UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
DANIELE CRISTINA DA SILVA
LA HORA VIOLETA DE MONTSERRAT ROIG: A INQUIETAÇÃO NO
PROCESSO DA REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA
Cuiabá
2012
ii
DANIELE CRISTINA DA SILVA
LA HORA VIOLETA DE MONTSERRAT ROIG: INQUIETAÇÃO NO
PROCESSO DA REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em
Estudos de Linguagem do Instituto de Linguagens da
Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos de
Linguagem.
Área de concentração: Estudos Literários
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rhina Landos Martínez André
Cuiabá
2012
FICHA CATALOGRÁFICA
S586h
Silva, Daniele Cristina da.
La hora violeta de Montserrat Roig: inquietação no processo da represen- tação literária /
Daniele Cristina da Silva. – 2012.
110 f. : il. color.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rhina Landos Martínez André.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, PósGraduação em Estudos de Linguagem, Área de Concentração: Estudos Literários, 2012.
Bibliografia: f. 103-110.
1. Literatura catalã – História e crítica. 2. Análise literária. 3. Roig, Montserrat, 1946-1991. 4.
Romance catalão – Representação literária. I. Título.
CDU – 821.13-31.09
Ficha elaborada por: Rosângela Aparecida Vicente Söhn – CRB-1/931
iii
Dissertação intitulada “La hora violeta” de Montserrat Roig: inquietação no
processo de representação literária da mestranda Daniele Cristina da Silva,
aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:
_____________________________________________
Prof. Dr. Antônio Roberto Esteves (Examinador Externo)
Universidade Estadual Paulista - Unesp / Assis
_____________________________________________
Prof.ª Dra. Célia Maria Domingues da Rocha Reis (Examinadora Interna)
Universidade Federal do Mato Grosso – UFMT / Cuiabá
_____________________________________________
Prof.ª Dra. Rhina Landos Martínez André (Orientadora)
Universidade Federal do Mato Grosso – UFMT / Cuiabá
Cuiabá- MT, 27 de Abril de 2012.
iv
DEDICATÓRIA
À minha mãe, minha “companheira inseparável” que compartilhou comigo dia-a-dia dessa
trajetória de estudo e pesquisa, dando-me forças nos momentos de angústias e de
preocupações. Unidas desde o ventre, agora fisicamente longe, mas sempre próximas pelo
nosso amor incondicional.
Ao meu pai, por sempre estar presente na formação das suas filhas, pelo companheirismo e
disposição em nos ajudar, seja no que for, e, é claro, por ser muito “fofinho”.
Ao meu esposo Marcelo, pela compreensão, apoio e presença constante durante esses dois
anos de estudo, quando permaneci mais tempo com os livros do que ao seu lado.
v
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, Àquele que ocupa o primeiro lugar em meu coração, simplesmente por me
conceder a vida e por permitir que eu chegasse até aqui: Deus!
Especialmente à minha orientadora Prof.ª Dr. Rhina Landos Martínez André por indicar os
caminhos que deveria seguir, orientando-me no mundo da pesquisa científica, pela amizade e
por dar sua credibilidade à minha pessoa.
Ao professor Antônio Roberto Esteves que colaborou com a construção do trabalho, através
de suas considerações e sugestões que foram muito bem-vindas.
À Professora Célia Maria Domingues da Rocha Reis, coordenadora do MeEL/UFMT,
profissional competente que muito contribuiu para minha formação.
Aos professores do MeEL/UFMT com os quais muito aprendi através dos conhecimentos
repassados.
À Ana Paula de Souza, professora do curso de Letras da UFMT, quem admiro desde o
período da minha graduação na UNEMAT quando tive a oportunidade de ser sua aluna, pelas
oportunidades e por acreditar que eu era capaz de chegar até aqui.
Ao meu esposo, Hilton Marcelo, que apesar de não entender as minhas “viagens”, sempre
esteve ao meu lado, apoiando e incentivando-me para que esse objetivo se concretizasse.
Aos meus pais, por me oportunizaram os estudos e uma formação profissional, mas acima de
tudo, pelo exemplo e pela formação pessoal e ética que levarei aonde for.
À minha irmã Fabiana e meu sobrinho preferido, Murillo, por fazerem parte da minha vida.
Ao meu amigo e agora cunhado Julio César, que apesar de ser um profissional da área de
Administração, deixava-se levar pela imaginação quando, juntamente com Maria Cleunice,
viajávamos pelas mesmas estradas, com objetivos e metas diferentes.
Aos colegas mestrandos, por dividirmos momentos de concentração e reflexão e crescermos
juntos como pesquisadores.
Aos funcionários do MeEL e da Biblioteca por estarem sempre dispostos a nos atender.
vi
Hay que recordar, hay que evocar, no hay arte más
temporal que la literatura. Podemos enfermar con el
recuerdo, pero, al final del largo y lento proceso de la
escrita, descubriremos que hay algo, que hay alguien, al
otro lado, que todavía late, que todavía existe
Montserrat Roig
vii
SILVA, Daniele Cristina da. “La hora violeta” de Montserrat Roig: inquietação no processo
da representação literária. Universidade Federal de Mato Grosso, 2012.
RESUMO: Nessa dissertação estudamos o romance La hora violeta (1980) da escritora catalã
Montserrat Roig e nela analisamos as motivações dos diversos momentos de inquietação e
desassossego pelos quais passa Norma, personagem escritora criada pela autora e responsável
por organizar a história de duas mulheres da burguesia catalã que viveram o período
turbulento da Guerra Civil Espanhola e dos primeiros anos da ditadura franquista. A
reconstrução do passado reflete a preocupação da autora em lutar contra o esquecimento de
vivencias traumáticas coletivas e seu interesse em trabalhar a relação dialética entre memória
e história, priorizando os discursos minoritários silenciados em sua sociedade pela ditadura e
pelo sistema patriarcal. Para trabalharmos com a relação entre a representação da realidade e a
ficção nos pautamos em discussões de Seligmann-Silva, Valéria De Marco, Levi e Semprún.
Em relação aos estudos sobre história e memória, Nietzsche, Benjamin, Gagnebin, Halbwachs
e Olmi sustentam as discussões. O processo de retomada de um passado, aparentemente
distante da vida de Norma, adquire significados importantes, pois se apresenta como um
desafio para a representação dos seus próprios anseios e angústias. A configuração da obra,
pelos temas que se abordam, no se realiza de maneira fria e insensível, mas bem se tem que
experimentar o sofrimento, a dor e aflição, pois a personagem Norma precisa passar por uma
espécie de purgatório, para seguir o curso de sua própria vida. Nesse sentido, podemos
afirmar que o processo de escritura se transforma em uma maneira de tratamento psicológico.
Apesar de ser um procedimento penoso e angustiante e de enfrentamento de conflitos sociais
e pessoais, é através dele que Norma pode compreender a si mesma e libertar-se de seus
traumas.
PALAVRAS-CHAVES: Montserrat Roig, La hora violeta; memória; inquietação;
representação.
viii
RESUMEN:
En esta disertación estudiamos la novela La hora violeta (1980), de la escritora catalana
Montserrat Roig y en ella analizamos las motivaciones de los momentos de inquietud y
desosiego que sufre Norma, durante el proceso de la elaboración literaria. Norma es la
escritora personaje criada por la autora y responsable por organizar la historia de dos mujeres
de la burguesía catalana que vivieron el período turbulento de la Guerra Civil Española y de
los primeros años de la dictadura franquista. La reconstrucción del pasado refleja la
preocupación de la autora en luchar contra el olvido y trabajar en una relación dialéctica
memoria e historia priorizando los discursos minoritarios silenciados en la sociedad y que
fueron sofocados por la dictadura y por el sistema patriarcal. Para trabajar con la relación
entre representación de la realidad y la ficción nos apoyamos en discusiones de SeligmannSilva, Valéria De Marco, Levi, Semprún. En relación a los estudios sobre historia y memoria,
Nietzsche, Benjamin, Gagnebin, Halbwachs y Olmi sustentan las discusiones. El proceso de
retomada de un pasado, aparentemente distante de la vida de Norma, adquiere significados
importantes, pues se presenta como un desafío para la representación de sus propias
ansiedades y angustias. Esta labor no se realiza sencillamente, sin sufrimiento, dolor y
aflicción, pues el personaje precisa pasar por una especie de purgatorio para seguir el curso de
su propia vida. En ese sentido, podemos afirmar que el proceso de escritura se transforma en
una manera de tratamiento psicológico. A pesar de ser un procedimiento penoso y
angustiante, es a través de él y del enfrentamiento de conflictos sociales y personales que
Norma puede comprenderse a sí misma y liberar-se de sus traumas.
PALABRAS-CLAVES: historia, memoria; inquietud; representación; ficción.
ix
ABSTRACT: In this dissertation we have studied the novel La hora violeta by the Catalan
writer Montserrat Roig (1980) and it has analyzed the motivations of several moments of
unrest and anxiety which threaten the character Norma, a writer character created by the
author and responsible for organizing the story of two women from the Catalan bourgeoisie
who went through the turbulent period of the Spanish Civil War and the early years of
Franco’s dictatorship. The reconstruction of the past reflects the concern of the author to fight
against the forgetting of collective traumatic experiences and its interest in working with the
dialectical relationship between memory and history, prioritizing the minority discourses
silenced in their society by the dictatorship and the patriarchal system. To work with the
relationship between representation of reality and fiction we have based on discussions of
Seligmann-Silva, Valéria de Marco, Levi Semprún among others. Regarding the studies about
history and memory, Nietzsche, Benjamin, Gagnebin, Halbwachs and Olmi held the
discussions. This process of revival of a past, seemingly distant from the life of Norma, it
acquires important meanings, therefore, it presents as a challenge for the representation of
their own desires and sorrows. The settings of the work, according to the themes discussed, do
not happen in a cold and insensitive way, but she has to experience suffering, pain and
distress in which the character Norma must pass a sort of purgatory to follow the course of her
life. In this sense, we may approach the process of writing becomes a way of psychological
treatment. Despite of being a painful and distressing procedure, it is through it and facing her
personal and social conflicts that Norma can understand herself and achieve the liberation
from her traumas.
KEY WORDS: History; Memory; Unrest; Representation; Fictio.
x
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................... 11
1. A HORA DA TEORIA: LITERATURA E TESTEMUNHO ENTRE AS BALIZAS DO REAL E DO
FICCIONAL ........................................................................................................................................................ 15
1.1. Entre a história e memória ............................................................................................................... 28
1.2. A arte de Narrar ................................................................................................................................ 34
2. A HORA DOS RESTOS E DOS CACOS: A GUERRA CIVIL ESPANHOLA........................................... 39
2.1. A hora das mulheres .......................................................................................................................... 43
2.2. Montserrat Roig: a projeção de uma vida ....................................................................................... 47
2.3. Adentrando o universo de La hora violeta: o título ....................................................................... 52
2.4. Temas e a organização da obra ........................................................................................................ 56
3. A HORA DA ANÁLISE ................................................................................................................................... 63
3.1 Os registros das memórias familiares ............................................................................................... 64
3.2. A inquietação da representação literária em La hora violeta ........................................................ 78
3.3. A inquietação da escrita metaforizada na organização estrutural do romance ........................... 88
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................................ 100
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................................... 104
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INTRODUÇÃO
Abordar a obra de Montserrat Roig sobre a perspectiva da memória de um contexto
histórico, político e social da Espanha do século XX é tratá-la como uma forma de
testemunho literário que denuncia as atrocidades ocorridas nesse período com os espanhóis,
principalmente com aqueles que foram marginalizados ao longo das quase quatro décadas de
ditadura militar.
Roig sempre esteve envolvida com questões que permeavam sua sociedade. Formou
parte do universo de escritoras catalãs interessadas pelas histórias marginalizadas do passado
recente de seu país. Tornou-se uma testemunha de um período marcado por discussões sobre a
relação entre história e memória como meio para compreender a repressão e censura das
décadas recentes.
Há duas linhas de crítica sobre sua produção, uma desenvolvida em Barcelona e
Madrid que, apesar de considerar sua obra como profusa, realista e testemunhal, classifica-a
como uma produção de mediana qualidade literária. Outra corrente crítica, formada nos
Estados Unidos e na Inglaterra, analisa a produção roigueana a partir das temáticas femininas
que a autora desenvolve em suas obras e inclui Roig no grupo das maiores escritoras do posfranquismo.
Nos primeiros anos de ditadura franquista muitos intelectuais foram perseguidos,
exilados ou mortos e tiveram suas produções censuradas. Nesse momento, surgiram na
Espanha textos produzidos por escritores falangistas que propagavam o discurso dos
vitoriosos. Na década de 1940, começam a surgir obras literárias que vão dissolvendo, aos
poucos, a exclusividade do discurso dos vencedores.
Nesse contexto de repressão e perseguição política, várias escritoras se tornaram
exemplos de luta e de resistência às atrocidades cometidas contra os espanhóis durante o
governo ditatorial de Franco, enfrentando uma dupla dificuldade, pois, além de criticarem o
regime político estabelecido, por serem mulheres e viverem em uma Espanha patriarcal,
militar e católica, foram alvo de severas críticas. No entanto, extrapolaram os limites
domésticos e hoje suas obras são estudadas em diversas universidades, muito além das
fronteiras territoriais da Espanha. O que implica na relevância dessas produções literárias.
As mulheres sofreram, por séculos, e ainda sofrem, com as hierarquias patriarcais que
sempre demarcaram os espaços sociais permitidos aos sexos. Em relação à escrita, por
exemplo, seja histórica ou literária, elas permaneceram à margem do reconhecimento. Na
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opinião de Galdona Pérez (2001, p. 38), essa luta pelo direito de escreverem e expressarem
suas opiniões, trata-se de “una labor clandestina y silenciosa, que se ha mantenido, las más de
las veces, a la sombra de la grandilocuencia masculina”.
De maneira geral, as mulheres se uniram em prol de um mesmo ideal, o da luta pela
igualdade entre os gêneros. Contudo, enfrentaram diferenças advindas das peculiaridades
políticas, econômicas, culturais e sociais de cada país ou região. Durante os anos de repressão
da ditadura muitas conquistas foram proteladas e aquelas que aconteceram no primeiro terço
do século XX, com o governo Republicano, foram relegadas logo no início do Regime
ditatorial de Franco (1936-1975). Este regime implantou uma política de repressão e
submissão para a mulher, sendo a ideologia da Igreja Católica o principal instrumento de
propagação de seus ideais.
Montserrat Roig surge como escritora em uma época na qual as mulheres já haviam
conquistado o seu reconhecimento como tal e também superado muitas barreiras e censuras.
No entanto, sua literatura propõe uma retomada do passado representando aqueles que de
alguma forma ficaram marginalizados pela “Grande História”, ou seja, da história escrita
pelos homens. Por isso, as mulheres ganham mais espaço dentro de suas narrativas, são
personagens-chave no desenvolvimento dos relatos. Como uma escritora de Catalunha,
Comunidade Autônoma da Espanha que perde sua autonomia durante a ditadura franquista,
torna-se uma representante das diferentes formas de marginalização. Seu trabalho intelectual
gira em torno de dois temas, os horrores cometidos pelos nazistas e a defesa da história das
mulheres, sendo a sua maior preocupação manter viva a memória dos vencidos na Guerra
Civil Espanhola (1936-1939).
Ao adentrar no universo ficcional de uma obra muito peculiar, La hora violeta (1980),
o leitor depara-se com uma narrativa que em princípio causa-lhe certo incômodo em relação
ao próprio enredo. Isso decorre do fato de que a obra apresenta uma configuração singular que
rompe com a estética literária tradicional, provocando no leitor estranhamento em relação à
estrutura da narrativa. Entretanto, ao avançar na leitura ou, muitas vezes, em uma releitura, o
texto vai ganhando significado e o leitor vai sendo envolvido. Isso acontece na medida em
que ele percebe que o texto se configura como uma teia que avança em várias direções,
sofrendo rupturas e iniciando novos caminhos.
Outra peculiaridade é que a obra é permeada por certo sentimento de angústia.
Perguntamo-nos: essa angústia, esse sentimento de desassossego é devido à temática
desenvolvida? Esse incômodo ocorre pelos sofrimentos que as mulheres apresentam em suas
13
trajetórias narrativas? Essas histórias femininas poderiam se identificar com a própria história
da autora? Responder essas perguntas é o desafio ao qual nos propomos, através de uma
leitura muito mais aprofundada do livro.
O processo de inquietação possivelmente dá-se pelo reconhecimento de Norma nas
memórias que lê e, portanto, passa a exercer uma auto-análise simultaneamente ao processo
de escrita do passado dessas mulheres. Como o marco de referência da personagem Norma
são lembranças recentes que permanecem pulsantes, vivas, inquietantes, efervescentes, a
memória coletiva é a fonte principal de sua literariedade.
Para tanto, o objetivo desse trabalho é mostrar a inquietação pela qual passa a
personagem Norma para representar esteticamente as histórias de duas mulheres da burguesia
catalã que viveram durante o período da Guerra Civil Espanhola e os primeiros anos da
ditadura franquista, deixando suas dolorosas impressões e experiências registradas em diários
e cartas.
É importante dizer que, ao longo da sua trajetória de escritora e também de jornalista,
Roig dedicou-se a investigar as experiências vivenciadas dos ex-deportados catalães dos
campos de concentração nazi, através de entrevistas e coleta de documentos que registraram
essas memórias periféricas. Informações que resultaram em matéria-prima para sua produção
literária.
Nessa direção, buscamos analisar, no primeiro capítulo desta dissertação, a relação
entre o processo da escrita e a experiência traumática, ou a (im)possibilidade de representação
literária de eventos catastróficos, pela violência dos eventos, de igual maneira, a forma como
se estabelecem as relações entre “real” e “fictício” (Seligmaan-Silva, 2003), uma vez que, no
enfoque dessas duas concepções, há diversidade de abordagens.
As discussões teóricas sobre a possibilidade de representação de eventos traumáticos
ramificam-se em duas correntes divergentes em relação às suas peculiaridades. A primeira
considera impossível uma representação literária do sofrimento advindo dos campos de
extermínio por acreditar que a linguagem é insuficiente para estetizar cenas traumáticas. A
segunda acredita ser a arte, especificamente a literária, a única capaz de configurar
esteticamente essas experiências, uma vez que ela extrapola os limites de referencialidade, os
quais se tornam insuficientes nesses casos particulares.
Para entender a obra de Roig na perspectiva do contexto histórico, político e social da
Espanha do século XX, preferencialmente o relativo à Guerra Civil e pós-guerra, como
gérmen da violência que gera esse período e dar-lhe forma literária, apoiamos nossas
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discussões em Seligmann-Silva (2000; 2003), Valéria de Marco (2004), André (2003),
Felman (2000), Hartman (2000), Adorno (1998), Levi (1988) e Semprún (1995). As
observações de Platão (1965) e de Aristóteles (2002) nos auxiliam muito para compreender as
especificidades do texto literário e a “representação” como “mimeses”. Outros teóricos como
Candido (2000), Bosi (1999), Fischer (1981), Vargas Llosa (2007) também fundamentam as
discussões sobre arte e representação.
Outra questão que norteia essa pesquisa são as reflexões sobre a memória como
principal instrumento para a retomada do passado. Nesta linha, as teorias de Nietzsche (2005)
Benjamin (1994), Gagnebin (2006), Halbwachs (2006) e Olmi (2006) contribuem para a
leitura da obra, visto que a memória é o fio condutor para o testemunho político e pessoal de
Montserrat Roig em La hora violeta.
No segundo capítulo deste trabalho apresentamos a vida e a produção literária de
Montserrat Roig e, na sequência, abordamos as peculiaridades da obra La hora violeta,
partindo do título e sua organização estrutural e temática.
No terceiro capítulo, fazemos uma análise da obra no âmbito da representação literária
de um passado traumático vivenciado pelas personagens Judit e Kati que torna a resignificar
na vida de Norma, a personagem escritora responsável por dar forma artística às histórias
dessas mulheres. Apontamos como se dá esse processo de auto-reconhecimento de Norma
através das memórias dessas personagens e como ela se debate emocionalmente com as
informações contidas nos documentos com os quais precisa lidar.
Ao final, registramos algumas considerações sobre o trabalho de reelaboração do
passado silenciado experimentado por Norma, para verificar a importância dessa tarefa na
libertação de suas angústias e traumas, assim como sua contribuição para com a vida de outras
personagens. Por meio de nosso trabalho propomos instigar outras estratégias de interpretação
dessa obra que envolve de maneira curiosa e instigante o leitor, despertado nele também uma
inquietação durante a leitura. Escolher como corpus uma obra de uma escritora pouco
conhecida no Brasil é, além de desafiador, importante para a divulgação da literatura
Espanhola e Catalã em nosso meio acadêmico e do país em geral, visto que através de sua
obra podemos ouvir muitos daqueles que não puderam falar por si próprios.
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1. A HORA DA TEORIA: LITERATURA E TESTEMUNHO ENTRE AS BALIZAS DO
REAL E DO FICCIONAL
A arte é uma mentira que revela a verdade.
Pablo Picasso
A produção profissional de Montserrat Roig abrange uma diversidade de gêneros
discursivos que engloba tanto textos literários, como contos e romances, quanto ensaios,
textos jornalísticos escritos e televisivos, sendo que o seu compromisso político e social se faz
presente em todos os gêneros.
Na Espanha pós-franquista, onde Roig viveu, havia extensas discussões sobre a
memória histórica e a literatura como meio de refletir sobre as consequências desse
período avassalador para os espanhóis. Szurmuk (2002, p. 156) observa que, nesse contexto,
surgiram vários debates sobre a função da literatura na preservação e resolução dos conflitos
gerados pela censura e repressão à qual a sociedade espanhola havia sido submetida.
De acordo com Dupláa (1996, p. 12), o período de transição do regime ditatorial para
o democrático, na década de 1970, estava vinculado ao passado, o qual precisava ser
compreendido, pois as consequências da Guerra Civil Espanhola e do Franquismo ainda
estavam estampadas na vida dos espanhóis. Já a década de 1980 foi o período do “pacto con
el olvido”, momento no qual muitos escritores deixaram de ser críticos em relação às
instituições, uma vez que estas mantinham a vida cultural do país, além de que, do âmbito
político, para que a Espanha adentrasse no rol dos países detentores de poder do mundo
ocidental, era necessário que o passado fosse esquecido. No entanto, Roig, criticando
severamente esse posicionamento a favor da amnésia, inclinou-se à recordação como a
melhor maneira para construir um país democrático, pois sem compreender o passado seria
impossível projetar um futuro menos injusto.
Dupláa1 considera as produções de Roig como autêntico testemunho da Espanha dos
anos 1970 e 1980, período no qual o que estava em jogo era a relação dialética entre
memória e esquecimento. Para produzir seus textos, tanto literários quanto jornalísticos ou
ensaísticos, a autora recorre às memórias em busca de informações para revelar aos seus
leitores aspectos do mundo que não podem ser ignorados, assim, os envolve nas histórias de
personagens que sofreram reflexos dos confrontos que marcaram o seu país ao longo do
século XX.
1
Idem.
16
Há de se ter em conta que uma obra não é, necessariamente, a narrativa da vida de um
autor, pois este cria um mundo ficcional. No entanto, não há como negar que a sua trajetória
de vida seja transposta, de alguma forma, para os cenários de suas narrativas. Na literatura, o
autor seleciona, agrupa e organiza a escrita conforme os seus objetivos, formulando um
mundo imaginário constituído por personagens inseridos e submersos em tempos, espaços e
contextos específicos a partir dos quais ganham vida. Na obra em estudo percebemos
claramente esse processo, uma vez que todos os documentos de relatos pessoais que
permeiam o romance são ficcionais e comovem o leitor como se fossem reais.
Natalino Oliveira (2010, p. 50-1) observa, em sua Dissertação de Mestrado, sobre a
obra Ramona, adiós, outra obra da autora, que:
O romance foi construído a partir da memória presente na comunidade
Catalã, pois a autora não viveu na época da guerra, não presenciou os fatos
e nem mesmo se propõe a construir um testemunho; ela escreve um
romance, com tudo o que essa decisão implica no sentido de imaginário e
ficcional. O que percebemos na construção da trama é a necessidade de
expor os restos ainda presentes do confronto na vida de gerações
posteriores. Todos os relatos referentes à guerra são ficcionais, mas a
engenhosidade da obra é a provocação de sentimentos reais no leitor.
Nesse sentido, Roig não seria considerada uma testemunha real dos fatos
literarizados, no entanto, compartilhamos da assertiva de Dupláa (1996, p. 11) de que “su
propia voz es un testimonio de un lugar y de un tiempo muy concretos: la España de la
transición democrática”. Roig representa em sua produção literária a sociedade de sua época
e as memórias presentes nessa sociedade. Para compreendermos esse processo de
representação literária e a própria relação entre “literatura e sociedade” (CANDIDO, 2000),
tornam-se relevantes algumas reflexões sobre esses termos.
As discussões acerca das especificidades do texto literário remontam ao mundo grego
platônico e aristotélico chegando até nossos dias, principalmente os relativos aos artifícios
imitativos. Em A República, de Platão, especificamente nos livros II e III, a mímese é trazida
como um modo de expressão ou representação. Utilizando dois objetos, a cama e a mesa,
Sócrates verifica que existem três figuras que “presidem a fatura das três espécies de
cama”, o primeiro é Deus, o “criador natural”, o segundo, o marceneiro, o “artífice da
cama”, e, o último, o pintor que é o “imitador daquilo que os outros dois são os artífices”
(PLATÃO, 1965, p. 222). A mímese seria, portanto, algo produzido a “três graus de
natureza”. Sobre a representação da pintura, conclui-se que ela representa “tal como parece” e
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não “tal como é”, e por isso, “A imitação está, portanto, longe do verdadeiro” (PLATÃO,
1965, p. 223) porque é um reflexo ilusório da verdadeira realidade.
Aristóteles, grande filósofo que exerceu importante influencia no pensamento
ocidental, em Arte Poética faz uma reflexão profunda sobre a tragédia e defende que uma
das questões fundamentais para o alcance da arte é a sua caracterização como mímeses. Termo
que no seria o de ‘cópia’ ou ‘reprodução’ da realidade, senão o de ‘representação’ e
‘redescrição’, entendidas como criação artística de uma nova realidade, ou como recriação
metafórica da mesma. Para o filósofo, “Imitar é o que verossimilmente possa acontecer”
(ARISTÓTELES, 2002, p. 20). Nesse sentido, apesar de a literatura não ser uma
representação fiel do “real” e não ter compromisso com a fidedignidade dos fatos narrados é a
partir do mundo “real” que o artista subtrai os elementos para criar um mundo imaginário.
Nessa linha do diálogo sobre a representação literária, Reis e Lopes, no Dicionário de
Termos Literários, afirmam que:
Em qualquer caso, no entanto, a representação deve ser entendida em
termos dialéticos e não-dicotômicos; o que significa que entre representante
e representado existe uma relação de interdependência ativa, de tal modo
que o primeiro constitui uma entidade mediadora capaz de concretizar uma
solução discursiva que, no plano da expressão artística, se afirme como
substituto do segundo, que, entretanto, continua ausente2 (REIS; LOPES,
1988, p. 88).
