SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA NO CASO DE FRAUDE – LEGITIMIDADE: ASPECTOS JURÍDICOS E DECISÕES JUDICIAIS Graciele Pinheiro Lins Lima RESUMO: Serviços públicos concedidos são todos aqueles que o particular executa em seu nome, por sua exclusiva responsabilidade, mediante delegação do Poder Público Concedente. As concessionárias responsáveis pela distribuição de energia elétrica em todo o País, recebem da União à atribuição de explorar tal serviço. Assim, no regular exercício de suas funções, as concessionárias praticam atos administrativos. Dessa forma, quando, ao cumprir o dever de fiscalização, uma concessionária se depara com uma situação de fraude, cabe-lhe, como obrigação, lavrar o competente Termo de Ocorrência e Inspeção (TOI), sendo este um instrumento legal, previsto no art. 129, da Resolução n.º 414/2010 da ANEEL, que tem por finalidade a formalização da constatação de qualquer irregularidade encontrada em unidade de consumo de usuário do serviço de distribuição de energia elétrica, que cause faturamento medido inferior ao faturamento efetivamente consumido. Há de concluir-se, portanto, que as concessionárias estão investidas do direito subjetivo de exigir dos usuários o cumprimento das normas dispostas na Resolução n.º 414/2010. Sendo assim, evidencia-se a legitimidade na suspensão do fornecimento de energia elétrica nas hipóteses de fraude, quando a fatura de irregularidade não é quitada. PALAVRAS-CHAVE: SUSPENSÃO, ENERGIA ELÉTRICA, FRAUDE. 1. INTRODUÇÃO As concessionárias de energia elétrica em todo País vivenciam há muito o problema da fraude na medição de consumo, acarretando o que hoje podemos chamar de “Indústria das Irregularidades”, e que se afigura um dos maiores desafios, senão o maior, para as empresas distribuidoras de energia elétrica do Brasil. A questão é tão grave que para o sistema elétrico o nível de perdas comerciais – também denominadas de perdas não-técnicas - é fator determinante para a revisão tarifária realizada pela ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica1 -, que autoriza que um percentual das perdas das concessionárias seja remunerado na tarifa seguinte. 1 As revisões tarifárias são realizadas ordinariamente a cada 05 (cinco) anos. Possuem o objetivo de restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão. O objetivo é manter intacto o equilíbrio entre a prestação do serviço e a remuneração. As perdas não-técnicas repercutem ainda sob os usuários quando a concessionária encontra-se obrigada a deixar de aplicar recursos na melhoria das atividades de forma planejada para direcioná-los ao combate as perdas. Por óbvio, quanto maior é o nível de perdas comerciais, maior é a necessidade de recursos visando o seu combate, o que provoca inevitável reflexo imediato na prestação de serviços. Isto porque, quanto maiores forem as perdas comerciais, mais energia deverá ser gerada e implementada no sistema. Todavia, apenas uma parte será efetivamente consumida, medida, faturada e paga, enquanto a outra parte será desviada, não medida e consequentemente não paga. E os custos associados à manutenção dos níveis de perdas comerciais são altíssimos. Há a necessidade ainda de investimento em novos empreendimentos tecnológicos visando o combate e prevenção à fraude. Como exemplo, pode-se citar o desenvolvimento do Smart Grid2. Convém destacar que para o desenvolvimento deste trabalho, dentre as várias origens de perdas não técnicas, destacaremos a fraude/furto de energia elétrica. Todos os tipos de fraudes/irregularidades procedidos com o objetivo de que a medição do consumo de energia elétrica não seja pago, integral ou parcialmente, são prejudiciais à qualidade de serviço prestado pela concessionária. Isto porque, dentre outros fatores, sobrecarregam o sistema elétrico, gerando oscilações na tensão e consequentemente interrupções no fornecimento de energia, acarretando graves danos à rede elétrica e aos usuários estabelecidos na localidade onde é constatada a irregularidade. 