbs com a prefeitura, a empresa sempre se posicionava do mesmo lado, entende?” 4.2.3. O sindicato dos trabalhadores De acordo com infor mação do site 19 do Sindicato dos motoristas e cobradores de ônibus de Curitiba e Região Metropolitana (Si ndi moc), a entidade foi fundada em 1990, depois do desmembramento de uma entidade da classe a nível estadual. Confor me descrito no site da instituição, durante o seu período de funcionamento, houve momentos de glórias e lutas e também momentos obscuros e atual mente se busca “a limpeza e o fi m dos vícios que já ocorreram no passado”. Pôde ser percebido, por meio de uma breve pesquisa documental 19 http://www.sindimoc.com.br/index.php?area=historia. Acesso em: 28/12/2012. 58 sobre a entidade, que essa tem um histórico que evidencia fatos de violência e corrupção. A partir desses fatos, infere-se historicamente a prioridade da instituição, ou pelo menos de parte dos envolvidos na direção do sindicato, não esteve relacionada à defesa dos direitos dos motoristas e cobradores, mas ao contrário, esteve a serviço da opressão da classe, o que pode ser evidenciado pelas situações relatadas abaixo. Em notícia publicada no G1, portal de notícias da rede Globo, no dia 31 de agosto de 2010, há a i nfor mação de que o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organi zado (Gaeco) prendeu o então presidente do Sindimoc, Denilson Pires, que foi acusado de apropriação indébita e formação de quadrilha. Outras três pessoas também foram presas, uma delas por porte ilegal de arma. Na ocasião, foram encontrados cerca de 110 mil reais no sindicato. O Gaeco refere um suposto esquema de fraudes no si ndicato e além de Denilson, “foram presos, sob as mesmas acusações o tesoureiro e candidato à presidência do sindicato, Valdecir Bolette, o advogado do Sindi moc, e o ex-vereador de Curitiba, cassado em 2008 sob acusação de abuso do poder econômico, Valdenir Dielle Dias. De acordo com o Mi nistério Público, o advogado seria o mentor das fraudes e teria ascendência sobre os dirigentes da entidade.” 20 De acordo com Carriel, em reportagem de Ribeiro para o jornal Gazeta do Povo (01/09/2010), a prisão de Denilson Pires foi mais um episódio turbulento nos 20 anos de existência do Sindimoc. O sindicato, criado em 1990, teve o seu pri meiro pre sidente, o motorista José Martins Costa, cassado em 1994 sob acusação de irregularidades. Em 1998, Aristides da Silva, segundo presidente, foi executado com sete tiros em Itapoá, Santa Catarina e, até hoje os assassinos não foram identificados. Já em janei ro de 2009, o secretário-geral da instituição, Alcir Teixeira, conhecido como “Zico”, foi morto ao chegar em casa. De acordo a reportagem de autoria de Cabral, para o jornal Gazeta do Povo (27/09/2010), Zico dizia ter descoberto irregularidades no sindicato e ameaçava denunciar. Ele teria gravações de reuniões do Sindi moc que comprovariam as denúncias. Após sua morte as gravações foram encontradas e entregues ao Gaeco do Mi nistério Público. As denúncias referem-se a um acerto entre o sindicato e uma fornecedora de cestas básicas para os funcionários das 20 LÍDER DO SINDICATO DE MOTORISTAS DE CURITIBAÉ PRESO. G1, portal de notíci as da gl obo. Brasil,31 agosto 2010. Disponível em: < http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/08/lider-do-sindicato-de-motoristas-decuritiba-e-preso.html>.Acesso em: 22/12/2012. 59 empresas de ônibus. Segundo a reportagem, “as cestas conti nham produtos inferiores e não sofriam a devida fiscalização pelo sindicato, que em troca recebia 120 mil reais por mês. As gravações ainda mostram co nversas entre os dirigentes do Sindi moc a respeito de funcionários fantasmas”. O filho de “Zico”, Anderson Teixeira, foi candidato à presidência do Sindi moc pela oposição e atualmente preside a entidade. Segundo a reportagem de Cabral, cinco dias antes das eleições na instituição, ele foi alvo de um suposto atentado de quatro tiros. Essa mesma reportagem explica que Anderson Teixeira concorreu contra a chapa da até então diretoria que tinha o tesoureiro do sindicato, Valdecir Bolette, como candidato à pres idência, e o vereador Denílson Pires, até então presidente, como candidato a vice. A matéria de autoria de Ribeiro, Trisotto e Ribeiro, do Jornal Gazeta do Povo (31/08/2010) afirma que o Gaeco, em suas investigações, apontou que um mesmo gr upo comanda o si ndicato desde a sua fundação. De acordo com Trisotto e Azevedo, autores de matéria do dia 30 de setembro de 2010, apesar do clima tenso, a votação para a presidência do sindicato transcorreu sem problemas. A chapa da oposição foi escolhida por cerca de 70% dos votos e durante a contagem dos votos o candidato a presidência pela chapa situacionista, Valdecir Bolette, afirmou que discordava do resultado e iria questionar a votação judicialmente. De acordo com matéria publicada no G1, portal de notícias da red e Globo, em 18 de janeiro de 2012, o Ministério Público do Paraná denunciou à Justiça ex-diretores e funcionários vinculados ao Sindimoc e, entre os acusados de desvio de dinheiro da entidade está o vereador de Curitiba Denilson Pires (ex-presidente do Sindimoc), que já foi preso em 2010 pelo Gaeco. De acordo com a reportagem, as denúncias variam entre for mação de quadrilha, peculato e falso testemunho. Entre os anos de 2006 e 2010, Denilson e outras quatro pessoas participaram de um desvio de 8.125 milhões de reais do Sindimoc. Ai nda está descrito na notícia que o ex-funcionário do sindicato, Márcio Ramos, e outras três pessoas coagiram as testemunhas do inquérito que apura irregularidades e desvio de verbas no sindicato, no Mi nistério Público do Paraná, no período de janeiro e fevereiro de 2011. Eles prometeram cargos e ajuda financeira para que as testemunhas mudassem o depoimento concedido à Procuradoria do Trabalho. O escrivão também foi denunciado, pois para o Ministério Público ele sabia que declarações eram falsas. No que se refere ao posicionamento do sindicato diante da l uta dos trabalhadores por mel hores condições de trabalho, uma notícia do jornal Gazeta do Povo de autoria de Marés 60 (16/02/2012) que trata sobre o fim da última greve da categoria, pa rece abordar o assunto. Segundo a reportagem, no momento do acordo o clima era de insatisfação entre os motoristas. Contudo, diante dessa situação, “a direção do Sindimoc consegui u convencer os cerca de 3 mil grevistas presentes em assembléia” de que, caso a proposta fosse rejeitada e o caso fosse para dissídio, o resultado poderia ser ainda menos satisfatório. Galindo, autor da reportagem do jornal Gazeta do Povo (31/08/2010) afirma que o Sindi moc é um si ndicato poderoso e sempre foi influente: tem mais de 11 mil filiados e atua em um negócio milionário, visto que o sistema de transporte coletivo movi menta 700 milhões ao ano. O privilégio das questões econômicas em detri mento do interesse coletivo dos trabalhadores, no sindicato, foi evidenciado tanto pelas notícias de jornal, quanto na fala dos motoristas entrevistados, que não se sentem representados pela instituição. No que se refere às entrevistas, o trabalhador mais novato no cargo e aquele que exerce a função de motorista em poucos meses do ano referi ram uma postura bastante semel hante sobre o sindicato dos trabalhadores. Um deles refere que o Si ndi moc na sua anti ga gestão era um“sindicato patronal, então quem mandava lá eram os patrões”. Outro entrevistado disse que nem sempre o si ndicato age de modo a favorecer os trabalhadores, tanto que antigamente o sindicato patronal e o sindicato dos trabalhadores “fechavam o acordo entre eles”, o que contribui u para que os trabalhadores ficassem 12 anos sem receber aumento. Segundo ele, É complicado, viu? A gente sabe que tem muito peixe grande lidando aí, muitos interesses, muito dinheiro envolvido. Então a gente não sabe de que lado que eles jogam, sebe? Quando vão determinar alguma coisa para nós, a gente sabe que na maioria das vezes a gente sai perdendo. Aí tem motorista que acha que o sindicato não serve para nada, que o sindicato tá ali só para ganhar dinheiro. Alguns entrevistados também j ulgaram que a entidade em sua nova gestão é mais favorável em relação aos interesses dos trabalhadores e localizam al gumas vitórias da classe devido a essa mudança na direção. Foi comum, durante as entrevistas, a denomi nação por parte dos motoristas da entidade em sua anti ga de gestão como “outro sindicato” e, na gestão atual, como “novo sindicato”. Uma das melhorias apontada por um deles refere-se ao abono de 200 reais. Segundo o entrevistado, “em 20 anos do outro sindicato dos cobradores e motoristas, a nossa cesta básica era uma porcaria, (...) a gente carregava aquela cesta no ombro, pegava ônibus. Agora é uma beleza! Agora aumentou o valor da cesta e não é mais aquele pacote, você pode comprar, é ticket agora, entendeu? Bem mais prático...”. 