Com base nessas interpretações teóricas, podemos considerar que a representação é
uma imagem chamada à consciência de um evento ocorrido ou de um objeto percebido
anteriormente. Muitas vezes, esse processo de rememoração ocorre de maneira inconsciente
ou involuntária porque o elemento “representado” sempre permanece ausente e o
“representante” é a própria concretização de uma “solução discursiva”. Assim, podemos
afirmar que a sociedade catalã é representada através da obra La hora violeta que, conforme a
definição supracitada, é uma “solução discursiva” para reelaborar o passado.
A literatura como forma de arte se potencializa quanto ao caráter de representação de
comportamentos, anseios, angústias, desejos do ser humano, de modo individual ou coletivo.
Ao representar literariamente uma sociedade marcada por conflitos pessoais, familiares e
sociais acarretados pelos traumas oriundos das guerras e da ditadura, a escritora Montserrat
Roig, não traz para sua obra fatos “reais” ou pertencentes à História Oficial, mas se utiliza de
conhecimentos e experiências desse mundo “real” para construir o mundo ficcional de seu
romance.
2
Grifos dos autores.
18
Sobre a relação que se institui entre real e ficcional no texto literário, o ensaio La
verdad de las mentiras, de Mario Vargas Llosa (2007), auxilia-nos a compreender alguns
limites que se estabelecem entre esses conceitos:
[…] no es la anécdota lo que en esencia decide la verdad o la mentira de una
ficción. Sino que ella sea escrita, no vivida, que esté hecha de palabras y no
de experiencias concretas. Al traducirse en palabras, los hechos sufren una
profunda modificación (LLOSA, 2007, p. 18).
Essa tradução dos fatos em palavras projeta a realidade na obra literária provocando
uma reflexão sobre a própria realidade apresentada metaforicamente. Segundo Vargas Llosa
(2002, p. 22), o ser humano tem a necessidade de viver outras experiências, mas é impedido
pelo curto espaço de tempo que lhe concede a vida, portanto, a ficção surge como
possibilidade de ver fluir seus desejos e fantasias que não encontram espaço na vida real.
De acordo com Antonio Candido (2000, p. 4), no princípio, o valor e o significado de
uma obra dependiam dela exprimir ou não certos aspectos da realidade; depois a preocupação
dos estudos voltou-se para as operações formais da obra; e apenas em um terceiro momento é
que se alcança um equilíbrio através da fusão entre texto e contexto, e tanto os pontos de vista
que explicam os valores externos, quanto os que explicam os internos (a estrutura) da obra se
combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Desse modo, o “elemento
externo (no caso, o social) passa a ter importância “não como causa, nem como significado,
mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se,
portanto, interno”.
A obra literária leva em conta o elemento social, mas não como referência ou
enquadramento que permite identificar a expressão de uma sociedade ou situar a própria obra
em um momento histórico. O social deve, “como fator da própria construção artística ser
estudado no nível explicativo e não ilustrativo” (CANDIDO, 2000, p. 7). Assim, os elementos
externos (que configuram uma dada realidade social) se tornam internos (transferido para o
mundo ficcional, o social passa por uma recriação sendo configurado conforme critérios
estruturais). Ao levar para o mundo ficcional temas pertencentes a uma realidade o escritor
propõe aos seus leitores reflexões sobre assuntos que ainda não foram solucionados, seja no
âmbito social ou individual. No entanto, esses temas devem orientar a própria construção da
obra, eles precisam ser expressos através das estruturas formais da obra literária.
A arte expressa elementos coletivos, ainda que ela seja produzida por uma voz
individual. Fischer observa que, no passado, quando a sociedade era estruturada e organizada
por um sistema tribal e comunitário, a arte era uma manifestação coletiva, mas, quando a
19
sociedade passou a ser dividida em classes com a presença do Estado, ela se tornou uma voz
individual. Contudo, para Fischer (1981, p. 56), a subjetividade que se faz presente nessa voz
individual não deixa de expressar os elementos sociais ou coletivos. Segundo esse autor,
A função da arte não é a de passar por portas abertas, mas a de abrir portas
fechadas. Quando o artista descobre novas realidades, porém, ele não o
consegue apenas para si mesmo; ele realiza um trabalho que interessa a
todos os que querem conhecer o mundo em que vivem, que desejam saber
de onde vêm e para onde vão (FISCHER, 1981, p. 238).
A literatura, como uma forma de arte, é uma maneira de compreender a si mesmo e ao
outro. Ela possibilita ao leitor diversas possibilidades de leituras e de viver novas experiências.
Isso porque ela capacita o homem para compreender a realidade e o ajuda não só a suportá-la,
mas, principalmente, a transformá-la tornando-a mais humana.
Especificamente, no âmbito da literatura, para Alfredo Bosi,
A força DA ARTE LITERÁRIA3 busca formas que tragam à luz da
significação os percursos do desejo e da pena, da angústia e da alegria;
formas que revelem sentidos latentes ou, quem sabe, resgatem o nãosentido da existência quotidiana (BOSI, 1999, p. 57).
Nesse sentido, o poeta precisa sair da razão para conseguir produzir uma obra de arte,
precisa sair do seu lugar comum de sujeito racional e ultrapassar as barreias desse mundo
objetivo para trasladar-se para o mundo da criação. Quando o leitor se depara com uma obra
literária ele encontra mais do que a simples combinação de palavras sobre o papel, ele se
depara com um mundo que vai ganhando forma na proporção que avança na leitura e os
sentimentos, opiniões, comportamentos, posicionamentos dos personagens o envolvem cada
vez mais.
Conforme BOSI (1999, p. 57), o trabalho do escritor é complexo, pois sua matériaprima, a palavra, carrega sentidos diversos que lhe foram sendo atribuídos ao longo dos anos
e, por isso, a arte da palavra incide em “reviver e potenciar a expressão que o uso desgastou”.
Essa complexidade da escrita literária alcança seu auge com o advento de uma
literatura que busca representar as catástrofes do século XX que tiveram seu apogeu com os
campos de extermínio na Segunda Guerra Mundial. Referimo-nos à literatura de testemunho
que provoca na crítica moderna reflexões sobre as relações que se estabelecem entre o
“literário” e o “real” ou entre ficcionalidade e referencialidade. Esse “real” refere-se ao
3
Grifo do autor.
20
trauma oriundo de sofrimentos que extrapolam a capacidade de significação do sujeito, como
aconteceu com os sobreviventes da Shoah.
No artigo “O testemunho: entre a ficção e o “real”, Márcio Seligmann-Silva (2003, p.
376-7) estabelece semelhanças entre a ironia, “uma potente máquina de desleitura”, e a
literatura, pois compartilham o espaço fronteiriço entre referência e auto-referência da
linguagem. Afirma que no século XX a literatura tomou um caminho oposto ao da autoreferência do discurso, tornando-se uma literatura “antiirônica” do “real”, ou uma literatura de
testemunho.
Em latim “testemunho” pode ser representada por duas palavras: testis e superstes. A
primeira se refere ao “depoimento de um terceiro em um processo” e a segunda “a uma
pessoa que atravessou uma provação, o sobrevivente” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 37980). Considerando essas duas formas de ser de uma testemunha, a literatura de testemunho
tomaria, então, duas vertentes, poderia ser escrita por alguém que testemunha sobre algo que
viu ou que sabe, mas não viveu o fato que narra, ou poderia ser escrita por um verdadeiro
sobrevivente de uma experiência catastrófica.
Quando o assunto trata-se da representação sobre acontecimentos traumáticos, a
escrita alcança certo nível de complexidade. As discussões sobre a representação destes
eventos, assim como a própria (im)possibilidade dessa representação é intrincado, pela
complexidade que acarreta desenhar com palavras do cotidiano as barbáries do século XX.
Como os acontecimentos são muito recentes, a definição de um marco teórico
explicativo ainda está em construção. De acordo com Valéria De Marco (2004, p. 57),
existem duas tendências sobre as “correntes da crítica literária da Shoah”. A primeira trata-se
da produção dos próprios sobreviventes e recusa aproximações com a ficção, nega, portanto,
qualquer consideração estética, e é examinada a partir de critérios éticos. A segunda tendência
privilegia as “questões de natureza literária”, considera os aspectos estéticos e não se restringe
às produções dos sobreviventes. Enquanto a primeira corrente considera a Shoah como um
acidente da modernidade, a segunda a vê como resultado do desenvolvimento de técnicas
administrativas e das ciências, e o espaço permanente ocupado pelo Estado não se limita aos
campos nazis.
É preciso esclarecer que não é nossa intenção nos determos em eventos catastróficos
de maneira pontual e detalhada. O que queremos é observar como esses eventos foram
catalisados e processados na memória de sobreviventes e de suas gerações descendentes. Isso
nos ajudará a compreender o sentimento de compromisso da escritora Montserrat Roig ao
21
lidar, em uma única obra, com personagens que participaram direta ou indiretamente da
Guerra Civil Espanhola e da Segunda Guerra Mundial.
Pautada em alguns posicionamentos, como a célebre frase de Adorno de que “Depois
de Auschwitz, não é mais possível escrever poemas” (ADORNO, 1973, p. 362 apud
FELMAN, 2000, p. 46), a primeira corrente, à qual se refere De Marco, considera
problemática a representação literária de acontecimentos extremos como foram os campos de
concentração. Irving Howe (1999) é um exemplo dessa corrente: ele considera que a
intensidade do trauma de um sobrevivente da Shoah impossibilita uma narração racional,
principalmente no âmbito da representação literária.
Mais tarde, em outro ensaio, Adorno destaca sua intenção aporética e não
simplesmente negativa do seu pronunciamento ao afirmar que:
Não tenho nenhum desejo de amenizar o dito de que escrever poesia depois
de Auschwitz é um ato de barbárie (...). Mas a resposta de Enzensberger de
que a literatura tem de resistir a este veredito, também permanece verdade
(...) Agora é virtualmente apenas na arte que o sofrimento pode ainda achar
sua própria voz, consolação, sem ser imediatamente traído por ela
(ADORNO, 1982, p. 312-318 apud FELMAN, 2000, p. 47)4.
Adorno reconhece que a arte é a única que poderá igualar-se à sua própria
impossibilidade histórica e satisfazer tanto a tarefa do pensamento contemporâneo quanto as
exigências do sofrimento, da política e da consciência contemporânea, escapando à inevitável
traição cultural, tanto da história quanto das vítimas (FELMAN, 2000, p. 47).
Se, por um lado, a representação de um evento limite é considerada como complexa e
problemática, por outro, existem aqueles que, mesmo não sendo sobreviventes do Holocausto,
por algum motivo, sentiram a necessidade de registrarem suas impressões sobre o evento.
Esses escritores, apesar de criticados pela corrente que desconsidera essa produção por não
serem autênticos testemunhos, sensibilizados por outras narrativas e imbuídos de capacidade
estética, configuraram uma experiência literária. Dentre eles, Seligmann-Silva (2003, p. 382)
destaca Binjamin Wilkomirski, autor de um relato autobiográfico intitulado Fragmentos,
publicado em 1995, no qual se apresentara como um sobrevivente do Holocausto. O livro teve
uma recepção espetacular devido à encenação do trabalho de memória e às descrições de
imagens. Para Seligmann-Silva5, o poder desta obra está no fato de ser uma ficção, pois, os
verdadeiros sobreviventes são incapazes de narrar com precisão e detalhe determinadas
situações às quais foram submetidos.
4
5
Grifo do autor.
Idem.
22
Infelizmente, o texto testemunhal de Wilkomirski considerado “de excelente
qualidade”, foi alvo de inúmeras críticas que o desqualificava ao ser constatado a falsa
identidade do autor como sobrevivente de um campo de concentração. A respeito desse fato,
De Marco (2004, p. 60) observa que a fraude de identidade do autor “pode ser julgada em
muitas instâncias sociais, mas ela não pode ser determinante para análise e interpretação do
texto”.
Em relação à possibilidade ou não de representação artística de eventos traumáticos, é
pertinente retornarmos às reflexões de Fischer acerca da sinceridade no momento da
representação, quando afirma que:
Todo esforço consequente para apresentar a realidade sem preconceitos,
isto é, com toda a sinceridade, ajuda-nos a avançar. Por si só, a sinceridade
pode representar de maneira apenas fragmentária a complexa realidade do
nosso tempo. Sem a sinceridade, contudo, não se pode fazer coisa alguma
(FISCHER, 1981, p. 232).
Portanto, mesmo considerando a potencialidade em relação ao sofrimento e à angústia
à qual o ser humano tenha sido submetido, pode-se falar de uma possibilidade de
representação estética da catástrofe. Após um século traumático como foi o último, a arte
acaba ligando-se a ele, pois não há como se omitir ou fugir das marcas nele deixadas.
Como afirma Hartman (2000, p. 208), “levar a sério as formas de representação
significa reconhecer o seu poder de mover, influenciar, oferecer e ferir”. Nesse sentido, não
consideramos que a representação consiga exaurir toda a complexidade da realidade, mas que
seja capaz de representar elementos do mundo real agregando-os a elementos fictícios.
Seligmann-Silva (2000, p. 94) observa que a intensidade que toma a experiência do
campo de concentração gera um efeito de “não-realidade” e por isso as representações
“hiper-realistas” reproduzem uma impressão de irrealidade, impedindo um “trabalho de
rememoração e reintegração da cena traumática”.
Jorge Semprún, sobrevivente do campo em Buchenwald, ao refletir sobre a
possibilidade de representação da catástrofe, afirma “Basta se entregar. A realidade está ali,
disponível. A palavra também” (1995, p. 22). No entanto, para essa entrega precisa-se,
primeiramente, atravessar as fronteiras entre o que é considerado “possível” e o que é
“inimaginável” ao ser humano, pois esses fatores dificultam a representação ou o ato de
narrar:
No entanto, vem-me uma dúvida sobre a possibilidade de narrar. Não que a
experiência vivida seja indizível. Ela foi invivível, o que é outra coisa,
como se compreenderá facilmente. Outra coisa que não se refere à forma de
23
um relato possível, mas à sua substância. Não à sua articulação, mas à
sua densidade. Só alcançarão essa substância, essa densidade transparente os
que souberem fazer de seu testemunho um objeto artístico, um espaço de
criação. Ou de recriação (SEMPRÚN, 1994, p. 22).
Semprún escreve seus testemunhos sob forma de romances, misturando ficção e
realidade. No seu testemunho autobiográfico intitulado A escrita ou a vida, publicado apenas
em 1994, o autor insiste na necessidade da ficção literária para representar eventos limites
que extrapolam a verossimilhança. Reconhece, porém, que não se trata de um processo
fácil, pelo contrário, é extremamente complexo e, normalmente, excede aos limites
considerados intransponíveis, como se verifica em suas palavras:
Há obstáculos de todo tipo à escrita. Puramente literários, alguns. Pois não
pretendo fazer um simples depoimento. Já de início, quero evitar, evitar-me
a enumeração dos sofrimentos e dos horrores. Outros se aventurarão, de
toda maneira... Por outro lado, sou incapaz, hoje, de imaginar uma estrutura
romanesca na terceira pessoa. Não desejo sequer enveredar por esse
caminho. Portanto, preciso de um “eu” da narração, nutrido com a minha
experiência, mas ultrapassando-a, capaz de nela inserir o imaginário, a
ficção... Uma ficção que seria tão esclarecedora quanto a verdade, sem
dúvida. Que ajudaria a realidade a parecer real, a verdade a ser verossímil.
Esse obstáculo, hei de superá-lo, mais dia menos dia. De repente, num dos
meus rascunhos, vai explodir o tom exato, vai se estabelecer a distância
correta (SEMPRÚN, 1995, p. 163-4).
Como podemos observar na citação acima, Semprún não acredita na impossibilidade
de narrar, mas que o problema para narrar surge quando o assunto se refere a uma situação
que foi “invivível” e que, portanto, extrapola as barreiras da imaginação quando se trabalha
com um discurso referencial. Portanto, apenas através de uma recriação artística se pode
alcançar uma representação da experiência traumática:
Em síntese, sempre se pode dizer tudo. O inefável com o qual vão nos
martelar os ouvidos não passa de um álibi. Ou sinal de preguiça. Sempre se
pode dizer tudo, a linguagem contém tudo. Pode-se dizer o amor mais
louco, a mais terrível crueldade (SEMPRÚN, 1994, p. 23).
Seria, portanto, através da ficção que a realidade poderia parecer “real” e não através
de uma narrativa “hiper-realista” como observou Seligmann-Silva. Quando o assunto é
campo de concentração, paradoxalmente, só o fictício é capaz de aproximar-se da realidade e
não um discurso referencial, porque ela extrapola os limites do que poderíamos considerar
como possível.
Primo Levi, outro sobrevivente dos campos de concentração que sentiu obrigação e
necessidade de narrar sua experiência, deparou-se com algumas dificuldades ao tratar desse
24
assunto. Ex-deportado de Auschwitz, ele acredita que as palavras tornam-se semanticamente
insuficientes para expressar o sofrimento pelo qual passaram os presos em campos de
concentração, como podemos perceber na citação que segue:
[...] Se os Campos de Extermínio tivessem durado mais tempo, teria nascido
um nova, áspera linguagem, e ela nos faz falta agora para explicar o que
significa labutar o dia inteiro no vento, abaixo de zero, vestindo apenas
camisa, cuecas e calças de brim e tendo dentro de si fraqueza, fome e a
consciência da morte que chega (LEVI, 1988, p. 125-6).
Levi nos fala da falta de uma linguagem que conseguisse explicar a dimensão do
sofrimento daqueles que estiveram nos campos de extermínios. De uma linguagem que
expressasse toda a dor física e que também pudesse romper, com um grito, o silêncio contido
na alma. Mas, nesta dor silenciosa existe uma necessidade em contar que extrapola qualquer
obstáculo, como afirma no prefácio do seu livro É isto um homem:
A necessidade de contar “aos outros”, de tornar “os outros” participantes,
alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso
imediato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades
elementares (LEVI, 1988, p. 7-8).
Portanto, trata de testemunhar sobre a experiência traumática à qual foi submetido,
tanto é assim que seus livros são provas concretas disso. Mesmo que haja lacunas que jamais
poderão ser preenchidas, o mais importante é não permanecer mudo quando o assunto é o
holocausto cometido nos campos de extermínio.
Valéria De Marco (2004, p. 58) considera inegável que a matéria dos textos de Levi é
o “vivido” e que a palavra “experiência” é uma recorrente em seus textos. Tais fatores,
segundo a estudiosa, são “a base para que se atribua a Levi a concepção de que ninguém
pode falar pela testemunha”, no entanto, ela observa que o próprio Levi demonstra uma
preocupação com a linguagem, com os “arranjos”, “escolhas” e “artifícios” para alcançar a
representação que almeja. Para De Marco6, a impossibilidade de representar o horror
sustenta-se sobre uma confusão entre os termos “ vivência” e “ experiência”. O primeiro
trata-se de um evento individual, que pode ser recuperado pela memória, o segundo,
pauta-se no conceito hegeliano de que, além de envolver-se com a ação, deve haver a
reflexão sobre o vivido e sobre o conhecimento já construído acerca dele. Assim, a autora
conclui que “Se a vivência dos campos coube a alguns milhões de pessoas, a experiência do
aniquilamento do outro racionalmente administrado é herança para todos nós”7.
6
7
Idem.
Ibidem, p. 59.
25
Do ponto de vista da segunda corrente sobre a crítica literária da Shoah, aquela que
defende a relação entre testemunho e ficção, e com base nos comentários acima, verifica-se
que os textos literários que abordam informações sobre a Shoah carregam uma carga de
“experiência” e não necessariamente de “vivência”, pois representam ficcionalmente uma
“realidade”.
Sobre tais discussões, André (2003, p. 17) afirma que “La crítica aborda esos
testimonios en el sentido de ser la estética de lo ‘irrepresentable’, o la representación estética
de la catástrofe, donde la convergencia de violencia y lenguaje es el punto central que genera
la discusión”. A autora é da opinião que:
Es el lenguaje que también desliza por la vivencia del silencio y la mudez,
por la oscuridad de la prisión, para testimoniar él mismo esta experiencia,
porque esta categoría no puede reducirse a criterios simplificadores por
niveles de representación o no representación, sino verlo como la materia
esencial para la representación de los momentos de silencio e impotencia, la
ausencia de vida y la suspensión del horror.8
Podemos acreditar que nesse processo de representação literária das catástrofes que
assolaram o século XX e que continuam no XXI, a linguagem as continuará testemunhando,
nem que para isso ela tenha que sofrer, igualmente, nutrindo-se de dor e horror para
testemunhar, como registra André9, mesmo que a tarefa cause desassossego para quem a
elabora, pois, feitor e feitura, no processo, contaminam-se da dor.
Analisando a produção roigueana desde esse prisma, fica evidente o compromisso da
escritora com os sobreviventes e com sua sociedade que carrega as marcas dos insultos
acometidos no século XX.
Na obra La hora violeta (1980) a proposta da escrita do romance pela escritora Norma
- estratégia roigueana - se dá com base nas histórias das personagens Judit e Kati. Desde o
inicio, através de flashback, são recorrentes os comentários sobre a elaboração do outro
trabalho da personagem escritora Norma - um livro sobre os deportados dos campos nazis principalmente no capítulo La hora dispersa (Ellos y Norma). Para executar a tarefa de
escrever sobre eles, se debruça na busca por informações de um mundo que jamais conhecera
a não ser por filmes ou leituras de alguns artigos:
Sabía muy poco de la deportación: películas francesas,
gabardina estilo Jean Gabin, historias de judíos
resignadamente hacia la cámara de gas, de criaturas con
noche. De niños famélicos, escuálidos, con una tristeza
8
9
Idem.
Idem.
de residentes con
que avanzaban
los ojos llenos de
inmadura. De esa
26
clase de tristeza que pega al cuerpo como si fuese pringue (ROIG, 2000, p.
254-5).
Essa protagonista e ao mesmo tempo escritora, sente-se imbuída do compromisso de
trabalhar com as memórias dos ex-deportados, depois de conhecer um escritor fracassado que
havia passado cinco anos em um campo de extermínio. O homem tinha o sonho de ser
escritor, embora interrompido pela guerra, conseguiu escrever um romance onde conta suas
experiências nos campo nazis. Este personagem de Roig, na obra La hora violeta, assim como
os ex-deportados de campos de concentração que se dedicaram a narrar suas experiências,
como Semprún e Levi, citados acima, depara-se com alguns conflitos em relação ao processo
de escrita, principalmente no que concerne aos limites entre o “real” e o “ficcional”, como se
verifica no texto:
La guerra truncó su sueño y lo que vio en el mundo exterior fue tan terrible
que ya no pudo volver atrás y recuperar los límites literarios entre la realidad
y la imaginación (ROIG, 2000, p. 254).
A experiência com os relatos dos sobreviventes marcou profundamente a vida da
personagem Norma e, mesmo após a conclusão do referido livro sobre os catalães nos campos
nazis, as lembranças dos relatos que ouvira nunca a abandonaram, como revela a voz de uma
narradora10 onisciente:
[...] Hacía tres años que acabó la historia de los catalanes en los campos
nazis, le habría gustado que fuese una etapa más en su vida profesional,
pero, ahora que se había enamorado de Alfredo y que sólo quería vivir en los
límites de la locura, volvían a su memoria candentes fragmentos de una
tragedia que no había vivido. Como la historia del viejo deportado que se
parecía a Louis de Funes […] (ROIG, 2000, p. 254).
Durante as longas conversas com o velho deportado que se parecia a Louis de Funes,
outro personagem que contribuiu com seus depoimentos para o trabalho da escritora, Norma
lhe fala da intenção de escrever um livro sobre os campos: “_Verá usted, es que he pensado
escribir un libro sobre todo eso” e, ao invés de ser incentivada pelo ex-deportado, este lhe diz
por diversas vezes que “_ La verdad no la sabrá nunca” (ROIG, 2000, p. 262; p. 266; p. 269).
Uma expressão que como eco ressoa na cabeça de Norma para conflitá-la e desafiá-la ao
mesmo tempo.
O velho deportado, personagem que surge no quarto capítulo do romance, compartilha
da ideia de Primo Levi quando este afirma que “Repito, não nós, os sobreviventes, as
10
Visto que o romance La hora violeta trata-se de um trabalho no qual Roig se propõe a dar a palavra às
mulheres, é provável que as vozes que narraram em terceira pessoa sejam também de mulheres, ou talvez da
própria personagem Norma, ou ainda da própria Roig, por isso, preferimos a terminologia “narradora”.
27
autênticas testemunhas” (LEVI, 1990, p. 47). Primo Levi sugere com essa afirmação que as
verdadeiras testemunhas são aqueles que saíram dos campos de concentração pelas chaminés
dos fornos crematórios ou foram enterrados em valas comuns e que nem mesmo ele que
esteve muito próximo desses acontecimentos é capaz de relatá-los com integridade.
Por outro lado, o velho deportado reconhece que Norma poderá, de alguma forma,
representar o sofrimento pelo qual ele passara no campo de Mauthausen, pois lhe entrega
vários documentos, cartas de outros deportados e uma lista com nomes de prisioneiros,
confiando a ela o compromisso de narrar e representar. Talvez isso decorra da incapacidade
que tem o próprio sobrevivente para narrar com precisão a sua experiência, como observa
Seligmann-Silva (2003, p. 382) em relação aos textos fictícios de Wilkomirski e de Kolitz. A
crítica a esses relatos tem a ver com a própria natureza do evento e ao fato de se afirmar que
somente o sobrevivente é capaz de escrever sobre esta “verdad que nadie la sabrá nunca”.
Fica evidente o compromisso que Norma, personagem escritora da obra La hora
violeta, assume em relação à escrita das experiências dos ex-deportados dos campos de
concentração. Esse compromisso é constatado como uma caixa de ressonância, pois, ao
elaborar um texto ficcional ela consegue trazer para dentro da obra os elementos sociais,
classificados por Candido (2000) como “externos”, que servem como ferramentas que
auxiliam na construção e configuração dos elementos estruturais da narrativa.
A matéria-prima da qual se ocupa a autora é de natureza psíquica e nada palpável, são
as sequelas deixadas por longos períodos de sofrimento: o interminável período da ditadura
franquista, após a Guerra Civil Espanhola, e da Segunda Grande Guerra e suas
consequências. São esses os elementos que Roig consegue levar para dentro de sua narrativa
dando-lhes um tratamento estético específico.
Segundo Dupláa (1996, p. 38), Montserrat Roig propõe a construção de um discurso
que lhe permita recuperar a memória histórica dos oprimidos, fracos e ignorados, o que
ela consegue através de uma discussão entre história e memória instigando a reflexão
sobre aquilo que a historiografia apresenta como “verdade” incontestável e, desta maneira,
dar voz aos que foram por ela marginalizados.
