Rev. bras. fisioter. Yol. 6, No. I (2002), 25-29 ©Associação Brasileira de Fisioterapia DESENVOLVIMENTO DE UM DISPOSITIVO PARA MEDIR O APOIO DE CARGAS NO TRONCO EM MANUSEIOS SIMULADOS Padula, R. S. e Gil Coury, H. J. C Laboratório de Fisioterapia Preventiva/Ergonomia, Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Fisioterapia Correspondência para: Rosemeire Simprini Padula, Laboratório de Fisioterapia Preventiva!Ergonomia, Departamento de Fisioterapia, Universidade Federal de São Carlos, Rodovia Washington Luis, KI_TI 235, C.P. 676, CEP 13565-905, São Carlos, SP, e-mail: [email protected] Recebido: 18/01/01- Aceito: 11/05/01 RESUMO O objetivo deste estudo foi projetar e desenvolver um dispositivo para mensurar a força transferida ao tronco durante manuseios simulados. Uma caixa de aço foi construída para armazenar uma célula de carga da marca "Kratos", modelo CDB, calibrada para compressão de até 30 kgf, e esta foi conectada a um indicador de leitura "Kratos", modelo DDK, o qual registrava os valores máximos (kgf) exercidos sobre a célula. O dispositivo foi calibrado em três posições. A calibragem foi necessária para compreensão das forças registradas pela célula de carga, devido aos ângulos de inclinação da caixa. Os dados foram analisados de forma descritiva e a seguir aplicou-se uma análise de regressão múltipla para testar a linearidade dos resultados da calibragem. Os resultados mostraram um aumento linear da força em função dos ângulos de inclinação da caixa, confirmada pela análise de regressão, isto tanto para a inclinação horária quanto para a inclinação anti-horária, respectivamente, r2 = 0,993 e r 2 = 0,997. Conclui-se então que diferentes níveis de inclinação da caixa ocasionaram variações bastante pequenas, podendo ser previsíveis. Portanto, o equipamento pode ser considerado adequado para estudos que mensurem especificamente apoios no tronco decorrentes de tarefas simuladas de manuseio. Palavras-chave: manuseio de carga, fisioterapia preventiva, biomecânica, coluna vertebral. ABSTRACT The aim of this study was to project and to gauge a device in order to measure the force transported to the trunk during simulated handling tasks. A steel box was built to store a gauged "Kratos CDB" strain gauge to compress up to 30 kgf. This strain gauge was connected to a "Kratos DDK" reading indicator, which recorded the highest values of force applied to the strain gauge. The device was gauged in three different positions, one neutra! position, a clockwise 5o to 5o inclination and an anti-clockwise 5° to 5° inclination until it reached 30°. This special gauge was required in arder to analyze the force variation by the inclination angles of the box. The data were descriptively analyzed and after that a multiple regression analysis was carried out in arder to test the linear measure o f the results. The results showed a linear increase of the force in each inclination angle. lt was also checked by the regression analysis, for both clockwise and anti-clockwise inclinations, r2 = 0.993 e r2 = 0.997 respectively. Keywords: load handling task, physiotherapy preventive, biomechanics, spine vertebral. INTRODUÇÃO As tarefas de manuseio de carga são consideradas de alto risco no desenvolvimento de lesões músculo-esqueléticas da coluna lombar (Fathallah et al., 1998; Niosh, 2000; Kumar, 1999). De acordo com Straker (1999) e Gilad & Tichauer (1999), isto ocorre porque as atividades de levantamento e carregamento de carga promovem mudanças na curvatura lombar, o que afeta a estabilidade do momento de inércia no plano sagital, alterando, assim, a distribuição de forças na coluna vertebral. As mudanças nos locais de aplicação de força exigiram mais do sistema músculo-esquelético, so- brecarregando as estruturas envolvidas, como discos, ligamentos e facetas, e aumentando os riscos de lesão. (ShiraziAdl & Parnianpour, 1999). Ainda nesse sentido, Gallagher et al. (1994) e Jager et al. (2000) afirmam que a sobrecarga na coluna vertebral e as forças de cisalhamento estão diretamente relacionadas ao movimento do tronco e à distância do objeto em relação ao corpo. Sendo que, quanto mais próxima a carga estiver do corpo, menores serão as forças compressivas nos discos intervertebrais e, conseqüentemente, a sobrecarga das estruturas envolvidas. Contudo, Reyes et al. (1999), analisando tarefas de manuseio realizadas por operárias saudáveis e Padula, R. S. e Gil Coury, H. J. C. 26 sintomáticas de uma empresa de manufatura, identificaram, por meio de estudo observacional, que algumas operárias apoiavam o objeto manuseado no abdômen, enquanto outras não. Para realizar esses apoios da carga no corpo, as operárias alteravam a postura corporal, inclusive projetando o corpo para frente, aumentando, assim, a I01·dose lombar. As operárias sintomáticas apresentavam