61 Outra mel horia apontada foi em relação às multas, visto que o sindicato resolveu a questão das últi mas multas aplicadas ao trabalhador e ele ganhou a causa. Entretanto, sobre a mudança na direção do sindicato, um dos entrevistados explicou que somente mudou a “mosca” e que a exploração aos trabalhadores permanece igual. Pela pesquisa documental contemplada neste estudo, obs erva-se que as relações de poder e relações trabalhistas que geram sofri mento ao trabalhador são amplamente denunciadas pela mídia. Contudo, essa denúncia permanece em al gumas circunstâ ncias sem conseqüência política e, ainda, “parece compatível com uma crescente tolerância à injustiça”, familiarizando a sociedade civil com a adversidade e domesticando as reações de indignação (DEJOURS, 2012a, p.25). Diante dessas denúncias, que evidenciam situações de violência, injustiça e i mpunidade (que envolvem favorecimento de algumas pessoas em detri mento da coletividade) infere-se que essas têm constituído, incl usive, uma preparação psicológica para padecer a adversidade. Isso, pois favorecem a resignação dos trabalhadores diante de mel horias em suas condições de trabalho e contribuem, também, para o medo e coação das pessoas intencionadas em modificar essa realidade. A gestão do transporte coletivo, da qual fazem parte as insti tuições citadas, é um aspecto fundamental para a análise do processo saúde/doença vivenci ado pelo trabalhador. As notícias de jornal, assim como a fala dos trabalhadores evidenciam relações entre essas diversas instituições responsáveis pela situação vivenciada pelos motoristas, assim como retratam transfor mações constantes que infl uenciam dir eta e/ou indiretamente o seu trabalho. Observa-se, a partir das notícias de jornal e das falas dos trabalhadores, que cada uma dessas instituições tem seus interesses políticos e econômicos, contudo, quando o assunto é a exploração do trabalhador, parece haver uma relação de conveniência entre elas. Esse fato, entre outros, parece confor mar a organi zação do trabalho paradoxal que é o sistema de transporte coletivo de Curitiba, tema a ser tratado no próxi mo capítulo. 4.3. UMA ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO PARADOXAL: O SISTEMA DE TRANSPORTE COLETIVO DE CURITIBA Como é difícil, Pai, abrir a porta (Cálice!) Chico Buarque - Cálice 62 Como pode ser observado nos relados dos dois capítulos anteriores, observa-se uma característica peculiar na organi zação do trabalho do transporte coletivo de Curitiba: o paradoxo. Esse pode ser percebido em i númeras situações, tais como: na questão da s cotas mensais de multa a serem aplicadas pelo fiscal aos motoristas, explicadas pelo entrevistado; pagamento de mul tas por esse profissional sem previamente ter o direito de defesa; dimi nuição do tempo prévio das viagens durante os dias da semana, dias os quais há um maior número de passageiros e fl uxo de veículos das ruas; uma organização do trabalho que estipula prazos insuficientes para realização das viagens, pressiona o trabalhador para cumpri los (por meio de multas, do computador de bordo que indica os horários) e, ao mesmo tempo o multa por excesso de velocidade; entre outras questões. Observa -se, que esse último aspecto remete a regulamentos i ncompatíveis entre si presentes nessa organi zação do trabalho. Nessa situação, o trabalhador não consegue, na maioria das viagens, cumprir o horário (regra 1) sem transgredir o limite de velocidade (regra 2). Assim, o trabalhador se vê impedido de fazer corretamente o seu trabalho (DEJOURS, 1992), pois não há como realizar sua atividade laborativa sem infringir uma das nor mas. Para Gaulejac (2011) a presença de exi gências incompatíveis entre si é uma das características de um sistema paradoxal. Nesse, a organização se transfor ma em um sistema de mediação que “concebe e utiliza dispositivos para permitir a coexistência de elementos necessários à produção mais ou menos incompatíveis ou antagônicos” (GAULEJAC, 2011, p.85). Nesse ponto, observa-se que diferente do que é definido por Foucault (2002), da aplicação da punição com a finalidade de prevenir seu reaparecimento, sugere -se nessa organização do trabalho a existência de um movi mento contrário, que objetiva garantir a ocorrência dessas “ilegalidades”. Um paradoxo, já que tudo é “ilegal” e passível de punição. Dessa for ma, infere-se que já que as quebras de regras são inevitáveis (por tanto, per mitidas), essas ocorrem de modo conveniente à gestão, visto que para cada ilegalidade foi encontrada a pena que convém à organização do trabalho: o pagamento em dinheiro que favorece seu desenvolvimento fi nanceiro. Na fala do trabalhador, “a Urbs quer que a gente trabalhe de graça pra ela, porque nós não fazemos nada e ela enche de infrações”. Já o motorista entrevistado em reportagem da Gazeta do Povo (07/03/2009), referiu que “daqui a pouco vamos pagar para trabalhar”. Infere-se que nesse contexto, cada i ndivíduo encontra-se “preso numa universalidade punívelpunidora” (FOUCAULT, 2002, p. 149). Para Gaulejac, (2011) o cerceamento é grande e o 63 indivíduo não pode se desvencilhar desse sistema que emite mensagens contraditórias e não permite escapatória, seja o que fizer será pego em erro e isto destrói a possib ilidade de reação para sair desta dominação. “Ele se encontra então em uma situação sem saída e insustentável, na i mpossibilidade de optar entre exigências ao mesmo tempo obri gatórias e antagônicas” (GAULEJAC, 2011, p.86). Ao exercer sua atividade laborativa o motorista comete i nfrações que remetem as próprias falhas da organização do trabalho, contudo isso é percebido como um erro do seu trabalho. Como explica Dejours (2008) para trabalhar é preciso transgredir o que está prescrito, portanto ocorre o paradoxo entre o prescrito e o real e, quando ocorre um i ncidente, é a própria boa vontade do trabalhador que se vol ta contra ele, pois será acusado de não respeitar as prescrições, um sinal de indisciplina ou incompetência. Observa -se, assim, que os trabalhadores são confrontados com a i mperfeição da or ganização do trabalho no exercício da sua atividade laborativa (DEJOURS, 2011e). Além disso, no sistema de transporte coletivo de Curitiba os motoristas arcam/arcavam financeiramente com essas falhas (pagamento de mul tas). Dessa maneira, a falha que é própria da organização do trabalho passa a ser percebida a nível individual, como uma i ndisciplina do trabalhador. Além disso, de acordo com Finger (2012), O que parece ser um paradoxo da gestão é, na verdade, as contradições do sistema capitalista, deslocada como paradoxos da organização. A contradição é inerente ao capital, o paradoxo é uma dissimulação discursiva dessa contradição, ele muda a dimensão da contradição ao mudar uma contradição, que é do sistema, para uma contradição que é pessoal e que se apresenta, na aparência, como um paradoxo. Na contradição capital e trabalho, com os objetivos de exploração para atingir o lucro e controle ideológico dos trabalhadores se busca, por meio da gestão, colocar paradoxos para que o indi víduo, por exemplo, ao mesmo tempo em que tem autonomia, ele tem que se submeter às regras. (FINGER, 2012, p. 138). Observe-se que as nor mas e a vigilância as quais estão submetidos os motoristas durante o exercício de sua atividade laborativa, implicam em uma coerção ini nterrupta, em que se realiza a sujeição constante do indivíduo (FOUCAULT, 2002). Nesse processo, ao arcar financeiramente com as falhas da organização do trabalho, observa -se a obediência do trabalhador. Essa obediência se dá “a uma autoridade que se exerce conti nuamente sobre ele e em tor no dele, e que ele deve deixar funcionar automaticamente nele” (FOUCAULT, 2002, p. 106). É por meio dessa submissão do trabalhador, de sua obediência ao arcar, em partes, financeiramente com seu próprio trabalho que a organização do traba lho alcança(va) o incremento de seus objetivos econômicos. 64 Sobre o paradoxo ainda podemos citar os indícios de que o sindicato dos trabalhadores é/foi conivente e atuante na exploração do trabalhador; e, que a organi zação do trabalho do transporte coletivo na cidade até esses assuntos serem noticiados na mídia, pagava os salários dos trabalhadores “com uma mão”, para “tirar com a outra” uma parte do pagamento através de multas abusivas. Essas nor mas i nternas foram qualificadas como “sem lógica”, “sem sentido” e “sem pé nem cabeça” durante as entrevistas. Dessa forma, percebe-se que mesmo não sendo um ato consciente, visto que o conflito entre o trabalhador e a organi zação do trabalho encontra-se deslocado, esses sujeitos denunciam o todo tempo a organi zação do trabalho paradoxal a qual pertencem. Contudo, apesar de qualificadas como sem sentido pelos trabalhadores e percebidas durante a realização desse trabalho como bastante paradoxais, aponta-se a partir dessa caracterização que há uma lógica por detrás des sa gestão, isto é, a lógica na qual os fi ns j ustificam os meios: a lógica da l ucratividade desenfreada. Observa-se uma “violência destrutiva, apresentada como a conseqüência de uma racionalidade econômica, vivida como total mente irracional” (GAULEJAC, 2007, p. 208). Como aponta Faria (2004, p. 164), “o lucro é a ética do capital”. Nessas circunstâncias, toda a questão humana do trabalho é abandonada, vista como perda de lucratividade. Perde-se de vista as finalidades sociais e humanas, ainda que essas sejam constitutivas da própria existência da instituição (GAULEJAC, 2007). “Temos o hábito de apresentar as relações de trabalho em ter mos políticos ou em ter mos de poder” (DEJOURS, 1992, p. 75). Enfati za-se a importância da análise desses aspectos, como dos demais elementos da or ganização do trabalho para refletir sobre o tema da saúde mental dos trabalhadores, uma vez que essa envolve fatores fundamentais para a análise do processo de sofrimento vivenciado pelo sujeito, que operam direta ou i ndiretamente sobr e ele. Todavia, a análise sobre a organi zação do trabalho não é suficiente para investigar o processo de sofrimento/adoecimento vivenciado pelo trabalhador. Como o sofri mento não é imediatamente identi ficável e sim possível de investigação por meio dos sis temas defensivos, aponta-se a necessidade da palavra, do comentário do trabalhador acerca da sua situação de trabalho, assim também como da interpretação (DEJOURS, 1992). Somente a partir desses pré-requisitos é possível ler o sofrimento operário. Segundo Dejours (1992, p. 138), o esquema de interpretação utilizado “é a própria organização do trabalho, a ser decodificada, por meio dos avatares que ela sofre na sua interiorização coletiva”. Dessa forma, o próxi mo capítulo aborda o processo de sofrimento vivenciado por esses profissionais no trabalho, o 65 que pode levar ao ser adoecimento, tendo como referência a teoria da psicodinâmica do trabalho. 