Para David Herzberger (1995, p. 9 apud Tsuchiya, 1998, p. 164), os romances de
Roig “tem tanto a história e a escrita da história como referência” (tradução nossa) 11. Em
La hora violeta, essas discussões teóricas tomam conta de várias páginas onde são transcritas
as opiniões das personagens Natàlia e Norma em relação à historiografia e à literatura, esta
11
“[…] have both history and the writing of history as referent” (HERZBERGER, 1995, p. 9 apud Tsuchiya,
1998, p. 164).
28
última como possibilidade de rever o passado, tendo como fonte as memórias. Nesse sentido,
as questões teóricas que seguem, sobre história e memória, colaboram no processo de análise
da obra.
1.1. Entre a história e memória
As discussões apresentadas por Gagnebin (1997) em seu texto “O início da História
e as lágrimas de Tucídides” nos auxiliam na reflexão sobre os limites entre história e
memória. A autora retorna ao século V a . C. ao encontro dos dois primeiros historiadores,
Heródoto e Tucídides, que já estabeleciam divergências quanto aos aspectos metodológicos
de seus trabalhos, visto que,
Heródoto queria salvar o memorável, resgatar o passado do esquecimento,
buscando nas palavras das testemunhas a lembrança das obras
humanas. Tucídides ressalta a fragilidade da memória, tanto alheia como
sua; as falhas constantes de memória motivam uma profunda mudança
no “trabalho” do historiador, que não pode confiar nem na sua exatidão
nem na sua objetividade (GAGNEBIN, 1997, p. 26).
Como se nota, as divergências entre narrações de caráter mais objetivo e mais
subjetivo remontam a um passado distante. Porém, no século XIX ganha espaço a
historiografia ocidental que propõe reelaborar o passado revogando qualquer relato subjetivo,
ou seja, ignorando qualquer forma de testemunho dentro da elaboração da História Oficial.
Pretendia-se uma narração objetiva dos fatos e, para isso, o papel do historiador deveria ser o
de representar o passado tal como ele foi.
Nessa perspectiva de História, por exemplo, o que seria importante em relação ao
Holocausto ocorrido com os judeus e não judeus na Segunda Guerra Mundial, não é a
experiência ou a morte individual, mas sim o extermínio de um povo por um Estado moderno
em pleno século XX.
Por outro lado, pode-se fazer a forma de retomada do passado sob uma perspectiva
subjetiva, a vinculada à memória. Esta, por sua vez, tem um papel importante desde a
sociedade oral, quando as comunidades preservavam a transmissão de seus conhecimentos e
de suas identidades, perdurando até os dias de hoje. Na idade da escrita, seu auge acontece no
final do século XX adentrando o nosso século, devido às grandes mudanças que nele
ocorreram em várias áreas, como política, social, artística, entre outras. Portanto, falar de
memória, ou seja, da retomada do passado, é, sem dúvida, uma forma de nos compreender
preservando quem fomos e quem somos.
29
A iconografia do Renascimento representa a memória através da figura de uma
mulher de duas faces, uma voltada para o passado e outra para o presente. Em uma das
mãos a f i g u r a tem um livro e, na outra, uma pena, sugerindo que retira suas
informações do livro, remetendo-se ao passado, e que novos livros serão escritos, indicando
uma aspiração para o futuro. De maneira geral, pode-se concluir que a memória exige
fidelidade ao passado e compromisso com o futuro, por isso ela não pode eximir-se da
sua obrigação de escrever novos livros.
Muitos teóricos criticam o papel do historiador alegando que seu trabalho é uma
tentativa quase que inútil de representar aquilo que somente a memória seria capaz. Seguindo
essa corrente, destacamos os pensamentos de Nietzsche (2005) e Walter Benjamin (1994). O
primeiro percebe que a História, ao se preocupar extremamente com o progresso da
humanidade, deixava a desejar quanto ao estudo sobre a relação que se estabelece entre
passado e presente. Como todos os campos da ciência do século XIX, voltava-se para uma
consagração dos aspectos racionais, acreditando que esse era o melhor caminho para o
progresso da humanidade e ignorando qualquer forma de testemunho.
Nietzsche não defende a ideia de que o homem deve se prender ao passado, mas que
não se pode viver como o animal, de maneira a-histórica, inteiramente absorvido pelo
presente, pois, “[...] por mais longe que ele vá, por mais rápido que ele corra, os seus grilhões
vão sempre com ele” (NIETZSCHE, 2005, p. 70). O que filosofo alemão propõe é que haja
um equilíbrio entre o passado e o presente como forma de preparação para enfrentar o futuro.
No texto Considerações interpretativas sobre a utilidade e os inconvenientes da história
para a vida (2005) é facilmente perceptível a importância que Nietzsche atribui à lembrança
e ao esquecimento, cada um no seu momento oportuno:
A serenidade, a boa-consciência, a atividade alegre, a confiança no
futuro, _ tudo isso depende, num indivíduo, assim como num povo, da
existência de uma linha de demarcação entre o que é claro e bem visível e
o que é obscuro e impenetrável, da faculdade tanto de esquecer quanto de
lembrar no momento oportuno, da faculdade de sentir com um poderoso
instinto quando é necessário ver as coisas sob um ângulo histórico, e
quando não. Este é exatamente o princípio sobre o qual o leitor é
convidado a refletir: o elemento histórico e o elemento a-histórico são
igualmente necessários à saúde de um indivíduo, de um povo, de uma
cultura (NIETZSCHE, 2005, p. 74)12.
Walter Benjamin retoma e atualiza essa crítica de Nietzsche. No ensaio Sobre o
conceito da história (1994) contrapõe o materialismo histórico ao historicismo. A crítica
12
Grifo do autor.
30
levantada ao historicismo pauta-se na ousadia desse método em acreditar que seria possível a
elaboração de uma História Universal com base na linearidade temporal e espacialmente
dividida, o que, na opinião de Benjamin, acarretaria em um tempo “homogêneo e vazio”
(1994e, p. 231). Nietzsche e Benjamin criticam a noção de progresso da humanidade baseada
em si mesmo sem se preocupar com o bem estar e a felicidade dos indivíduos da sociedade.
O historicismo utiliza-se do método da empatia estabelecida com o vencedor.
Dessa forma, a História é contada a partir do olhar dos vencedores, como afirma Benjamin
(1994e, p. 225), “[...] Todos os que até hoje venceram participaram do cortejo triunfal, em
que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão”.
A perspectiva histórica defendida por Benjamin, que irá contrapor-se ao historicismo,
é o materialismo histórico. Nele, o tempo não é concebido como linear e tampouco é
dividido, e o método da empatia é considerado como não-crítico, visto que impede o
reconhecimento da diferença. Enquanto “[...] O historicista apresenta a imagem “eterna” do
passado, o materialista histórico faz desse passado uma experiência única” (BENJAMIN,
1994e, p. 230-1). Nessa direção,
[...] Os despojos são carregados nos cortejos, como de praxes. Esses
despojos são o que chamamos de bens culturais. O materialismo histórico os
contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm
uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua
existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como
à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento
da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim
como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de
transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialismo se
desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo
(BENJAMIN, 1994e, p. 225).
Assim, partindo da ideia de que a história não é construída apenas pelos “grandes
gênios”, mas também por aqueles que, apesar de não aparecerem, contribuem no seu
processo de elaboração, Benjamin propõe um trabalho de “rememoração” devido à
incapacidade de registrar os fatos de maneira abrangente.
Sobre a “rememoração”, Gagnebin (2009, p. 54-5) observa que há nos textos de
Benjamin uma “exigência de memória” que se esbarra em dificuldades, como a de narrar, de
transmitir ou de lembrar, mas, não podemos por isso correr o risco de passarmos em silêncio e
cairmos em uma atividade de “comemoração”, aquela “que desliza perigosamente para o
religioso ou, então, para as celebrações de Estado”. Em contrapartida, devemos nos voltar para
uma “rememoração”, aquilo que Benjamin denomina como Eingedenken:
31
Tal rememoração implica uma certa acesse da atividade historiadora que, em
vez de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao
esquecido e ao recalcado [...] aquilo que ainda não teve direito nem à
lembrança nem às palavras. A rememoração também significa uma atenção
precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado no
presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado, mas também
de agir sobre o presente (GAGNEBIN, 2009, p. 55).
Nesse sentido, a memória de um passado não pode se reduzir às conotações de
vulgares comemorações que os próprios governos promovem em relação às catástrofes que
eles mesmos cometeram, numa tentativa de apagar ou amenizar o horror. Uma retomada do
passado que se preze à rememoração vai além da simplistas homenagens aos mortos, visa
uma retomada de profundo análise do presente com projeções para o futuro.
Na perspectiva da relação entre história e memória, as reflexões do sociólogo francês
Maurice Halbwachs (2006) são fundamentais. Na visão do pensador, a história apresenta-se
de duas formas: uma história escrita e uma história viva, sendo que esta obtém informações
omitidas pela primeira. Em suas palavras:
A história não é todo o passado e também não é tudo o que resta do
passado. Ou, por assim dizer, ao lado de uma história escrita há uma história
viva, que se perpetua ou se renova através do tempo, na qual se pode
encontrar um grande número dessas correntes antigas que desapareceram
apenas em aparência (HALBWACHS, 2006, p. 86).
Apesar de tentativas para apagar o passado, principalmente por parte dos governos que
provocam atrocidades contra a população, isso não é possível. Ele pode permanecer latente,
mas, graças à memória, a qualquer momento pode vir à tona e aquilo que parecia encerrado é
bombardeado por novas informações. Em La hora violeta, a personagem responsável pela
reelaboração do passado sabe que trabalhar com as memórias possibilita conhecer e encontrarse com as várias “correntes antigas” que aparentemente estavam desaparecidas. Por isso, tenta
se omitir da responsabilidade apresentando várias justificativas para não relembrar o passado
porque deve voltar a dor dos dilaceramentos que esse passado lhe deixara.
A memória individual só existe a partir de uma memória coletiva, pois as memórias se
constituem no âmbito das relações humanas. Portanto, nunca são memórias de um único
sujeito, mas estão sempre influenciadas pela convivência em grupo porque nele se constitui,
segundo Duvignaud , citado por Halbwachs:
É claro, a memória individual existe, mas está enraizada em diferentes
contextos que a simultaneidade ou a contingência aproxima por um
instante. A rememoração pessoal está situada na encruzilhada das redes de
solidariedade múltiplas em que estamos envolvidos. Nada escapa à trama
32
sincrônica da existência social atual, é da combinação desses diversos
elementos que pode emergir aquela forma que chamamos lembrança porque
traduzimos em uma linguagem (DUVIGNAUD, 2006, p. 12. In:
HALBWACHS, 2006, p. 12).
Portanto, como observa Halbwachs (2006, p. 30), corroborando da opinião de
Duvignaud, toda lembrança, mesmo que individual é também coletiva, pois independente da
condição material de existência, o sujeito leva consigo e em si “certa quantidade de pessoas
que não se confunde” (HALBWACHS, 2006, p. 30).
A partir dessas ponderações sobre a memória torna-se compreensível o
posicionamento da personagem Norma, que se sente incomodada ao receber a incumbência
da reelaboração do passado de duas mulheres burguesas que viveram no contexto da Guerra
Civil e da Segunda Grande Guerra, porque esse trabalho, apesar de pressupor uma
abordagem da memória coletiva, possibilita uma reflexão sobre ela mesma. Além de que,
nessa perspectiva, reelaborar o passado não se trata simplesmente de retomá-lo, mas de
refletir sobre ele.
Essa possibilidade de reviver o passado é afirmada pela personagem Natàlia ao
justificar para Norma o porquê deveria ler os diários de sua mãe e as cartas familiares.
Assegura convicta da importância que teve para sua vida a leitura daquelas memórias: “[...]
No te vas a creer, pero este montón de papelotes me ha obligado a pensar en mí misma. A
mirarme por dentro” (ROIG, 2000, p. 46). Isso acontece porque “Escrever é um modo de ser
e de estar na vida. Nossa vida sempre existe dentro de uma narrativa que dirigimos a nós
mesmos ou a outros” (OLMI, 2006, p. 23-4). Quando o sujeito tem recordações de momentos
vivenciados no passado ele se baseia tanto na sua própria lembrança como na lembrança dos
outros, e isso lhe confere maior confiança em relação às recordações.
Portanto, o trabalho de Norma vai além de conhecer e retomar o passado de Judit e
Kati, ela se encontra com o seu próprio passado, com suas próprias angústias e sofrimentos. A
citação que segue, de Olmi, permite ponderarmos que a resistência por parte de Norma para
escrever sobre o passado dessas mulheres deve-se mais ao fato de que ela não queira refletir
sobre si mesma, visto que, nessa tarefa
O que está em jogo, portanto, não é somente a compreensão do passado,
mas, sobretudo, a interpretação do presente e da memória pela qual nossa
vivência pessoal se insere na história da coletividade à qual pertencemos
(OLMI, 2006, p. 36).
A filosofia de Walter Benjamin (1994), sobre a rememoração, restauração e
reprodução, considera o passado como incompleto e inacabado [não fechado], assim a
33
restauração é o reconhecimento da perda e a origem não é um projeto restaurativo ingênuo,
mas uma retomada do passado com abertura sobre o futuro. Nesse sentido, o passado
jamais pode ser retomado a partir de um único ponto de vista e disso as personagens de La
hora violeta são conscientes. Em conversas imaginadas ou recordadas por Natàlia, Norma lhe
afirma: “Pero creo que, tanto tú como yo, tenemos la obligación de no tratar la realidad desde
un sólo punto de vista. Tenemos que buscar todas las piezas” (ROIG, 2000, p. 134). Essa
é, justamente, a proposta de Montserrat Roig ao escrever esse romance, tratar a realidade a
partir de diferentes opiniões, diferentes ângulos, de ouvir distintas vozes.
As catástrofes ocorridas durante a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra
Mundial estiveram próximas de todos, pois se trata de um evento com uma repercussão tão
abrangente no que tange a quantidade de violência que não há como fazer de conta que tais
fatos não se relacionam com todos os seres humanos. Violências como essas, provocadas
por líderes de governo, podem acontecer a qualquer momento e em qualquer parte do mundo.
Por isso, é necessário ouvirmos e estarmos atentos aos fatos que nos cercam, pois, como
afirma Benjamin (1994c, p. 146), “compreender o mal não significa justificá-lo, mas antes
obter os recursos para impedir-lhe o retorno”.
Essa perspectiva de reelaboração do passado através do materialismo histórico é uma
forma de lutar contra o esquecimento, o qual permite que as lembranças das atrocidades se
abram para que a dor e a morte possam se sentir novamente, já que a falta de memória pode
levar o sujeito a acreditar em propostas aparentemente boas por parte de políticas ou líderes
governamentais que poderiam acarretar em outras tragédias. Todorov (2002, p. 218), por
exemplo, ao analisar a produção testemunhal de Primo Levi, atenta para o fato de que “O
crime seguinte se revestirá de uma forma levemente diferente para não se deixar reconhecer,
e o embuste estará pronto”.
O trabalho de Roig em elaborar uma obra literária que aborda a retomada do passado
de duas mulheres que viveram no período das guerras, como vimos acima, reflete o
compromisso com o social, típico de uma escritora engajada. Filha da ditadura franquista,
essa escritora compromete-se com a sua comunidade catalã e, consequentemente, com toda a
humanidade, levando através da arte possibilidades de reflexão sobre desastres provocados
por interesses políticos de poder e domínio que acarretam a destruição da própria
humanidade.
34
No processo de reelaboração do passado Roig se encaminha na linha de interpretação
do materialismo histórico proposto por Benjamim, rompendo com os discursos oficiais que
se impuseram em seu país por quase todo o século XX. De acordo com Tsuchiya,
Roig desafia não apenas as narrativas produzidas pela historiografia
franquista, mas, mais importante ainda, a concepção de historiografia que
torna possível a produção e reificação de tais narrativas em primeiro lugar
(TSUCHIYA, 1998, p. 164 - tradução nossa)13.
Todo regime totalitário visa controlar os veículos que transmitem informação,
jornalismo, história, arte, literatura, a fim de legetimizar seu domínio. Segundo Fernández
(2006, p. 63), a partir dos anos 1960 surge na Espanha um discurso que vai aos poucos
substituindo o discurso oficial. Essas versões da história vão sendo acolhidas positivamente
porque coincidem com as recordações de parte da população ou com o que lhes foi
transmitido através de outros meios de informação não sujeitos ao controle estatal, como a
literatura clandestina, os discursos familiares e de algumas escolas e universidades. Por isso,
coexistiram na Espanha, mas não exclusivamente lá, duas fontes de socialização de cultura, as
“oficiales”, o discurso transmitido pelo poder político, e as fontes “privadas”, discursos que
permeiam o ambiente familiar, os grupos de amigos e de professores, como observa
Fernández (2006, p. 66).
Esse diálogo entre posturas teóricas e históricas ainda em discussão nos ajudam a
compreender o espaço que as memórias e os discursos subalternos ganham na produção
literária de Roig, principalmente na obra La hora violeta, corpus de análise desta dissertação.
A obra aborda temas polêmicos e traumatizantes para a humanidade, mas não do ponto de
vista da “Grande História”, pelo contrário, através das memórias de personagens comuns,
que não tiveram seus nomes reconhecidos por ela. Roig reconhece a existência da memória
oficial, aquela preservada pelo Estado e a existência de uma memória subterrânea que
apesar de o governo tentar ocultá-la muitos se dedicam a evidenciá-la.
1.2. A arte de Narrar
Pensar sobre o ato de narrar após as considerações de Walter Benjamin em seu ensaio
“O Narrador” (1994) torna-se um tanto quanto complexo. Nesse ensaio, Benjamin fala sobre o
13
“Roig challenges not merely the false historical narratives generated by Francoist historiography, but more
importantly the very conception of historiography that makes possible the production and reification of
such narratives in the first plac e” (TSUCHIYA, 1998, p. 164).
35
declínio da arte de narrar que surge com o advento da modernidade. O narrador, que até
então, fora representado pela figura do camponês ou do viajante - normalmente comerciante
ou navegante - perde a credibilidade no mundo moderno porque não há mais pessoas
disponíveis para ouvirem suas narrativas. O camponês é o homem sedentário conhecedor de
histórias e tradições e o viajante sempre tem muitas experiências para contar. Independente a
qual grupo pertença, o narrador é, segundo Benjamin,
[...] um homem que sabe dar conselhos. Mas, se “dar conselhos” parece
hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser
comunicáveis. Em conseqüência, não podemos dar conselhos nem a
nós mesmos nem aos outros (BENJAMIN, 1994d, p. 200).
No ensaio “Experiência e pobreza” (1994b), Benjamin apresenta a noção de Erfahrung
(Experiência), aquela transmitida a várias gerações e que se inscreve em uma temporalidade
comum, mas que “estão em baixa” (1994b, p. 114). Isso é facilmente perceptível após a
Primeira Guerra Mundial, quando os combatentes viveram incontáveis experiências, mas
voltaram dos campos de batalha “[...] mais pobres em experiências comunicáveis” (1994b, p.
115). Agora, o que se há de fazer é “confessar nossa pobreza”, a qual pertence a toda
humanidade.
Na narrativa tradicional o narrador não apenas narra ou conta uma história, mas esta
história é seguida pelo ouvinte. Em contrapartida, no mundo moderno, as pessoas não querem
ouvir essas histórias e menos ainda repassar essas experiências.
Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora
comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em
provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas
vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a
pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que
saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos
dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um
anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio
oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua
experiência? (BENJAMIN, 1994b, p. 114).
A arte de narrar, dar conselhos, está em baixa porque cada vez mais, no mundo
capitalista moderno, as condições de realizações das experiências diminuem. Isso decorre do
fato de que a própria sabedoria está definhando, não há o que narrar se “[...] a sabedoria – o
lado épico da verdade – está em extinção” (BENJAMIN, 1994d, p. 201).
O cume da morte da narrativa, segundo Benjamin, deu-se com a consolidação da
burguesia, no início do período moderno, o que propiciou o surgimento do romance, o qual
atinge seu alvo com a invenção da imprensa. Contudo, não podemos esquecer que o advento
36
da tecnologia da informação ganha cada vez mais espaço no mundo moderno, ameaçando o
próprio romance, pois, as transmissões dos acontecimentos vão ficando ao seu cargo.
Benjamin estabelece a seguinte diferença entre o romance e outras formas de
narrativa: “O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa - contos de fadas,
lendas, e mesmo novelas - é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta”
(BENJAMIN, 1994d, p. 201), além de que o romance vincula-se ao livro e tem sua origem
no indivíduo isolado. O romance ganha espaço no cenário, pois a capacidade de trocar
experiências (Erfahrung) é substituída pelas vivências individuais (Erlebnis), ou
“experiências vividas”. As narrativas vindas de longe, seja espacial ou temporal, perdem sua
autoridade e a memória coletiva perde lugar para a memória individual.
Acreditando na criação do romance conforme sugerido por Lukács, Benjamin defende
que é através da “reminiscência criadora” que o romance alcança seu principal objetivo: a
luta constante contra o poder do tempo e observa que:
Georg Lukács viu com grande lucidez esse fenômeno. Para ele, o romance é
“a forma do desenraizamento transcendental”. Ao mesmo “tempo”, o
romance, segundo Lukács, é a única forma que inclui o tempo entre os seus
princípios constitutivos. “O tempo”, diz a Teoria do romance, “só pode ser
constitutivo quando cessa a ligação com a prática transcendental... Somente
o romance... separa o sentido e a vida, e, portanto, o essencial e o temporal;
podemos quase dizer que toda ação interna do romance é senão a luta contra
o poder do tempo... Desse combate... emergem as experiências temporais
autenticamente épicas: a esperança e a reminiscência... Somente no
romance... ocorre uma reminiscência criadora, que atinge seu objetivo e
transforma... [...] (BENJAMIN, 1994d, p. 212).
Instigado por Proust (2004), Benjamin vê uma nova possibilidade de resgate da
memória. Apesar de a memória individual ser limitada, ela pode ter a capacidade de
trazer à lembrança situações que foram esquecidas, possibilitando que essas reminiscências
apresentem significados para o presente. Para Proust, com o passar do tempo as vivências
significantes são esquecidas e somente a memória involuntária acionada ao acaso é capaz de
trazê-las de volta, o que não é possível acontecer pela memória voluntária (acionada pela
consciência). Nesse sentido, Benjamin propõe um trabalho de esquecimento da construção
oferecida pela memória voluntária.
Nessa, perspectiva o passado não é resgatado como realmente ocorreu, mas como foi
experimentado. Ele deve lançar luzes para o presente, o qual poderá responder àquilo que, por
ventura, ficara perdido.
37
Para alcançar essa “reminiscência criadora” e “lutar contra o tempo”, Benjamin
recorre ao procedimento estilístico da montagem. No ensaio “A crise do romance” afirma
que:
O princípio estilístico do livro é a montagem. Material impresso de toda
ordem, de origem pequeno burguesa, histórias de toda ordem [...]. A
montagem faz explodir o “romance”, estrutural e estilisticamente, e abre
novas possibilidades, de caráter épico. Principalmente na forma. O material
da montagem está longe de ser arbitrário [....] (BENJAMIN, 1994a, p. 56).
Nesse sentido, a construção do romance volta-se para uma construção fragmentada,
feita em diferentes circunstâncias e contextos históricos diferentes, sem se preocupar com um
início e um fim estabelecidos, como ocorre com a própria obra de Benjamin, Passagens, que
se utiliza dessa técnica.
Com base na teoria benjaminiana, principalmente a que se refere ao “fim da narrativa
tradicional”, Gagnebin propõe uma discussão sobre as “narrativas, simultaneamente
impossíveis, mas necessárias, nas quais a memória traumática, apesar de tudo tenta se dizer”
(2006, p. 49). Sobre este tipo de gênero Seligmann-Silva (2000, p. 84) fala de serem relatos
de uma “ferida na memória” referindo-se à teoria freudiana do trauma para a qual o trauma
trata de uma incapacidade de recepção de um evento que transborda “os limites de nossa
percepção” e que acarreta em uma compulsão à repetição.
Não é nossa intenção adentrarmos no campo da psicanálise freudiana, mas, numa
tentativa de compreender sucintamente a recordação da cena traumática seguindo a luz dessa
teoria, aproveitamos algumas informações dadas no artigo O trauma psíquico e o paradoxo
das narrativas impossíveis, mas necessárias (2009, p. 45-57) de Maldonado e Cardoso, onde
explicam que o recordado não é o acontecimento em si, pois ele sofre “múltiplas
retranscrições, no qual a experiência passada é ressignificada no contexto das experiências
atuais” (2009, p. 50). O trauma surge depois do acontecimento que sofre rearranjo e adquire
significação pelo processo de reconstrução. Portanto, quando um sobrevivente fala sobre seu
trauma, a única verdade que existe é a “verdade da narrativa” que, apesar de estar “enlaçada
à experiência do sujeito”, está deformada pelos rearranjos e fantasias.
Seligmann-Silva (2000, p. 89) considera que “a passagem do “literal” para o
“figurativo” é terapêutica”, nesse sentido, o testemunho adquire, em suas palavras:
[...] uma forma de esquecimento, uma “fuga para frente”, em direção à
palavra e um mergulhar na linguagem, como também, por outro lado, buscase igualmente através do testemunho, a libertação da cena traumática
(SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 90).
38
O passado deve ser lembrado não com a finalidade de comemoração, mas porque,
como observa Gagnebin (2006, p. 47), “lutar contra o esquecimento e a denegação é também
lutar contra a repetição do horror”.
Atualmente, existe um movimento em prol da preservação da memória, ou seja, que
se preocupa em deixar registros para o futuro. Esse movimento é representado, por exemplo,
pela grande quantidade de publicações de autobiografias, inauguração de museus, dentre
outras formas de resguardar o passado. No entanto, corre-se o risco de cair no que Todorov
chama de “consagração da memória”, o que seria um mau uso feito dela. A recuperação do
passado é necessária, mas, o mais importante, é o uso que se fará dessa recuperação: “La
recuperación del pasado es indispensable; lo cual no significa que el pasado deba regir el
presente, sino que, al contrario, éste hará del pasado el uso que prefiera” (TODOROV, 2000,
p. 25). Segundo este teórico, o acontecimento recuperado pode ser lido de maneira “literal”
ou “exemplar”, e cada uma dessas formas implica no uso que se faz desse material
recuperado:
El uso literal, que convierte en insuperable el viejo acontecimiento,
desemboca a fin de cuentas en el sometimiento, del presente al pasado. El
uso ejemplar, por el contrario, permite utilizar el pasado con vistas al
presente, aprovechar las lecciones de las injusticias sufridas para luchar
contra las que se producen hoy día, y separarse del yo para ir hacia el otro
(TODOROV, 2000, p. 32).
