POLÍTICAS CURRICULARES DE AMPLIAÇÃO DO TEMPO ESCOLAR: EDUCAÇÃO PARA A EMANCIPAÇÃO OU PARA A INTEGRAÇÃO SOCIAL? Fernanda Ribeiro de Souza1 RESUMO Este artigo tem por objetivo tecer uma análise crítica sobre as orientações curriculares presentes nos documentos que fundamentam a proposta do Programa Mais Educação, buscando identificar as finalidades explicitas no âmbito prescrito do currículo. Para tanto, apresentamos alguns elementos legais que fundamentam as concepções de educação integral e em tempo integral em curso nas políticas educacionais, assim como os conceitos que explicitam, mesmo que de modo indireto uma proposta de organização curricular para a educação em tempo integral a partir do Programa Mais Educação. Por fim, analisar elementos que compõem a finalidade do projeto formativo deste currículo para a formação da classe trabalhadora. Palavras-chave: Educação em tempo integral; Currículo; Programa Mais Educação. INTRODUÇÃO A educação em tempo integral tem sido alvo de debates e ações no sentido da construção de uma política para a escola pública em jornada ampliada no país. Este debate foi retomado especialmente a partir da década de 90 do século passado, em que ocorreram importantes reformas nos âmbitos social, econômico e educacional, nas quais tiveram forte influência os organismos internacionais (Banco Mundial, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, entre outros), com vistas a implementar uma nova ordem econômica mundial pautada na política neoliberal. As políticas neoliberais se apropriam de expressões como qualidade, igualdade, cidadania, democracia, atribuindo-lhes sentidos conservadores e reprodutores, para justificar, dar sustentabilidade e credibilidade às reformas educaionais (SANTOMÉ, 2013). Neste processo, as raras discussões e iniciativas progressistas que tinham em vista uma formação humanista deram espaço às tendências neoliberais, nas quais a educação foi 1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação/PPGEFB. Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Campus de Francisco Beltrão. Endereço eletrônico: [email protected]. 1114 submetida à lógica econômica do mercado, pautada nos eixos da racionalidade e da eficiência, e passou a atender as necessidades de um mercado de trabalho flexível e competitivo, sob os ideais de educação ao longo da vida, educação como capital cultural e da sociedade do conhecimento. O currículo, nesta perspectiva, passou a ser fundamentado em competências, esvaziando a escola dos conteúdos, especialmente aqueles voltados para a formação humana, geral e desinteressada, para atender a um mercado de trabalho flexível, que cada vez mais expropria do trabalhador o conhecimento e controle sobre o processo produtivo, reproduzindo a separação entre trabalho manual e intelectual, entre a teoria e prática. Tomando o currículo como um elemento complexo que exprime as finalidades do projeto educativo em uma determinada sociedade e momento histórico (SACRISTÁN, 2000), é necessário atentar-se para o modo como se dá a seleção e distribuição dos conhecimentos por meio da escola, especialmente às classes trabalhadoras, que encontra nela espaço primordial de acesso à cultura, à formação para o trabalho e para a cidadania. Neste artigo, tecemos uma análise crítica sobre as orientações curriculares presentes nos documentos que fundamentam a proposta do Programa Mais Educação, buscando identificar as finalidades que o âmbito prescrito do currículo pretende objetivar. Para tanto, apresentamos alguns elementos legais que fundamentam as concepções de educação integral e em tempo integral em curso, assim como os conceitos que explicitam, mesmo que de modo indireto uma proposta de organização curricular para a educação em tempo integral a partir do Programa Mais Educação. Por fim, analisaremos elementos que compõem a finalidade deste currículo para a formação da classe trabalhadora. Marcos legais que influenciaram a retomada da educação em tempo integral As reformas, tanto educacionais quanto sociais e econômicas, que marcaram a década de 80 e 90 do último século engendraram a aprovação de importantes marcos legais que influenciaram a retomada da educação em tempo integral, cite-se, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei n. 9.394/1996). Estes dispositivos trazem em seu bojo a compreensão do papel da educação como elemento fundamental para o desenvolvimento pleno do ser humano, assim como a concepção de proteção integral, que influencia fortemente os