4.4. UMA ANÁLISE DO SOFRIMENTO NO TRABALHO O engajamento da subjetividade do trabalhador ocorre em um mundo hi erarquizado, ordenado e repleto de constrangi mentos, perpassado pela luta de domi nação (DEJOURS, 1994), aspectos os quais se procurou investigar nos capítulos anteriores. Dessa forma, é necessário ter em mente que o sofri mento vivenciado pelos motoristas está relacionado a essas questões, as questões que remetem à organi zação do trabalho do transporte coletivo de Curitiba. A análise do sofri mento desses profissionais foi pautada em dois aspectos da teoria da psicodinâmica do trabalho: o reconheci mento e as estratégias defensivas. Dejours (2012b, p.106) explica que “a retribuição simbólica conferida pelo reconheci mento pode fazer sentido em relação às expectativas subjetivas quanto à realização de si mesmo”, dessa forma, é através do reconheci mento que o sofri mento advindo do trabalho pode encontrar um sentido e ser, assim, subvertido em prazer (DEJOURS, 2012b, p. 106). Já o estudo das estratégias defensivas é relevante, pois esse é o recurso utilizado pelo trabalhador para “resistir ao que, no trabalho, é desestabilizador ou mesmo deletério, para as funções psíquicas e para a saúde mental”. Dessa for ma, é por meio de sua investi gação que é possível estudar a “nor malidade do sofrimento” (DEJOURS, 2011c, p. 226). 4.4.1. O Reconhecimento Essa palavra presa na garganta Esse pileque homérico no mundo De que adianta ter boa vontade? Mesmo calado o peito resta a cuca Dos bêbados do centro da cidade Chico Buarque – Cálice Um i mportante aspecto a ser considerado para a análise da saúde mental dos trabalhadores é o reconhecimento. Isso, pois ele é decisivo na dinâmica da mobilização subjetiva e da personalidade no trabalho (DEJOURS, 2012a). De acordo com Dejours (2012b), os julgamentos sobre o trabalho realizado, em um segundo momento podem ser deslocados do registro do fazer para o do ser, podendo transfor mar o sofri mento em prazer e 66 contribuir com a grati ficação identitária. Isso, pois a relação entre identidade e trabalho é mediada pelo outro, no j ulgamento de reconheci mento (DEJOURS, 2012b). Dessa for ma, é porque o trabalho pode oferecer gratificações importantes no registro da identidade que se pode obter a mobilização subjetiva, a inteligência e o zelo dos sujeitos que trabalham. A identidade é a armadura estr utural da saúde mental, portanto, “toda descompensação psicopatológica supõe um titubear ou uma crise de identidade. Assim, a dinâmica do reconheci mento das contribuições à organi zação do trabalho engaja, de facto, à problemática da saúde mental” (DEJOURS, 2012b, p. 108). Sobre esse assunto, ao falar da relação entre a empresa e os funcionários, um trabalhador explica um comentário corrente entre os motoristas na empresa a qual trabalha a partir de uma prática organi zacional: Muita pegação no pé, muita cobrança. Não dão valor para o funcionário. Lá, os pneus são marcados, você pode perceber que os pneus são marcados. Tem umas mancinhas no pneu, porque não pode raspar pneu e tal, entendeu? O pessoal costuma dizer na garagem que a gente vale menos que aquela bolinha lá, do pneu. Porque quem raspar aquele pneu ali, você paga 5 reais. (...)Aí a gente fala que a gente vale menos do que aquela bolinha, aquela marquinha, para a empresa. Nós não deve valer nada, não deve valer nada. Lá o que vale é os carros, o número. Nós não valemos nada!” Esse trabalhador diz que se vê trabalhando “meio de graça, por merreca”. Na sua opinião, a empresa “tem que expandir, mas valorizar o que tem, os trabalhadores que a fizeram crescer”. A partir desses relatos reflete-se que os trabalhadores não se sentem reconhecidos e valorizados pelas organizações da qual fazem parte. Uma vez que “o reconheci mento pode transfor mar o sofri mento em prazer” (DEJOURS, 2012b, p. 40), a ausência do reconheci mento tem drásticas conseqüências sobre o indivíduo e o coletivo. Implica, inicialmente, em um i mpedi mento de derivar o sofrimento pela signi ficação social levando o i ndivíduo a uma dinâmica patogênica de descompensação psíquica ou somática (DEJOURS, 2011d). Observa-se, também na fala do trabalhador a falta de esperança em ser reconhecido. Essa falta de reconhecimento leva ao sofrimento e é capaz de desestabilizar a identidade e a personalidade e de levar à doença mental (DEJOURS, 2012a). Além disso, a falta da retribuição esperada faz sur gir senti mentos de inj ustiça (o que pode ser visto abaixo) e o ambiente de confiança se degrada (DEJOURS, 2008). O motorista que trabalha apenas alguns meses por ano no transporte coletivo, mostra-se bastante indignado ao observar a disparidade entre a sua condição (“ Não tenho dinheiro para pagar o SPC, cara!”) e a condição do empregador (que tem 11 empresas no 67 estado; recebe o dinheiro adiantado – visto que a maioria dos passageiros recarrega o cartão de transporte para o mês inteiro; e diz não ter dinheiro para pagar o 13º salário dos trabalhadores). Vendo-se como alguém que contribuiu para o sucesso da or gani zação e não valorizado por esse feito, o trabalhador sofre, indigna-se. Segundo ele: Você trabalha bastante ali e o patrão só engordando, só enricando (...) Porque aqui, é que nem eu falei pra você, é um monop ólio aqui. É tudo de um dono só! Mas aí fala que não tem dinheiro! E aí vai fazer o que? Botar fogo nos ônibus? O certo era fazer isso né. A fala desse trabalhador di z ai nda do senti mento de inj ustiça e indi gnação frente as suas condições de trabalho e da falta de reconheci mento por seu esforço. Também ilustra, de um modo indireto o conflito com a or ganização do trabalho. Infere-se que o trabalhador fala de um desejo de penalizar o padrão através da destruição d o i nstr umento de trabalho (propriedade do patrão), e não percebe que trama que defi ne as suas condições de trabalho/saúde são mais amplas, o sistema inj usto e responsável pelo seu sofrimento no trabalho. “A frustração, a revolta e a agressividade reativas, não conseguem encontrar uma saída”. Sabe-se muito pouco sobre os efeitos da repressão desta agressividade sobre o funcionamento mental dos trabalhadores, contudo, presume-se sua i mportância na relação saúde/trabalho (DEJOURS, 1992, p.75). Ao fi m da entrevista esse trabalhador comenta que deixará o trabalho: “É, eu vou vazar daqui! (...) eu estou de saco cheio! É do jeito que eu tô já... Eu não quero aposentar aqui não! Eu não quero isso, eu vou vazar. (...) É porque eu estou estressando, cara! Entra ano e sai ano, não muda!”. No caso desse trabalhador, observa-se que não podendo gozar dos benefícios do reconheci mento do seu trabalho nem obter assim o sentido de sua relação para com o trabalho, ele “se vê reconduzido ao seu sofrimento e somente a ele” (DEJOURS, 2012a, p. 35). Frente a essa situação, uma das possibilidades encontradas pelo trabalhador é abandonar o emprego. Nos casos em que a dinâmica do reconheci mento está paralisada o sofrimento não pode mais ser transfor mado em prazer, não encontra mais sentido . “Pode, neste caso, apenas ir se amontoando e engajar o sujeito em uma dinâmica patogênica que, ao ter mo, leva a descompensação psíquica e somática” (DEJOURS, 2012a, p. 35). Foi observado ainda durante as entrevistas, que um tema corrente comentado pelos motoristas é a questão da sua responsabilidade no trabalho. Esse trabalhador, por exemplo, explica que pela responsabilidade da sua função, o salário é muito baixo: 68 O salário de motorista é 1500 reais e tem mais desconto, o carro é pra 180 pessoas, um carro desse é mais de 1 milhão de reais, bem mais! Você tem a responsabilidade de cumprir com isso, mas não é reconhecido por isso. É uma responsabilidade, um carro desse valor na sua mão, um monte de vidas aí, horário para cumprir. (...)Não é valorizado, é muita coisa para você cuidar:cuidar do horário, velocidade do carro, frear brusco, passageiro, é muita coisa... (...) Muito pouco reconhecimento pela quantidade de responsabilidade que a gente tem aqui. A partir da fala desse trabalhador, nota-se, tal como defi ne Dejours (2012b), que o trabalhador ao oferecer sua contribuição à empresa, (submetendo-se aos riscos de seu trabalho, mobilizando sua i nteligência e subjetividade), espera ou aspira uma retribuição. Essa, “não é apenas a retribuição material, o salário, mas uma retribuição simbólica, o u mesmo „ moral‟. Esta retribuição toma uma for ma extremamente precisa: o reconheci mento” no duplo sentido da palavra, ou seja, referindo-se tanto à gratidão, como ao reconheci mento da realidade da contribuição do trabalhador à organi zação do trabalho, real idade esta que não é visível, mas é imprescindível a toda organização (DEJOURS, 2012b, p. 39). O salário é visto pelo trabalhador como um meio pelo qual ele adquire reconheci mento, tanto da empresa na qual é funcionário, quanto de seus familiares e amigos. Para ele, “todo mundo acha” que o salário é baixo, “só quem não acha são os patrões”. Ele afirma que os familiares e amigos não acreditam quando ele fala o valor da sua remuneração, que eles “pensam „nossa, motorista de ônibus!