O primeiro caso, o uso literal, não vai além de si mesmo, já a maneira exemplar de
retomar o passado extrai uma lição, o que faz do passado um princípio de ação para o
presente. Nesta linha de interpretação é que Montserrat busca a recuperação das vozes que
foram silenciadas para não serem esquecidas, como observa Dupláa (1996, p. 55):
Roig quiere recuperar la voz de los obligados a vivir en silencio porque si no
ella no puede participar en un proyecto liberador para su cultura. Sabe que el
testimonio de estos hombres y mujeres no es el testimonio de una derrota,
sino de una injusticia que, tras ser denunciada, se presenta como proyecto
libertador.
Através do seu projeto literário ou de “sua voz testemunhal” (Dupláa, 1996) faz
ouvirem-se àqueles que foram impedidos de falar: suas vozes deixam o silêncio para que a
sociedade espanhola se liberte da prisão dos discursos oficiais do governo ditatorial. Roig
busca uma reconstituição do passado com vistas para o futuro, uma “rememoração”, uma
libertação do que o século XX deixou como trauma para os espanhóis.
39
2. A HORA DOS RESTOS E DOS CACOS: A GUERRA CIVIL ESPANHOLA
As máscaras de bronze da guerra civil têm dois perfis,
um que olha para o passado, outro que olha para o futuro,
mas ambos igualmente trágicos.
Victor Hugo
Montserrat Roig, tanto em seu trabalho literário quanto jornalístico, propõe uma luta
contra a amnésia, visando uma retomada do passado em prol de um futuro que não permita a
recorrência de eventos catastróficos que marcaram a humanidade, como já fora exposto em
linhas anteriores. Por esta razão, torna-se relevante uma contextualização dos temas
abordados pela autora na obra La hora violeta, no que tange ao período da Guerra Civil
Espanhola e do pós-guerra, pois toda multiplicidade discursiva que encontra espaço na
literatura está inserida em um contexto social e histórico, conforme observado por Pérez
(2001, p. 36):
Parece claro, entonces, que la literatura es una forma de representar el
mundo desde los ojos y la capacidad fabuladora de cada narrador. Y de esa
manera, difícilmente podemos hablar del hacer literario como de una labor
neutra o ahistórica, puesto que implica la inserción en un contexto sociocultural concreto que funciona como referencia ineludible a partir de la que
afirmar, rebatir o inventar en el texto.
Em La hora violeta Norma organiza sua produção literária inspirando-se em
documentos que trabalham com a memória de ex-deportados dos campos de concentração e
de outros personagens. De maneira geral, as mulheres do romance discutem sobre as
situações sociais e políticas nas quais estão inseridas.
Abordaremos a seguir alguns aspectos da Guerra Civil Espanhola, um dos eventos
mais fortes da história recente, para contextualizar e situar o leitor no conflito da narrativa.
O golpe militar em julho de 1936 foi uma conseqüência de problemas políticos,
sociais e econômicos que vinham se arrastando há algum tempo na Espanha. No início do
século XX o país estava atrasado em relação ao processo de modernização que acontecia
nos demais países da Europa. A economia do país era essencialmente agrícola, voltada para
uma produção de subsistência. Havia uma concentração de riquezas nas mãos do exército,
da Igreja Católica e dos latifundiários que exploravam a classe trabalhadora que vivia em
condições de pobreza e miséria.
Nas eleições municipais de 12 de abril de 1931, os monarquistas saem derrotados pela
coalizão republicanos-socialistas e é implantada na Espanha a Segunda República (1931-
40
1936). O novo governo enfrentava rigorosas restrições financeiras, como a impossibilidade
de empréstimo exterior e ter uma dívida herdada dos anos da ditadura de Primo de Rivera,
além do constante aumento de desemprego. A República encontrou resistência tanto por
parte das classes financeiramente abastadas quanto dos grupos discriminados. Os primeiros
temiam às ameaças por sua hegemonia econômica e social com a implantação do novo
regime, os segundos não percebiam melhorias para sua classe.
No entanto, algumas conquistas sociais ocorreram no período da Segunda República,
como a introdução na nova Constituição, aprovada em 09 de dezembro de 1931, o voto
universal e secreto e, pela primeira vez, a participação das mulheres como eleitoras. Em
1932, foi aprovada a lei do divórcio.
Puente (2004, p. 51), acerca desse contexto político e social e sobre as conquistas das
mulheres afirma que:
La cultura y la vida política parecía que se sometían a un imparable ritmo
de universalización y dejaban de ser patrimonio de una élite. Las mujeres,
naturalmente, se beneficiaron de esta situación y pusieron fin a una época
de encierro domestico. Dejaron de ser las reinas del hogar para pasar a ser
individuos conscientes de sus derechos y dispuestas a luchar por un
espacio proprio en la estructura social.
É importante ressaltar que, apesar do envolvimento de muitas mulheres na luta por seus
direitos, grande parte delas, orientadas pelos esposos, se posicionava contra essas
conquistas, como observou Clara Campoamor que, ao se envolver diretamente na luta pelos
direitos femininos, pode constatar que “De las mismas mujeres he recibido los más severos
e incomprensibles ataques en la cuestión del voto [...] de las que de su ignorancia no querían
desprenderse” (CAMPOAMOR, 1981, p. 316 apud PUENTE, 2004, p. 53).
Também existiram impasses em relação à lei do divórcio, pois devido à tradição
religiosa e sua influência sobre a vida dos espanhóis, as mulheres raramente recorriam a
essa lei. Ainda há de se reconhecer outras medidas favoráveis não só para as mulheres, mas
também para à população em geral, bem como outras impopulares que levaram a
interpretações equivocadas todo o processo de mudanças e a tomarem-se posições políticas
extremas até acabar por derrubar com o regime republicano.
Nas eleições parlamentares de 1936 os partidos de esquerda se unem com o objetivo de
retomar o poder e suas políticas. Com a aliança de republicanos, socialistas e comunistas
formaram a Frente Popular que, com uma pequena diferença de votos, consegue sair
vitoriosa. Dá-se início ao governo libertando prisioneiros militantes, se restaura o regime
autônomo de Catalunha, que havia sido desconstituído no período em que a direita era
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maioria no Parlamento, volta-se a trabalhar na reforma agrária e se tomam medidas contra a
Igreja, como o fechamento dos colégios religiosos, entre outras ações. Insatisfeita com os
resultados, a direita organiza o golpe militar que se concretiza em 18 de julho e 1936.
As ruas das principais cidades da Espanha se tornaram cenários para ataques e
bombardeios realizados pelos militares ou conflitos armados entre os grupos. O país estava
dividido em dois grandes grupos: os Nacionalistas, fascistas, apoiados pela Igreja Católica,
pelo exército e pelos latifundiários; e os Republicanos (unidos em uma Frente Popular
constituída por republicanos, socialistas e comunistas, partidos de esquerda, sindicatos e
grupos que apoiavam a democracia).
De acordo com Salvadó (2008, p. 94), os conspiradores militares acreditavam que a
tomada do poder seria rápida, nunca imaginaram que duraria três anos de intermináveis
combates. A República espanhola, diferentemente dos outros países que tiveram seus
regimes constitucionais facilmente derrubados resistiu até o último momento contra os
militares e o avanço do fascismo que já havia dominado a Itália, em 1922, a Alemanha, em
1933, e a Áustria, em 1934.
Os Nacionalistas receberam apoio da Alemanha, Portugal e Itália e os Republicanos
obtiveram ajuda da URSS de Stalin e de milhares de voluntários estrangeiros oriundos de 53
nações que se alistavam para fazerem parte das Brigadas Internacionais. Um grande número
de intelectuais, escritores e artistas também foram solidários à causa republicana. Apesar da
política do Acordo de Não-Intervenção14, os países europeus acabaram tomando partido e
apoiando uma das facções da Guerra Civil.
Em 26 de janeiro de 1939, após constantes ataques à Barcelona, a capital catalã caiu sem
resistência. Madrid cai em 26 de março, Valência e Alicante em 30 de março e, no dia
seguinte, Murcia também é derrotada. Com essas últimas conquistas os nacionalistas
vencem a Guerra e é implantada na Espanha a ditadura franquista que durará quase 40 anos.
O período de pós-guerra Civil não foi menos problemático do que durante a guerra. A
pobreza, a fome, a escassez de alimentos, as cidades aniquiladas, famílias destruídas,
pessoas desaparecidas ou exiladas, presos políticos, além dos mais 400.000 mortos. O
sistema político implantado em 01 de abril de 1939 baseava-se na divisão entre vencedores
e vencidos e na imposição dos princípios ideológicos dos primeiros, enquanto os segundos
sofriam repressão e perseguição política. Assim teve início na Espanha um longo período de
14
NIA (Non-Itervention Agreement) Acordo de Não-Intervenção foi um pacto entre 27 nações européias, em
setembro de 1936, visando garantir o isolamento da Espanha e o bloqueio de armas durante a Guerra Civil
Espanhola. Com o objetivo de supervisionar a NIA foi criado o NIC (Non-Intervention Commitee) Comitê de
Não-Intervenção, composto por embaixadores dos países signatários (SALVADÓ, 2008, p. 16).
42
censura de imprensa, proibiu-se a diversidade cultural e lingüística e qualquer forma de
pensamento que estivesse em discrepância com os ideais militares, seja político, religioso
ou ideológico.
Salvadó (2008, p. 140) observa que a guerra foi um conflito que colocou “todos contra
todos” e com significados diferentes para cada grupo:
[...] uma guerra de republicanos contra monarquistas, centralistas contra
separatistas ou regionalistas, católicos contra anticlericais, modernizadores
contra proletários, camponeses contra proprietários de terra, fazendeiros
contra trabalhadores, cidades contra aldeias. Essa terrível disputa despertou
não só os instintos mais elementares, mas serviu como prévia dos avanços
tecnológicos do conflito armado moderno: batalhas de grande escala com
tanques e aviões, e cidades sob terríveis bombardeios (SALVADÓ, 2008,
p. 140-1).
Fernández (2006, p. 67) afirma que, apesar da existência de um discurso conciliador entre
os republicanos e os nacionalistas, isso não aconteceu de fato.
Após o fim do conflito iniciou-se um período de implantação do novo regime e, para que
isso se concretizasse rapidamente e sem grandes entraves, como observa Gaite (2007, p.13),
tornou-se
Prohibido mirar hacia atrás. La guerra había terminado. Se censuraba
cualquier comentario que pusiera de manifiesto su huella, de por sí bien
evidente, en tantas familias mutiladas, tantos suburbios miserables, pueblos
arrasados, prisioneros abarrotando las cárceles, exilio, represalias y
economía maltrecha.
O que Franco pretendia era “enterrar el pasado reciente”, afirma Gaite (2007, p. 23).
Entretanto, passados os primeiros anos do regime, as sequelas deixadas pela Guerra Civil na
memória dos seus sobreviventes e na memória coletiva dos espanhóis, ou seja, os discursos
subalternos vão aos poucos aparecendo e muitas outras coisas que permaneceram por anos
ocultas começam a vir à superfície. Nesse contexto, a arte literária também se comprometerá
com esse trabalho de recuperação da memória traumática da Espanha.
Após a morte de Franco, nos anos de transição e consolidação da Monarquia
Parlamentarista, reafirmou-se o “pacto con el olvido”, com a intenção de proteger o novo
regime de uma memória incômoda e afanosa. Conforme Vieira, (1998/99, p. 37-8):
Por outro lado, nos últimos dez ou quinze anos, comemora-se na Espanha
um verdadeiro “Boom de la memória”, que se manifesta pela proliferação
de testemunhos da guerra civil e do franquismo, de matérias jornalísticas,
obras de ficção que se referem direta ou indiretamente a esses períodos
além de uma importante produção cinematográfica que se detém na
reconstrução de determinada memória histórica.
43
Como um iceberg a memória de um período traumático tem muitos fatos escondidos e que
precisam ser revelados e é exatamente a essa tarefa que Montserrat Roig se dedica, quer dizer,
busca evidenciar ou trazer ao cenário atual, desde a literatura, os resquícios e sequelas de uma
guerra que deixou marcas inapagáveis devido aos mortos, desaparecidos, inválidos, além da
fome, a pobreza e da dor que pairou por muitos anos no meio dessa sociedade e que ainda
hoje tem suas marcas.
2.1. A hora das mulheres
Uma das preocupações de Roig como escritora é o registro e representação literária das
diferentes formas de marginalização social e cultural, como já exposto, por isso volta-se às
questões de sua comunidade Catalunha e dos discursos minoritários como os das mulheres.
Observa que a sociedade é constituída ideologicamente a partir de papéis designados a
homens e a mulheres, por exemplo, e que se entranham no inconsciente coletivo. Da mesma
maneira, os espaços sociais também são demarcados segundo o gênero e organizados de
acordo com a hierarquia do patriarcalismo. Aos homens foi permitido o espaço público e
privado, às mulheres apenas o segundo. Essa questão é enfocada y confirmada por Simone
de Beauvoir retomando a historia e seu papel:
Elas são mulheres em virtude de sua estrutura fisiológica; por mais longe
que se remonte na história, sempre estiveram subordinadas ao homem: sua
independência não é conseqüência de um evento ou de uma evolução, ela não
aconteceu. (BEAUVOIR, 1970, p, 12-3).
A consciência acerca da situação de inferioridade na qual as mulheres sempre
estiveram em relação aos homens alude a um tempo remoto da história da humanidade. No
entanto, a partir do momento no qual as mulheres começam a tomar consciência dos direitos
que lhes foram negados ao longo da história, organizam-se como categoria para lutarem por
eles. Alguns movimentos surgem no final do século XIX, mas foi no século seguinte que as
mulheres iniciaram uma luta árdua, com críticas e protestos para ocuparem diferentes esferas,
como a participação ativa na vida social, política e econômica, assim como o direito sobre o
próprio corpo.
A História oficial, organizada por homens, por muito tempo negou à mulher o direito
de participar da sua elaboração. A mulher deveria gastar o seu tempo com o lar e com os
filhos, com a maternidade, por isso sua imagem sempre esteve atrelada a esse fator biológico.
Como já constatado por várias pesquisadoras, como Schmidt (1997), Scott (1992), a mulher
também sempre observou e analisou o mundo à sua volta, o que pode ser comprovado através
44
da descoberta de textos literários de autoria feminina escritos em tempos remotos. Ao longo
da história, verifica-se a existência de diversas produções literárias, as quais, na maioria das
vezes, permaneceram esquecidas ou arquivadas em gavetas ou caixas e se dificultou o seu
(re)conhecimento.
Cartas, diários, poemas, relatos, entre outros gêneros, elaborados por mulheres que
registraram as pressões do matrimônio e da sociedade ou mesmo acontecimentos no âmbito
político, foram ignorados pelo cânone historiográfico ortodoxo, alegando que essas
produções tinham pequeno ou nenhum valor literário. Esses documentos, literários ou não,
refletem a maneira como essas mulheres retratam o mundo à sua volta e como compreendem
sua existência.
As situações sociais vivenciadas pelas mulheres foram semelhantes em diversos
países, com algumas diferenças advindas das peculiaridades culturais e sociais. De maneira
geral, uniram-se em prol de um mesmo ideal, o do respeito aos direitos para ambos os sexos.
Porém, contextos sociais e políticos específicos influenciaram, de maneira diferenciada, nesse
processo de emancipação do sexo feminino. Na Espanha, a história da mulher tem os mesmos
registros de iniquidade de outros lugares: ela ocupou sempre o espaço escondido do lar, de
dedicação ao esposo e aos filhos. Somente a partir do primeiro terço do século XX, com o
governo Republicano, aprovaram-se algumas leis possibilitando a participação das mulheres
na vida social, reconhecendo suas capacidades de produção, de tomar decisões e participar de
mudanças sociais. Mas, já nos primeiros anos do Regime ditatorial de Franco, (1936-1975), as
conquistas foram relegadas e a produção literária feminina, que tinha começado a mostrar-se
inquietante, sensível e denunciatória, voltou-se para o escapismo, principalmente nos anos de
1940. Com a perseguição aos contrários do governo franquista, grande parte dos intelectuais
da Espanha encontrava-se exilada ou desaparecida. Muitas obras foram censuradas, sendo
algumas de autoria dos escritores que procuraram asilo fora do país e outras de escritores que
já eram reconhecidos internacionalmente. Surgiu uma produção literária elaborada pelos
vitoriosos: escritores falangistas invadiram o mercado, inclusive o ditador Franco publicou,
com o pseudônimo de Jaime de Andrade, no ano de 1940, o romance Raza.
De acordo com Aguinaga et al. (1979, p . 84), as primeiras obras que vão romper
com esse tipo de literatura e iniciar uma denúncia dos acontecimentos políticos e sociais da
Espanha são La familia de Pascual Duarte, de Camilo José Cela (1942), Hijos de la ira,
de Dámaso Alonso (1944) e Historia de una escalera, de Antonio Buero Vallejo (1949). As
regras gerais da narrativa literária, de imediato pós-guerra até o início da década de 1950 são,
45
como aponta Aguinaga15, a esterilidade e a repetição medíocre, sendo que as formas
narrativas de vida vazia, provincianismo e anacronismo são as características da época.
Apesar da censura, acontecia uma recuperação econômica do país e um
desenvolvimento das empresas editoriais que favoreciam o mercado literário. Aparecem
distintos tipos de publicações que, junto com os prêmios literários, aumenta o crescimento
da produção. Não vamos nos aprofundar neste fenômeno, somente observar que foi nesse
momento que a mulher desponta impondo-se no cenário literário com uma presença nunca
antes mostrada. Em 1945, foi publicado o primeiro romance de autoria feminina de pósguerra, a obra Nada, de Carmen Laforet (1921-2004). No mesmo ano de publicação, a obra
rendeu à escritora o Prêmio Nadal, criado no ano de 1945, com o objetivo de incentivar a
produção artística e cultural do país, que naquele momento estava em decadência.
Ana María Matute (1925) escreve Los Abel (1947), aos vinte e um anos. Seu estilo,
segundo Aguinaga16, apresenta uma tendência ao realismo subvertida sistematicamente pelo
abuso de imagens plásticas distorcidas, “uma visão de mundo arraigada em uma vida
solitária”. Várias outras escritoras dão voz às mulheres em suas narrativas ficcionais, ou se
apresentam como narradoras, para testemunhar o contexto do pós-guerra. Assim, constatase um extenso corpus de obras de autoria feminina que mostra a qualidade dessa literatura e
sua capacidade de retratar aspectos da realidade.
O contexto no qual será produzida essa literatura impulsiona os escritores, de maneira
geral, a um tipo de realismo social que vai culminar em uma produção literária testemunhal e
denunciatória. Apesar de as escritoras do período do pós-guerra não constituírem um grupo
unido e com atitudes literárias comuns, une-as o fato de participarem de uma mesma situação
cultural e social, em um ambiente claramente patriarcal e em um período histórico
específico.
Na década de 1970 muitos estudos acadêmicos voltaram-se para a
problemática do esquecimento da mulher na literatura. Contudo, nesse primeiro momento,
restringiram-se à figura da mulher como personagem de uma literatura escrita por homens.
La mujer durante siglos ha sido hablada […] El no haber tenido acceso a
los mecanismos de un dominio hegemónico, de un pensamiento universal
que se definía como masculino, ha supuesto, evidentemente, silenciar e
incluso negar la posible existencia de una visión del mundo femenina ajena
al orden del discurso, al margen de ese paradigma universal (LÓPEZ;
PASTOR, 1989, p. 13-14 apud PÉREZ, 2001, p. 33).
15
16
Idem (p. 93).
Idem (p. 205).
46
Com os avanços dos estudos feministas, principalmente na década de 1 990,
constata-se que, até então, a literatura é a arte à qual as mulheres mais se dedicaram. Dupláa
(2000, p. 20) observa que a “invisibilidad en la historia se debe a la marginalización canónica
y no a una auténtica ausencia femenina”.
Mesmo nesse ambiente, várias escritoras tiveram seus nomes reconhecidos pelo
cânone literário espanhol, inclusive, escritoras que representavam em suas literaturas
peculiaridades de seus estados ou províncias. Alguns nomes marcaram, por exemplo, a
literatura feminina de Catalunha. Dentre eles destaca-se Mercè Rodoreda (1908-1983) que,
em 1980, foi a primeira mulher a receber o Premi d’Honor de les Lletres Catalanes. De
acordo com Dupláa17, o que singulariza a literatura de Rodoreda é o emprego de uma
linguagem mais próxima à oralidade do que à escrita. Suas obras abarcam diversos gêneros
literários como romances, novelas, contos, peças de teatro e poesias.
Outra escritora de destaque dentro da genealogia da literatura de Catalunha é Maria
Aurèlia Capmany (1918-1991). Apesar da intolerância política e da proibição de idiomas
regionais pela ditadura franquista, Capmany produz sua literatura em catalão, embora a
publique em castelhano (idioma oficial da Espanha de Franco), como faz a maioria dos
escritores desse período. Nos anos de crise oriunda do pós-guerra, Capmany “se atrevió a
publicar novelas de resistencia y crítica social disfrazadas de novelas históricas o de
ficciones especulativas” (DALE MAY, 2000, p. 93). Defensora dos ideais feministas e da
cultura catalã, juntamente com Montserrat Roig, dedica-se à cidade natal, Barcelona, aos
papéis sociais das mulheres e ao emprego da língua materna na produção literária.
Teresa Pàmies (1919) é outra intelectual que desde muito jovem envolveu-se com as
questões militantes das Juventuts Socialistes Unificades de Catalunya. Esteve exilada em
diversos países, totalizando 32 anos de exílio. Foi defensora do socialismo, do nacionalismo
catalão e do feminismo. O comprometimento dessa escritora com as questões de seu tempo
(transição democrática depois da morte do General Franco) encontra-se bem sintetizado
nas palavras de Greene:
Se podría decir que Teresa Pàmies se ha pasado la vida luchando contra ese
olvido que hoy en día nos es tan cómodo asumir. Su sentimiento de
compromiso histórico con nuestro pasado reciente se ha traducido en una
obra literaria y periodística de enorme valor testimonial (GREENE, 2000,
p. 100).
17
Idem, (p. 23).
47
A memória é o fio condutor para o seu testemunho político e pessoal. Por isso,
predomina em seus textos a autobiografia de testemunho.
Outra mulher que obteve destaque no campo literário é Carme Riera (1948),
considerada uma das principais escritoras da literatura espanhola e catalã e também uma
crítica literária renomada. É ganhadora de vários prêmios, dentre eles, do Premio Nacional de
Narrativa, em 1995. Aborda em sua literatura a temática referente à mulher, mas não aceita
que sua produção seja taxada como literatura feminina, pois acredita que esse tipo de literatura
esteja associado com a panfletagem, com reivindicações políticas e com a falta de valor
literário. O que importa para Riera é escrever bem e não ser relegada ao grupo de
literatura para mulheres. Segundo Glenn (2000, p. 133-4), dentre as principais questões
abordadas pela escritora destacam-se “la expresión del deseo femenino y un interés por
la representación de la mujer y la alteridad […] la seducción, la transgresión y la
marginalidad”.
Dentre as autoras citadas como representantes da literatura de Catalunha encontramos
Montserrat Roig. Profissional que defendeu, ao longo da sua carreira de escritora e jornalista,
sua cidade natal (Barcelona), sua língua materna (catalão) e seu compromisso com a
sociedade. Montserrat Roig permaneceu fora do poder e da hegemonia de sua sociedade, pois,
além de catalã, era comunista e feminista, o que marcou, sem dúvida, sua marginalização em
um país dominado pela ditadura franquista.
A seguir, faremos uma breve apresentação da biografia de Montserrat Roig e uma
discussão acerca dos eixos que sustentam a sua produção literária. Como aponta Candido
(2002, p. 13), não se pode correr o risco de uma simplificação casual ao aferir a obra com a
realidade exterior, entretanto, os fatores sociais e psíquicos, se considerados no seu papel de
formadores da estrutura, são decisivos para a análise literária.
2.2. Montserrat Roig: a projeção de uma vida
Montserrat Roig I Fransitorra nasceu em 13 de junho de 1946, em Barcelona. No ano
de 1951, inicia sua vida escolar no Colégio Madre del Divino Pastor. Já em 1960 ingressa no
Instituto Montserrat de Barcelona. Forma-se em Filosofia Hispânica pela Universidade de
Barcelona no ano de 1968. Realizou dois cursos de doutorado na Universidade Autônoma de
Barcelona. Durante sua vida universitária envolveu-se com atividades políticas de oposição ao
regime ditatorial de Franco e no ano de 1968 ingressou no Partido Socialista Unificado de
Catalunha (PSUC).
48
O ano de 1966 foi marcado por dois importantes acontecimentos na vida da escritora, o
seu casamento e o seu reconhecimento como escritora, através do Premio de prosa de
iniciación literaria en los juegos florales de la Lengua Catalana, em Caracas, Venezuela,
pelo seu trabalho La Hoz (La Falç).
Vítima de um câncer de mama, a escritora falece, precocemente, em 10 de novembro de
1991, aos 45 anos. Contudo, nesse curto espaço de tempo, ela conseguiu uma produção
intelectual que esparziu em diversos gêneros, como narrativa, ensaio, biografia, crônica,
teatro, jornalismo (escrito e audiovisual).
Há um tripé de sustentação para a produção roigueana que, de alguma forma, sempre se
faz presente em seus textos jornalísticos ou literários. Trata-se da sua cidade natal, da figura
feminina e da sua língua materna. Estes, porém, nem sempre seguem esta ordem de relevância
dentro de suas produções.
Barcelona é o espaço preferido para os enredos de suas narrativas, sendo o bairro de
Ensanche (em catalão L'Eixample) um dos espaços privilegiados, provavelmente, por ser o
local onde a escritora nasceu, mais precisamente na rua Bailén. Esse bairro ocupa a parte
central de Barcelona e é onde se localizam as avenidas e praças mais conhecidas e
movimentadas, além dos principais hotéis, cinemas, restaurantes, bares, dentre diversos
pontos de lazer e diversão.
Roig escreve o ensaio De finestres, balcons i galeries (Ventanas, balcones y galerias) que
foi publicado na obra BarcelDones (1989), coordenada por Isabel Segura. Essa obra reúne
textos escritos por intelectuais que viveram no Ensanche. O ensaio de Roig também aparece
em 1991 em Digues que m’estimes encara que sigui mentida (Dime que me amas aunque sea
mentira). Neste livro, Roig elabora uma história de Barcelona que vai da Idade Média à
década de 1980, a partir do avanço das mulheres em relação ao espaço público. Segundo a
autora, a dificuldade enfrentada para a elaboração do texto está relacionada à escassez de
registros, confirmando a sua tese sobre a falta de memória genealógica das mulheres.
Uma das ponderações desse documento é construída com base na comparação entre o
espaço da mulher no mundo clássico e no período medieval. Enquanto no primeiro não há
espaços estabelecidos para os diferentes sexos, no segundo há um retrocesso, visto que a sua
presença restringe-se aos espaços privados. Na concepção de Roig, segundo observações de
Dupláa (1996, p. 145), “la ventana es, en estos siglos, el medio que permite a las mujeres
mirar el mundo exterior”.