debates pela ampliação social das funções da escola. Neste sentido, a escola torna-se espaço de integração de ações 1115 para a atenção à criança e ao adolescente, por meio da articulação das políticas sociais numa perspectiva intersetorial e do compartilhamento das responsabilidades entre Estado, família e sociedade. No que concerne à educação em tempo integral, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei n. 9.394/96), em seu Artigo 34, prevê que o tempo mínimo de quatro horas de permanência na escola seja progressivamente ampliado para o ensino fundamental, e estabelece no parágrafo 2º que a oferta progressiva do tempo integral seja ministrada a critério dos sistemas de ensino. No Artigo 87, estabelece que serão “conjugados todos os esforços objetivando a progressão das redes escolares públicas urbanas de ensino fundamental para o regime de escolas de tempo integral” (BRASIL, 1996), reiterando a centralidade da instituição escolar na oferta de atividades em tempo integral, sem, no entanto, explicitar metas para o cumprimento destas intenções (MENEZES, 2009). O Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, contribui com a perspectiva de proteção integral, considerando as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, dentre os quais, a educação figura como possibilidade de desenvolvimento humano pleno quando garantida juntamente com os demais direitos básicos. Tomando como base as determinações constantes nesses aparatos legais, a necessidade de propiciar a educação voltada para o pleno desenvolvimento humano, a garantia da proteção e dos direitos básicos às crianças e adolescentes, foi lançado em 2007, Programa Mais Educação, instituído pela Portaria Normativa Interministerial nº. 17/2007. O Programa se configura como uma estratégia do Governo Federal que visa a indução da ampliação da jornada escolar para o regime de tempo integral nas escolas públicas brasileiras. A educação em tempo integral é retomada no sentido de amenizar ou até solucionar (numa perspectiva salvacionista) as condições de fracasso e precarização que permeiam a escola pública no país, mas também, ressurge frente às demandas que se colocam na sociedade e à impossibilidade de as famílias trabalhadoras atenderem adequadamente as necessidades de seus filhos, garantindo-lhes o acesso a direitos básicos e a atividades formativas no período em que não estão na escola. Diante do modo como tem sido implementada, a educação em tempo integral acaba sendo caracterizada como uma proposta compensatória, para os estudantes pobres, com dificuldades de aprendizagem e distorção idade/série, muito distante do ideal de igualdade e do objetivo de formação integral presente nos discursos progressistas. 1116 Neste sentido, se faz necessário ressaltar que a ampliação do tempo escolar, especialmente diante das demandas sociais e do alargamento das funções da escola no processo de formação humana e social não implica necessariamente no desencadeamento de um processo de formação integral, uma vez que este requer possibilidades de pleno desenvolvimento de todas as dimensões do ser humano. Isso requer, portanto, um rompimento com a cultura escolar pautada ainda na formação unilateral, para o trabalho, acordada nos interesses e necessidades do capital. A reflexão sobre a organização curricular no âmbito da ampliação do tempo escolar requer explicitar a concepção de currículo que fundamenta o estudo. Neste viés, parte-se do entendimento do currículo numa perspectiva crítica, fundamentada nos estudos de José Gimeno Sacristán (2000), que considera o currículo enquanto práxis, compreendendo-o como expressão do projeto socializador que a instituição escolar elabora e desenvolve em um contexto real, para cumprir suas finalidades. Desta forma, a organização do currículo da escola de tempo integral carrega elementos para a análise e compreensão do projeto cultural e de formação que esta põe em prática, de modo a dimensionar ou não uma formação integral. Orientações curriculares presentes no programa Mais Educação Criado em 2007 pelo Governo Federal, o Programa Mais Educação visa a indução da ampliação da jornada escolar, centralizando a oferta do tempo integral na escola, por meio da oferta de atividades diversificadas articuladas à políticas e programas, equipamentos públicos e atores sociais que possibilitem uma riqueza de vivências e a diversidade, buscando construir uma agenda sustentável para a oferta pública de educação integral em tempo integral. O Programa