‟ Coitados se eles soubessem...”. Com essa frase sugere-se que o valor do salário é motivo de vergonha e humilhação do trabalhador frente a outras pessoas. Já outro entrevistado refere que mui tas das conquistas que teve na sua vida ocorreram devido ao trabalho como motorista, contudo, mesmo assi m ele se vê apenas “só mais como um número” para a empresa. O trabalhador explica que houve casos em que seus colegas se acidentaram e “a empresa (...) tirou o dela da reta e deixou o cara na mão”. Uma vez que a sublimação aparece mediante a apreciação qualitativa do julgamento pelo outro, por meio do reconheci mento, infere-se, portanto, que essa pode encontrar-se prejudicada no contexto de trabalho dos sujeitos desta pesquisa. Já os motoristas que trabalham a mais tempo na profissão referem que o relacionamento com a empresa é tranqüilo, como foi a respostas para maioria das perguntas, e que eles sentem que seu trabalho é reconhecido e útil. Segundo um desses sujeitos, Se você trabalha certinho, eles nem incomodam. Mas é... se eu precisar, pagar um final de semana... é que as vezes acontece, né? Se eu quero ir viajar, preciso folgar dois dias, eu chego e converso com eles, digo „ó, posso pagar tal pessoa pra fazer pra mim?‟ „Não, não, pode pagar tranqüilo‟, porque eu não dou problema pra eles, 69 né? Cumpro o horário certinho, não falto. Com eles é normal. (...)Eu, em 22 anos, eu tenho 4 faltas. Fui viajar... só que eu avisei eles, né? „to indo viajar e tal‟. „Daí quando você voltar você tira as faltas‟. No mais... e nem atraso também. Esses motoristas, que afir ma m serem vistos como um bons funcionários na empresa, referem que o relacionamento com a instituição “é tranqüilo se você não atrasa, se você não tem faltas”. Quando per guntado a um deles como é o relacionamento da empresa com esses outros trabalhadores, ele explica que a atuação da empresa “vai depender dos motoristas”: “Se o cara trabalha certinho, não tem problema, não pegam no pé, nada. Agora, se começar a faltar (...) alguma coisa está errada, né? Daí eles começam a... mas se não, não. O tratamento é de igual pra igual”. Durante toda a entrevista desse trabalhador observam-se omissões na sua fala. Esse reconheci mento do qual fala do trabalhador, refere-se a um reconheci mento instrumental. Percebe-se, nesse caso, que o que é reconhecido não é o que se faz, o esforço dispendido e a inventividade, mas os resul tados em ter mos de di nheiro (SELIGMANN-SILVA, 1994). Segundo Seligmann-Silva (1994, p.97) a “utilização de senti mentos e da estimulação do orgulho pelo trabalho bem feito são al gumas das técnicas adotadas pelo poder que recebem fortalecimento considerável da disciplinação, favorecendo a eficácia da mesma, preparando o terreno para garantir a aceitação das exigências disciplinares”. Segundo Dejours (2011c), a falta de reconheci mento provoca o risco de uma desestabilização da identidade e a descompensação psicopatológica. “Se o reconheci mento não aparece, os sujeitos engajam-se em estratégias defensivas a fim de evitar a doença mental, com consequências para a organi zação do trabalho” (DEJOURS, 2012b, p. 110), o que será abordado adiante. 4.4.2. As Estratégias Defensivas Como é difícil acordar calado Se na calada da noite eu me dano Quero lançar um grito desumano Que é uma maneira de ser escutado Esse silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento Na arquibancada, prá a qualquer momento Ver emergir o monstro da lagoa Chico Buarque - Cálice 70 O estudo das estratégias defensivas utilizadas pelos motoristas de ônibus do transporte coletivo de Curitiba pautou-se essencial mente na análise das falas dos entrevistados sobre três aspectos. O primeiro refere-se à como os profissionais fazem para lidar com as dificuldades encontradas no trabalho (dificuldades essas já expostas acima); o segundo, o que o trabalho como motorista pode causar na saúde; e o terceiro, a explicação dos profissionais sobre o motivo pelo qual alguns trabalhadores adoecem. Apesar do último aspecto não fazer parte do questionário de for ma explícita, houve na maioria das entrevistas um comentário dos entrevistados sobre o tema. Quando per guntados sobre o que o trabalho como motorista de ônibus coletivo poderia causar na saúde, todos os entrevistados imediatamente responderam que era o estresse. Posteriormente, al guns entrevistados citaram a perda de audição provocada pelo barulho do ônibus e o trabalhar sentado como origem de possíveis doenças. Segundo um motorista, há mui tos profissionais “encostados” pelo INSS e “muitos adoecidos trabalhando ainda”. Ele ainda menciona que “tem muito louco trabalhando”, fazendo referência aos trabalhadores com estresse e ansiedade que não querem se afastar do trabalho devido a redução na remuneração (tornando-a insuficiente para o pagamento de contas e o sustento da família) e a perda da carteira de habilitação. Dessa forma, o profissi onal explica que esses trabalhadores “não querem se entregar” e, por isso “tem muito louco aí, chapado...” trabalhando. As estratégias que os profissionais disseram ter para lidar com as dificuldades do trabalho foram “não esquentar a cabeça”, “não levar a sério o trabalho”, “levar na esportiva”, “continuar tranqüilo” e “ficar em banho maria” Além disso, alguns deles referiram que os motoristas que adoecem, adoecem por não conseguirem cumprir essa regra, por “levarem muito sério a coisa”, “levarem na risca”, irem “guardando” e “ se remoendo”, não consegui ndo “filtrar” ou “se desligar”. Segundo um deles: Eu não levo a sério isso daqui não. Não levo mesmo. Eu estou trabalhando aqui. Larguei o ônibus aqui, saí do serviço, fica aqui, maluco! Tem cara que não, que leva sinal de dedo, xinga a mãe do cara, o cara guarda aquilo. Aí, ele não consegue filtrar, sabe? Leva e aí o cara pira, né! O cara xinga de filha da puta, xinga o outro cara e o cara fica aqui ó, se ele descer do carro aqui ele já perdeu o direito. (...)Ah, eu não tô nem aí! É que nem eu falei, eu saio daqui, eu larguei o ônibus.... (...) Xingou, „ah, a sua mãe também!‟ e um abraço! Mas tem cara que não, tem cara que fica espumando aqui! Tem hora que tipo assim, não é que você sofra na hora ali, tem dia que estressa mesmo, passageiro também, me tira do sério, mas eu, graças a Deus, eu filtro né! De uma hora para outra, já era, já tô suave já, tranqüilo! Mas tem cara que não! A maioria do pessoal não consegue! Eu não, eu saio daqui e tô de boa! Levo na esportiva (...)Tem cara que fica se remoendo ali, aí o cara pira. Se 71 eu recebo um sinal de dedo, ou qualquer coisa assim e é primeira viagem, aí fica tudo diferente, atrapalha já, fico tenso. Outro trabalhador explica o que seria a estratégia de “não levar tão a sério” o trabalho: Mas não bagunçando, né? Mas não esquentar a cabeça por qualquer coisinha. Tipo um carro que atravessa na frente (...) isso é grave. Atravessou? Leva na boa! Porque não vai resolver nada, né? Quer dizer, vai resolver pra mim, se eu não levar a sério, a minha saúde vai ficar tranqüila. Não vou esquentar muito, não vou me estressar muito. Agora se a pessoa faz isso, qualquer coisinha já tá xingando, e tal, aí o prejuízo é dele, da saúde dele, né? Dejours (2011b) situa diferentes funções das defesas em um coletivo de trabalho, que podem se estr uturar como defesas de proteção, defesas de adaptação e, ainda, as defesas baseadas na exploração. Observa-se, nas falas acima, que uma estratégia defensiva utilizada pelos trabalhadores é a da racionalização, o que Dejours (2011b) define como sendo o fundamento das defesas de proteção. Essas consistem em modos de pensar, sentir e agir compensatórios, que são utilizados para supor tar o sofri mento e tendem, a perder sua eficácia, segundo o autor, quando as adversidades da realidade do trabalho se intensificam. A racionalização é um mecanismo no qual se atribuem explicações coerentes do ponto de vista lógico, ou aceitáveis do ponto de vista moral, para uma atitude, ação, idéia ou um senti mento (LAPLANCHE; PONTALIS, 2004). Observa-se que esse mecanismo auxilia o trabalhador a manter o autocontrole enquanto exerce sua atividade laborativa e, portanto, auxilia no enfrentamento do sofri mento, sem, contudo, tem força para mobilizar mudanças na organização do trabalho. Considera-se que os dados encontrados neste estudo se assemelham daqueles encontrados por Sato (1991), sobre o trabalho dos motoristas de ônibus em São Paulo. A partir da fala dos profissionais entrevistados em Curitiba, podemos inferir ta l como mencionado pela autora, que o trabalho como motorista nas atuais condi ções demanda um excesso de autocontrole por parte desses profissionais. Infere-se que o trabalhador utiliza estratégias defensivas que visam o autocontrole (“filtrando”, “não esquentando a cabeça” não “levando a sério o trabalho” e “desligando-se”) diante das situações estressantes do dia-a-dia. Por meio dessas, o trabalhador objetiva suportar ao máxi mo as irritações a fim de não adoecer, como explica o próprio trabalhador acima. Segundo Sato (1991, p.75) “é necessário mui tas vezes ter autocontrole para continuar trabalhado, denotando que quando não é possível controlar os contextos de trabalho „penosos‟, é necessário controlar a si mesmo”. 