49
Devido à Revolução Industrial, as mulheres da classe trabalhadora são as que
permeiam o espaço privado e público, este, restringindo-se à fábrica onde trabalhavam mais
de 15 horas por dia. O que não é diferente para as xinxes (Chinches), mulheres
barcelonesas que trabalhavam em indústrias têxteis. As mulheres da classe proletária são as
que iniciam lutas por melhores salários e por direitos como o de amamentar e o de cuidar dos
filhos. As mulheres burguesas de Barcelona são apreciadas apenas pela função de procriação,
não lhes é permitido demonstrar seus sentimentos ou expressar suas opiniões, e seu mundo
exterior restringe-se ao pátio. Apesar das diferenças, essas mulheres se identificam em
algumas questões, como observa Roig:
Dama, señora, menestral o chinches: el campo de visión variaba un poco
pero, sin ellas saberlo, la actitud de mirar las unía. Era una mirada que aún
no había encontrado las palabras, las suyas, para expresar lo que veía. Y es
eso lo que le falta a la Historia de Barcelona. Y en su literatura (ROIG,
Digues que m’estimes, 1971, p. 155 apud DUPLÁA, 1996, p. 149).
As questões sobre o feminismo se fazem presentes nos mais diversos gêneros. Seu
projeto é contribuir para a construção de um mundo no qual as mulheres pudessem elaborálo.
O terceiro eixo de sustentação de sua produção é o catalão, sua língua materna, eleito
para escrever suas obras literárias, reportagens e crônicas jornalísticas. A proposta de resgatar
a história esquecida e marginalizada através de uma literatura escrita em catalão, língua
negada durante os anos de ditadura, e que aprendera com a ajuda de seus familiares, é uma
das marcas do compromisso de Roig. O espanhol era a língua oficial da Espanha franquista
imposta para os espaços públicos, consequentemente, aprendida na escola e utilizada na vida
profissional em situações nas quais não era possível o uso do catalão.
Nas décadas de 1970 e 1980, Roig dedicou-se ao jornalismo de opinião, gênero
praticamente inexistente em Barcelona nesse período. O jornalismo foi para ela um meio de
manter-se financeiramente e poder dedicar-se à literatura. Enfrentou dupla dificuldade ao
optar pelo uso de sua língua materna para produzir seus textos, sejam eles jornalísticos ou
ficcionais, pois, além de tratar-se de uma língua não oficial para a Espanha franquista e por
permanecer por muito tempo abandonada, sofreu certo empobrecimento, faltando-lhe vida e
espontaneidade. Como afirma Roig no prólogo da obra Molta roba i poc sabó ... i tan neta
50
que la volen, “Escrevo numa linguagem que nasceu e vive no meio do caos e da solidão”18
(ROIG, 1971, p. 7, apud DUPLÁA, 1996, p. 105 - tradução nossa).
A imposição da língua espanhola como oficial em toda a Espanha franquista, acarretou
na diminuição de textos escritos em outras línguas, como o Catalão, o Galego e o Basco, o
que indica que uma guerra pode acarretar vários prejuízos, sejam eles econômicos, sociais,
políticos, culturais, dentre outros. Uma das consequências da Guerra Civil Espanhola foram
os danos para com a literatura catalã, através de proibições e perseguições por parte do
governo franquista em relação à circulação desses textos. Era comum o exílio de escritores e a
proibição de suas publicações. O comprometimento de escritores que se dedicaram à
elaboração de trabalhos literários escritos nessa língua foi o que contribuiu para a sua
valorização. Roig, como defensora dessa língua, produzia suas obras em catalão e,
posteriormente, publicava-as em espanhol.
Sobre a desvalorização das línguas minoritárias, Dupláa afirma que:
Tanto en el caso de insistir en el tema de forma exagerada como en el caso
de ignorarlo subyace la anormalidad que sufren en el espacio público las
lenguas minoritarias sin protección de un Estado propio (DUPLÁA, 1996, p.
106).
Essa tentativa por parte do regime político de Franco de eliminar a língua e a cultura
catalã foi observada por Riera como uma tentativa sem êxito, pois, com o fim da ditadura
houve o que ela denomina de “incentivo” para o ressurgimento da língua:
Em Catalunha, a supressão da linguagem foi rigorosa durante a era de
Franco, mas a nova regra da casa de 1979 tem incentivado uma espécie de
renascimento da letra19 (RIERA, 1989, p. 1 apud FAGES, 2007, p. 6 tradução nossa).
Realmente, com o fim da ditadura, houve na Espanha um incentivo em prol da língua
e da cultura catalã, assim como de outras línguas e culturas minoritárias. Porém, esse projeto
não deixa de ser uma forma de amenizar as consequências oriundas da Ditadura. Não haveria
comparação em relação ao reconhecimento e à autoridade dada à língua catalã se ela não
tivesse sido uma das prejudicadas desse período, pois inúmeros livros não foram sequer
escritos e os escritores que tentaram transpor essas barreiras foram vítimas de perseguições
políticas ou mesmo mortos. É comum o leitor encontrar nas obras de Roig passagens nas
18
“Escric en una llengua a mig néixer i visc entre el caos i la solitut” (ROIG, 1971, p. 7, apud DUPLÁA, 1996,
p. 105).
19
“In Catalonia, suppression of the language was harsh during the Franco era, but the new home rule laws
of 1979 have encouraged a kind of renaissance of letter (RIERA, 1989, p. 1 apud FAGES, 2007, p. 6).
51
quais a autora justifica a sua escolha pela língua catalã. Na obra Digues que m’estimes, por
exemplo, ela afirma que escreve em catalão porque “Primeiro, é a minha língua; segundo,
porque é uma linguagem literária; e terceiro, eu escrevo em catalão, porque eu quero”20
(ROIG, 1991, p. 28, apud Dupláa, 2000, p. 149 – tradução nossa). Segundo Dupláa,
[…] para Montserrat Roig la lengua fue la esencia fundamental de la
identidad y de la memoria genealógica femenina (recordemos el concepto
“lengua materna”), pero no olvidó manifestar que cualquiera lengua es un
instrumento, un medio que nos da la voz y la palabra, pero no es un fin en sí
misma (DUPLÁA, 2000, p. 150).
Na sua concepção, a língua é um instrumento valioso que possibilita ao ser humano
falar e se fazer ouvir. A língua interliga passado, presente e futuro, possibilitando uma
retomada do passado em prol de um porvir.
Como observa Dupláa (1996), estudiosa da produção da autora catalã e de sua
trajetória (1998, p. 40, apud FAGES, 2007, p. 7), o espaço urbano barcelonês ganha, na
produção de Roig, o status de “personaje-testimonio”, principalmente o bairro de
L’Eixample, cenário privilegiado da escritora descrito em sua própria língua.
Esse espaço é eleito como referência social, histórica e política para os personagens
ficcionais de Roig, mas podemos observar que eles extrapolam os limites fronteiriços de
Barcelona e da própria Espanha. Isso ocorre porque as pequenas histórias narradas
identificam-se com as de pessoas inseridas em outro espaço ou tempo. Consegue, portanto,
representar diferentes mulheres em diferentes contextos, cumprindo com uma das exigências
literárias, que é a apresentação de caráter atemporal e ahistórico.
Na década de 1970, Roig teve maior destaque em sua carreira literária, exatamente
quando publica em língua catalã o livro de contos: Molta roba i poc sabó... i tan neta que la
volen (1971). Em 1972, lança o seu primeiro romance, intitulado Ramona, adéu, o qual irá
compor a trilogia romanesca com El temps de les cireres (1977) e L’hora violeta (1980).
Dedicando-se à história marginalizada, escreve uma obra biográfica sobre o fundador do
Partido Comunista Catalão, Rafael Vidiella, intitulada I’aventura de la revolución (1974).
Outra obra reconhecida pelo seu valor testemunhal foi Els catalans als camps nazis (1977).
Obras como ¿Tiempo de mujer? (1980), Aprendizaje sentimental (1981), L’opera
quotidiana (1982), L’agulla dourada (1985), entre outras, marcaram sua carreira na década de
20
“Primer, perquè és la meva llengua; segon, perquè és una llengua literaria; i tercer, escric en cataà perquè
em dóna la gana” (ROIG, 1991, p. 28, apud DUPLÁA, 2000, p. 149).
52
1980. Em 1991 foi publicado o livro Digues que m’e estimes que encara que sigui mentida.
Outras produções foram publicadas após sua morte, como os artigos La ciutat de Barcelona:
una mirada femenina (1992), Madre, no entiendo a los salmones (1995), entre outras.
A última publicação ficcional foi a reunião de oito contos no volume El cant de la
joventut, em 1989, que, segundo Dupláa (1996, p. 129), retratam um amadurecimento em
relação à sua produção anterior. Aborda nesses contos temas como a juventude perdida, o sexo,
a vida, a morte, a memória e o esquecimento.
A obra em estudo, La hora violeta, compõe uma trilogia narrativa juntamente com
Ramona, Adiós (1972) e Tiempo de cerezas (1977). O primeiro romance narra a história de
três mulheres de uma mesma família, pertencentes a três gerações diferentes: a avó, a mãe
e a filha. As três chamavam-se Romana, viveram em uma Barcelona no turbilhão de
mudanças sociais. Dependentes dos seus maridos e presas ao sistema patriarcal buscam pela
liberdade.
As personagens dessa primeira narrativa encontram-se no enredo do segundo romance,
Tiempo de cerezas (1987). Agora as três mulheres dessa família (Ramona Jover, Ramona
Ventura e Ramona Claret) terão suas histórias entrelaçadas com as da família Miralpeix
através do casamento de Silvia Claret, irmã de Ramona Claret (chamada de Mundeta-hija),
com Lluís Miralpeix (filho de Judit Miralpeix, personagem de La hora violeta). Esse
segundo romance foi ganhador do Prêmio Sant Jordi, em 1976.
A obra La hora violeta (1980), a última da trilogia, retoma vários personagens de
Ramana, Adiós e Tiempo de cerezas, sejam eles retratados ainda em vida ou trazidos em cena
através das memórias. No início desse terceiro romance o leitor depara-se com uma árvore
genealógica que permite uma maior compreensão acerca dos envolvimentos entre as
famílias Miralpeix e Ventura-Claret. Por hora nos deteremos às questões da obra La hora
violeta, corpus de análise dessa dissertação.
2.3. Adentrando o universo de La hora violeta: o título
Quando nos deparamos com uma obra literária, ou com qualquer outro gênero textual,
a primeira informação à qual nos voltamos é para o título. Isso ocorre porque a função do
título é sintetizar o conteúdo do texto e instigar a curiosidade do leitor para adentrar naquele
universo discursivo. É comum em títulos de obras literárias a presença do nome do
personagem protagonista ou informações sobre ele. Outras vezes, o título alude ao espaço ou
ao tempo da narrativa. De acordo com Reis e Lopes (1988, p. 98),
53
A relação do título com a narrativa estabelece-se muitas vezes em função da
possibilidade que ele possui de realçar, pela denominação atribuída ao relato,
uma certa categoria narrativa, assim desde logo colocada em destaque.
Essa categoria narrativa se faz presente no título La hora violeta, a qual remete ao
próprio ato de narrar. O título da obra é formado por apenas três palavras: “La”, “hora” e
“violeta”. Todas do gênero feminino que implicitamente poderiam anunciar a história das
mulheres
A palavra “hora” refere-se a um tempo cronologicamente marcado. No entanto, a “hora”
da qual fala Roig, através desse título, é a hora da escrita, a hora de expressar aquilo que
permaneceu por muito tempo armazenado, oculto. Refere-se a um tempo histórico. Chega,
então, a “hora” de dar a voz às mulheres para narrarem histórias não oficiais, de retratarem
aquilo que a História deixou de lado.
Na Bíblia, no livro de Eclesiastes, escrito aproximadamente no ano de 935 a.C., Salomão
apresenta algumas instruções sobre o tempo, defendendo a existência de um momento
oportuno para cada acontecimento:
Tudo tem seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo
do céu;
há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar
o que se plantou;
tempo de matar e tempo de curar; tempo de derribar e tempo de edificar;
[...]
Tempo de buscar e tempo de perder, tempo de guardar e tempo de deitar
fora;
tempo de rasgar e tempo de coser; tempo de estar calado e tempo de falar;21
(SALOMÃO, 1999, p. 594-595).
Em La hora violeta chegou o “tempo de falar” e não mais permanecer em silêncio. Uma
tarefa difícil quando o conteúdo dessa fala remete a um tempo nunca esquecido, ao tempo da
guerra e do pós-guerra ou, melhor dizendo, ao tempo das atrocidades cometidas durante a
Guerra Civil Espanhola e a ditadura franquista. Ao transpor esse tempo em palavras surge a
dificuldade de representá-lo, pois é nessa intermediação que se alcançará o “tempo de cura”.
Por essas dificuldades é que a protagonista Norma tenta, em princípio, fugir dessa tarefa,
como alega desde o primeiro capítulo:
Yo me había terminado un largo libro sobre los catalanes en los campos
nazis, y la verdad es que no me habían quedado ganas de remover el pasado.
21
Grifo nosso.
54
La historia de la deportación me dejó medio enferma y escéptica (ROIG,
2000, p. 43).
Isso ocorre porque ao escrever sobre o passado violento o autor revive a dor e o
sofrimento.
A segunda palavra do título nos remete a outras obras literárias que também trazem em
seus títulos a palavra “hora”, citamos, por exemplo, A hora da estrela (1977) de Clarice
Lispector. Para Macabéa, uma imigrante nordestina vítima dos problemas sociais que vai
tentar a vida na cidade do Rio de Janeiro, não haveria outra possibilidade de brilhar e receber
a atenção dos outros que não fosse o momento da morte, como afirma o próprio narrador:
“Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de
cada um [...]” (LISPECTOR, 1981, p. 36).
Outra narrativa que tem em seu título a palavra “hora” é o conto de João Guimarães
Rosa, intitulado A hora e a vez de Augusto Matraga (1946), o protagonista do conto, um
pistoleiro temido que, por consequência do destino, passa por várias provações. Numa
tentativa de se redimir, busca incansavelmente ser um homem bondoso e sem vícios, na
esperança de alcançar a vida eterna e afirma constantemente que “Para o céu eu vou, nem que
seja a porrete”. As palavras do padre dirigidas a Matraga: “Cada um tem sua hora e sua vez:
você há de ter a sua”, se concretizam no final da narrativa, quando o protagonista encontra
Joaozinho-Bem-Bem em um vilarejo pronto para matar uma família e se vingar da morte de
um de seus capangas. Matraga se opõe à vingança e, em luta com Joãozinho-Bem-Bem,
ambos morrem, chegando assim a sua “hora”.
Nesses dois exemplos, A hora da estrela e A hora e a vez de Augusto Matraga, a
palavra “hora” está precedida por uma preposição, indicando que a “hora” da qual se fala é a
hora desses personagens. Já em La hora violeta não há o emprego de preposição, mas sim de
um adjetivo, qualificando o substantivo “hora”. No entanto, a palavra “hora” qualificada
como “violeta”, implicitamente refere-se a um determinado momento.
A personagem-narradora Norma é encarregada de falar sobre algo não agradável,
sobre aquilo que causou o trauma em várias outras personagens, sobre os horrores que
levaram os sujeitos à destruição, quando não física, emocional e psicológica. Nesse sentido,
fica mais fácil compreendermos porque Montserrat Roig atribui à palavra “hora” o adjetivo
“violeta”, cor que remete a inúmeros significados.
No campo religioso, a cor violeta é a cor que predomina nos altares das igrejas
católicas no período da Quaresma. Segundo o padre João Panazzolo, da diocese de Caxias do
Sul, em matéria publicada pelo Jornal Contexto, em junho de 2001, "Ela é usada nos
55
paramentos dos padres, nas toalhas do altar, enfim, em tudo."22. A cor é utilizada nesse
período para representar a dor de Cristo, o martírio, o sofrimento.
Frida Kahlo, pintora mexicana, aos 18 anos de idade, foi vítima de um acidente que
envolveu um ônibus e um trem urbano. Uma barra de ferro perfurou suas costas atravessando
sua pélvis e saindo pela vagina, o que provocou uma intensa hemorragia. Os médicos não
tinham expectativa de vida para Kahlo. Após várias cirurgias, mas ainda com dores terríveis,
vai para casa, onde nos momentos de angústia e dor dedica-se à escrita de cartas,
principalmente destinadas para Alex (Alejandro Gómez Arias), seu namorado que também
estava no trem no dia do acidente.
No ano de 1944, quando submetida a mais uma cirurgia que a impossibilitou deslocarse, Kahlo pintou três quadros que, de acordo com Brognoli (2009, p. 92), ilustram muito bem
a dor pela qual a artista vinha passando. Tratam-se das seguintes telas:
“O veado ferido” (1946)
“Coluna partida” (1944)
“Árvore da esperança:
mantém-te firme” (1946)
Sem aprofundarmos nas questões formais da estética de Kahlo, podemos perceber que
a tonalidade violeta se faz presente nas três telas, representando a dor, o que aparece de forma
mais intensa na terceira tela, onde um veado personificado aparece com várias flechas
perfurando seu corpo. A cor vermelha marca o local do ferimento e a cor violeta o corpo do
animal machucado.
A cor violeta remete também ao entardecer, como observa a própria protagonista de
La hora violeta: “Era el atardecer, esa hora en que el cielo se vuelve de color violeta” (ROIG,
2000, p. 242). Segundo Norma, esse momento se compara à sublimação do ocaso da vida e ao
sentimento que traz a memória na recordação dos tempos incertos, quando a imaginação
transborda para escrever sobre os passados dias violetas. Judit também gostava dessa hora do
dia, “_Me encanta esta hora – dijo Judit -. Es una hora en que parece que todo el mundo
recupera la armonía perdida. Como si las cosas y los hombres se serenasen”. Já sua amiga
22
Entrevista disponível em: http://www.jornalcontexto.com.br/quaresma.htm. João Panazzolo é Padre diocesano
de Caxias do Sul, formado em Filosofia e Teologia e mestre em Missiologia pela Faculdade de Missiologia
Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
56
Kati, não tinha a mesma opinião que Judit e lhe responde: “_A mi no me gusta. Es una hora
triste una hora de muerte”. Mas Judit avistava além da tristeza que o momento proporcionava,
visualizava a possibilidade de recriação das coisas: “_ Creo que las cosas tienen que morir
para volver a nacer” (ROIG, 2000, p. 187-8).
No entardecer, atenua-se a vida, diminui o barulho e o ritmo das atividades diárias,
podendo-se, assim, observar e analisar com maior objetividade os elementos que compõem a
vida e sua história, sejam eles internos, como os sentimentos e as sensações, ou externos,
como as atividades corriqueiras e os objetos que nos rodeiam. Isso pode ser observado na
passagem que segue, quando uma narradora retrata o entardecer vivenciado por Judit e Kati:
Las dos amigas se levantaron. Era esa hora en que la luz del día comienza a ser
vencida por la noche. No habían encendido los faroles y las calles estaban vacías, la
ciudad parecía sumergida en un silencio expectante (ROIG, 2000, p. 190).
Natàlia não gosta desse momento do dia: “No soporto ese momento del día, cuando las
horas caen” (ROIG, 2000, p. 85), talvez por não estar disposta a encontrar-se consigo mesma,
a refletir sobre o dia vivido.
A hora violeta também é tratada na obra, apesar de que com menor recorrência, como
o momento do amanhecer, como, por exemplo, quando a personagem Agnès se desperta,
depois de uma noite de amor com Francesc, e o narrador relata que ela “Se despertó al
despuntar el Alba, cuando la luz es de color violeta [...]” (ROIG, 2000, p. 139).
Nesse sentido, o título La hora violeta marca que é chegado o momento no qual se
deve narrar sobre personagens com histórias nem sempre agradáveis, mas que necessitam ser
contadas, pois, através dessas narrativas que remetem ao passado os personagens do presente
podem entendê-lo e avançar em direção a um futuro melhor. A hora violeta é, portanto, a hora
de contar, de reelaborar o passado, de criar um mundo ficcional e de aproveitar o momento
violeta do dia utilizando os elementos que se destacam nesse momento para construir a ficção.
2.4. Temas e a organização da obra
Os temas abordados no romance estão relacionados às questões que permeiam a
sociedade barcelonesa da década de 1970. Para Szurmuk (2002, p. 158), um aspecto que faz
com que a obra de Roig seja particularmente interessante é a multiplicidade de discursos
inseridos na estrutura: o marxismo, o feminismo e o catalanismo.
Em relação aos principais temas abordados no romance, podemos destacar a
preocupação com a reescrita da história e o mundo feminino. A partir de cada um desses
temas surgem ramificações como, por exemplo, discussões sobre a escrita da história a partir
57
do ponto de vista dos homens, a historiografia franquista que determinava o espaço que as
mulheres deveriam ocupar na sociedade, os discursos das minorias e dos marginalizados que
nunca se fizeram ouvir, a memória como possibilidade de resgatar um passado silenciado, a
arte como forma de representação e recriação de novos modelos sociais, em especial o que
concerne às mulheres. Em relação às mulheres abre-se outro leque, fala-se sobre o amor, a
infidelidade, o sexo, o prazer, o homossexualismo como meio para experimentar outras
possibilidades de amor, o papel da maternidade, da esposa, da mulher que busca um espaço na
sociedade, entre outros.
Questões políticas e sociais também permeiam a obra, como a Guerra Civil, o Partido
Comunista, as lutas dos Republicanos, a Segunda Guerra Mundial, os campos de
concentração nazista, a ditadura franquista, os bombardeios e conflitos de rua em Barcelona.
Ciplijauskaité (1986, p. 405), observa que:
Lo colectivo, el partido, ocupan demasiado lugar sin ser integrados
completamente. Su intención corresponde tal vez al deseo de traspasar lo
amoroso y presentar a la mujer como partícipe igual en la vida pública. Sin
embargo, la obsesión por la compañía del hombre, presentes en todos los
fragmentos, anula esta intención.
A presença dessas temáticas ronda a memória das personagens, pois o enredo não se
desenvolve nos momentos de conflitos, por exemplo, mas estes são retomados através da
recordação. A imagem do ditador Franco figura nos sonhos de Natàlia:
He tenido un sueño [...] a mí lado, una muchacha de larga cabellera y de piel
de melocotón me besaba el cuerpo. [...] Franco emergió de las aguas, [...] El
dictador nos prohibía que hiciésemos el amor (ROIG, 2000, p. 143-4).
Neste sonho misturam-se os problemas políticos do país de Natàlia e os conflitos
pessoais em relação ao seu comportamento sexual. Em todo o romance um assunto leva a
outro, como um entrelaçamento de argolas que formam uma corrente.
O que há em comum entre as mulheres na obra La hora violeta é que, independente
dos papéis sociais que desempenham, suas histórias apresentam a seguinte estrutura cíclica: a
busca pelo amor e as decepções.
O discurso sobre as questões de gênero permeia toda a narrativa. As personagens
participam de várias palestras e debates sobre as duas vertentes do feminismo, o da diferença
e o radical. No entanto, Roig buscava a construção de um feminismo que solucionasse os
problemas de sua sociedade barcelonesa, não se preocupando em seguir uma ou outra vertente
teórica, mas, como observa Szurmuk (2002, p. 165), “Roig parece querer transcender ambos
58
discursos y crear un texto donde se rescaten actitudes y personajes que ayuden a una
concienciación y a una nueva evaluación del tema más allá de modelos importados”.
Para Dupláa (1996, p. 123), as mulheres dos romances roigueanos são unidas pelo
desejo de viverem suas vidas com sentido, e isso só é possível através do diálogo, da
comunicação com as outras mulheres, o que se efetiva apenas no último romance da trilogia,
quando “llega la hora violeta, la hora de las mujeres”.
Os temas sobre a reconstrução da história desde um ponto de vista feminino e com o
resgate da memória, e não do ponto de vista dos discursos oficiais estabelecidos pela
historiografia franquista, desenvolve-se no primeiro capítulo do romance. Os discursos
minoritários estão presentes no terceiro capítulo, através dos quais se pode imaginar o
cotidiano de mulheres burguesas da sociedade catalã da metade do século XX. Por fim, o
último capítulo encerra o livro com um título muito sugestivo: La hora abierta, deixando as
histórias das personagens em “aberto”, plausíveis de transformações, visto que as histórias são
narradas tendo como fundamento a memória.
A narrativa vai mesclando dados “verdadeiros” com imaginários. As relações de
verdade às quais nos referimos são aquelas estabelecidas dentro do próprio romance que, para
Vargas Llosa (2007, p. 21), depende “de su propia capacidad de persuasión, de la fuerza
comunicativa de su fantasía, de la habilidad de su magia”. Assim, dentro do mundo ficcional
de La hora violeta, a escritora Norma constrói uma história fictícia a partir de dados reais, os
quais somente são “reais” dentro da ficção aceita pelo leitor, no ato da leitura, como tais.
Através do uso das memórias o romance se constrói e cumpre uma das suas funções
sociais, pois as histórias das mulheres são histórias minoritárias, não pertencem ao apartado
teórico da História Oficial como já observara Vargas Llosa (2002, p. 25):
La recomposición del pasado que opera la literatura es casi siempre falaz
juzgada en términos de objetividad histórica. La verdad literaria es una y otra
la verdad histórica. Pero, aunque esté repleta de mentiras - o, más bien, por
ello mismo – la literatura cuenta la historia que la historia que escriben los
historiadores no sabe ni puede contar.
No romance, verifica-se que as histórias pessoais se mesclam com as histórias
nacionais, apesar de que ter seu cotidiano negado por esta, como expõe Ciplijauskaité (1986,
p. 404):
Montserrat Roig intenta ir más allá de la simple confesión o rememoración
en Ramana, adiós (1980) y en La hora violeta (1981). A la complejidad
estructural de ambas novelas une la complejidad de preocupaciones. No es la
autora de un solo «deseo», aunque las dos narraciones _ y ya tiempo de
59
cerezas _ desarrollen el mismo mundo. Lo femenino en estas novelas está
inextricablemente mezclado con lo político.
A escritora constrói seus personagens a partir do contexto da Guerra e do pós-guerra,
representando muitos dos problemas que a sociedade espanhola sofreu e ainda sofre, mas, se
propõe reescrever a história desde a perspectiva das mulheres.
La hora violeta apresenta-se em uma estrutura que rompe com as formas da
narrativa tradicional. O Romance é organizado em cinco capítulos, sendo eles:
“Primavera de 1979”, “La hora perdida (Natàlia y Agnès)”, “La novela de la hora violeta”,
“La hora dispersa (Ellos y Norma)” e “La hora abierta”. Sobre essa organização, Guiomar
Fages (2007, p. 13) observa que o primeiro capítulo é uma espécie de prólogo, os três
subsequentes se referem ao corpus narrativo e o último se constitui em uma forma de epílogo.