integra ações entre os diversos Ministérios (Ministério da Educação, da Cultura, do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, da Ciência e Tecnologia, do Esporte, do Meio Ambiente, da Defesa e da Secretaria Nacional da Juventude), cada qual convergindo estratégias e ações com vistas a contribuir para a melhoria qualitativa do complexo quadro educacional e social brasileiro, numa perspectiva de política intersetorial. De acordo com Leclerc (2012, p. 314), “a intersetorialidade é compreendida como concentração de esforços interinstitucionais para assegurar a integralidade no atendimento dos direitos sociais”. Além disso, propõe também ações integradas entre famílias, comunidade, sociedade civil, organizações não governamentais, no compartilhamento das responsabilidades pela oferta da educação em tempo integral, seguindo aspectos de descentralização e transferência 1117 de responsabilidades do estado, presentes nas reformas dos anos 80 e 90 e nos marcos legais acima apresentados. O Programa é fundamentado numa concepção de educação integral pautada no binômio proteção social e formação integral, apresentando, dentre as suas finalidades presentes na Portaria Interministerial 17/2007 (BRASIL, 2007), a promoção da melhoria da aprendizagem e contribuição para a redução da evasão, reprovação e distorção idade/série, da abertura da escola a novos espaços educativos; fortalecer o atendimento especializado às crianças, adolescentes e jovens com necessidades educacionais especiais; prevenir e combater formas de exploração e violência contra as crianças e adolescentes; ampliar a participação na vida escolar e social, bem como o acesso a serviços assistenciais, de modo a garantir a proteção dos seus direitos básicos. No que se refere à formação integral, a Portaria apresenta, dentre as suas finalidades, uma proposta de formação ampliada visando à oferta de atividades diversificadas, nos itens V e VI do Artigo 2º: V - promover a formação da sensibilidade, da percepção e da expressão de crianças, adolescentes e jovens nas linguagens artísticas, literárias e estéticas, aproximando o ambiente educacional da diversidade cultural brasileira, estimulando a sensorialidade, a leitura e a criatividade em torno das atividades escolares; VI - estimular crianças, adolescentes e jovens a manter uma interação efetiva em torno de práticas esportivas educacionais e de lazer, direcionadas ao processo de desenvolvimento humano, da cidadania e da solidariedade (BRASIL, 2007). Com relação aos espaços, o Programa prevê a abertura da escola a outros espaços, processos e sujeitos, propondo um diálogo entre a escola e espaços comunitários, praças, museus, teatros, quintais e outros equipamentos públicos disponíveis, reconhecendo que a educação se dá para além dos muros escolares e considerando o bairro e a cidade como espaços educativos. Em suas orientações pedagógicas, o Programa Mais Educação busca promover o respeito e a valorização da diversidade cultural e social das comunidades, com vistas a reduzir as desigualdades educacionais, aproximar a escola do seu território, da comunidade e da família, compartilhar as responsabilidades e funções assumidas. De acordo com o § 3º do Artigo 1º do Decreto nº. 7.083 de 27 de janeiro de 2010, § 3º As atividades poderão ser desenvolvidas dentro do espaço escolar, de acordo com a disponibilidade da escola, ou fora dele sob orientação pedagógica da escola, mediante o uso dos equipamentos públicos e do estabelecimento de parcerias com órgãos ou instituições locais (BRASIL, 2010). 1118 O Programa retoma a metodologia do Bairro-Escola e do conceito de Cidade Educadora e prevê a abertura e fusão da escola à comunidade, com intensas trocas entra a vida escolar e a vida cotidiana, formando territórios educativos e redes de aprendizagem que irão permear a organização do currículo. Assim, a educação integral se amplia para novos espaços, retomando seu potencial educador, como praças, teatros, museus, as próprias ruas e o trânsito, supermercados, feiras, restaurantes, ateliês de artesãos, dentre outros. Apesar de o Plano de Desenvolvimento da Educação (2007) prever o investimento na estrutura física das unidades escolares para o atendimento em tempo integral, na prática, têm prevalecido as parcerias com a sociedade civil, comunidade, buscando articular as atividades ao projeto político pedagógico da escola, buscando integrá-las à função primordial da escola, que é a socializar os conhecimentos historicamente elaborados. Silva (2013) destaca, neste sentido, a relação do Programa Mais Educação com as políticas neoliberais e reitera esta ligação na medida em que concebe esta abertura da escola para a sociedade e comunidade, seus equipamentos, espaços e redes educativas, como uma forma de ampliar o tempo sem gerar gastos ao Estado, intensificando a política de Estado Mínimo que marca as reformas neoliberais. Além disso, há que se considerar que nem todas as comunidades apresentam espaços culturais, esportivos, para a articulação de uma rede de aprendizagem em parceria com a escola, visto que em muitas delas, esta é o único equipamento público disponível e ainda, em condições precárias. Embora os documentos orientadores não explicitem diretamente uma proposta de currículo para a educação em tempo integral, os documentos e cadernos pedagógicos que orientam a implementação do Programa Mais Educação trazem elementos e indicativos para uma proposta. Neste sentido, o Programa prevê a redimensionalização do currículo escolar, possibilitando o diálogo entre saberes e as experiências da vida social e a potencialização do desenvolvimento pleno das crianças e adolescentes, considerados como sujeitos de direitos. Essa abordagem assume uma perspectiva pós-estruturalista, que de acordo com Lopes e Macedo (2002), é marcada pela valorização das múltiplas identidades, da diversidade e dos discursos que emergem nas relações sociais, o que para as autoras configura-se numa perspectiva fortemente relativista, perspectiva predominante no campo atual das teorias curriculares. Nesta abordagem, o Programa propõe uma perspectiva intercultural, primando pela valorização e pelo respeito à diversidade de identidades culturais e sociais, compreendendo os 1119 educandos como sujeitos reais, inseridos em contextos marcados por singularidades e desigualdades, reafirmando o rompimento com a hierarquização de valores e saberes de determinados grupos em detrimento a outros por meio do diálogo e das relações de troca. Silva (2013) faz uma crítica a esta forma de conceber o currículo, apontando a relação da proposta com os Estudos Culturais, que abordam os problemas, as diferenças e desigualdades a partir do viés da diversidade e das inter-relações entre as diferentes culturas. Para ele, os documentos norteadores do Programa vinculam o currículo intercultural e renovam o ideário da vertente pragmatista da Pedagogia Nova, tomando a escola a um espaço de afirmação das diferenças, sem, no entanto, instrumentalizar as novas gerações para o questionamento e análise crítica dessas diferenças, naturalizando as relações desiguais próprias da forma de organização da nossa sociedade. Além disso, relaciona a perspectiva de currículo intercultural/transcultural ao alcance de metas relacionadas com habilidades e competências avaliadas pelo estado, ou seja, como forma de controle do currículo e do projeto formativo nas escolas, o que fica explícito na relação do Programa com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica2 (IDEB). Por estar vinculada ao alcance de metas para o desempenho escolar, a política de Educação Integral, em questão, é debatida em interface com a avaliação de desempenho nas habilidades expressas no domínio da Língua Portuguesa (com foco na leitura) e no domínio da Matemática (com foco na resolução de problemas), por meio da Prova Brasil (BRASIL, 2009a, p. 30). Santomé (2013) destaca que as avaliações instituídas para diagnosticar a “qualidade” da educação são fruto do movimento neoliberal, que considera a educação sob o viés da formação das competências consideradas necessárias para a sociedade atual. Neste sentido, essas avaliações abordam conhecimentos de áreas específicas, que acabam adquirindo maior visibilidade no processo de organização e seleção do currículo, levando ainda a uma padronização do currículo, tanto na jornada regular, quanto na jornada ampliada, no caso das escolas em tempo integral. Considerando as orientações pedagógicas do Programa Mais Educação, a proposta de formação integral pressupõe o alargamento das oportunidades de aprendizagem dos estudantes das escolas públicas, com a complementação de atividades diversificadas no currículo escolar, que são elencadas no 2º parágrafo do Artigo 1º do Decreto nº. 7.083 de 27 de janeiro de 2010, que dispõe sobre o Programa Mais Educação, 2 O IDEB foi criado em 2007 e é um índice que avalia a educação básica tendo por base as taxas de aprovação e média de desempenho dos estudantes em língua portuguesa e matemática. 