2 Smart grid ou rede inteligente, em termos gerais é a aplicação de tecnologia da informação para o sistema elétrico de potência, integrada aos sistemas de comunicação e infra estrutura de rede automatizada. Especificamente, envolve a instalação de sensores nas linhas da rede de energia elétrica, o estabelecimento de um sistema de comunicação confiável em duas vias com ampla cobertura com os diversos dispositivos e automação dos ativos. Esses sensores são embutidos com chips que detectam informações sobre a operação e desempenho da rede - parâmetros, tais como tensão e corrente. Os sensores, então, analisam essas informações para determinar o que é significativo - por exemplo, está com tensão muito alta ou muito baixa. As concessionárias, em razão do alto custo associado à manutenção dos níveis de perdas comerciais, em especial o furto de energia, são obrigadas a exercerem rigorosa fiscalização, com elevados investimentos, como dito. Entretanto, existe, por questão de cultura popular, o intento pela sociedade de não considerar as práticas de fraude/furto de energia como ilícito penal. Repetidos são os casos em que as concessionárias de energia elétrica detectam irregularidades e tomam as providências disciplinadas na Resolução editada pela Agência Reguladora e posteriormente se surpreendem ao verificar que os mesmos consumidores voltaram a cometer os mesmos ilícitos. Outro fator importantíssimo a se considerar é o papel do Poder Judiciário. Não pode o Judiciário pactuar com as práticas ilícitas cometidas pelos usuários, mormente quando vigente ato normativo editado por Agência Reguladora3 criada com a finalidade de ajustar, disciplinar e promover o funcionamento dos serviços públicos objeto da concessão, disciplinando objetivamente a forma de caracterização de irregularidade e de recuperação de receitas4. Referido ato normativo disciplina5 expressamente a possibilidade de interrupção do fornecimento de energia elétrica, de forma imediata, quando constatada ligação clandestina na rede elétrica sem que haja relação de consumo previamente constituída. Assim, em face de tudo o que foi acima exposto, este trabalho busca abordar os aspectos jurídicos da fraude de energia elétrica, mormente a legalidade da suspensão do fornecimento de energia e a apreciação da resolução nº. 414/2010 da ANEEL por parte do judiciário, considerando-se a necessidade de uma atuação enfática do Poder Judiciário junto às políticas de repressão e combate à fraude de energia elétrica, com o fito de preservação do princípio da legalidade e do próprio interesse público. 3 No presente caso, a Resolução n.º 414/2010, editada pela ANEEL, Agência Nacional de Energia Elétrica. 4 Arts. 129 a 133 da Resolução n.º 414/2010, da ANEEL. 5 No art. 168, da Resolução n.º 414/2010, da ANEEL. 2. PROCEDIMENTO DE INSPEÇÃO PARA VERIFICAÇÃO DE IRREGULARIDADE/FRAUDE NO CONJUNTO DE MEDIÇÃO. ATENDIMENTO AOS PRECEITOS ELENCADOS NA RESOLUÇÃO N.º 414/2010, DA ANEEL. Em estrita obediência às disposições regulamentares exaradas pela ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica – especialmente aquelas constantes na Resolução nº 414/2010, as empresas concessionárias de energia elétrica promovem, através de seus agentes, por iniciativa própria ou pedido do usuário, fiscalizações de rotina nos medidores de consumo de energia elétrica. O escopo precípuo das fiscalizações é reduzir o índice de perdas comerciais oriundas das irregularidades (desvios clandestinos) praticadas de forma intencional ou não pelos usuários, antes do conjunto de medição. Pode-se definir irregularidade na medição como sendo a utilização de artifícios diversos, de modo a alterar o medidor de energia elétrica, para que o mesmo não registre toda a energia efetivamente consumida pela unidade consumidora. Assim, o medidor é avariado por um agente externo, de modo a não registrar o real consumo, acarretando consequentemente, perdas para a distribuidora de energia elétrica. O procedimento de inspeção técnica obedece, sistemicamente, as disposições regulamentares exaradas pela ANEEL. Assim, a concessionária, ao efetuar inspeção técnica numa unidade de consumo, ao constatar a existência de irregularidade, ou mesmo indícios de irregularidade, lavra, no momento, o respectivo Termo de Ocorrência e Inspeção (TOI), nos moldes do art. 129, da Resolução n.º 414/2010, da ANEEL6. 6 Art. 129. Na ocorrência de indício de procedimento irregular, a distribuidora deve adotar as providências necessárias para sua fiel caracterização e apuração do consumo não faturado ou faturado a menor. § 1º A distribuidora deve compor conjunto de evidências para a caracterização de eventual irregularidade por meio dos seguintes procedimentos: I – emitir o Termo de Ocorrência e Inspeção – TOI, em formulário próprio, elaborado conforme Anexo V desta Resolução; II – solicitar perícia técnica, a seu critério, ou quando requerida pelo consumidor ou por seu representante legal; III – elaborar relatório de avaliação técnica, quando constatada a violação do medidor ou demais equipamentos de medição; IV – efetuar a avaliação do histórico de consumo e grandezas