Essa esquematização observada por Fages se confirma. Entretanto, é interessante observarmos
que a apresentação no capítulo “Primavera de 1979” leva o leitor a imaginar que, na
sequência, serão colocadas as histórias das personagens Kati e Judi e, no entanto, os próximos
capítulos são um emaranhado de histórias de outras personagens que, por vários motivos,
entrelaçam-se com as histórias dessas personagens. Portanto, podemos afirmar que o
programa da narrativa iniciado no primeiro capítulo não é a preocupação central da escritora,
visto que essas histórias serão retomadas ou narradas, mas não são elas exclusividade dos
próximos capítulos.
Outro detalhe interessante se dá em relação aos títulos dos capítulos da obra, os quais
são marcados pela palavra “hora”, com exceção do primeiro capítulo, que apresenta outro
marcador temporal, fazendo referência ao ano de 1979 e à estação da primavera. Não fugindo,
porém, de uma estrutura aparentemente fixa que se preocupa com a demarcação do tempo.
No primeiro capítulo, é estabelecida a proposta da escrita de um romance. A
personagem-narradora Norma, explica como teve acesso a vários documentos (cartas, diários,
anotações) da família Miralpeix. Assim, o leitor passa a conhecer Norma, a escritora que
trabalha com aspectos da realidade, coletando depoimentos e construindo mundos ficcionais
com base numa realidade chocante e conflituosa que é a de Barcelona no século XX.
Natàlia Miralpeix, amiga de Norma, envia-lhe os referidos documentos juntamente
com uma carta pedindo-lhe para reelaborar o mundo de duas mulheres da burguesia catalã,
Judit, a mãe de Natàlia, e Kati, a amiga de Judit. Apesar de se debater com esses
documentos, Norma acaba não tendo outra saída a não ser mergulhar no universo ficcional
dessas duas mulheres, embora, num primeiro instante, tenha rejeitado a ideia de escrever
60
sobre elas pelas intermediações que existem de sua vida privada e a história recente da
Espanha franquista.
Nesse capítulo são levantadas várias questões sobre teoria literária e são
apresentados alguns personagens que terão suas histórias retomadas posteriormente. Dentre
eles, os irmãos de Natàlia, Pere, que era mongólico e Lluis que era um “hijo directo del
fascismo” (ROIG, 2000, p. 52). Também são apresentados Jordi, o amante de Natàlia, um
participante ativo do PSUC e é claro, a própria Natàlia, uma fotógrafa que registra os
acontecimentos através de suas fotografias.
Alguns dos conflitos que conduzem a narrativa são expostos aqui, como o
feminismo, as frustrações amorosas, o mundo das mulheres versus o mundo dos homens, as
questões políticas que envolvem o PSUC e o problema da representação que se estabelece
através da discussão teórica sobre história e literatura.
No segundo capítulo, encontram-se reunidas as memórias de Natàlia que trazem a tona
o triângulo amoroso entre ela, Jordi e Agnès. Esses três personagens são tratados à luz da
Odisséia, de Homero, através de analogias.
O título da segunda seção do romance “La hora perdida” sugere, como observado por
Tsuchiya (1998 p. 167), “[...] a ideia de perda em vez da recuperação da história e da
identidade.”23 (tradução nossa). O subtítulo “Natàlia lee la Odisea en una isla del
Mediterráneo” é também o subtítulo do último capítulo, onde encontramos essa personagem
ainda presa ao mito homérico. Os assuntos aqui tratados, apesar de diversos, giram em torno
do comportamento dos personagens que compõem o triângulo amoroso e de Norma, que é,
constantemente, trazida para as reflexões de Natàlia.
No terceiro capítulo nos deparamos com um dos principais recursos usados por Roig
na estruturação do romance, são anotações em forma de diário e cartas. O diário é um gênero
pertencente ao grupo de narrativas em primeira pessoa e, como o próprio nome remete,
refere-se a uma narrativa do dia-a-dia. Possui relatos dos fatos vivenciados pelo autor,
normalmente personagem principal, que seleciona os acontecimentos que julga serem
merecedores de recordações e os registra a partir do seu ponto de vista.
Entendemos o terceiro capítulo como o eixo da narrativa, pois nele se encontram as
anotações familiares a que Natàlia teve acesso, e às que o leitor toma conhecimento desde o
primeiro capítulo. Norma se refere com certo desprezo a esses documentos e justifica a falta
de interesse em reelaborar as histórias dessas mulheres pelo cansaço, pois acabara de
23
“[…] thus calling attention to the Idea of loss rather than the recovery of history and identity” (TSUCHIYA,
1998, p. 167).
61
concluir um livro sobre os catalães nos campos nazistas. Porém, outro fator que a faz tentar
afastar-se dessas histórias é a identificação de sua vida com as daquelas mulheres, o que a
levaria a uma reflexão sobre sua própria vida, pois, reescrever sobre o passado dessas
mulheres era também uma forma de pensar em si, de se ver através dessas histórias.
No quarto capítulo do romance, “La hora dispersa (Ellos y Norma)”, é apresentado o
relacionamento de Norma com seu esposo Ferran. Ambos ganham espaço para narrarem, do
seu ponto de vista, os conflitos que os envolvem. É narrada também a história de Germinal,
um antigo amigo de Ferran com quem compartilhou momentos de lutas estudantis.
Participaram das “[...] peleas con los anarquistas, con los trotskistas” (ROIG, 2000, p. 2009).
Germinal, que participara de um grupo armado e se envolvera em assaltos de bancos, acabou
condenado por quarenta anos de prisão. Ganhou liberdade graças à anistia ocorrida com a
morte de Franco. Após a prisão, Germinal passou a viver num mundo de fantasias,
acreditando ser Flash Gordon24, conduzindo um seiscentos atravessava as avenidas em alta
velocidade, dirigia somente com uma mão e fazia manobras arriscadas. Ao tentar alcançar
Zino25, na verdade um caminhoneiro que conduzia à sua frente, acaba provocando um grave
acidente.
Nesse capítulo a personagem escritora se debate com inúmeras questões a respeito da
escrita literária. Vivencia um turbilhão de conflitos acerca dos limites entre o mundo real e
fictício, numa tentativa de organizar os acontecimentos e sentimentos extraídos da realidade
dando-lhes uma configuração artístico-literária. Como, por exemplo, a elaboração da obra
sobre Judit e Kati a partir das anotações dessas duas mulheres e a obra que teve como
inspiração os relatos dos ex-deportados dos campos nazis.
O quinto e último capítulo ganha o título “La hora abierta” e retoma o subtítulo do
terceiro capítulo “Natàlia lee la Odisea en una isla del Mediterráneo”. Natàlia conclui a leitura
da Odisséia, os dias que passara com Jordi na ilha chegam ao fim e eles precisam retornar às
suas casas.
Norma havia concluído o manuscrito sobre Judit e Kati e percebe que de alguma
forma as peças foram se encaixando, mas apenas com o auxílio da palavra, ou seja, da
literatura: “Las piezas se habían dispersado era cierto, pero con la palabra las volvería a unir”
(ROIG, 2000, p. 320).
24
Personagem de história em quadrinho Flash Gordon da Espanha. O primeiro personagem espacial. Escrita por
Alex Raymond, 1934.
25
Personagem da história em quadrinho Flash Gordon.
62
O capítulo que fecha o romance, “La hora abierta”, sugere através do próprio adjetivo
“aberta” a continuidade da narrativa, pois não há uma conclusão e um ponto final, mas
indicações do que poderia suceder com esses personagens. Permanece no leitor uma
expectativa, uma curiosidade em relação ao desenrolar da narrativa. Assim como a própria
vida do leitor seguirá um caminho, aqueles personagens não deixarão de viver novas
experiências. Eles não se acabam com o fim da leitura do livro, mas permanecem na memória
inquieta do leitor, o qual se identifica com os fragmentos que se unem e conseguem certa
harmonia para prosseguir a própria vida.
63
3. A HORA DA ANÁLISE
O escritor escreve do que tem dentro,
do que vai cozinhando no seu interior e que vomita
porque já não pode mais
Isabel Allende
A obra La hora violeta, de Montserrat Roig, é uma construção metaficcional. O enredo
se desenvolve a partir da proposta de construção de uma narrativa pela personagem Norma, o
que, a princípio, provoca um estranhamento no leitor que se depara com a construção de um
universo ficcional dentro de outro, o do próprio romance de Roig. Chalhub (1986, p. 15-16)
faz uma interessante observação sobre o reconhecimento e o estranhamento de uma
mensagem por parte do receptor:
[...] Se uma mensagem organiza-se de modo a provocar reconhecimento de
conceitos e formas já adquiridos pelo receptor porque fazem parte do senso
comum da cultura, o público se amplia, na medida em que este conhecido
repele o novo e traz à tona o velho. Se, inversamente, na organização da
mensagem, os sinais forem manipulados inusitadamente, a forma nova
provocará um estranhamento no receptor. O público será afunilado. Porque,
sob o ponto de vista do repertório, o que é claro é a dificuldade em
reconhecer o belo no signo novo.
Em La hora violeta, o estranhamento é facilmente perceptível e compreendê-lo é um
desafio. A metaficção presente na obra desvenda ao leitor que as personagens Judit e Kati se
tornam personagens do romance escrito por Norma, a responsável pela confecção de um texto
sobre duas mulheres que viveram um período atormentado pela guerra e são repletas de
traumas e conflitos pessoais. Devido a essa construção Roig parece não ser a autora do
romance, mas sua personagem Norma.
Chalhub (1986, p. 27) observa que “a função metalingüística pode ser percebida
quando, numa mensagem é o fator código que se faz referente, que é apontado”. Na obra em
estudo é o fator ficção que toma conta do cenário, o que está em jogo é a própria construção
literária, portanto, o fio condutor da narrativa é o próprio processo de narrar.
No entanto, esse processo de narrar não se desenvolve sem passar por algumas
dificuldades. Na verdade, as barreiras são postas para a personagem escritora, pois ela é quem
organiza a narrativa e supera os obstáculos. A complexidade surge quando fatores externos e
internos à vida da escritora se miscigenam a tal ponto que não há mais como estabelecer
limites entre eles, o que provoca na personagem um incômodo ou um desassossego ao
reelaborar o passado. A inquietação enfrentada pela personagem Norma em relação à
64
reelaboração do passado se estabelece desde o início da obra permanecendo até o final da
narrativa.
David Herzberger (1995, p. 9), citado por Tsuchiya (1998, p. 164 – tradução nossa)26,
observa que os romances de Roig “tem tanto a história e a escrita da história como
referência”. No primeiro capítulo de La hora violeta, “Primavera de 1979”, é apresentada à
Norma a proposta de elaboração de uma obra sobre Kati e Judit, duas mulheres da burguesia
catalã que vivenciaram os acontecimentos da Guerra Civil Espanhola, dos primeiros anos da
ditadura de Franco e da Segunda Guerra Mundial, como já exposto. A princípio, Norma tenta
resistir de várias maneiras a essa tarefa, mas, acaba se envolvendo com os documentos
familiares de sua amiga Natàlia e, ao final do romance, o leitor confirma que, apesar de todas
as dificuldades, Norma consegue superá-las e o romance é elaborado.
Roig cria e organiza o universo ficcional minuciosamente, desde a escolha do nome da
personagem que será a responsável por organizar as histórias de pessoas comuns. O nome
próprio “Norma” origina-se do substantivo “norma”, palavra que, segundo o Dicionário de
Língua Portuguesa Aurélio (2010, p.534), remete a algo que está corretamente posto,
conforme as regras estabelecidas, de acordo com princípios que regem os valores morais e
estéticos. Ela é quem irá “normalizar”, dar forma aos cacos dispersos que a amiga lhe
proporciona para construir o romance, pois, isso significa, nas palavras de Benjamin, (1994d,
p. 201) “levar o incomensurável a seus últimos limites”, dessa maneira “se imprime na
narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” para entender as
histórias de um passado que não pode ficar no esquecimento e que, elaboradas, traspassem os
limites temporais.
3.1 Os registros das memórias familiares
O próprio título do terceiro capítulo: “La novela de la hora violeta” nos conduz a tratálo como o pilar da obra, pois, ali encontram-se as fontes de inspiração para Norma dar forma á
obra. Esses documentos familiares revelam muitas informações íntimas que marcaram a vida
de Judit e Kati e, consequentemente, de Norma e Natàlia por serem assuntos que lhes são
comuns, daí sua inquietação pela escritura.
A narrativa de La hora violeta inicia com a fala da narradora Norma explicando as
origens dos papéis que se encontravam com ela:
26
“[…] have both history and the writing of history as referent” (HERZBERGER, 1995, p. 9, apud TSUCHIYA,
1998, p. 164).
65
Un día, Natàlia me dio algunas notas que había escrito sobre su tía, Patricia
Miralpeix, y también algunas cartas de Kati y el Diario de Judit Fléchier, su
madre. No es que Judit hubiera escrito un diario; más bien se trataba de unos
papeles dispersos en los que ella ponía una fecha. Al morir el padre de
Natàlia, Joan Miralpeix, su tía Patricia los encontró y se los dio a su
sobrina. No eran gran cosa. Mi amiga Natàlia me envió todos esos
papelotes y, al cabo de unos días, me telefoneó (ROIG, 2000, p. 43).
Norma demonstra certo desprezo em relação aos documentos que recebera da
amiga, provavelmente por estar exausta de remexer o passado, pois, como escritora
comprometida trabalhava com “cacos”, com as “migalhas”, era um “catador de sucata”, nas
terminologias benjaminianas.
As informações contidas nesses documentos são reveladas apenas no terceiro capítulo
da obra, intitulado “La novela de la hora violeta”. Tsuchiya (1998, p. 167) presume que esse
terceiro capítulo seja o romance que Norma escreve sobre Judit e Kati. No entanto, tratamo-lo
como as transcrições dos próprios apontamentos familiares de Natàlia, pois desde nosso olhar
crítico não encontramos vestígios de que ele seja o texto produzido por Norma, apenas uma
informação que nos poderia induzir a pensar que entre o capítulo da obra de Roig e o livro de
Norma há uma referencialidade: no apontamento intitulado “1 de noviembre de 1950”, o qual
encerra o terceiro capítulo, Judit escreve “Basta, se acabó. Ya no escribo más. Continuaré”
(ROIG, 2000, p. 202) é paralelo ao momento quando Norma diz ter concluído o livro sobre as
histórias de Kati e Judit. Ela coloca fim à narrativa quando Judit não quer mais escrever:
“Puso el punto final al manuscrito sobre Judit y Kati en el momento en que Judit decide no
seguir escribiendo el dietario, cuando decide continuar sólo en el recuerdo” (ROIG, 2000, p.
297). Considerando essa leitura feita por Tsuchiya, podemos afirmar que as datas presentes ao
longo desse terceiro capítulo seriam subterfúgios inventados por Norma para dar forma à sua
obra e remeter às conexões com a memória.
Os dados contidos nos fragmentos textuais encabeçados pelo ano “1958” são relatados
por uma narradora onisciente que aborda vários assuntos que dizem respeito à vida de Judit, de
seus familiares e de sua amiga Kati. Já a data de “1964”, a voz de um narrador em terceira
pessoa transfere à Patrícia Miralpeix a oportunidade de ser ouvida. Através da frase: “Habla tía
Patricia:” vários fragmentos entre aspas aparecem como se fossem uma transcrição direta dos
pensamentos de Patricia. Essas recordações coincidem com o dia da morte de Judit, o que
instigou suas lembranças. Provavelmente essas seriam as “notas” que Natàlia havia escrito
sobre sua tia. No entanto, podem também ser considerados como parte do romance de Norma e,
assim, Natàlia assumiria o papel de uma personagem da obra de Norma que fala apenas para
introduzir a voz de outra personagem, no caso, da Tía Patricia.
66
O mesmo poderíamos dizer a respeito dos fragmentos narrados em terceira pessoa que
são encabeçados pelo ano de “1958”, ou seja, Norma teria criado um narrador onisciente para
narrar sobre a história de Judit ou, se realmente se referissem aos apontamentos familiares,
poderiam ter sido escritos por Judit, mas, é outra forma de registrar as memórias,
provavelmente, por estar temporalmente afastada dos acontecimentos evocados e, portanto, a
forma de diário não seria a mais adequada para registrá-los.
Ao lerem os documentos escritos por Judit e Kati, tanto Natàlia quanto Norma
podem se compreender melhor através das semelhanças e diferenças que vão sendo
apontadas; os conflitos pessoais são, aos poucos, solucionados como se um emaranhado de
linha fosse se desenrolando.
Devido ao contexto no qual estão inseridos os personagens do primeiro núcleo
narrativo, aqueles trazidos à cena pela rememoração, a presença do trauma é facilmente
perceptível em suas vidas. Sendo que esse trauma gira em torno da vida de todos daquele
momento histórico. A s personagens não vivem sozinhas essas experiências traumáticas,
suas inseguranças e medos são cúmplices de outras que vivem sob as mesmas condições.
Olmi (2006, p. 39), a esse respeito, afirma que:
A partir do processo de desenvolvimento e cultivo da memória, torna-se
relevante refletir sobre a dimensão da escrita autobiográfica como forma de
trauma ou testemunho, tanto pessoal quanto social e cultural, buscando
acionar uma análise que permita captar, na narrativa auto-referencial, o
resgate e a redefinição de histórias que assinalam momentos que precisam
ser narrados para que não se perca a memória de eventos marcantes
que deixaram rastros indeléveis nos narradores e que envolvem toda uma
sociedade na qual esses eventos tiveram lugar e, em alguns casos, envolvem
a própria humanidade como um todo.
As mudanças de conduta dos personagens são nitidamente percebidas após as
experiências traumáticas, como verificamos na passagem abaixo, quando Natàlia observa a
diferença entre sua mãe antes da guerra e sua mãe depois da guerra.
Estos papeles me han hecho comprender que mi madre de la posguerra no
tenía nada que ver con Judit de los años anteriores. Creo que mi madre
después de la guerra no vivía de una manera paralela al tiempo y al espacio
que biológicamente le correspondían. Todo esto me ha hecho pensar que
vamos haciendo a los demás la relación que con ellos mantenemos (ROIG,
2006, p. 49-50)
Somente através da retomada desse passado é que Natàlia pode chegar a essa
conclusão, confirmando o que temos discutido sobre a importância da rememoração para o
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processo de compreensão do passado e do presente. É através dela que o passado pode ser
retomado e revivido pelas personagens, com o intuito de auxiliar a cada uma no processo de
auto-compreensão e de compreensão dos outros.
Podemos verificar que utilizam os recursos artísticos da profissão que conhecem para
representar experiências ou impressões acerca de acontecimentos passados ou para evadir o
presente. Natália faz do seu trabalho de fotógrafa um meio através do qual reflete sobre o
mundo exterior, Judit escrevia seus diários e tocava piano, Kati escrevia as cartas para
Patrick, Àgnes começava a escrever dezenas de cartas para Jordi, apesar de nunca concluíalas, e Norma, no processo de escrita de textos literários, compromete-se com as memórias de
um passado que não pode ser esquecido.
Em relação aos apontamentos de Judit, alguns apresentam características próprias do
diário, como a presença de uma data e um narrador em primeira pessoa sobre acontecimentos
do dia-a-dia. Maciel aponta alguns elementos fundamentais para a estrutura do gênero diário,
segundo ela:
Um diário é uma crônica cotidiana de uma experiência pessoal e quem
escreve (e se inscreve) interessa-se por anotar pequenas coisas do dia-a-dia
ao lado das grandes dúvidas e indagações humanas. [...]. Três elementos são
fundamentais nesta composição: o narrador escreve em primeira pessoa,
sobre si e sobre a realidade diária, não tendo acesso ao futuro e mantendo
uma periodicidade, ainda que variável (MACIEL, 2002, p. 58).
As anotações de Judit em primeira pessoa seguem certa periodicidade, como se
verifica em relação à disposição das datas. O primeiro registro consta de “20 de septiembre de
1942” e o último de “1 de noviembre de 1950”. No entanto, apresentam-se com um intervalo
consideravelmente distante um do outro. A respeito do tempo, Blanchot (1996, p. 46) afirma
que o diário “debe respetar el calendario. Este es el pacto que sella”. Apesar de ser
desconhecida a existência de outras anotações de Judit, não se pode descartar a possibilidade
de que tenham existido e que se perderam ao longo do tempo, já que, eram feitas em papéis
dispersos e não em um livro ou caderno próprio para esse fim, como se verifica na fala de
Norma ao se referir a eles como “papeles dispersos”, o que remete à pouca importância dada a
essas fontes de memórias e de história recente. Esse é outro recurso utilizado por Roig para
construir sua narrativa, deixando mais uma possibilidade de leitura e de imaginação para o
leitor. Contudo, essas anotações apresentam algumas das características de um diário como a
introspecção, a escrita solitária e sem finalidade de publicação e o tratamento dispensado a
este por parte de Judit como seu amigo confidente.
68
Segundo Olmi (2006, p. 14), o autor de narrativas em primeira pessoa escreve dessa
maneira:
Para aumentar a própria auto-estima, mas acima de tudo, para cuidar de si,
para construir e acompanhar o desenvolvimento e as mudanças da própria
identidade, utiliza-se a página escrita (de um diário, de um memorial, de
uma carta, etc), e isso leva o ser humano a conhecer-se melhor. Além do
mais, já se sabe cientificamente que escrever a própria história, exercitandose diariamente, fazer um balanço de certas passagens e de certas fases de
existência, educa ao desenvolvimento do mundo interior: estimula a
recordar, a concentrar-se, a raciocinar, a partir de si mesmo, a apreciar a
solidão e a meditação.
Escrever sobre si é encontrar-se consigo mesmo, é permitir uma auto-reflexão sobre o
mundo no qual se está inserido, no caso dos personagens de Roig, ele só poderiam refletir
sobre o mundo das sequelas deixadas pela guerra narrando em primeira pessoa.
Há que lembrar que o instinto narrativo sempre acompanhou o homem, apesar de se
falar do fim da narrativa oral, conforme discutido por Walter Benjamin (1994d), outras
formas de narrar permanecem ou são criadas para suprir essa necessidade do ser humano,
pois, através delas é que se atribui significados à vida e aos acontecimentos quotidianos.
Portanto, “escrever nossa história é uma maneira de conhecer-se melhor, definir melhor os
problemas, ver nossa vida numa nova luz” (OLMI, 2006, p. 24).
Conforme Blanchot (1996, p. 48), uma das exigências do diário é a sinceridade:
Nadie debe ser más sincero que el autor de diario, y la sinceridad es esa
transparencia que le permite no echar sombra sobre la limitada existencia
de cada día a la cual se reduce su afán de escribir. Hay que ser superficial
para no faltar a la sinceridad, gran virtud que también exige valor.
De certa maneira, anotar alguns fatos vivenciados era uma forma de Judit registrar
informações, experiências, sonhos, desejos que somente ela conhecia. Nas suas anotações
encontram-se as questões mais íntimas de sua vida, mas como não há um método de falar de
si que não seja também falar do outro e do mundo que o rodeia, uma vez que “a rememoração
pessoal está situada na encruzilhada das redes de solidariedade múltiplas em que estamos
envolvidos” (DUVIGNAUD, 2006, p. 12. In: HALBWACHS, 2006, p. 12), encontraremos
alusões a outros. Seus apontamentos carregam informações sobre os conflitos familiares,
pessoais, psicológicos e políticos que tomavam conta da vida dos espanhóis desde o início da
década de 1930, passando pelos anos de guerra e se estendendo para o período do pós-guerra,
como os bombardeios na cidade de Barcelona, a situação dos campos de concentração, entre
outros problemas. Estes documentos servem à Norma como fontes de informação de um
69
passado que lhe interessava, pois, trabalhava com memórias, tanto na sua produção artística
quanto jornalística, e a ajudavam a denunciar os problemas sociais.
A turbação que ronda a vida da personagem Norma e que a deixa em dessossego por
ter que trabalhar com as memórias de Judit e Kati deve-se a que essas lembranças das
anotações lhe ferem diretamente provocando-lhe aflição.
Em relação à multiplicidade de temas abordados nos “documentos familiares”,
destacaremos alguns. Nas anotações de “20 de septiembre de 1942”, Judit escreve sobre a
expectativa de ver seu esposo libertado do campo de concentração:
Me lo han dicho, por fin, mañana liberarán a Joan. Casi cuatro años en el
campo, tres años y diez meses. Me encuentro fatigada, y no sé si nuestro
cuerpo se habrá convertido en un enemigo (ROIG, 2000, p. 148).
Essa informação possibilita constatar que sua prisão aconteceu em dezembro de
1939. Exatamente neste ano o povoado de Betanzos, na província de La Coruña, havia se
montado um campo de concentração para presos republicanos, local onde Joan ficara
preso, conforme informado nos apontamentos de “5 de Julio de 1943”: “Contra Joan, que
vino hecho uma piltrafa del campo de Betanzos [...]” (ROIG, 2000, p. 149). O atributivo
“piltrafa” retrata a condição desumana na qual Joan havia retornado do campo de
concentração. O primeiro fragmento textual, que data o ano de “1958”, narrado em terceira
pessoa, também comenta sobre as condições de Joan ao retornar para casa, conforme o
narrador:
Cuando Joan regresó del campo de concentración, ahora haría dieciséis
años, hecho un guiñapo y con miedo muy hondo en los ojos, Judit le
abrazó y él se dejó querer. Joan lloró un largo rato (ROIG, 2000, p. 148).
Após tanto sofrimento, Joan desejava vingar-se a todo custo como registra Judit em
“5 de julio de 1943”: “[...] y que sólo me decía: tú no sabes cómo era aquello… Pero me
vengaré, decía: vaya si me vengaré […]” (ROIG, 2000, p. 149). Joan não sabia o paradeiro
de seus amigos e companheiros republicanos, pois fora submetido a vários vexámenes
enquanto estivera preso, por isso, não conseguia mais amar o seu próprio país, e Judit era
uma judia que não se sentia em casa: “Este país no es mío y a Joan no le quedan fuerzas
para amarlo. Sólo eso de la venganza. Todos sus amigos han desaparecido. Y yo, sin Kati.
Me siento vacía” (ROIG, 2000, p. 150). Assim como Joan perdera os amigos, Judit havia
perdido sua única amiga, Kati. O “vazio” está metaforizando a morte que pairava sobre
70
aquela Espanha, representando a ausência, o lugar deixado por alguém que nunca mais
regressaria.
Sobre as metáforas, Aristóteles as define como “a transferência dum nome alheio do
gênero para a espécie, da espécie para o gênero, duma espécie para outra, ou por via de
analogia” (2002, p. 45). Dentre essas definições é conveniente nos determos em dois termos
“nome alheio” e “transferência”, pois, o que ocorre, comumente, em uma metáfora é a
transferência das conotações de uma palavra em seu contexto normal para outro contexto. Em
La hora violeta Roig cria algumas metáforas que representam a densidade e a extensão do
sofrimento de um período marcado pela destruição dos espanhóis.