72 Tal como pode ser analisado a partir da fala dos sujeitos desta pesquisa ao explicarem sobre o motivo que leva alguns profissionais ao adoecimento, Sato (1991) explica que esse ocorre entre os motoristas quando não é possível manter o equilíbrio que per mite ao trabalhador exercer o controle sobre os contextos de trabalho que incomodam e irritam (quando o trabalhador não consegue “filtrar”, não consegue mais permanecer no “banho Maria”, segundo os entrevistados). Dessa forma, a r uptura, como denomi nado o adoecimento pela autora, está relacionado ao excesso de autocontrole adotado, visando supor tar o máxi mo possível as irritações no trabalho. Não havendo mecanismos adequados para lidar com esses estados emocionais, dá-se um “processo de transfor mação da subjetividade e a pessoa fica doente, fica nervosa, fica irritante” (SATO, 1991, p. 73). O que leva a um desgaste mais rápido desses profissionais e, consequentemente, a sua aposentadoria precoce (SATO, 1991). Outro ponto relevante para o estudo das estratégias defensivas parece u ser a questão do tempo/adaptação do motorista ao trabalho. Isso, pois se observou que apesar de singularidades quanto às estratégias defensivas utilizadas pelos entrevistados, houve diferenças substanciais entre a fala dos trabalhadores que exercem a função de motorista de ônibus coletivo de passageiros por um período menor (o que se chamou de trabalhadores menos adaptados) em comparação com a fala dos motoristas que exercem há função há mais tempo (trabalhadores mais adaptados). O primeiro grupo englobou tanto o entrevistado mais novato na profissão (2 anos), quanto o sujeito que apesar de trabalhar há 10 anos como motorista, exerce, durante todos os anos, a função no transporte coletivo de passageiros somente durante cerca de 2 meses por ano. Já os outros motoristas desempenham sua atividade há mais tempo (10 e 16 anos), durante todo o período do ano. Observou-se que o primeiro grupo ( menos adaptados) enfati zou, em alguns momentos da entrevista, o quanto o trabalho é estressante, o que foi ressaltado várias vezes pelo motorista mais novo na função. Esse, disse estar estressado e precisando de descanso, já o outro motorista afir mou estar “estressando”. Em contrapartida, os profissionais mais adaptados a função, apesar de terem mencionado que uma das conseqüências do trabalho como motorista na saúde é o estresse, durante toda a fala ressaltaram que o trabalho é “tranqüilo” e as relações de trabalho são “tranqüilas” ou “nor mais”. Na fala do profissional que desempenha a função há mais tempo (16 anos) isso apareceu de modo mais acentuado, visto que ele utilizou as expressões “é tranqüilo”, “é sossegado” e “bem gostoso” pelo menos uma vez a cada resposta, não apresentando quei xas sobre o seu trabalho. Até mesmo a 73 questão das multas, algo amplamente noticiado na mídia como abusivo para c om o trabalhador, esse entrevistado disse serem justas (ele explica que os trabalhadores acham que fazem tudo da maneira correta, porém as reclamações sobre seu comportamento e as multas evidenciam que eles estão enganados). De acordo com Dejours (2011b) as defesas de adaptação e de exploração se baseiam na negação do sofrimento e na submissão ao desejo da produção. São funcionais para a empresa porque os trabalhadores assumem, como suas, as metas de produtividade e de excelência, tomando como seu o desejo da organização. (DEJOURS, 2011b). Dessa for ma, “centrado sobre si mesmo”, sobre o seu autocontrole, “o indivíduo „esquece‟ de se interrogar sobre o funcionamento global ” da organização, “particularmente sobre a violência que nela reina”. Além disso, a negação da realidade gera uma aniquilação e uma incapacidade de se defender (GAULEJAC, 2007, p. 189). Analisa-se que os profissionais que desempenham sua função há mais tempo, têm o discurso organi zacional mais internalizado em comparação com os motoristas ma is novos, chamados de “calouro” por um dos entrevistados. Essa submissão vol untária, observada nesses trabalhadores, caracteriza uma patologia social em que as relações profissionais são utilizadas como estratégia para o crescimento na hierarquia (DEJOURS, 2012a). O trabalhador adere a esse discurso quando consente com práticas marcadas pelo sofrimento e pelo uso conti nuado de defesas, como recurso para garantir seu emprego. Ao i nvés de protestar contra as condições geradoras de sofri mento, mostra -se adaptado, integrado e feliz. Essa patologia é resultado da radicalização dos princípios da racionalidade econômica nas relações de trabalho (MENDES, 2007), como conseqüência, o sujeito se faz i nstr umento e aliena seu desejo na vontade do outro (FERREIRA, 2007). Os “calouros” parecem não ter internalizado, ai nda, todas as regras da ideologia defensiva que per mite a continuidade no trabalho e ainda “falham” na sua utilização, visto que um aborrecimento logo no i nício da jornada de trabalho, tal como citado pelos do is motoristas do primeiro grupo, “atrapalha”, “altera o humor”, deixando o motorista “tenso”. Infere-se que é devido a essa “falha” que esses profissionais foram os únicos que mostraram sinais de indignação frente as nor mas que são submetidos no trabalho e também devido a isso eles não conseguem negar o sofri mento (admi tindo estarem estressados), diferente dos motoristas do primeiro gr upo. O que ai nda contribui para essa análise é o fato de que ambos os trabalhadores “menos adaptados ao trabalho” afirmaram que uma das estratégias que utilizam frente ao estresse do dia-a-dia é “desligar de tudo” ao fim da jornada de trabalho (ir “para 74 casa e não pensar mais nisso, senão a gente fica louco”), o que não apareceu na fala dos demais entrevistados. Infere-se que se essa estratégia se faz necessária para esses profissionais, é porque eles ainda permanecem, ao menos em parte, “ligados” durante o exercício do seu trabalho, o que per mite a alteração do humor, o estresse e a tensão frente às situações desagradáveis. Nesses casos, observa-se que apesar da evidencia do sofrimento, esses trabalhadores parecem ter, ai nda, sua capacidade afetiva preservada, já que se abalam diante das situações estressantes, são comovidos por elas, percebem-nas como estressantes e também o risco delas para sua saúde. Já os demais trabalhadores entrevistados, que parecem ter a estratégia defensiva mais “solidificada”, aparentam insensibilizados contra tudo aquilo que os fazem sofrer, por isso não se observa nenhuma crítica, nenhuma revolta, so fri mento ou indignação, nenhuma queixa sobre o trabalho. O trabalhador parece não ter a capacidade de comover-se, torna-se submisso e adaptado. Com essa estratégia o trabalhador visa cultivar a resistência, ou seja, a capacidade de aguentar fir me o tempo todo a qualquer intempérie sem se ferir ou adoecer (DEJOURS, 2012a). Observa-se nesse processo a exploração das defesas pela organização do trabalho e, assim, a transfor mação do humano em um recurso explorável (GAULEJAC, 2007). Diante do sofri mento, um dos motoristas do primeiro grupo disse planejar sair do emprego (já tendo procurado outro meio de sustento), e o outro, pede por férias por estar senti ndo-se estressado e reflete que alto í ndice de adoecimento mental sofrido pela sua categoria profissional está associado justamente à falta de descanso. Além disso, um desses profissionais foi o único a comentar sobre a preocupação quanto ao alto índice de afastamento do trabalho por adoecimento mental na sua categoria profissional. Ele também foi o único a relatar, durante a entrevista, o senti mento de medo: medo de “bater o carro, derrubar alguém, machucar alguém”, contudo, disse estar se acostumando com a situação. Tal como explica Dejours (1992), percebe-se que os “calouros” estão sendo submetidos ao teste da ideologia-defesa e se não suportarem esse ambiente de trabalho deverão sair do trabalho. A fala dos profissionais desse primeiro grupo foi de essencial relevância para a análise da organização do trabalho (capítulos anteriores), uma vez que esses evidenci aram a exploração a qual os profissionais estão submetidos no trabalho e a relação conflituosa e paradoxal que envolvem a or ganização do trabalho, o que não seria possível observar somente analisando a fala dos motoristas mais adaptados ao trabalho. 