1120 A jornada escolar diária será ampliada com o desenvolvimento das atividades de acompanhamento pedagógico, experimentação e investigação científica, cultura e artes, esporte e lazer, cultura digital, educação econômica, comunicação e uso de mídias, meio ambiente, direitos humanos, práticas de prevenção aos agravos à saúde, promoção da saúde e da alimentação saudável, entre outras atividades (BRASIL, 2010). Leclerc (2012, p. 315) afirma que o Programa aponta para a construção de um tempo contínuo e destaca a necessária superação da “divisão da escola em turnos de estudo, um turno em que prevalecem as disciplinas tradicionais que constituem o núcleo duro do currículo e os contraturnos em que prevalecem as atividades que procuram tornar o tempo escolar suportável”. No entanto, é evidente a dicotomia entre as aulas acadêmicas e as atividades complementares nas próprias orientações do Programa, embora se defenda a integração do tempo e das atividades no projeto político-pedagógico das instituições, visando ações coletivas e convergentes à formação integral. Neste sentido, identificam-se contradições entre os discursos produzidos pelos atores envolvidos na idealização do Programa e orientações presentes nos documentos, mais especificamente na Portaria Interministerial n. 17/2007, já citada no texto, que propõe que o Programa Mais Educação visa ofertar “ações socioeducativas no contraturno escolar” (BRASIL, 2007). A organização curricular da educação em tempo integral do Programa Mais Educação busca implementar a longo prazo uma perspectiva de currículo integrado, defendendo a superação da organização curricular das disciplinas em turno e contraturno, para a construção de experiências em que as áreas do conhecimento se integrem. No entanto, prevê e legitima esta oferta fragmentada em um primeiro momento, de modo a possibilitar sua implementação nas diferentes realidades educacionais e promover aos poucos a integração do currículo. A proposta contempla a oferta de atividades diversas, organizadas em macrocampos, que visam à ampliação das possibilidades educativas na escola de tempo integral. Segundo Leclerc (2012, p. 313), “tratam-se de linguagens, vivências e conhecimentos, agrupados por familiaridade, que são financiadas segundo os materiais necessários para o seu desenvolvimento (custeio e capital) e destinação de valores para o ressarcimento dos voluntários”. Assim, novos conteúdos são adicionados ao tempo escolar ampliado, com ênfase em temas como sustentabilidade ambiental, promoção da saúde, direitos humanos, respeito e valorização das diferenças, sempre articulados ao projeto político-pedagógico da escola. No 1121 entanto, o Programa padroniza a oferta das atividades selecionadas pelas escolas, bem como nas ementas para o trabalho com as mesmas, elencadas no Manual de Educação Integral (2014), de modo a impor um controle sobre as práticas pedagógicas e organização do currículo na escola de tempo integral. Dentre o arcabouço teórico-metodológico que constitui a proposta do Programa Mais Educação, figura o Caderno Série Mais Educação – Rede de Saberes: Pressupostos para Projetos Pedagógicos de Educação Integral (BRASIL, 2009b), que traz contribuições relevantes para pensar o modo de organizar o currículo na educação em tempo integral. De acordo com o caderno, os saberes escolares referem-se “às propriedades e estratégias do fazer e do pensar, aos procedimentos passíveis de produzir uma práxis diferenciada para estudantes em formação” (BRASIL, 2009b, p. 43) e se articulam aos saberes comunitários, que representam o “universo cultural local”. Segundo o Caderno Série Mais Educação – Rede de Saberes, A metodologia para a educação integral apresentada aqui pode ser compreendida como um instrumento de diálogo e troca entre os saberes de escolas e comunidades. Acreditamos que as escolas no Brasil só têm a ganhar se buscarem se abrir para as vivências comunitárias, assim como as comunidades para as escolas; dessa forma, esperamos poder formular saberes diferenciados, ou seja, saberes diferentes dos originais. Queremos uma educação integral em que as diferenças e saberes possam desenvolver condições de mútuas influências e negociações sucessivas. Uma educação integral estruturada a partir do conceito de integralidade, que supere termos como “contraturno” e “atividades complementares”, bem como saberes escolares e saberes comunitários. (MEC, 2009b, p. 14). Para efetivar esta perspectiva, o caderno sugere uma organização