O romance também é rico em metonímias o que leva Szurmuk (2002, p. 168) a afirmar
que as relações de dominação existente no romance remetem à dor coletiva e devem ser lidas
como tais. O próprio ponto de vista do qual o romance é narrado é uma metonímia, já que
conta as histórias a partir do lugar das mulheres, sendo esta uma dentre outras possibilidades
de escrever sobre a sociedade barcelonesa, como as próprias personagens observam, quando
se referem à “Grande História” ou à “história dos homens”.
Vejamos , por exemplo, que após o regresso de Joan do campo de concentração,
Judit gera uma criança mongólica. Seu nascimento foi registrado três dias depois, na data
de “9 de Julio de 1943”. Podemos entender que Pere é uma aberração da guerra, outra
metonímia da pulsão dolorosa da coletividade. Segundo D’Onofrio (2007, p. 221), a
metonímia é uma “‘transnominação’: um objeto é designado por outro objeto que tem com
o primeiro uma relação de causa e efeito ou de continente e conteúdo ou de produtor e
produto”. Ao denominarmos Pere como metonímia da guerra, estamos tratando-o como o
resultado da aberração da violência e o efeito de deformação gerado por ela, ou também
como uma parte que representa o todo, no caso, a exacerbação do conflito.
A dor do parto já diferenciava essa criança dos outros filhos de Judit: “Los dolores
fueron más fuertes que nunca, como si los tuviera en el cerebro, como si dentro de mí se
hubiera producido una explosión […]” (ROIG, 2000, P. 150). Quando a criança nasceu
alguém disse: “El niño duerme”, pois a criança havia nascido sem forças para viver. O
menino passou a ser o motivo de espanto e de comentários entre todos da família, o que
incomodava profundamente a Judit que expressava sua revolta em suas anotações: “Creen
que soy estúpida porque no hablo” (ROIG, 2000, p. 151). Os comentários reforçam a
dúvida da normalidade do menino recém nascido e reafirmam tratar-se de uma
consequência infernal da guerra.
71
Nos apontamentos que datam “30 de Julio” e “10 de agosto” Judit conta sobre as
consultas aos médicos e a descoberta de que Pere era mongólico. Um dos médicos lhe disse
que essas crianças gostavam de doce e de música e que Pere seria “el payasito de sus
hermanos”. Isto foi o que mais a desagradou, mais ainda do que saber que ele morreria aos
sete ou oito anos de idade: “Pero lo que más me ha dolido es eso del payasito de la família”
(ROIG, 2000, p. 152).
Pere, como um filho direto da guerra, foi gerado após o retorno de Joan do campo de
concentração e seu estado físico e mental é o retrato da situação caótica de seu país. Essa
criança representa toda a fragmentação e a miséria pela qual passavam os espanhóis durante
os anos de guerra e do pós-guerra, além da repressão e perseguição política a qual foram todos
submetidos. Judit relata em “8 de febrero de 1945”: “Es un hijo de la guerra, mi pequeño
Pere” (ROIG, 2000, p. 152). A criança ganha diversos adjetivos no ambiente familiar, como
por exemplo: “perrito” (p. 153) e “desgracia de criatura” (p. 167).
Quando Pere nasceu Judit já não tinha mais ao seu lado a amiga Kati que havia
cometido suicídio ao descobrir que Patrick, o irlandês casado por quem se apaixonara pela
primeira vez em sua vida, havia morrido na batalha do Ebro. De acordo com Salvadó (2008,
p. 219), “a batalha de Ebro foi a mais longa e sangrenta de toda a guerra – quatro meses de
constante massacre no qual posições eram tomadas e retomadas muitas vezes”. Em uma das
visitas que Patrick fizera à Kati lhe conta que: “- Allá, los combates son terribles -. Los
fascistas avanzan, avanzan. Hemos perdido muchas posiciones” (ROIG, 2000, p. 199).
Judit tocava piano para Pere enquanto recordava da sua amizade com Kati. Em “10 de
agosto de 1946”, ao escrever sobre os acontecimentos de seu dia transporta-se ao passado e
suas narrativas são invadidas pela memória de um tempo remoto, atemporal:
Interpreto para él las sonatas de Chopin. Mueve el cuerpo hacia delante y
hacia atrás, su cuerpo se mece con la música. Toco para él. Hoy he pensado
en Kati más que nunca, cuando me decía que tenía que crear alguna cosa
nueva. Recuerdo aquel atardecer en que veníamos de las Colinas, muertas de
cansancio. Barcelona olía a piel de naranja. Nos sentamos un rato en el
jardín de tía Patrícia, debajo del limonero. Yo tenía el corazón encogido
porque en las Colinas había visto un niño que no tenía sexo. Kati me
comentó: entre tanta guerra y tanta suciedad, aún es posible pensar en la
belleza (ROIG, 2000, p. 146).
A criança sem sexo que Judit recorda é outro resultado metonímico da guerra e
poderia aludir ao sofrimento que extrapola os limites imaginados pelo homem, conforme
relata Kati na carta que escrevera para Patrick em “27 de octubre de 1938”:
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[...] Sí Patrick, aquel niño no tenía sexo. Era hijo de la miseria de las cuencas
mineras y nadie, hasta ahora, se había preocupado de él. Ya ves: incluso
entre los niños de la guerra los hay que son más desgraciados que los
demás… (ROIG, 2000, p. 198).
Judit e Kati ficaram abaladas pela situação dessa criança e perceberam que no meio de
tanto turbilhão existiam níveis de sofrimento e que algumas pessoas sofriam mais que outras.
Em 1938, em pleno auge da Guerra Civil, Kati escreve na referida carta sobre os
bombardeios:
Patríck: te escribo a la luz de una lámpara de benzol, nos han cortado la
corriente eléctrica. Están bombardeando de nuevo. Es medianoche. Los
niños duermen, cuesta mucho hacerles olvidar todos los horrores que han
visto. Lo llevan en los ojos[…] (ROIG, 2000, p. 197).
A angústia e aflição desses personagens são visíveis e são expressas pelo olhar que
falava aquilo que a boca não podia pronunciar devido à censura. Na data de “5 de febrero de
1945” Judit revela seu amor incondicional de mãe, assim como o sofrimento que lhe
acompanhava: “[...] Yo no lloro, a mi no verán llorar.[...]. Todas piensan que es mucho mejor
que se muera. Tiene que vivir, quiero que viva. […]” (ROIG, 2000, p. 152). Em “15 de
febrero de 1947”, Judit confessa que: “ Sí, Pere me ayuda a vivir. Y estas notas. Cuando
escribo me siento tan libre como cuando me pongo delante del piano” (ROIG, 2000, p. 154).
De acordo com Blanchot (1996, p. 50), “Cada día nos dice algo. Cada día anotado es
un día preservado. Doble operación ventajosa. Así se vive dos veces”. Através das
anotações, Judit consegue fixar os instantes de relacionamento com seu filho Pere. Apesar de
saber que ele logo se ausentaria, essa era uma forma de intensificar e de apreender os
momentos que se esvaiam ao seu lado. Por isso, o autor de um diário, escreve com a
“ambición de eternizar los momentos sublimes e incluso de hacer con la vida entera un
bloque sólido que pueda guardarse junto a sí, […]” (BLANCHOT, 1996, p. 51). Aquelas
anotações eram para Judit uma forma de eternizar os momentos que passava ao lado do filho.
Natàlia, no entanto, comportava-se como se aquele mundo não lhe pertencesse. Ela
não queria ser como sua mãe, não queria dedicar-se à maternidade e, por isso, quando se
tornou independente optou por esterilizar-se e Jordi, seu amante, apoiou-lhe. Após a cirurgia
para se esterilizar, confessa seu estado de felicidade: “[...] tenía el cuerpo médio paralizado,
pero no me importaba, por fin era como un hombre, como un hombre, como un hombre”
(ROIG, 2000, p. 131). Podemos entender que esse sentimento de felicidade nos traslada ao
lado oposto da felicidade, pois Natalia não quer gerar um filho como seu irmão Pere. Negar-se
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à maternidade era negar a multiplicação da espécie de crianças mongólicas, resultado
humilhante do desamor que a guerra provoca.
Na opinião de Tía Patricia, Natàlia se parecia à Kati, apesar de não terem nenhum
parentesco, como relatado em suas recordações (ROIG, 2000, p. 169). Natàlia nasceu em
março de 1938, dia que Patricia recorda muito bem “pues era el mes de las bombas fuertes, las
bombas que hicieron tanto daño a la ciudad” (ROIG, 2000, p. 173). As explosões deixaram
resquícios na vida adulta de Natàlia, que vive perturbada por seus sentimentos e conflitos, em
relação ao seu papel de mulher, de profissional e de amante. Apesar de tentar demonstrar que
conseguia enfrentar todos esses problemas, na verdade vive em um mar de incertezas,
arrependimentos e dúvidas.
Os filhos de Judit eram todos marcados pela guerra, Lluís “era hijo directo del
fascismo” (ROIG, 2000, p. 52), Natàlia nasce durante a Guerra Civil e Pere, nasce em 1943,
quando a Segunda Guerra Mundial caminha para o fim. Portanto, de alguma forma, todos
levam consigo sequelas, quando não físicas, psicológicas.
Ainda nos documentos familiares, o leitor passa a conhecer um pouco da história de
Lluís. Ele se casou com Silvia Claret, uma moça criada conforme os costumes patriarcais,
para ser feliz, que abandonara o sonho de ser bailarina para se casar com o filho de Judit, a
qual se sentia incomodada pela atitude da nora, pois ela “abandonaba lo que Judit más queria:
el arte. Lo había dejado por un hombre, el hijo que Judit detestaba en su interior” (ROIG,
2000, p. 159). Judit também teve que abandonar a carreira de música, como recorda Tía
Patricia. Uma doença que tivera na juventude a deixou paralisada e seus familiares diziam que
ela deveria escolher entre o casamento e o piano, pois não suportaria as duas coisas. Nesses
comentários familiares está implícito o discurso patriarcal de que mulher deve dedicar-se ao
matrimônio e à maternidade.
Segundo Patrícia, Judit tinha uma beleza rara, era “la más bonita de todas” (ROIG,
2000, p. 163). Para Esteves, marido de Patricia, Judit “no estaba hecha para vivir en
Barcelona, si acaso en Hamburgo, en Viena, en Milán… hecha para llevar corona” (ROIG,
2000, p. 163). Apesar da beleza, Judit tinha uma tristeza profunda impressa no seu rosto,
somente quando estava perto de Kati expressava outro semblante:
Judit tenía la mirada triste, muy triste, pocas veces se reía. Sólo cuando se
sentaba ella y Kati en el jardín de casa, a la sombra del limonero, entonces sí
que se reían las dos, y eso que había guerra y todo el mundo estaba muerto
de miedo (ROIG, 2000, p. 164).
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Ao lado de Kati, Judit encontrava alguns momentos de felicidade, mesmo sabendo que
a guerra continuava e ser uma estratégia de luta contra a vida, esta tenta resistir, por isso é que
é possível pensar em “beleza”, como diz Kati, no amor ou na alegria, pois ainda que sejam
sentimentos passageiros, são formas de preservação da vida.
Por mais sofrido que tenham sido os anos da guerra, Judit sente falta deles, porque foi
durante esse período que foram construídos os laços de amizade entre ela e Kati. Agora se
contenta em recordá-la escrevendo sobre ela: “Añoro los dias de la guerra pasados juntos a
Kati. No sé por qué pienso que fui tan feliz durante la guerra” (ROIG, 2000, p. 156).
As amigas são cúmplices, uma dos sentimentos e anseios da outra, se compreendiam
ainda que a palavra estivesse ausente, como observara Judit: “Ella entendía lo que yo quería
decir cuando hablaba de lo que pretendia describir sin tener que interpretar” (ROIG, 2000, p.
160). Embora não esteja explícito, há no romance algumas indicações como esta que conduz o
leitor a pensar que houve entre elas uma relação amorosa. Inclusive, a presença de Kati na
vida de Judit dura exatamente o período em que Joan esteve preso no campo de concentração,
como se Kati substituísse a presença do seu esposo. Era para a amiga e para o filho Pere que
gostava de tocar piano; após a morte de Pere escreve: “Nunca más volveré a tocar el piano,
nunca más” (ROIG, 2000, p. 159). Ao confessar que “... se acabó, se acabó todo. Pere ha
muerto, Kati también” (ROIG, 2000, p. 160), podemos perceber que a vida de Judit se
resumia na convivência com essas duas pessoas, como se os demais membros familiares
fossem apenas coadjuvantes na história de sua vida.
Tía Patricia lembra que, depois da guerra, Judit estava presente somente com o corpo
físico, “Tenía en los ojos una melancolía [...]” (ROIG, 2000, p. 167) porque refletiam a dor e
a angústia de sua alma vazia, devido a todos os problemas que havia presenciado.
Não foram somente os olhos de Judit que mudaram após a guerra, como lembra
Patricia: “... después de la guerra había adelgazado mucho. Se le acentuó el color ciruela de
las mejillas, y la piel le encogió como un pergamino, y los huecos le chuparon la cara”
(ROIG, 2000, p. 168).
Barcelona também sentiu as transformações provindas da guerra. No dia “30 de marzo
de 1947”, Judit escreve que, ao ter de voltar da missa porque estava sem meias, resultado das
exigências da ditadura franquista para as mulheres, ela observa a cidade e percebe que “Esta
ciudad está muerta, no hay más que quietud. Las mujeres se han vuelto lloronas. Los hombres
vulgares” (ROIG, 2000, p. 156). E ainda Patricia, em suas recordações, em “1964”, observa
que: “[...] antes de la guerra la vida era otra cosa. Después, todo el mundo parecía
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desquiciado, no estar en sus cabales” (ROIG, 2000, p. 172) e “Era como si los hombres
estuviesen todavía más chalados que antes […]” (ROIG, 2000, p. 173).
A leitura desses apontamentos permite perceber novamente as referências aos
momentos marcantes nas vidas dessas personagens, não somente para elas, mas para toda a
sociedade espanhola e, portanto, barcelonesa, incluindo Norma, nossa escritora. Há
informações, por exemplo, sobre os conflitos políticos existentes na Espanha daquela época,
como podemos perceber no fragmento abaixo:
Era una tarde del mes de septiembre de1936, [...]. Al principio, hubo
algunas batallas en la ciudad, entre obreros y militares sublevados, pero
hacía días que reinaba la calma. La radio decía que, por el momento, la
insurrección de los generales traidores habían sido sofocada [...] (ROIG,
2000, p. 183).
Nas conversas com Judit, Kati fala sobre o apoio dos italianos e alemães às tropas
franquistas: “Pues que va a durar, vaya si va a durar. Los discursos de los generales dan
escalofríos, quieren salvar a España, dicen, y los italianos y alemanes les ayudarán. Todo está
patas arriba” (ROIG, 2000, p. 184). Acontecimentos que remetem a recordações de Tía
Patricia também, ao evocar os encontros com Kati em Núria, lembra que eles aconteciam
quando “se acercaba la República” (ROIG, 2000, p. 175).
Judit e Kati se tornaram tão amigas que, devido às diferenças entre elas, as outras
mulheres não o podiam compreender. Mas, foi a guerra que as aproximou, como recorda
Patricia:
Me parece que fue la guerra, cuando Kati donó todos sus chalets para las
colinas infantiles y dejó a la pandilla de amigos que tenía antes, algunos se
escondieron y otros se fueron a Burgos. Judit iba todo el día con Kati, arriba
y abajo, como si las dos se hubiesen vuelto locas. Me decía: si no fuera por
el embarazo, me habría ido al frente (ROIG, 2000, p. 177).
Elas conversavam sobre os movimentos da guerra e sobre o desejo de Joan em se
alistar para lutar, como muitos de seus amigos que se alistavam voluntariamente para
combaterem nos conflitos da Guerra Civil Espanhola. Angustiada, Judit compartilha com a
amiga a preocupação em relação ao alistamento de Joan:
Pero Joan irá al frente. _ Judit cerró los ojos _. Mi padre no olvidó nunca la
guerra del catorce. Sus mejores amigos murieron en ella y él quedo
marcado para siempre por culpa del gas (ROIG, 2000, p. 185).
Era como se as gerações estivessem marcadas para sofrer com a guerra, assim fora
com o pai de Judit na Primeira Guerra Mundial, em 1914, agora, em 1936, com o marido
76
na Guerra Civil Espanhola. A guerra não lhe era coisa alheia, mais bem a acompanhava há
tempo. Kati acreditava que, com a vitória dos Republicanos e Comunistas, as coisas
poderiam mudar para as mulheres:
Kati hacía lo que quería, y también lo hizo durante la guerra, la más
optimista de todas, segura de que, si ganaban los rojos, las mujeres
vivirían de otro modo. La guerra es de todos, nos repetía, no solamente es
cosa de los hombres (ROIG, 2000, p. 176).
Também falava do seu desejo pela transformação da sociedade na carta que escreve
para Patrick:
No, tenemos que ganar, Patrick, tenemos que ganar para que las cosas no
sean como han sido hasta ahora. Cuando todo se acabe, tendremos mucho
trabajo, pero será diferente, porque reconstruiremos la vida tal como
queremos que sea (ROIG, 2000, p. 198).
A ânsia de Kati por uma sociedade diferente, principalmente no que dizia respeito às
mulheres, representa a mesma luta na qual Natàlia e Norma estavam envolvidas ao
participarem das reuniões feministas e ao discutirem e lutarem pela igualdade de direitos entre
os sexos.
Kati sabia que as mulheres não poderiam participar da guerra como os homens e dizia
a Judit: “Me gustaría hacer algo, pero no sé qué” (ROIG, 2000, p. 185). Judit e Kati
representavam duas formas distintas de ver o mundo das mulheres, Judit era casada, amava a
Joan, cuidava de sua casa, tinha filhos; Kati era uma mulher livre, já havia dormido com
vários homens e não havia amado a nenhum, até conhecer o irlandês Patrick. Nota-se, na
passagem que segue, essa busca pela liberdade, tão almejada por Kati, “_ Pues a mí no _ dijo
Kati _. Me entusiasma todo lo que es nuevo. Las máquinas, los coches, la velocidad. ¿sabes lo
que más me gustaria en este mundo?. _ ¿Qué? _ Pues ¡pilotar un avión!” (ROIG, 2000, p.
186).
A amizade entre Norma e Natàlia é semelhante, pois elas também são duas mulheres
que encaram o mundo de maneiras diferentes. Natàlia, assim como Kati, nega qualquer
dependência do sexo masculino, quer ser livre e acredita em uma liberdade a partir do ponto
de vista masculino, pois, aos homens era permitido vivê-la. Norma permeia ambos os
espaços, aquele exclusivamente feminino, como o da maternidade, e o socialmente designado
ao homem, como o espaço público. Através de seu trabalho como jornalista viaja e extrapola
os limites domésticos. Esse comportamento de Norma gera inveja em Natàlia, pois esta havia
renunciado a várias coisas, como a maternidade, em prol de sua aparente sonhada liberdade. O
77
reconhecimento por parte de Natàlia pode ser observado, por exemplo, no fragmento que
segue:
Sí tengo envidia de Norma. Como la gran sacerdotisa de la ópera de Bellini,
Norma no quiere renunciar a nada. Ni al mundo de los hombres ni a ser
plenamente mujer […] Quiere vivir el amor de amante y de madre de una
manera absoluta, quiere ser un artista (ROIG, 2000, p. 72).
No entanto, nenhuma mulher é completamente livre. Existem várias amarras que as
detém ou várias barreiras que ainda precisam ultrapassar para alcançarem essa tão almejada
liberdade pois, ao negarem a dependência em relação aos homens, elas, assim como as outras
mulheres do romance estão presas a relacionamentos amorosos que lhes causam frustrações.
Ao se deparar com tantas informações, Norma se sente confusa, não por desconhecer
os assuntos, mas exatamente pelo contrário, por se identificar com eles, como havia percebido
Natàlia:
La vida, simplemente, se repite en nosotros mismos y en los demás. Y
siempre creemos que somos los primeros en experimentarla. Por eso le he
pedido a Norma que escriba algo sobre Judit y Kati. Sin embargo, no le diré
nada de mi vida. Eso no. Siempre pienso que los “temas” son las otras vidas,
no la propia (ROIG, 2000, p. 64).
Sem perceber, Natàlia acaba se contradizendo, pois mesmo que não revele sua vida à
Norma, de alguma forma ela está posta através da narrativa de Kati e de Judit, e foi
exatamente essa identificação que lhe provocou o interesse por essas histórias.
Esses apontamentos familiares possibilitam à Norma uma reelaboração do passado. No
entanto, faltam algumas informações, pois muita coisa ficara no esquecimento. O que Norma
vai fazer é escrever uma nova história, dará uma nova roupagem às memórias daquelas
mulheres. Natàlia estava consciente de que a amiga precisaria usar a imaginação para escrever:
Ésta es la obsesión de Norma, organizar los recuerdos, las opiniones, los
hechos, dentro de la estructura de la palabra. He desafiado a Norma al
enviarle los papeles de mi madre y de Kati. A o mejor está ahora en algún sitio
intentando escribir la historia de dos mujeres tan diferentes como mamá y
Kati. Y la de un amor tan sólido y efímero como el de Kati y Patrick. Pero me
parece que Norma no tiene todas las piezas del rompecabezas. Me siento
incómoda, creo que la he engañado. Le he dado algunos datos, pero quizá no
se lo he dicho todo. Y es que quiero que haga de cronista, no de escritora.
Quiero la imaginación para mí sola, que muera en mí. El orden de la
imaginación se sale de todos los datos, de todos los hechos. Ésta es la
venganza de la literatura contra la Historia (ROIG, 2000, p. 140-1).
78
Com as “peças” que recebera de Natàlia e com a imaginação, Norma escreve o romance
sobre Judit e Kati. Seu trabalho é semelhante ao de montar um quebra-cabeça que além de faltar
peças, algumas se encaixam em diversos lugares, pois as vivências de alguns personagens são
experiências para os demais.
3.2. A inquietação da representação literária em La hora violeta
Na obra La hora violeta, a personagem Norma desempenha o papel de testemunha de
sua sociedade, pois é através de sua voz que as histórias dos silêncios conseguem ser
construídas e, logo, escutadas. Nesse sentido, tratamos por testemunha não o sobrevivente de
um evento catastrófico que narra sua experiência, mas também aquele que está disposto a ouvir
e a repassar as experiências, como afirma Gagnebin (2006, p. 57):
Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a
narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante,
como num revezamento, a história do outro.
A voz testemunhal de Norma se faz ouvir através de uma recriação do passado, pois
este não pode ser retomado exatamente como ocorreu. De acordo com Todorov (2002, p.
144), sobre a “construção de sentido”, uma das etapas necessárias para reviver o passado no
presente é ter claro que as verdades não se referem exatamente ao que ocorreu, “verdade de
adequação”, mas se trata de uma “verdade de elucidação” que apreende o sentido de um
acontecimento.
Dupláa (1996) atribui às produções de Roig o caráter de testemunho, sem relacioná-las
ao conceito de “verdade”. Essa estudiosa da produção roigueana atribui esse estilo às suas
obras exatamente pelo fato de a autora não ser uma verdadeira testemunha da Guerra Civil, o
que lhe concede a capacidade de narrar sobre o assunto. Em relação a este aspecto, Dupláa
(1996, p. 31) tem a seguinte opinião:
En este ‘arte’ se halla el grado de fantasía del autor o autora del texto; es
decir, el factor novelable del discurso testimonial no está en manos del
testimonio, pues éste es el referente histórico, sino en la capacidad literaria
de quien escribe el discurso.
Esse fator “novelable” é o mesmo que Seligmann-Silva (2000, p. 94) observa em
relação às produções daqueles que não são verdadeiros sobreviventes de catástrofes, mas que
conseguem representar, às vezes, melhor do que o verdadeiro sobrevivente que se depara com
inúmeros conflitos.
79
Norma é consciente de que os pensamentos não representam a “realidade” tal como é,
como observa uma narradora: “[...] se daba cuenta de que las cosas no son como las tejemos
en el pensamiento” (ROIG, 2000, p. 234). Por isso, o “manuscrito” sobre a história de Kati e
Judit jamais seria a “realidade”, mas uma representação acrescentada da imaginação e desejos
da própria escritora. O que significa dizer que as fronteiras entre história, memória e ficção
são tênues, formando uma mistura homogênea ao ponto de não poderem mais se separar. Por
isso que para escrever as histórias dessas mulheres, “Había que imaginar; la imaginación es
una buena aliada del recuerdo” (ROIG, 2000, p. 293).
Apesar de não demonstrar interesse pelas histórias dessas mulheres, Norma acaba
tomando a atitude de escrever sobre elas; sem saber, exatamente, o motivo, as verdadeiras
razões, algo lhe impulsiona para a escrita mesmo que inconscientemente pulsassem as
verdadeiras razões:
No sé si fue por la carta de Natàlia, o por los papeles de Judit y Kati, o tal
vez por el vacío que me dejó la separación de Ferran, pero lo cierto es que
decidí escribir alguna cosa – no sabia qué – sobre Judit y Kati (ROIG, 2000,
p. 44-5).
Igualmente Primo Levi, quando estava no campo de Auschwitz, sentia uma obrigação
moral e um desejo por narrar e testemunhar sua experiência que o impulsionava a lutar para
manter a vida “[...] até num lugar como este, pode-se sobreviver, para relatar a verdade, para
dar nosso depoimento” (LEVI, 1988, p. 39). Norma não é uma sobrevivente direta do campo
de concentração, mas uma sobrevivente direta dos conflitos políticos e, por isso, algo a impele
para o mundo dessas duas mulheres que sofreram direta e indiretamente, e todos os conflitos
posteriores que lhe despertam outros sentimentos. Ela se submete a uma espécie de autoanálise, pois, para compreender o outro, ela precisa compreender a si mesma.
Todorov (2002, p. 219) observa que, para preservar a vida, “nós escolhemos o objeto
de nossa compaixão ao sabor das circunstâncias deplorando uns, esquecendo outros”. Na
perspectiva desse pensamento, Norma não se envolve com essas histórias por acaso, mas
porque elas se atraem como duas partes de um imã.
Para Seligmann-Silva (2000, p. 89-90) “a passagem do “literal” para o “figurativo” é
terapêutica”, nesse sentido, o testemunho adquire “uma forma de esquecimento, uma “fuga
para frente”, em direção à palavra e um mergulhar na linguagem”, ou seja, uma “libertação da
cena traumática”. Ele fala acerca de uma “ferida na memória” referindo-se à teoria freudiana
do trauma que o define como uma incapacidade de recepção de um evento que transborda “os
80
limites de nossa percepção” e que acarreta em uma “compulsão à repetição” (SELIGMANNSILVA, 2000, p. 84).
No texto “Recordar, repetir e elaborar”, Freud (1914) apresenta uma importante
reflexão sobre o processo de cura através do papel do analista ao descobrir, para o paciente,
suas resistências que lhe são desconhecidas. Mediante um processo psicanalítico, este
consegue relatar as situações e os nexos esquecidos. Esse fenômeno ocorre porque
[...] o analisando não recorda absolutamente o que foi esquecido e reprimido,
mas sim o atua. Ele não o reproduz como lembrança, mas como ato, ele o
repete, naturalmente, sem saber que o faz (FREUD, 2010, p. 199-200).