75 Ainda sobre a reflexão dos mais adaptados/ menos adaptados ao trabalho, considerouse relevante mencionar a explicação do motorista entrevistado que desempenha sua função há mais tempo (trabalha há 22 anos na empresa e desempenha a função de motorista há 16 ano s, tendo trabalhado anteriormente como cobrador). Ele disse que durante os primeiros 6 anos saiu do trabalho 4 vezes (“não tá dando mais, eu pegava e saia fora...”). As desistências do trabalhador ( mesmo que na época ele fosse cobrador) podem ser um indíc io da dificuldade que ele enfrentou para adaptar-se a essa organização do trabalho. Além disso, o seu compor tamento de desistir do trabalho por quatro vezes parece entrar em conflito com o fato de ele ter sido o trabalhador que durante as entrevistas, mais enfatizou o quanto o seu trabalho é tranqüilo e o quanto estava satisfeito. Infere-se que as estratégias que per mitiram seu acesso à adaptação, de modo a ele perceber tudo como tranqüilo e, como conseqüência, seu permaneci mento no trabalho, também foram aquelas que cul minaram na alteração de sua afetividade, tornando o trabalhador insensível contra aquilo que o faz sofrer. Observa-se, nesse ponto, que agir e padecer são como as faces opostas da mesma moeda (ARENDT, 2007) e que o engajamento na estratégia defensiva é danoso à saúde do trabalhador. Infere-se, assim, que o trabalho como motorista de ônibus no transporte coletivo de Curitiba, nas atuais circunstâncias, é possível por meio da exploração do sofrimento, da estratégia defensiva utilizada pelo trabalhador. A partir da percepção da perturbação da subjetividade dos motoristas (que envolve portanto, a afetividade, visto que essa está na base da subjetividade (DEJOURS, 2012a)) ao trabalhador engajar-se na ideologia defensiva, pode-se voltar a questão descrita a pouco sobre a falta de engajamento político dos trabalhadores na luta por mel hores condições de trabalho. Foi dito anteriormente que “o sofrimento somente suscita um movi mento de solidariedade e de protesto quando se estabelece uma associação entre a percepção do sofrimento alheio e a convicção de que esse sofri mento resulta de uma inj ustiça”, caso contrário, “não se levanta a questão da mobilização numa ação política, tampouco a questão de justiça e injustiça” (DEJOURS 2012a, p. 19). Todavia, o autor explica que essa percepção do sofri mento alheio provoca um processo afetivo, “indispensável à concretização da percepção pela tomada de consciência” (p.46) e que a sensibilidade para com o sofri mento de outrem, depende inevitavelmente da relação do sujeito para com seu próprio sofrimento. Como já mencionado, encontrou-se indícios, nesta pesquisa, de que o engajamento dos motoristas na ideologia defensiva leva a uma alteração da afetividade, ou seja, do modo pelo qual o corpo vivencia 76 seu contato com o mundo (DEJOURS, 2012a), fazendo com que o trabalhador mantenha -se insensibilizado diante daquilo que o faz sofrer. Dessa for ma, a i mpossibilidade de exprimir e elaborar o sofri mento constitui um obstáculo ao reconhecimento do sofri mento alheio. Além disso, “a intolerância afetiva para com a própria emoção reacional acaba levando o sujeito a abstrair-se do sofrimento alheio por uma atitude de i ndiferença – logo, de intolerância para com o que provoca seu sofri mento” (DEJOURS, 2012a, p. 46). Dessa for ma, observa-se a estratégia defensiva do individualismo, que leva ao enfraqueci mento da solidariedade. Mesmo os trabalhadores partilhando coletivamente da vivência do trabalho, da cadência e da disciplina, “os operários são confrontados um por um, individual mente e na solidão, às violências da produtividade” ( DEJOURS, 1992, p. 39). Assim, analisa-se que a falta de engajamento político dos motoristas na l uta por melhores condições de trabalho esteja relacionada com o próprio engajamento deles na ideologia defensiva. Tal estratégia defensiva pode constituir-se, ainda, como objeto de cooperação, visto que contribuem de maneira decisiva para a coesão do coletivo de trabalho (DEJOURS, 2012a). Dessa for ma, observa-se que a cooperação dos trabalhadores tem uma “relação estreita com os procedimentos defensivos contra o sofri mento decorrente dos processos de organização do trabalho” (DEJOURS, 2011b, p.173). Isso poderia explicar a existência de relações ami gáveis entre a categoria profissional dos motoristas, que, no entanto, não se constituem como relações de solidariedade. Confor me cita Dejours (2012a) essa estratégias defensivas têm uma função primordial de adaptação e de fuga contra o sofrimento, mas são o meio essencial de banalização da injustiça social. Já que a percepção do sofrimento alheio constitui uma dificuldade subjetiva suplementar, que prejudica os esforços de resistência no trabalho, assim, cabe a cada trabalhador nesse contexto de trabalho precarizado negar o sofrimento alheio e calar o seu (DEJOURS, 2012a). Nesse ponto, também se torna per tinente mencionar a exploração do sofri mento pela organização do trabalho. Percebe-se, neste contexto, que a ideologia defensiva tem um valor funcional em relação à produtividade na medida em que por meio do excesso de autocontrole, o que cul mi na na alteração da afetividade, o trabalhador torna-se mais produtivo e dócil, não se percebe enquanto alvo de abuso de poder, fica em “banho Maria” frente aquilo que causa o seu sofrimento e per mi te a perpetuação do ciclo de explora ção. De encontro com essa reflexão, um dos entrevistados explica, do seu ponto de vista, o porquê a Urbs ai nda não redefiniu os horários para o cumpri mento das frotas, estipulados há muitos anos: 77 Eu acredito que a Urbs só não mudou o horário ainda por causa dos louco! Por causa dos louco, porque se todo mundo rodar certinho ninguém vai dar para cumprir o horário. De jeito nenhum dá pra cumprir o horário. Mas tem uns louco que fazem loucura, sei lá., consegue fazer. Então se ele consegue fazer, por que eu não consigo? A Urbs pensa assim, entendeu? Então aí fica assim como tá. Contudo, em maior ou em menor grau, todos os profissionais entrevistados afirmaram fazer essas “loucuras”, ou seja, transgredir nor mas para adaptar a defasagem entre o trabalho prescrito e o trabalho real. Essas transgressões incluem comportamentos que favorecem os interesses da organização do trabalho, tais como: não ir ao banheiro quando necessário; “aumentar a velocidade para compensar o atraso”; “correr demais”; “passar no sinal amarelo”; “fazer as coisas mais rápido”; “pisar um pouco mais”. Como também compor tamentos que apenas permitem que o trabalhador escape da punição: u m dos motoristas mencionou que “corta viagem”, comportamento que consiste em esperar no ponto final até o horário da viagem segui nte quando ocorre um grande atraso. Entretanto, devido a implantação do aparato tecnológico que per mite localizar os ônibus, essa estratégia não vem sendo mais viável. Tal como definido por um trabalhador “você tem que andar que nem louco” afi m de que o sistema de transporte coletivo de Curitiba funcione. Infere-se que pela adesão dos trabalhadores “eles se tornam os principais atores de uma domi nação que eles suportam” (GAULEJAC, 2007, p. 308) e é por essa adesão que a situação e a domi nação se perpetuam. Segundo Gaulejac (2011) numa gestão paradoxal existe a presença de exi gências incompatíveis entre si às quais é necessário submeter -se sem desobedecer ou agir de outra maneira. Percebe-se pelas falas acima, que uma das estratégias dos motoristas diante da defasagem entre o real e o prescrito é a autoaceleração no trabalho (“fazer as coisas mais rápido”) e com o ônibus (“aumentar a velocidade para compensar o atraso”). Essa estratégia, segundo Dejours (2011c), ocorre comumente diante do trabalho repetitivo e sob controle de tempo, onde a i mposição das cadências e, sobretudo a repetição estão em conflito com o funcionamento psíquico espontâneo. Nessas situações a atividade fantasmagórica (produto da imaginação para escapar ou fugir de uma situação real) além de inútil ao trabalho torna-se um estorvo na execução da tarefa. O autor explica que ela provoca desatenção ao trabalhador, faz com que sua cadência baixe e altera sua concentração, o que pode acarretar acidentes de trabalho. Dessa for ma, os fantasmas tornam-se algo avesso à adaptação ao trabalho. Dejours (2011c, p. 230) explica que os trabalhadores “obtêm o sossego como resultado de expurgo de qualquer atividade fantasmagórica de sua consciência. Em outros 78 ter mos, os operários procuram produzir em si uma paralisia do funcionamento psíquico”, o que ocorre por meio da autoaceleração. Por meio desse processo é alcançada a repressão da pulsão, e assim “não há mais conflito entre funcionamento psíquico e or gani zação do trabalho” (DEJOURS, 2011c, p. 230). Sugere-se que é por meio do engajamento nessa estratégia defensiva a própria percepção do risco que envolve o trabalho como motorista é alterada, o que está relacionado ao fato dele “correr demais” e “passar no sinal amarelo”, colocando em vul nerabilidade sua vida, a dos passageiros e demais pessoas com quem divide o trânsito. Considera-se que a estratégia defensiva utilizada pelos motoristas permite, por um lado, a não confrontação com a organi zação do trabalho (isto é, a perpetuação dos inte resses dessa organização) e, por outro, um equilíbrio precário ao trabalhador, que se não entrar no pacto da ideologia defensiva terá sua saúde prejudicada e terá ameaçada a sua continuação no trabalho. Dessa for ma, é por meio do engajamento na estratégia defensiva que o motorista torna-se corpo útil à organização do trabalho. Em outras palavras, é por esse mecanismo que há a transfor mação de “cada i ndivíduo em trabalhador e cada trabalhador em i nstr umento adaptado às necessidades da empresa” (GAULEJAC, 2007, p. 308). Nesse processo “uma boa parte de sua ener gia psíquica é captada (...) e transfor mada em