disfunções músculoesqueléticas nos membros superiores e pareciam utilizar esses apoios como estratégia de redução da sobrecarga nos braços, transferindo parte da carga para o tronco. Como este estudo foi observacional, passamos a buscar na literatura ergonômica algum dispositivo que pudesse medir objetivamente os possíveis apoios da carga no tronco durante manuseios simulados. A possibilidade de realizar essas medidas pode melhorar nossa compreensão da relação entre esses apoios e a configuração da coluna, no entanto, nenhuma referência sobre o assunto foi encontrada na literatura disponível. Portanto, o objetivo deste trabalho foi planejar, construir e calibrar um dispositivo para mensurar a força transferida ao tronco durante manuseios simulados. PROJETO E DESENVOLVIMENTO Inicialmente foi realizado um levantamento de empresas que fabricam células de carga, para identificar se havia algum equipamento disponível no mercado que se adaptasse ao objetivo do estudo. Como nada foi encontrado, foi necessário desenhar e construir o equipamento. Para tal, entramos em contato com a empresa Kratos Dinamômetros Ltda. (Embu, SP) e mantivemos várias reuniões com técnicos (engenheiro e projetista) da empresa. Figura 1. Dimensões da caixa-balança. Rev. bras . .fisioler Após um primeiro contato, ocasião em que apresentaobjetivos do trabalho, a empresa nos enviou algumas os mos alternativas para atingir os objetivos. Dentre muitas possibilidades, inclusive a confecção de um cinturão abdominal contendo em toda a sua extensão pequenas células de carga para mensurar os apoios, optamos por inserir a célula de carga no próprio objeto manuseado. Assim, uma célula de carga foi fixad~1 na parte frontal de uma caixa, com formato trapezóide, a qual apresentava em uma de suas faces um ângulo de 30° para melhor acomodação de possíveis apoios. Ao término da construção do dispositivo, este foi enviado ao Laboratório de Fisioterapia Preventiva e Ergonomia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) para a realização dos primeiros testes de calibragem. Nessa ocasião, foram detectados alguns problemas no posicionamento da célula de carga, que exigiu novos ajustes de forma a medir apenas as forças que incidiam sobre uma de suas faces. O dispositivo retornou à oficina e, após os ajustes e mais alguns testes, chegou-se à versão final. Descrição do Dispositivo O equipamento era composto de uma caixa de aço pesando 5 kgf, com base maior de 300 mm, base menor de 200 mm, altura de 180mm, largura de 300 mm e ângulo de 30° em uma de suas faces. A face inclinada (frontal) foi montada em alumínio leve e conectada à caixa através de uma célula de carga, de forma a registrar toda e qualquer força atuante nessa superfície (Figura I). Na face da inclinação foi fixada uma célula de carga marca "Kratos", modelo CDB, calibrada para compressão de até 30 kgf, a qual atua como plataforma de balança, daí a denominação caixa-balança. Vol 6 No. I. 2002 Aparelho para Medir Cargas no Tronco A forma de posicionament o e fixação da célula permitiu a descentralizaçã o do ponto de medida, dando linearidade aos resultados, de forma que, independentem ente do ponto na plataforma em que ocorresse o contato, a leitura seria idêntica. A célula de carga, por sua vez, é conectada a um indicador de leitura "Kratos", modelo DDK, o qual registrava os valores da força máxima (kgf) exercida sobre a célula (Figura 2). Um exemplo de manuseio do dispositivo com apoio é apresentado à esquerda na Figura 2. 27 xa ficava sob a célula de carga, deixando, portanto, de ser registrado. A força mensuracla pela célula durante a inclinação da mesma é referente à massa ela própria caixa. O' Procedimento de Calibragem O dispositivo foi previamente calibrado pela Kratos, em três posições. Inicialmente, a célula de carga foi zerada na posição horizontal (Posição 1, Figura 3). A seguir, a caixa foi suspensa e inclinada gradualmente ele 5 em 5 graus em direção horária até 30 graus (Posição 2, Figura 3). Em seguida o mesmo foi feito para a direção anti-horária (Posição 3, Figura 3). Desta forma obteve-se a variação elos registros ela força em diferentes ângulo de inclinação da caixa. Isso permitiu conhecer o valor das forças provenientes da posição da caixa atuantes na célula de carga. A força mensurada pela célula de carga durante a inclinação da mesma é referente à massa da própria caixa. No entanto, dependendo da posição da caixa c, mais especificament e, do ângulo de inclinação da mesma, a célula de carga não era capaz de registrar a massa que se encontrava abaixo de si. Dependendo então do ângulo, até 8% do total da massa da cai- Figura 2. f)ireuu: caixa-balança- I. plat~1rmm~1 Posição 1 Posição 2 Figura 3. Posições de calibragem da caixa-balança. para registro do apoio, 2. indicador de carga. Esquerda: exemplo de utilização