em forma de Mandala3, aberta e flexível, que parte do projeto político-pedagógico da escola como elemento central, relacionando-o com os saberes comunitários, representados por onze áreas: “Habitação, Corpo/Vestuário, Alimentação, Brincadeiras, Organização Política, Condições Ambientais, Mundo do Trabalho, Curas e Rezas, Expressões Artísticas, Narrativas Locais, Calendário Local (MEC, 2009b, p. 37-40)”. Esses por sua vez, relacionam-se aos macrocampos, aos ministérios parceiros, as habilidades e procedimentos (curiosidade, observação, descoberta, desenvolvimento de hipóteses, desafio, dentre outros), articulando-as às áreas do conhecimento fundamentadas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), sendo elas: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, que reúne a língua portuguesa, 3 A Mandala na perspectiva do Programa Mais Educação é considerada como o símbolo da totalidade e representa a integração entre o homem e a natureza. Este modo de organizar os saberes no projeto pedagógico pretende retomar e construir o diálogo entre escola e comunidade, relacionando saberes escolares e comunitários. 1122 estrangeira, artes, informática, educação física e literatura; Ciências da Natureza e Matemáticas, comportando as matemáticas e as ciências e Sociedade e Cidadania, onde se debatem filosofia, ciências humanas, história e geografia. Neste sentido, fica explícita a relação entre as possíveis orientações curriculares presentes nos documentos do Programa e as concepções curriculares provenientes das reformas neoliberais, traduzidas em documentos, como o Relatório Jacques Delors4 (UNESCO, 1996), que aborda a educação sob quatro pilares: aprender a ser, aprender a conviver, aprender a conhecer e aprender a fazer. Visando formar trabalhadores capazes de se adaptar à era da acumulação flexível do capital, que exige o contínuo desenvolvimento de habilidades para o uso das tecnologias e o ajustamento aos novos padrões de exploração, ao caráter competitivo, flexível e temporário do trabalho, o currículo assume a perspectiva de formação voltada para a adaptação às necessidades e mudanças do sistema produtivo. A partir disso, emerge o desafio diante da proposta de educar integralmente e possibilitar o pleno desenvolvimento das crianças, adolescentes e jovens na escola em tempo integral, o que implica, de acordo com Saviani (2003), que a escola cumpra sua função como socializadora dos conhecimentos, possibilitando a apropriação da cultura humana historicamente elaborada tendo em vista uma formação onilateral para as classes trabalhadoras, as quais este acesso foi negado ao longo da história. Frente à realidade da alienação humana, [...] está a exigência da onilateralidade, de um desenvolvimento total, completo, multilateral, em todos os sentidos das faculdades e das forças produtivas, das necessidades e da capacidade da sua satisfação (MANACORDA, 1991, p.78). Para tanto, o currículo apresenta um papel fundamental na constituição de um projeto cultural emancipador que não reproduza as desigualdades sociais, econômicas, culturais, distribuindo o conhecimento de forma desigual de modo a formar as classes populares para o mercado de trabalho e uma minoria para serem dirigentes, garantindo assim a reprodução do atual sistema produtivo e das profundas condições de desigualdade social e exploração do trabalho. De acordo com Santomé, O desafio da educação continua sendo encontrar outras formas de conhecimento escolar, resgatar o sentido da formação geral, revisar a 4 Nesse documento estão sintetizados os resultados dos trabalhos realizados pela Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. 1123 racionalidade baseada na chamada cultura erudita, sem renunciar a ela, mas admitindo a incapacidade da escola para, por si só, levar a cabo a modernidade iluminista; algo que se costuma esquecer quando se pedem objetivos contraditórios como preparar para a vida, preparar para as profissões e fomentar a independência de juízo dos cidadãos cultos (2013, p. 33). Neste sentido, o papel da educação, além de socializar os conhecimentos historicamente produzidos, é de possibilitar aos sujeitos a compreensão sobre a organização da sociedade em que ele está inserido, oferecendo-lhes margens para a transformação consciente de sua realidade. No entanto, desde que não se reduza ao assistencialismo, a ampliação do tempo escolar pode potencializar o processo de apropriação dos conhecimentos, oportunizando uma reestruturação dos objetivos, conteúdos, métodos