elétricas; e V – implementar, quando julgar necessário, os seguintes procedimentos: a) medição fiscalizadora, com registros de fornecimento em memória de massa de, no mínimo, 15 (quinze) dias consecutivos; e b) recursos visuais, tais como fotografias e vídeos. Após a lavratura do Termo de Ocorrência e Inspeção, a concessionária elabora relatório de avaliação técnica, quando constatada a irregularidade, podendo, inclusive, solicitar a seu critério ou quando solicitado pelos usuários, a realização de perícia técnica. Ato contínuo, restando identificada a existência da irregularidade apontada no TOI, a concessionária procede à revisão de faturamento para recuperação de receita, conforme preceitua o art. 130, da Resolução n.º 414/2010, da ANEEL7. § 2º Uma cópia do TOI deve ser entregue ao consumidor ou àquele que acompanhar a inspeção, no ato da sua emissão, mediante recibo. § 3o Quando da recusa do consumidor em receber a cópia do TOI, esta deve ser enviada em até 15 (quinze) dias por qualquer modalidade que permita a comprovação do recebimento. § 4º A partir do recebimento do TOI, o consumidor tem 15 (quinze) dias para informar à distribuidora a opção pela perícia técnica, no medidor e demais equipamentos, de que trata o inciso II do § 1o, quando for o caso. § 5º Nos casos em que houver a necessidade de retirada do medidor ou demais equipamentos de medição, a distribuidora deve acondicioná-los em invólucro específico, a ser lacrado no ato da retirada, mediante entrega de comprovante desse procedimento ao consumidor ou àquele que acompanhar a inspeção, e encaminhá-los por meio de transporte adequado para realização da avaliação técnica. § 6º O relatório de avaliação técnica dos equipamentos de medição pode ser elaborado pelo laboratório da distribuidora ou de terceiro, desde que certificado como posto de ensaio autorizado pelo órgão metrológico ou entidade por ele delegada, preservado o direito de o consumidor requerer a perícia técnica de que trata o inciso II do § 1º. § 7º Na hipótese do § 6º, a distribuidora deve comunicar ao consumidor, por escrito, mediante comprovação, com pelo menos 10 (dez) dias de antecedência, o local, data e hora da realização da avaliação técnica, para que ele possa, caso deseje, acompanhá-la pessoalmente ou por meio de representante nomeado. § 8º O consumidor pode solicitar, antes da data previamente informada pela distribuidora, uma única vez, novo agendamento para realização da avaliação técnica do equipamento. § 9º Caso o consumidor não compareça à data previamente informada, faculta-se à distribuidora seguir cronograma próprio para realização da avaliação técnica do equipamento, desde que observado o disposto no § 7o. § 10. Comprovada a irregularidade nos equipamentos de medição, o consumidor será responsável pelos custos de frete e da perícia técnica, caso tenha optado por ela, devendo a distribuidora informá-lo previamente destes custos, vedada a cobrança de demais custos. § 11. Os custos de frete de que trata o § 10 devem ser limitados ao disposto no § 10 do art. 137. 7 Art. 130. Comprovado o procedimento irregular, para proceder à recuperação da receita, a distribuidora deve apurar as diferenças entre os valores efetivamente faturados e aqueles apurados por meio de um dos critérios descritos nos incisos a seguir, aplicáveis de forma sucessiva, sem prejuízo do disposto nos arts. 131 e 170: I – utilização do consumo apurado por medição fiscalizadora, proporcionalizado em 30 dias, desde que utilizada para caracterização da irregularidade, segundo a alínea “a” do inciso V do § 1o do art. 129; II – aplicação do fator de correção obtido por meio de aferição do erro de medição causado pelo emprego de procedimentos irregulares, desde que os selos e lacres, a tampa e a base do medidor estejam intactos; III – utilização da média dos 3 (três) maiores valores disponíveis de consumo mensal de energia elétrica, proporcionalizados em 30 dias, e de demanda de potências ativas e reativas excedentes, ocorridos em até 12 (doze) ciclos completos de medição regular, imediatamente anteriores ao início da irregularidade; IV – determinação dos consumos de energia elétrica e das demandas de potências ativas e reativas excedentes, por meio da carga desviada, quando identificada, ou por meio da carga instalada, verificada no momento da constatação da irregularidade, aplicando-se para a classe residencial o tempo médio e a frequência de utilização de cada carga; e, para as demais classes, os fatores de carga e de demanda, obtidos a partir de outras unidades consumidoras com atividades