força de trabalho a serviço da rentabilidade financeira” (GAULEJAC, 2007, p. 308). De encontro com os dados analisados neste estudo, segundo Sato (1991) o adoecimento nessa classe de trabalhadores está relacionado ao excesso de autocontrole adotado, visando suportar o máxi mo possível as irritações no trabalho. Não havendo mecanismos adequados para lidar com esses estados emocionais, dá -se um “processo de transfor mação da subjetividade e a pessoa fica doente, fica nervosa, fica irritante” (SATO, 1991, p. 73). No caso do adoeci mento mental, Dejours (2011d) explica que ele ocorre quando o indivíduo perde o contato com o real e o reconheci mento com o outro, cul mi nando, segundo o autor, em sua alienação mental. Foi dito que os trabalhadores mais adaptados ao trabalho negam a realidade e o próprio sofrimento que as condições de trabalho lhe acarretam. Além disso, não há um reconheci mento sobre o seu trabalho por parte das empresas, a não ser um reconheci mento instrumental. Sugere-se que essa situação se configura como contexto propício para o desenvolvimento de descompensações mentais. Dessa for ma, o sofri mento e o adoecimento mental desses trabalhadores não pode ser considerado apenas como uma consequência deplorável ou um aconteci mento lamentável, visto que, tal como define Dejours 79 (1992), até um certo momento esse se revela propício à produção, sendo o próprio instr umento para obtenção do trabalho. A fala de trabalhador é esclarecedora, nesse sentido. Quando per guntado a ele sobre o posicionamento da empresa diante dos adoeci mentos, ele explica: “só tem um médico lá, você chega lá com dor no pé ele te dá uma Cibalena para você tomar lá, e boa, te dá um doril. „Ah, tô com insônia por causa dos horário‟, te dá um doril e abafa! É só isso!”. Esse trabalhador infere que nada vem sendo feito a fi m de prevenir os adoeci mentos e denuncia uma atitude no sentido de “abafá-los”, ou seja, escondê-los, sonegando os direitos do trabalhador. Assim, i nfere-se que além do fato de que a organi zação do trabalho beneficia -se do processo de adoecimento/sofri mento vivenciado pelo trabalhador (ou seja, de seu “desarranjo subjetivo”, que per mi te que o motorista negue os riscos de seu trabalho e, portanto ande mais depressa; não se abale diante das situações estressantes e, portanto não as perceba como tal; e, pri ncipalmente seja dócil frente ao processo de exploração), ela dispõe os sujeitos a fim de garantir o sucesso do processo de dominaçã o que exerce ao trabalhador. Em meio a essa disposição dos sujeitos, está o fiscal, profissional que aplica as multas abusivas aos motoristas, e a figura do médico, quem ocupa o lugar de esconder o adoecimento, o grito do trabalhador, sua denúncia acerca do processo de exploração que a organização do trabalho exerce para com ele. Nessa conjuntura a organi zação do trabalho omite -se de suas responsabilidades e dos danos os quais ela mesma produziu. Diante do que foi exposto acima, percebe-se a necessidade da implementação de mudanças no processo de trabalho dos motoristas, o que deve contar com a participação desses trabalhadores, enquanto sujeitos de sua vida e sua saúde, capazes de contribuir para o avanço da compreensão do impacto do trabalho sobre o proce sso saúde doença e de intervir politicamente para a transfor mação desta realidade (SANTOS JÚNIOR, 2003). 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Pai! Afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Tal vez o mundo não seja pequeno (Cale-se!) Nem seja a vida um fato consumado (Cale-se!) Quero inventar o meu próprio pecado (Cale-se!) Quero morrer do meu próprio veneno (Pai! Cale -se!) Quero perder de vez tua cabeça! (Cale-se!) Minha cabeça perder teu juízo. (Cale-se!) 80 Quero cheirar fumaça de óleo diesel (Cale-se!) Me embriagar até que alguém me esqueça (Cale-se!) Chico Buarque – Cálice Esta pesquisa objetivou investi gar a organização do trabalho do transporte coletivo de Curitiba e sua relação com o sofri mento dos motoristas, sofri mento esse que cul mi na no processo de adoecimento mental vivenciado por alguns desses trabalhadores. Observou-se que as dificuldades que os motoristas dizem enfrentar no desenvolvi mento de sua atividade laboral estão relacionadas com as nor mas i nter nas, muitas vezes paradoxais, da organização do trabalho, e em especial no que tange ao controle e vigilância do trabalhador. Nesse processo, as relações de trabalho são prejudicadas, vistos que as pessoas que estão no convívio com o trabalhador são instr umentalizadas, pela organização do trabalho, para exercer o controle para com esse profissional: os fiscais, por meio de seus relatórios e aplica ção de mul tas; e os passageiros e a população em geral, por meio de sua reclamação na central de atendi mentos e infor mações da prefeitura de Curitiba, o que acarreta, nos dois casos, uma penalidade ao motorista. Dessa forma, entende-se que essas relações de trabalho, percebidas como ameaça pelos entrevistados, são reflexos do modo de gestão do transporte coletivo de Curitiba, que contribui para a destr uição das relações afetivas desses profissionais no trabalho e produz a falta de solidariedade entre eles, a solidão e o sofrimento ao trabalhador. Foi observado também a presença de regulamentos i ncompatíveis entre si na organi zação do transporte de Curitiba, uma das características de um sistema paradoxal (GAULEJAC, 2011), de modo que não tor na-se possível o motorista realizar sua atividade sem infringir nor mas. Dessa forma, esse profissional comete infrações que remetem as próprias falhas da organização do trabalho, contudo isso é percebido como um erro do motorista e i nterpretado como i ncompetência ou i ndisciplina. As fal has da organização do trabalho são assumidas individual mente pelo motorista, são um problema o qual ele tem que resolver. Contudo, em uma análise sobre o sofrimento vivenciado por esses profissionais, observou-se que eles não se sentem reconhecidos pela empresas na quais trabalham por oferecer a sua contribuição (submetendo -se aos riscos do trabalho, mobilizando sua inteligência e subjetividade). Como existe a falta do reconheci mento, não há a transfor mação do sofri mento em prazer (DEJOURS, 2 012b) e o trabalhador “se vê reconduzido ao seu sofri mento e somente a ele” (DEJOURS, 2012a, p. 35), tendo que engajar-se em estratégias defensivas a fim de evitar a doença mental (DEJOURS, 81 2012b). Observou-se que esses trabalhadores utilizam estratégias defensivas que visam seu autocontrole no trabalho (“filtrando”, “não esquentando a cabeça”, não levando a sério o trabalho”, “ficando em banho maria” e “se desligando”), com a finalidade de suportar ao máxi mo as irritações do dia-a-dia. Além disso, percebeu-se diferenças substanciais entre a fala dos trabalhadores que exercem a função de motorista de ônibus coletivo de passageiros por um período menor (o que se chamou de trabalhadores menos adaptados) em comparação com a fala dos motoristas que exercem a função há mais tempo (trabalhadores mais adaptados). Isso foi de fundamental impor tância para o entendi mento das estratégias defensivas utilizadas por essa categoria profissional. Encontrou-se indícios, nesta pesquisa, de que o engajamento dos motoristas na ideologia defensiva leva a uma alteração da afetividade, ou seja, do modo pelo qual o corpo vivencia seu contato com o mundo (DEJOURS, 2012a). Observou-se que os trabalhadores mais adaptados referem que o trabalho é tranqüilo, não expressam qualquer sinal de indignação frente as nor mas as quais estão submetidos, e são insensíveis contra tudo aquilo que os fazem sofrer, negando a realidade e o próprio sofrimento que tais condições de trabalho lhe acarretam, submetendo-se, assim, ao desejo da produção. Já os trabalhadores menos adaptados aparentam ai nda fal har na utilização das estratégias defensivas que visam o autocontrole no trabalho, isso pois ressaltam, ao contrário do pri meiro gr upo, o quando sua atividade é estressante e demonstram i ndignação frente as nor mas da Urbs, a conivência da empresa para com essas nor mas, e também frente as situações que remetem a exploração dos trabalhadores por parte do seu próprio sindicato. Apesar de uma evidência maior do sofrimento, observa-se que os motoristas desse grupo ainda têm sua capacidade afetiva preservada. Além disso, observou-se que a falta de engajamento político dos motoristas na luta por melhores condições de trabalho esta relacionada ao próprio engajamento deles na ideologia defensiva. Percebe-se, que a ideologia defensiva tem um valor funcional em relação à produtividade na medida em que por meio do excesso de autocontrole, o que cul mina na alteração da afetividade, o trabalhador torna-se mais produtivo, não se percebe enquanto alvo de abuso de poder, fica em “banho Maria” frente aquilo que causa o seu sofrimento e permite a perpetuação do ciclo de exploração. A organização do trabalho beneficia -se do processo de sofrimento vivenciado pelo trabalhador (ou seja, de seu “desarranjo subjetivo”, uma vez que esse permite que o motorista negue os riscos de seu trabalho e, por tanto ande mais depressa; não se abale diante das situações estressantes e, portanto não as perceba como tal; e, 82 principalmente seja dócil frente ao processo de exploração). Infere -se, assim, que o trabalho como motorista de ônibus no transporte