do dispositivo. Rev. bros . .fisioler Padula, R. S. e Gil Coury, H. J. C. 28 Essa calibragem se mostrou necessária pois, na utilização prática do aparelho, quando os sujeitos poderiam ou não apoiá-lo no tronco, esse ângulo de apoio poderia influenciar a leitura final. Esse equipamento foi utilizado em uma situação de manuseio simulado de peso em que fora1il medidos os apoios da carga no tronco e os movimentos do tronco (Gil Coury & Padula, 200 I). Neste trabalho constatou-se que o aparelho atendeu aos objetivos propostos e permitiu resultados satisfatórios. Posição horária Variável dependente: graus 180 160 140 120 ç "'ro 100 .1: 60 ~ [," 80 40 20 o Análise Inicialmente, os resultados da calibragem foram analisados descritivamente e, a seguir, para testar a linearidade dos valores obtidos, aplicou-se uma análise de regressão múltipla. RESULTADOS Os resultados obtidos com os procedimentos de calibragem do dispositivo podem ser vistos nas Figuras 4 e 6, respectivamente, para as posições de inclinação horária (posição 2) e inclinação anti-horária (posição 3). 180,00 160,00 140,00 120,00 cg 'c... Regressão 95% confid. o Graus Figura 5. Resultados da análise de regressão para a inclinação (posição 2). horári~1 A Figura 6 representa a variação da força (kgf) exercida sobre a célula de carga a cada 5" de inclinação quando a caixa é inclinada no sentido anti-horário (posição 3), conforme ilustrado anteriormente na Figura 3. Observa-se na Figura 6 que a força (kgf) exercida sobre a célula de carga na inclinação anti-horária foi maior que na inclinação horária. Isso parece estar associado ao posicionamento da célula de carga dentro do dispositivo em relação a sua inclinação c, conseqüentemente, a força que esta sendo medido pela célula. Isto é, maior carga será registrada em situações em que o centro de massa do dispositivo ficar acima da célula e menores valores serão obtidos quando o centro de massa ficar abaixo da mesma. 100,00 ~ ro 80,00 ~ 60,00 V' 300,00 263,33 40,00 250,00 20,00 0,00 o 5 10 15 20 25 200,00 30 Graus ç Ol ~ ro [," Figura 4. Relação dos graus de inclinação da caixa-balança e a força (carga) exercida sobre a célula de carga para a inclinação horária (posição 2). Os resultados mostraram que a força (kgf) aumentou linearmente com o aumento no ângulo de inclinação, sendo que a força (kgf) de compressão máxima registrada foi de apenas 166,67 (kgf) para a inclinação máxima permitida pelo dispositivo. Portanto, como o peso da caixa é de 5 kgf, a influência que a própria caixa tem sobre a célula representou menos de 3,5% de seu peso total. A análise de regressão múltipla aplicada às medidas de calibragem do equipamento na posição 2, apresentadas na Figura 4, indicou alta linearidade dos dados, conforme se observa na Figura 5 (r 2 = 0,993). 150,00 - .1: 100,00 50,00 0,00 o 5 10 15 20 25 30 Graus Figura 6. Relação dos graus de inclinação da caixa-balança e da força (carga) exercida sobre a célula de carga para a inclinação anti-horária (posição 3). A Figura 7 ilustra os resultados da análise de regressão referentes à calibragem do dispositivo na posição 3, a partir Aparelho para Medir Cargas no Tronco Vol. 6 No. I. 2002 dos dados apresentados na Figura 6. Similarmente à posição 2, os resultados para os valores de calibragem na posição anti-horária apresentaram alta linearidade em sua distribuição, com r 2 = 0,9978. 200 180 160 120 ~ ::;, 100 c2 STRAKER, L. M., 1999, An overview o f manual handling injury statistics in western Austral ia. lnternational Joumal of Industrial Ergonomics, v. 24, n. 4, pp. 357-364. 80 60 40 20 o NATIONAL INSTITUTE OF OCCUPATIONAL SAFETY HEALTH (NIOSH). Disponível em <http://www.niosh.gov/. Acesso em 15 de agosto de 2000. 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E, ainda, que essas variações podem ser previsíveis, e desprezadas, caso medidas muito precisas sejam necessárias. Desta forma, podemos considerar que o equipamento desenvolvido se mostrou satisfatório em seu procedimento de c ali bragem. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FATHALLAH, F. A., MARRAS, W. S. & PARNIANPOUR, M., I 998, The role of complex, simultaneous trunk motions in the risk of occupation-related low back disorders. Spine, v. 23, n. 9, pp. I 0351042. GALLAGHER, S. e/ a!., I 994, Dynamic biomechanical modeling of symmetric and asymmetric lifting task in restricted postures. Ergonomics, v. 37, n. 8, pp. 1289-I310. GILAD, I. & TICHAUER, E. R., I 999, Spinal geometry during lifting tasks. lntemational Joumal of Industrial Ergonomics, v. 23, n. 4. pp. 307-3I8. GIL COURY, H. J. C. & PADULA, R. S., 2001, The influence of upper limb musculoskeletal disorders on lumbar postures and weight support when handling load. Submetido em junho de 2001 para Clinicai Biomechanical. 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