similares; ou V – utilização dos valores máximos de consumo de energia elétrica, proporcionalizado em 30 (trinta) dias, e das demandas de potência ativa e reativa excedentes, dentre os ocorridos nos 3 (três) ciclos imediatamente posteriores à regularização da medição. Parágrafo único. Se o histórico de consumo ou demanda de potência ativa da unidade consumidora variar, a cada 12 (doze) ciclos completos de faturamento, em valor igual ou inferior a 40% (quarenta por cento) para a relação Ressalte-se que o cálculo do consumo não medido baseia-se na apuração técnica do erro de medição, causado pelo emprego de procedimentos irregulares por parte dos usuários, aferidos e registrados no TOI. E, o usuário de energia elétrica é fiel depositário dos equipamentos de medição de energia elétrica, incumbindo-lhe o dever de conservá-los. Portanto, plenamente legítimos se afiguram os atos desempenhados pelas concessionárias de energia elétrica com o intuito de recuperação das perdas – receita – decorrentes de débitos de consumo não registrado, por atos de irregularidades encontradas no conjunto de medição de energia elétrica posto à disposição do consumidor. Demonstrada assim a legalidade da cobrança dos valores encontrados em decorrência de consumo não medido de energia elétrica por fraude, evidencia-se a juridicidade da suspensão de fornecimento de energia elétrica, na hipótese de inadimplemento da unidade consumidora por força da constatação de irregularidade. 3. SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA DECORRENTE DE FRAUDE DE ENERGIA X CONTINUIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO As empresas concessionárias de serviço público de distribuição de energia elétrica desempenham atividade econômica vinculada à noção de Estado, como verdadeira longa manus, tratando-se, portanto, de serviço público delegado. Entretanto, faz-se importante discorrer sobre a caracterização do serviço público de fornecimento de energia elétrica, a fim de considerá-lo como essencial. Serviço público é a atividade direta ou indireta da Administração, correspondente à satisfação de uma necessidade geral essencial ou secundária, individualmente identificável. Nesse sentido é a definição de Marcelo Caetano8: entre a soma dos 4 (quatro) menores e a soma dos 4 (quatro) maiores consumos de energia elétrica ativa, nos 36 (trinta e seis) ciclos completos de faturamento anteriores a data de emissão do TOI, e a irregularidade não distorcer esta característica, a utilização dos critérios de apuração dos valores básicos, para efeito de recuperação da receita, deve levar em consideração tal condição. 8 CAETANO. Marcelo. Manual de Direito Administrativo, tomo II, 1972, p. 1.043, apud CARVALHO FILHO. José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 4ª Ed., Lumes Juris, P. 219. 1999. “Chamamos serviço público ao modo de atuar da autoridade pública a fim de facultar, por modo regular e contínuo, a quanto deles careçam, os meios idôneos para satisfação de uma necessidade coletiva individualmente sentida.” Maria Sylvia Zanella Di Pietro9, por sua vez, define serviço público como: “(...) toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público.” De lado oposto à noção de serviço público está a de atividade econômica, matéria reservada precipuamente à iniciativa privada. Todavia, a dualidade existente entre serviço público e atividade econômica não é estanque. A Carta Magna de 1988 apresenta miscigenação entre os dois conceitos, como, por exemplo, na hipótese em que a atividade econômica pode ser realizada pelo Estado (art. 173), e, de outro turno, naqueles serviços em que a prestação de serviço público é concedida ou permitida ao particular (art. 175). Os doutrinadores em geral constantemente estão em debate com a finalidade de distinguir quando somente ao Estado é dado prestar o serviço diretamente ou quando este pode delegar, conceder ou permitir a sua realização. No que se refere especificamente à exploração e distribuição de energia elétrica, existe, aparentemente, consenso na doutrina de que se trata de serviço público, havendo, apenas, divergência quanto à sua caracterização como essencial ou não essencial. 9 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Adminsitrativo, 10ª Ed.Atlas: São Paulo. P.84. 