coletivo de Curitiba, nas atuais circunstâncias, é possível por meio da exploração do sofrimento, da defesa utilizada pelo trabalhador. Assim, percebe-se que “o trabalho não causa o sofrimento, é o sofri mento que produz o trabalho” (DEJOURS, 1992, p.103) e que agir e padecer são como as faces opostas da mesma moeda (ARENDT, 2007). O engajamento na estratégia defensiva, apesar de garantir um equilíbrio precário, é danoso à saúde do trabalhador, na medida em que altera a sua afetividade de for ma a resistir ao que é prejudicial. Nessa linha de raciocínio, infere-se, que nas atuais circunstâncias de trabalho dos motoristas, contextualizadas neste estudo, o processo de adoeci mento desses trabalhadores está relacionado ao excesso de autocontrole, tal como já foi apontado por Sato (1991).. No caso do adoecimento mental, Dejours (2011d) explica que ele ocorre quando o indivíduo perde o contato com o real e o reconhecimento com o outro, cul mi nando, segundo o autor, em sua alienação mental. Foi dito que os trabalhadores mais adaptados ao trabalho negam a realidade e o próprio sofrimento que as condições de trabalho lhe acarretam. Além disso, não há um reconheci mento sobre o seu trabalho por parte das empresas, a não ser um reconheci mento instrumental. Sugere-se que essa situação se configura como contexto propício para o desenvolvimento de descompensações mentais. Além disso, o sofri mento e o adoecimento mental desses trabalhadores não pode ser considerado apenas como uma consequência deplorável ou um aconteci mento lamentável, visto que, tal como define Dejours (1992), até um certo momento esse se revela propício à produção, sendo o próprio instr umento para obtenção do trabalho. Buscou-se, chamar atenção, ainda, ao lugar dado ao trabalhador nessa organização do trabalho, o que diz também do lugar dado ao trabalhador na sociedade atual. Por meio do estudo das relações de poder entre as instituições no âmbito do transporte coletivo (Urbs, as empresas e o sindimoc), foi notado uma tentativa, por parte de cada uma dessas entidades, de se eximir de suas responsabilidades para com o trabalhador e uma relação de conveniências quando o assunto é o incremento da lucratividade por meio de sua exploração. Como cita o trabalhador, “eles só querem saber do lucro, só querem saber do lucro”, “pensa só em lucro e não está nem aí para você”. Observa-se tanto pelos relatos dos trabalhadores, quantos pelas notícias publicadas na mídia, que o sindicato dos trabalhadores também parece estar inserido 83 nesta lógica, visto que as notícias evidenciam que historicamente as condutas do sindicato não foram em prol dos trabalhadores. O lugar do trabalhador, nessa organi zação do trabalho também foi destacado no título deste estudo, a partir da fala de um dos motoristas entrevistados: “Nós não valemos nada”, disse o trabalhador, “menos do que aquele pinguinho no pneu”. Observa-se, portanto que os motoristas ocupam um lugar não reconhecido (não são reconhecidos pelo seu esforço), um lugar de explorado, de punido, lugar onde além da força de trabalho, o trabalhador é explorado a ponto de arcar financeiramente com o seu trabalho para a manutenção do emprego. Explorado pelas três entidades responsáveis por zelar pelos seus direitos e sua saúde, mas que ao invés disso lidam com o trabalhador confor me as convém em ter mos financeiros, deixando-os em segundo plano. Lugar no qual a sua condição de sujeito, a sua subjetividade é negada. Demarca-se que estamos falando sobre esse lugar neste estudo, e é ele que se buscou enfati zar durante a análise. Isso, pois é neste e deste lugar que o trabalhador vem adoecendo, no momento da sua vida no qual trabalha. Nesse âmbito, questiona -se: qual é o impacto do l ugar ocupado pelo trabalhador nessa organização do trabalho (e modo mais abrangente, na nossa sociedade), em ter mos da sua identidade? Sabendo que o trabalho tem uma função psíquica, uma vez que é um dos grandes alicerces de constituição do sujeito e de sua rede de si gnificados (LACMAN, 2008), e que a identidade é a armadura estrutural da saúde mental (DEJOURS, 2012b), infere -se que esse lugar ocupado pelo trabalhador nesse contexto está relacionado ao sofri mento patogênico e ao processo de adoecimento psíquico vivenciado por esse grupo de trabalhadores. Infere -se que tal lugar é desestruturante, levando o trabalhador a uma crise de identidade, o que cul mi na em sua descompensação psicopatológica. Buscou-se analisar o sofrimento a partir dos processos que os geram, o adoecimento não como uma patologia do trabalhador, mas como um reflexo de uma violência para com ele e, talvez, até mesmo como um sinal de saúde, visto que é por meio desse adoecimento que o sujeito consegue deixar de se submeter às condições danosas à sua saúde. Interpretamos, dessa maneira, o adoecimento como uma expressão do sofri mento, como um grito do trabalhador, sua denúncia acerca do processo de exploração que a organização do trabalho exerce para com ele, uma tentativa de solução de um conflito. Como ressalta Brant e Minayo Gomez (2009), a expressão do sofrimento é “um bem” do sujeito. Acredita -se que o adoecimento é a for ma encontrada pelo trabalhador para denunciar as condições de trabalho 84 que não cessam de se degradar, a destruição da sua condição de sujeito, a dureza das condições de trabalho, o contexto violento e paradoxal do qual faz parte. Nesse contexto questiona-se, tal como descreve Gaulejac (2007) se é prudente falar em doenças e aceitar que o seguro-doença assuma os seus custos, visto que a pressão do trabalho é a sua causa. Para o autor, o encobrimento da responsabilidade da empresa leva a uma dupla armadilha: o agravamento contínuo das perturbações e das despesas de saúde, de um lado; e uma cegueira sobre a degradação das condições de trabalho e de suas conseqüências sociais, por outro. Dessa for ma, o autor aponta a necessidade de restabelecer as ligações entra a gestão dos recursos humanos e a saúde mental. Para ele, o poder gerencialista tem como propósito canalizar a energia psíquica a fim de transfor má -la em força de trabalho. Portanto, infere-se que é responsabilidade da organização do trabalho “gerenciar” as conseqüências de seu modo de gestão que tem acarretado danos à saúde dos trabalhadores. Diante do adoecimento mental vivenciado pelos motoristas de ônibus de Curitiba, infere-se, dessa forma, que é a própria gestão do sistema de transporte coletivo da cidade que deve ser questionada, o que engloba a Urbs, as empresas de ônibus e o si ndicato dos trabalhadores. Afi nal, essas entidades praticam um tipo de gerenciamento danoso à saúde do trabalhador, e até então, usufr uem de uma i mpunidade total quanto as suas conseqüênci as humanas, sociais e financeiras. Tal como aponta Gaulejac (2007) a gestão deveria oferecer instr umentos adequados para avaliar os custos sociais e psíquicos, tal como aqueles que ela criou para avaliar os benefícios e as perdas financeiras. Isso seria o sinal de que essa não é mais uma ideologia a serviço do poder dominante, mas uma ciência a serviço do interesse geral. Como efeito, o alívio da pressão no trabalho per mitiria reduzir as despesas de saúde que essa acarreta (GAULEJAC, 2007). O transporte coletivo é essencial e Requer intervenções cuidadosas não só no sentido da preservação do direito social ao acesso a um transporte de boa qualidade (...), mas também no sentido da preservação do direito dos trabalhadores à sua saúde. Estas duas questões devem ser compatibilizadas e não antagonizadas. Até porque no caso de um maior estresse entre os motoristas de ônibus com a supressão do trabalho do seu auxiliar, pode -se ocasionar no limite, ao longo do tempo, um aumento do número de acidentes de ônibus e, aumentar os riscos de problemas de saúde entre motoristas (SOUZA, 1996). 6. REFERÊNCIAS 85 ANTUNES, R.; ALVES, G. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Revista Educação Social. Campi nas, vol. 25, n. 87, p. 335-351, maio/ago. 2004. ANGERAMI-CAMON, V. A. Como uma sociedade suicida aniquila suas víti mas: A saúde mental no Brasil. In: Seligmann Silva, E; Steiner, M. H. C. F.; Silva, M. C. Crise, trabalho e saúde mental no Brasil. 1ª Ed. 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Doenças relacionadas ao t rabalho: manual de procedimentos para os serviços de saúde. Brasília: MS, 2001. 94 7. ANEXOS Rote iro de e ntre vista: 1) Fale sobre o seu trabalho. 2) Há quanto tempo trabalha como motorista? Como foi a sua inserção na profissão? 3) Qual foi a sua trajetória na empresa? Já trabalhou em outras empresas? 4) Como funciona a questão das fol gas, férias e as pausas na jornada de traba lho? 5) Como é ser motorista de ônibus para você? 6) Quais são as suas dificuldades no trabalho? O que você faz para lidar com elas? 7) Se você pudesse mudar algo no seu trabalho, o que você mudaria? 8) O que mantém você neste trabalho? 9) Como é a relação com os passageiros/ cobradores/ fiscais/ supervisores? 10) Como você percebe a relação dos trabalhadores com o sindicato? E com a empresa? E com a Urbs? 11) Como você se vê nessa profissão? 12) Como você acha que é visto? 13) O que você acha que o trabalho como motorista pode provocar na saúde? Por quê? 14) Há um alto índice de afastamentos do trabalho por adoecimento mental entre os motoristas de ônibus de Curitiba. O que você pensa sobre isso?