e práticas educativas no processo de escolarização, necessários para a superação dos desafios que se impõem à educação emancipatória e crítica. De forma integral, a educação deve englobar a questão do físico, do moral, do intelectual, contribuindo para a formação científica e cultural do indivíduo, considerando a importância da formação para a cidadania. Considerações Finais Considerando a escola hoje como instituição fundamental devido ao seu inigualável potencial socializador e formador das gerações, defende-se uma educação em tempo integral, com a ampliação da jornada escolar visando a extensão das oportunidades de aprendizagem, vivências sociais e culturais, vinculada a uma proposta maior que vise a formação integral. A proposta do Programa Mais Educação engloba a concepção de proteção social, uma vez que se faz necessária a igualdade de condições para que as crianças das classes populares tenham acesso e se apropriem da cultura historicamente produzida na escola, (reconhecidamente distante da cultura que trazem em sua bagagem cultural adquirida na família e comunidade). Exige também a ressignificação do currículo, dos tempos e espaços da escola pública, garantindo o rompimento com a compartimentalização e fragmentação das diversas áreas do conhecimento e a aproximação do processo educativo formal com espaços informais de aprendizagem, com os meios de produção da vida social e coletiva, com o espaço e a cultura, possibilitando aos educandos a consciência crítica sobre a sociedade em que vive e a sua capacidade de produzir a história e a vida social em sua comunidade. Diante do exposto, defende-se o movimento atual em prol de uma educação integral na escola em tempo integral na medida em que esta ampliação não esteja fadada a oferta da 1124 mesma educação fragmentada, minimalista e limitada ao ensino das disciplinas da base curricular comum, na mesma medida em que, ao ampliar as oportunidades de contato com elementos produzidos pela humanidade, não esvaziem a escola dos conhecimentos clássicos e nem se reduzam a formação de competências e habilidades. REFERÊNCIAS BRASIL. Decreto nº 7.083, de 27 de Janeiro de 2010. Dispõe sobre o Programa Mais Educação, Diário Oficial da União. Brasília, D.F., 2010. _______. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, D.F., 1996. _______. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União, Brasília, D.F. 1990. _______. Ministério da Educação. Educação Integral: Texto referência para o debate nacional. MEC: Brasília, 2009a. (Série Mais Educação). _______. Ministério da Educação. Rede de Saberes Mais Educação: Pressupostos para projetos pedagógicos de educação integral. MEC: Brasília: MEC, 2009b. (Série Mais Educação). ______. Ministério da Educação. O Plano de Desenvolvimento da Educação. Razões, Princípios e Programas. Brasília, DF, MEC, 2007. _______. Portaria Normativa Interministerial n. 17, de 20 de abril de 2007. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2007. DELORS, Jacques et al. Educação um Tesouro a Descobrir: relatório para UNESCO da Comissão Internacional sobre educação para o século XXI. Brasília, DF: UNESCO/MEC. Cortez Editora, 1998. LECLERC, G. Programa Mais Educação e práticas de Educação Integral. In: MOLL, Jaqueline (Org.). Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos. Porto Alegre: Penso, 2012. p. 307-318. LOPES, A. C.; MACEDO, E. O pensamento curricular no Brasil. In: LOPES, A. C.; MACEDO, E. (Orgs). Currículo: Debates Contemporâneos. São Paulo: Cortez, 2002. p. 1355. MANACORDA, Mario Alighiero. Marx e a pedagogia moderna. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1991. MENEZES, Janaína S. S. Educação integral & tempo integral na educação básica: da LDB ao PDE. In: COELHO, L. M. (Org). Educação Integral em tempo integral: estudos e experiências em processo. Petrópolis: DP et Alii, Rio de Janeiro: FAPERJ, 2009. p. 69-87. SACRISTÁN, J. G. O currículo uma reflexão sobre a prática. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2000. SANTOMÉ, J. T. Currículo, justiça e inclusão. In: SACRISTÁN, J. G. (Org). Saberes e incertezas sobre o currículo. Porto Alegre: Penso, 2013. p. 71-86. SAVIANI, Demerval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 8ª ed. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2003. SILVA, J. A. A.; SILVA, K. N. P. A hegemonia às avessas no Programa Mais Educação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (On-line), Brasília, v. 94, n. 238, p. 701-720, set./dez. 2013.