1999. Assim, a primeira dúvida a ser desfeita diz respeito ao conceito de essencialidade. É sempre muito complicado investigar a natureza do serviço público, para tentar caracterizar, neste ou naquele, o traço da sua essencialidade. Para Celso Antônio Bandeira de Mello10, serviço público consiste em “toda a atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público (...)” Contudo, em relação à questão da continuidade do serviço público, importantíssimo distinguir que o serviço de fornecimento de energia elétrica não é um serviço público essencial, mas sim um serviço de utilidade pública. Nesse mesmíssimo sentido, Hely Lopes Meireles11: “Serviços públicos: propriamente ditos, são os que a Administração presta diretamente à comunidade, por reconhecer a sua essencialidade e a necessidade para a sobrevivência do grupo social, e do próprio Estado. Por isso mesmo, tais serviços são considerados privativos do Poder Público, no sentido de que só a Administração deve prestá-los, sem delegação a terceiros, mesmo porque, geralmente exigem atos de império e medidas compulsórias em relação aos administrados. Exemplos desses serviços são os de defesa nacional, os de polícia, os de preservação da saúde pública. Serviços de utilidade pública: são os que a Administração, reconhecendo a sua conveniência (não essencialidade, nem necessidade) para os membros da coletividade, presta-os diretamente, ou aquiesce em que sejam prestados por terceiros (concessionários, permissionários ou autorizatários), nas condições regulamentadas e sob seu controle, mas por conta e risco dos prestadores, mediante remuneração do usuário. São exemplos dessa modalidade, os serviços de transporte coletivo, energia elétrica, gás, telefone.” Verifica-se assim que o fornecimento de energia elétrica é um serviço de utilidade pública e não um serviço essencial, caracterizado, portanto, como serviço uti singuli, possuindo usuários determináveis, sendo mensurável e de utilização particular, devendo ser remunerado por meio de tarifa. 10 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 15ª Ed, P.612. 11 MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, Revista dos Tribunais, 10ª Ed., P. 317. Há que se ressaltar que o vínculo que se estabelece entre as empresas prestadoras dos serviços de utilidade pública, como no caso do fornecimento de energia elétrica, e os usuários é regido pelo direito privado, com as modificações introduzidas em decorrência do exercício do poder regulamentar, detido pelo ente concedente. Portanto, além de essencialmente privado, o contrato de fornecimento de energia elétrica é bilateral, na medida em que prevê, de um lado, a prestação do serviço e, de outro, a remuneração pelo serviço prestado. Dessa forma, cumpre discorrer acerca da legalidade da descontinuidade da prestação de serviço de fornecimento de energia elétrica. Sobre o tema, Marçal Justen Filho12 assim se posiciona: “A continuidade significa a impossibilidade de interrupção da prestação do serviço, eis que se presume que as utilidades prestadas são essenciais e indispensáveis à sobrevivência ou à normalidade da vida. (...) isso não afasta a discussão acerca do cabimento de suspensão da prestação do serviço público em face de determinados eventos, especialmente quando se tratar de inadimplemento do usuário a deveres que lhe incumbem.” Nesse sentido, a Lei Federal n.º 8987/95 (conhecida como a Lei das Concessões), em seu artigo 6°, não caracteriza como descontinuidade do serviço público a sua suspensão ocasionada por inadimplemento do consumidor, ressalvado o interesse da coletividade, assim dispondo: “§ 3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando: I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e, II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.” Em idêntico escopo, a Resolução n.º 414/2010, editada pela ANEEL, que estabelece as condições gerais de fornecimento de energia elétrica, disciplina a possibilidade de suspensão 12 JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões. Dialética: São Paulo. P.31. do serviço, de imediato, em razão de procedimentos irregulares cometidos pelos usuários no sistema de medição, por ligações clandestinas ou à revelia da concessionária na hipótese de inadimplemento especificamente em razão de irregularidade. O art. 170 da Resolução supramencionada enquadrou a prática de procedimentos irregulares como hipótese de situação emergencial, autorizando a suspensão do serviço de forma imediata na unidade consumidora na qual for constatada irregularidade (nos termos do art. 129, da Resolução n.º 414/2010, da ANEEL), in litteris: “Art. 170. A distribuidora deve suspender imediatamente o fornecimento quando for constatada deficiência técnica ou de segurança na unidade consumidora que caracterize risco iminente de danos a pessoas, bens ou ao funcionamento do sistema elétrico. § 1º Incorrem na hipótese prevista no caput. I - o descumprimento do disposto no art. 165, quando caracterizado que o aumento de carga prejudica o atendimento a outras unidades consumidoras; e II - a prática dos procedimentos descritos no art. 129, quando não seja possível a verificação e regularização imediata do padrão técnico e de segurança pertinente. § 2º Nas hipóteses de que tratam os incisos I e II do § 1º, a distribuidora deve informar o motivo da suspensão ao consumidor, de forma escrita, específica e com entrega comprovada, sem prejuízo do disposto no § 3º do art. 173.” A possibilidade de suspensão do serviço de distribuição de energia elétrica consta da redação da Resolução n.º 414/2010 como uma obrigação – e não, faculdade – da concessionária. A suspensão do serviço de forma imediata objetiva, sobremaneira, que a medição do consumo seja devidamente regularizada, tendo como finalidade minimizar os riscos para o sistema elétrico e para toda a coletividade, inclusive para aquele que cometeu o ilícito. Não há, portanto, que se falar em descontinuidade do serviço ou ofensa às normas do Código de Defesa do Consumidor, invocando-se, sobremaneira, o art. 22 do referido diploma legal. A luz de todas as informações já postas pode-se concluir que lícita é a suspensão do serviço, principalmente, nas hipóteses de cometimento de irregularidade. Verdadeiramente, é inadmissível que se interprete referido diploma consumeirista de forma a proteger o inadimplente e o infrator penal. Há de se ponderar que a própria Lei Federal n.º 8987/95, em seu art. 6º, § 3º, permite a regular suspensão do fornecimento de energia elétrica nas hipóteses de inadimplência. Em se admitindo legal a possibilidade de suspensão do serviço em razão de inadimplência, na há congruência em se suscitar o disposto no art. 22, do Código de Defesa do Consumidor, para proteger o usuário que comete fraude, viola o medidor, furta energia, tira proveito próprio às custas de toda a coletividade. A continuidade e eficiência dos serviços públicos exigidas pelo art. 22, do CDC13, não implica a gratuidade dos mesmos. Nem tampouco implica a obrigatoriedade da prestação ininterrupta quando o usuário prática fraude, lesando a concessionária de serviço público e os outros consumidores, uma vez que a repercussão das perdas em decorrência do furto afeta diretamente a política tarifária e assim quem paga e usa o serviço de forma legal é penalizado por aqueles que cometem o ato ilícito. Se a concessionária está vinculada pelo dever de fornecer o serviço nos termos do disposto no artigo 22 do CDC, impõe-se que o usuário do serviço prestado efetivamente contribua para a permanência das boas condições dos bens através dos quais lhe são prestados os serviços, cabendo-lhe se obstar de cometer atos que impeçam a real medição da energia efetivamente consumida. Outrossim, a bilateralidade do vínculo existente entre concessionária e usuário, como já dito acima, deriva a importância do pagamento da energia efetivamente consumida. Caso o consumidor tenha cometido algum tipo de irregularidade na medição do consumo, essa energia consumida e não registrada há de ser apurada e efetivamente cobrada do usuário. Essa contraprestação é o pressuposto da manutenção e do fomento do próprio serviço. 13 Art. 22 - Os órgãos públicos, por si ou por suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos. Parágrafo único - Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código. Não existe presunção de gratuidade para a prestação de serviços de utilidade pública, muito menos as concessionárias de serviço público podem ser compelidas a prestar serviços ininterruptos se o usuário deixa de satisfazer suas obrigações relativas ao pagamento. Do contrário, seria admitir, de um lado, o enriquecimento sem causa do usuário e, de outro, o desvio de recursos públicos por mera inatividade da concessionária. Zelmo Denari14 assim se posiciona: “Ao revés, quando estiverem em causa interesses individuais, de determinados usuários, a oferta de serviço pode sofrer solução de continuidade, se não forem observadas as normas administrativas que regem a espécie. Tratando-se, por exemplo, de serviços prestados sob o regime de remuneração tarifária ou tributária, o inadimplemento pode determinar o corte do fornecimento do produto ou serviço. A gratuidade não se presume e o Poder Público não pode ser compelido a prestar serviços públicos ininterruptos se o usuário, em contrapartida, deixa de satisfazer suas obrigações relativas ao pagamento.” Ainda nesse sentido, quando se considera a ausência de pagamento pela ocorrência de fraude por parte do usuário, além da patente irregularidade, resta configurado verdadeiro locupletamento ilícito do faltoso em desfavor dos demais usuários. Assim, tanto na hipótese de inadimplência quando na de fraude, as concessionárias estão autorizadas a proceder com a suspensão do serviço. Corroborando com o entendimento fartamente demonstrado, seguem os posicionamentos jurisprudências acerca do tema: “ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. INADIMPLEMENTO. POSSIBILIDADE. IRREGULARIDADES NO MEDIDOR. FATURAMENTO DAS DIFERENÇAS. 1. O Superior Tribunal de Justiça já se posicionou no sentido de que é lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica se, após aviso prévio, o consumidor permanecer inadimplente no pagamento da respectiva conta (Lei n. 8.987/95, art. 6º, § 3º, II). Precedentes. 2. O disposto no art. 6º, § 3º, II, da Lei n. 8.987/95, ao explicitar que, na hipótese de inadimplemento do usuário, a interrupção do fornecimento de 14 DENARI, Zelmo. Código de Defesa do Consumidor Comentado Pelos Autores do Anteprojeto. Forense Universitária, P. 190/191. energia não caracteriza descontinuidade do serviço, afasta qualquer possibilidade de aplicação dos preceitos ínsitos nos arts. 22 e 42 da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). 3. O fato de o caso dos autos tratar de débitos apurados unilateralmente pela empresa concessionária ante suposta fraude em medidor de energia elétrica e em virtude de valores decorrentes de diferenças de consumo não modifica as conclusões acima indicadas. Evidentemente que o consumidor que frauda medidor tem intenção de que o real consumo de energia por ele realizado seja camuflado, normalmente com o fim de pagar menos do que seria efetivamente devido. Portanto, não há dúvida quanto à existência de energia consumida que não fora quitada. Seria um contra-senso o entendimento de que é permitida a suspensão de energia por consumo ordinário não-pago, e de que não é permitida na hipótese de consumo que não foi pago em razão de ter sido camuflado pelo consumidor. 4. Recurso especial provido.”15 “SUSPENSÃO DE LIMINAR. DEFERIMENTO. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. CORTE POR INADIMPLÊNCIA. MUNICÍPIO. POSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL. 1.A interrupção do fornecimento de energia elétrica por inadimplemento não configura descontinuidade da prestação do serviço público. Precedentes. 2.O interesse da coletividade não pode ser protegido estimulando-se a mora, até porque esta poderá comprometer, por via reflexa, de forma mais cruel, toda a coletividade, em sobrevindo má prestação dos serviços de fornecimento de energia, por falta de investimentos, como resultado do não recebimento, pela concessionária, da contra-prestação pecuniária. 3.Legítima a pretensão da Concessionária de suspender a decisão que, apesar do inadimplemento, determinou o restabelecimento do serviço e a abstenção de atos tendentes à interrupção do fornecimento de energia. 4.Agravo Regimental não provido.”16 Assim, resta patente a legitimidade das concessionárias de energia elétrica ao, em atendimento aos preceitos elencados na Resolução n.º 414/2010, proceder com a suspensão de energia elétrcia nas hipóteses de constatação de fraude. 15 Recurso Especial nº 806985/RS (2006/0002443-0), julgado pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 15/03/2007, relatoria para o acórdão do Ministro João Otávio de Noronha, publicado no DJ de 27/11/2008. 16 AgRg na Suspensão de Liminar e de Segurança n.º 216/ RN (2005⁄0206125-4), julgado à unanimidade pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, em 20/03/2006, relatoria do Ministro Edson Vidigal, publicado no DJ de 10/04/2006. 5- REFERENCIAS AMORIM DA ROCHA, Fábio. As Irregularidade no Consumo de Energia Elétrica, Synergia Editora, 2011. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 15ª Edição. CAETANO, Marcelo, Manual de Direito Administrativo, tomo II, 1972, p. 1.043, apud José dos Santos Carvalho Filho, Manual de Direito Administrativo, 4ª Ed., Lumes Juris, 1999. DENARI, Zelmo. Código de Defesa do Consumidor Comentado Pelos Autores do Anteprojeto. Forense Universitária. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 10ª Ed., Atlas, 1999. JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões, Editora Dialética. MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, Revista dos Tribunais, 10ª Edição. RESOLUÇÃO n.º 414, de 09 de setembro de 2010 da ANEEL. Disponível em: http://www.aneel.gov.br/cedoc/ren2010414.pdf.