Portanto, a “compulsão de repetir”, demonstrada pelo analisando, substitui o impulso à
recordação. Segundo o psicanalista, “a participação da resistência não é difícil de
reconhecer. Quanto maior a resistência tanto mais o recordar será substituído pelo atuar
(repetir)”. Dessa forma, põe a repetição ao lado da resistência, pois o “recordar ideal do que
foi esquecido corresponde, na hipnose, a um estado em que a resistência foi totalmente
afastada” (FREUD, 2010, p. 201). Nesse sentido, ao negar a tarefa de reescrever as histórias,
Norma está criando uma resistência à repetição dos eventos traumáticos que a aprisionam.
Para Freud (2010, p. 202) o analisando, ao vivenciar sua doença “não como assunto
histórico, mas como um poder atual” possibilita o trabalho terapêutico, que “em boa parte
consiste na recondução ao passado”. No entanto, surge o problema, inevitável, no qual o
paciente passa a “piorar durante a terapia”.
Ele tem de conquistar a coragem de dirigir sua atenção para os fenômenos de
sua doença. A própria doença não deve mais ser algo desprezível para ele,
mas sim tornar-se um digno adversário, uma parcela do seu ser
fundamentada em bons motivos, de que cabe extrair algo valioso para sua
vida futura. A reconciliação com o reprimido que se manifesta nos sintomas
é assim preparada desde o início, mas também se admite uma certa
tolerância para o estado enfermo (FREUD, 2010, p. 203).
O avanço do tratamento se dá quando o paciente substitui a “neurose ordinária” por
uma “neurose de transferência” da qual pode ser curado através do trabalho terapêutico. O
paciente supera as resistências quando o médico as desvela e ele tem tempo para se inteirar
nela, para elaborá-la, superá-la e prosseguir no trabalho.
Retomando as considerações de Maldonado e Cardoso (2009, p. 47-57) de que o
recordado não é o acontecimento em si, podemos então, considerar que mesmo se tratando de
“autênticos testemunhos”, ou seja, das narrativas daqueles que vivenciaram as catástrofes, ao
serem representados serão sempre uma “verdade narrativa”. Por isso, é que Norma, mesmo
81
não tendo vivenciado alguns dos acontecimentos que se propõe narrar em sua obra, consegue
atribuir uma “verdade narrativa”, não a partir de sua vivencia, mas de sua experiência, como
observado por De Marco (2004, p. 57).
Além disso, como a vida e as memórias de Norma estão entrelaçadas com as vidas e as
memórias de outros, como vimos, segundo Halbwachs (2006), ao ser testemunha de sua
própria vida, se torna também testemunha das outras pessoas, da mesma forma que escrever
sobre os outros é escrever sobre si mesma, como relata:
“[...] Y Norma se daba cuenta de que podía escribir la historia con inocencia,
desde fuera. Se mezclaban en ella algunos aspectos de su propia vida que no
podía rehuir. Si caso, se la podía inventar. Inventar de nuevo totalmente el
personaje-Kati y el personaje- Judit (ROIG, 2000, p. 270).
Natàlia toma consciência de que ela e a amiga Norma passavam por situações
similares, telefona para ela e, supondo uma resistência por parte da amiga, pede que ela
simplesmente leia os documentos: “_ Lo que tienes que hacer es leerlos. [...] A mí me
sirvieron de mucho” (ROIG, 2000, p. 44). As histórias contidas nesses documentos já tinham
instigado Natàlia porque falavam dela.
Norma é apresentada ao leitor por Montserrat Roig como a escritora de um romance
que abordava a história de Joan e Judit, os pais de Natàlia. Mas, agora deve fazer outra
abordagem, escrevendo sobre a amizade entre duas mulheres que representavam a amizade
entre Norma e Natàlia. As memórias de Kati e Judit funcionam para Natàlia e Norma como
ponte que interliga às suas próprias memórias:
A pesar de todo, ahora no son mis padres los que me preocupan. Me
interesan más las relaciones que hubo entre mamá y Kati, y entre ésta y
Patrick. Ellos me hacen pensar en nosotras, en ti y en mí (ROIG, 2000, p.
51).
Norma também traz consigo uma memória social, que não é inteiramente sua, como
explica Halbwachs (2006, p. 72): “Trago comigo uma bagagem de lembranças históricas, que
posso aumentar por meio de conversas ou de leituras – mas esta é uma memória tomada de
empréstimo que não é minha”. O teórico descobre que
Por uma parte da minha personalidade, estou envolvido no grupo, de modo
que nada do que aí acontece enquanto faço parte dele, nada mesmo do que o
preocupou e transformou antes que eu entrasse nele, me é completamente
estranho (HALBWACHS, 2006, p. 73).
É nesse ponto, por exemplo, que os testemunhos dos velhos deportados, com os quais
Norma tem contato, conforme narrado na obra, acabam envolvendo-a nas histórias dos
82
campos de concentração e com outros fatos e histórias. Mesmo não tendo vivido essa
experiência, consegue narrar sobre ela, pois compartilhava dos sentimentos daqueles que as
viveram: “Mauthausen, Ravensbrück, la guerra civil, los bombardeos, todo ese pasado que no
había vivido pero que le habían hecho sentir como próprio” (ROIG, 2000, p. 253-4).
Enquanto um velho deportado narrava sua experiência do campo, “Norma bebía estas
palabras como un cuervo” (ROIG, 2000, p. 258), e não havia mais como se separar daquela
realidade e, consequentemente, daquela dor.
A personagem de La hora violeta se torna uma escritora um pouco semelhante a
Benjamin Wilkomirski que escrevia testemunhos autobiográficos se passando por um exprisioneiro do campo de concentração. No entanto, Norma não tenta se passar por uma
sobrevivente, mas estetiza a vida dos prisioneiros dos campos de extermínio nazista, os
problemas sociais e políticos de sua época ou do passado, através do trabalho com as
memórias.
Lembremos que Norma tenta fugir da escritura, alegando que não lhe despertava
nenhuma curiosidade remexer no passado de “dos mujeres de la burguesía que no tuvieron
conciencia de su condición” (ROIG, 2000, p. 44). Essa tentativa de se eximir de tal tarefa, não
decorre do fato de ter dificuldades para manipular as palavras, pois apesar de trabalhar com a
escrita de textos, o seu trabalho diferenciava-se do desempenhado por outros profissionais
como o jornalista ou o historiador, o que fica evidente na passagem que segue:
De ese modo convivía con las penas de los deportados. “No podemos ser
cuervos con problemas de conciencia”, pensaba Norma. Y enviaba a otros
colegas, otros periodistas, que describían la realidad lo mismo que el médico
forense manipula el cuerpo de un muerto. Desde fuera, sin comprometerse
con el cadáver más allá de lo estrictamente necesario para la ciencia y, en
este caso, para la Historia (ROIG, 2000, p. 269).
O método de trabalho de um jornalista e de um historiador é comparado ao de um
médico legista que manipula o cadáver sem se envolver com ele. Tanto o trabalho jornalístico
quanto o historiográfico encontram-se em extremos opostos em relação ao trabalho literário.
O primeiro, no ramo das ciências, trabalha com um discurso científico legitimado como
verdade; o segundo trabalha com um discurso figurado, fictício e subjetivo. Trabalhar com
testemunhos significava para Norma entrar por uma via de mão dupla; ela se deslocava em
direção às experiências alheias, mas precisava retornar para suas próprias experiências a fim
de compreender a dos outros. Pensando em uma representação figurativa de seu trabalho,
poderíamos dizer que ela percorre uma estrada em ziguezague.
83
Na quarta seção da obra, “La hora dispersa (Ellos y Norma)”, a voz de uma narradora
onisciente revela alguns problemas enfrentados por Norma para escrever suas obras. Fatores
internos e externos incomodam à escritora corroborando para a sensação de desassossego ao
escrever e manipular as memórias. Através de um flashback o leitor fica sabendo que quando
Norma escrevia a história sobre o amor de Joan e Judit e, simultaneamente, terminava o livro
sobre os catalães nos campos nazistas, alguns acontecimentos ao seu entorno a importunavam.
Como, por exemplo, a velha do asilo, que ficava próximo à casa da baixada onde vivia com
Ferran e seus dois filhos, que gritava: “¡esto es un cárcel, sáqueme de aquí!” (ROIG, 2000, p.
239), porque lembra os traumas que ocasionaram os odiosos espaços comprimidos dos
campos aos prisioneiros. Norma não sabia se prosseguia no seu trabalho ou se escrevia uma
reportagem sobre a velha. Desse modo, detém-se à escrita literária, pois sabe que esta
possibilitaria a ela e aos supostos leitores uma melhor compreensão daqueles acontecimentos.
As visitas de Maruja, uma vizinha que tinha 34 anos, mas que aparentava 50, e se tornara
louca quando nasceu o quinto filho, também a desviava do foco de sua escrita, como outra
reticência das conseqüências do passado recente.
Maruja e a velha do asilo são alegorias da guerra, a loucura dessas personagens surge
como uma válvula de escape da dura realidade repleta de dor e sofrimento. Refugiam-se em
um mundo de fantasia para suportar a realidade. De forma semelhante, Norma se refugia na
literatura e Judit nas anotações de seu diário.
Para continuar a escritura da história solicitada por sua amiga, Norma volta à casa da
baixada. O asilo que fica próximo de sua casa agora estava fechado sob ordens das
autoridades e Maruja fora acompanhar o marido que estava com um câncer no estômago e
resolvera morrer no seu povoado de onde havia fugido da fome. Esse é o entorno de Norma
no momento da escrita: as recordações físicas e psicológicas da guerra gritam de todas as
formas e por todos os cantos. Isso tudo unido aos seus próprios conflitos. Conforme avançava
na leitura do diário de Judit e das cartas de Kati, assim conhecendo melhor suas histórias,
sentia-se mais incomodada pelas lembranças que lhe iam sendo evocadas, porque tanto a vida
de Norma quanto a das mulheres sobre quem ela escreve estão marcadas por conflitos
amorosos, culturais, sociais, políticos e históricos que lhes são comuns. A confusão entre o
amor que sentia pelo ex-marido Ferran e pelo amante Alfred se misturava às histórias que lia
sobre as duas mulheres. Incomodada por essas perturbações, sente a vontade de ser como
Ferran, que conseguia separar os sentimentos:
84
Envidiaba a Ferran, que era capaz de clasificar todos los afectos en cajones y
no mezclarlos nunca. Que era capaz de volcarse en el trabajo intelectual y
ordenar sus pasiones. Norma también habría querido separar todas las
pasiones, pero éstas se mezclaban dentro de su cerebro y no había modo de
convertirlas en un todo, sino que aparecían dispersas y confusas (ROIG,
2000, p. 248).
A escritora não consegue separar a vida pessoal da profissional como fazia o esposo,
elas se mesclam e se transformam em algo novo, em literatura, já que suas obras não são
compostas somente de elementos históricos, mas também de imaginação e ficção.
Natàlia acusava Norma de se refugiar na literatura e, por vezes, ela acabava
concordando: “Natàlia tiene razón, hago literatura porque no sé vivir” (ROIG, 2000, p. 249).
Na verdade, a literatura era o que lhe possibilitava viver, sem a qual talvez não suportasse a
dor da “realidade”, a solidão e o desespero que rondavam sua vida. Conforme Vargas Llosa
(2007, p. 17-20), a ficção ocupa o espaço entre nossa vida real e nossos desejos e fantasias,
suas ordens artificiais proporcionam refúgio e segurança nos libertando dos temores da vida
real. Kati, por exemplo, não suportou as pressões da sua realidade e toma uma garrafa de
ácido clorídrico quando seu amante morre em uma das batalhas do Ebro. Patrick era um
médico irlandês, casado que havia se alistado para ir à guerra na Espanha, porque dizia
acreditar na “liberdade”.
Nesse turbilhão de lembranças que desnorteiam sua capacidade de escrever, ao
recordar, por exemplo, que havia sido abandonada por Alfred, seu amante, que também era
casado, sente-se como Kati e se contesta: “¿es que esto no tiene más final que el de la
destrucción?” (ROIG, 2000, p. 249). No entanto, o final não é a destruição como fora para
Kati, mas sim a libertação, por meio da literatura, de todos os fantasmas que a rodeavam.
Ao escrever sobre essas mulheres, Norma olha para seu interior, como havia sugerido
Natàlia: “- No. Sólo cuando te hayas sabido mirar a ti misma aprenderás a mirar lo que te
rodea. Tal vez entonces sabrás amar a la humanidad y a las personas al mismo tiempo”
(ROIG, 2000, p. 296). Apesar das barreiras e dificuldades, Norma consegue olhar para seu
interior e encontrar-se com uma Norma que ainda não conhecia, diferente daquela que se
apresentava nas conferências feministas: forte e independente perante as outras mulheres. Era
uma Norma pequena, frágil, com conflitos mais interiores que exteriores que consegue
conhecer somente através do trabalho de evocação de um passado que lhe é comum:
Por eso, hasta entonces, Norma no había podido soportar la desnudez de sus
propios ojos. Hasta que no fue a la casa de la hondonada y, sin reclamarlo,
fue surgiendo su separación de Ferran, la muerte de Germinal, el suicidio de
Kati, la muerte en vida de Judit, su desinterés por el deportado. Y el miedo
85
de perder a Alfred. Una Norma pequeña y frágil, incapaz de unificar los
contrarios, había surgido para desbancar a la Norma de las conferencias
feministas, de las charlas sobre la autonomía de la mujer. Había que
enfrentarse con ello (ROIG, 2000, p. 296).
São lembranças que remetem a pessoas que, pela proximidade lhe são muito caras,
pois todas elas foram vítimas do sadismo da violência da guerra. Era preciso voltar ao lugar
da baixada para exorcizar seus medos, lembranças fragmentárias e pensar também no amor.
Consegue, por fim, se libertar dos conflitos e refletir sobre a utilidade do amor: “El
enamoramiento no es político y tampoco es rentable. El enamoramiento no es una historia, es
una retahíla de emociones descontroladas [...]” (ROIG, 2000, p. 250), mas, de alguma forma,
o amor lhe ajudava a viver, como ajudou aos ex-deportados que “sobrevivieron gracias a que
habían llevado consigo, como recuerdo, su tiempo de amor” (ROIG, 2000, p. 250-1).
Os ex-prisioneiros dos campos testemunhavam à Norma que eram as lembranças das
coisas que estavam do outro lado da cerca de arame farpado que lhes permitia suportarem o
sofrimento ao qual eram submetidos. Nas cartas que Joan encaminha à Judit do campo de
concentração dizia-le que “Sólo el recuerdo de mis deseos me ayuda a vivir” (ROIG, 2000, p.
148). Assim, as informações contidas nos apontamentos de Kati e Judit iam se encaixando
com as informações que Norma tinha sobre a guerra, os campos de concentração e o
sofrimento vexatório dos prisioneiros.
Ela carrega consigo o desejo de narrar. Encontrara em seu amante, Alfred, a atenção
para ouvir suas histórias, ao contrário de Ferran que, sempre atarefado com as reuniões do
Partido Comunista, não dispensava tempo para ouvi-la. Alfred lhe perguntava, por exemplo,
como era um dia no campo de extermínio e ela narrava o cotidiano dos presos. É assim como
a saudade da sensibilidade de Alfred e sua cumplicidade do gozo estético na literatura para
configurar o trauma que a absorve nas lembranças. Agora, como antes, Norma se vê
envolvida com as narrações de muitas outras pessoas, comprometendo-se com problemas de
outros e com ela própria. A partir da observação de Bruner (apud OLMI, 2006, p. 31), de que
“a própria vida é narrativa enquanto história”, Olmi conclui que:
Se partirmos do pressuposto de que a própria vida é a narrativa enquanto
história, não podemos deixar de reconhecer que nossas vidas estão
incessantemente entrelaçadas com outras narrativas, com as histórias que
narramos ou que nos são narradas das mais diversas formas, com as histórias
que sonhamos ou imaginamos, ou que gostaríamos de poder narrar (OLMI,
2006, p. 32).
Norma teve contato com vários ex-deportados quando buscava informações para
escrever sobre os catalães nos campos nazistas, foi quando conheceu um escritor fracassado
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que havia passado cinco anos de sua vida no campo de concentração, o que lhe acarretou no
fim de sua sonhada carreira, pois “[...] lo que vio en el mundo exterior fue tan terrible que ya
no pudo volver atrás y recuperar los límites entre la realidad y la imaginación”. Após a
liberação escreveu um romance no qual “Intentó describir con palabras lo que significaba
encontrarse perdido en un mundo de pesadilla” (ROIG, 2000, p. 255).
Esse personagem passa por uma experiência semelhante à de Primo Levi que tenta,
através das palavras, representar aquilo que, muitas vezes, extrapola os limites das
significações ou mesmo da imaginação, como afirma o sobrevivente de Auschwitz:
“Condição humana mais miserável não existe, não dá para imaginar” (LEVI, 1988, p. 25).
Além das barreiras para representar, “[...] nos damos conta de que nossa língua não tem
palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem” (LEVI, 1988, p. 24), no
entanto, sobrevive uma ânsia por narrar, ainda que não seja compreendido pelos outros, que
acaba por transpor essas dificuldades.
Esse contato com os testemunhos de sobreviventes mudou a vida da personagem
Norma, como observa o narrador: “La lectura de la novela del deportado supuso para Norma
la primera evidencia de la impenitente crueldad humana. Y, sobre todo, la que el dolor es
irreversible” (ROIG, 2000, p. 255).
Quando escrevia a história de Judit e Kati, sua inquietação aumentava porque também
vinha à mente o velho amigo escritor e porque inevitavelmente tinha que lembrar de Joan,
esposo de Judit, que estivera no campo de concentração e, de alguma forma, as histórias se
entrelaçavam. O desassossego de Norma em relação ao ato da escrita deve-se também ao
questionamento sobre até que ponto poderia representar a catástrofe provocada
voluntariamente pelo homem, como também se questionaram Levi, Semprún e outros
sobreviventes de situações limites. Norma chegou a compartilhar a idéia de negar a
possibilidade de representação através da arte: “Cuando pensaba en su viejo amigo deportado,
sobre todo ahora, al escribir la novela de Judit y Kati, Norma se negaba a hacer literatura”
(ROIG, 2000, p. 256). Apesar de não encontrar nos testemunhos que lia algo que lhe pudesse
ser agradável, a escritora supera esses empecilhos ao perceber que somente a literatura
conseguiria expressar experiências como aquelas.
Enquanto estava na casa da baixada escrevendo seu novo romance, Norma recorda de
suas duas viagens a Paris, quando fora se encontrar com outro deportado do campo nazista
que lhe testemunhou sua experiência, colaborando para a elaboração de seu trabalho sobre os
deportados e cedendo inúmeros dados, informações, cartas, relatórios sobre o campo. Esse
87
deportado demonstra imensa preocupação com os dados, tinha algumas listas com os nomes
dos mortos, “No faltaba nadie: el nombre, la fecha de entrada en el campo, la fecha de
translado al campo anexo, el número de matrícula, la fecha de la muerte” (ROIG, 2000, p.
261). No entanto, Norma não se preocupava com a fidelidade dessas informações, o que mais
lhe chamava a atenção eram os sentimentos e comportamentos daquele homem. A
preocupação por parte da escritora em reelaborar o passado pode ser vista como um projeto
que visa retomá-lo a partir da concepção benjaminiana de rememoração (Eingedenken) e não
historicista como imagina o velho deportado que se encontra preso em um passado sem
expectativas para seu futuro.
Norma se tornou para esse homem uma espécie de confidente, a ela confiava toda sua
dor e sofrimento: “[...] aquí tienes mi dolor, haz con el lo que quieras” (ROIG, 2000, p. 257).
A falta de vida está expressa no sorriso, por exemplo, do velho deportado que “tenía una
sonrisa de cadáver, desgranaba sus recuerdos como si tuviese una enfermedad incurable”
(ROIG, 2000, p. 257). No campo de concentração esteve tão próximo da morte que era
preciso: “Aconstumbrarte a la muerte, quererla, amarla” (ROIG, 2000, p. 257). Os
testemunhos que ouviu sobre os ex-deportados dos campos nazistas ficavam inscritos em sua
memória, incomodando-lhe e tirando o sono, como recorda Natàlia:
Norma pasó muchas noches de insomnio, no podía soportar los relatos sobre
las obsesiones de los deportados, visiones de cámara de gas, de crematorios,
de alambradas eléctricas, de cuerpos que bailaban en la horca... (ROIG,
2000, p. 112).
Apesar de sentir-se incomodada com essa obrigação, não há outra coisa a fazer que
não seja escrever sobre suas memórias. Agora, ao escrever sobre aquelas mulheres, esses
acontecimentos e experiências que lhe incomodaram no passado voltam a lhe perturbar, como
se revivesse tudo novamente.
Respeito as mulheres do romance de Roig são mulheres problemáticas que não
compreendem muito o seu papel na sociedade. Poderíamos dividi-las em dois grupos, aquelas
que tentam cumprir os papéis estabelecidos aceitando a condição de subordinação ao homem,
imposta pelas normas sociais, e aquelas que tentam reverter essa situação. Natàlia, sem
dúvida, pertence ao segundo grupo. A personagem recebe influência das ideias feministas
através de suas leituras e confessa, por exemplo, ter sido transformada pelas ideias de
Beauvoir:
Yo... Cuando leí, a los veintitrés años las memorias de Simone de Beauvoir,
sentí una especie de desazón por vivir del mismo modo que la dama francesa
88
y creo que me obstiné en buscar un Jean-Paul Sastre. Quería el mundo a mi
medida (ROIG, 2002, p. 59).
Natália era uma mulher que fugia dos parâmetros pré-estabelecidos pelo sistema social
de sua época que envolvia a mulher, no período do pós-guerra, com discursos de submissão
ao lar e à maternidade, sendo o espaço privado o único permitido para sua atuação. Judit, ao
contrário, aceitou viver sob tais imposições e isso gerou em Natàlia uma revolta em relação ao
comportamento da mãe. Agnès, esposa de Jordi, assim como fizera Judit, sofre os labores da
maternidade praticamente sozinha, enquanto o esposo estava envolvido com questões
militantes e reuniões do partido. Natàlia demonstra uma revolta em relação às mulheres
submissas, como relata a Norma, “Durante mucho tiempo vi a mi padre como a un cobarde. Y
mi madre no era más que una sombra. […]. No soporto a las mujeres-víctimas. Parte de la
opresión que sufre la mujer es por culpa de las mujeres” (ROIG, 2000, p. 134).
Todas as mulheres do romance La hora violeta são mulheres solitárias. Norma,
Natàlia, Agnès, assim como Kati e Judit, terminam sozinhas, apesar de seus conflitos girarem
em torno de um homem.
Norma é testemunha direta dos problemas que acontecem em seu país, “[...] un país
enfermo, neurótico, que nunca acaba de construirse” (ROIG, 2000, p. 53). Portanto, escrever
sobre essas histórias é uma forma de falar da desordem que presenciava no seu país, pois ela
está inserida em uma Barcelona que carrega consigo todo o peso de um passado de guerra,
morte, fome e repressão.
Toda essa fragmentação das personagens Roig consegue representá-la na organização da
obra, confirmando que a obra La hora violeta mantém o conteúdo e a forma intrinsecamente
relacionados e se completando, conforme registra Candido (2002) acerca dos elementos
internos e externos do romance.
3.3. A inquietação da escrita metaforizada na organização estrutural do romance
Em La hora violeta, Roig se preocupa mais com a organização do romance do que
com a compreensão que o leitor terá do conteúdo que está sendo narrado. Com essa assertiva
não pretendemos negar a importância dos vários temas abordados no romance, mas, observar
que por serem temas complexos e difíceis de lidar, a forma como o romance se apresenta
corrobora para representá-los.
Norma é a narradora que conta como recebera os documentos de Natàlia e, na
sequência, opta por transcrever a carta que esta havia lhe enviado. O leitor fica a par da
89
existência de diários, cartas e anotações familiares de Natàlia, mas somente no terceiro
capítulo esses documentos são apresentados.
No segundo capítulo, Natàlia vai arquitetando suas reflexões com base nos
personagens da Odisséia, construindo a narrativa com perguntas sem respostas e reflexões
através de um fluxo da consciência. Este é definido por Carvalho (1981, p. 51) como “[...] a
apresentação idealmente exata, não analisada, do que se passa na consciência de um ou mais
personagens”. Esses questionamentos de Natália giram em torno da sua vida amorosa com
Jordi e os personagens da Odisséia sustentam suas reflexões através de comparações que se
estabelecem entre as pessoas do círculo familiar ou social de Natàlia e as personagens de
Homero. Natàlia tenta negar essas recordações através de perguntas como: “¿Sabes que casi
no lo recuerdo?” direcionadas a Jordi, seu interlocutor imaginário.
Natàlia narra os assuntos conforme lhe vem à mente, fala de seu relacionamento com
Jordi, recordando cenas do início da relação, da sua cunhada Silvia, de Norma, faz
questionamentos, emite comentários e imagina-se dialogando com Norma. A narrativa é
marcada por diversos pontos de interrogação e reticências, sugerindo a falta de compreensão
de seus questionamentos, que nunca são respondidos.
Segundo Auerbach (1989, p. 4), o que fundamenta o estilo homérico é “representar os
fenômenos acabadamente, palpáveis e visíveis em todas as suas partes, claramente definidos
em suas relações espaciais e temporais”. Quando surge algo novo na narração homérica ele
ganha espaço e tempo para ser explicado, como no caso da cicatriz quando reconhecida pela
ama Euricléia. A narrativa principal é suspensa para explicar como Ulisses obteve a cicatriz.
Nesse momento, o leitor conhecerá a história de Ulisses, ainda criança, quando fora ferido por
um javali. Essa estruturação é mantida ao longo na narrativa homérica. O mesmo não
acontece com as narradoras de La hora violeta que, em seus fluxos de consciência, ao
narrarem determinado fato esbarram em outros questionamentos conduzindo-os a outras
reflexões, antes mesmo de concluir a primeira.
As narrativas que surgem e vão se encaixando à primeira, também prendem o leitor
porque sempre há algo por dizer ou que precisa ser retomado para completar alguma lacuna
que ficou. Portanto, ao narrar suas histórias, a protagonista Natàlia mantém a mesma estrutura
homérica em relação às retomadas, diferenciando-se por não concluí-las. Na Odisséia, os
elementos que surgem no decorrer da ação ganham espaço para serem apresentados quanto à
sua espécie e origem, já em La hora violeta é como se a personagem-narradora caminhasse
90
por um labirinto e que, da mesma forma que escolhe o caminho que seguirá, pode retornar e
escolher outras possibilidades ignorando o antigo percurso.
O nível narrativo metadiegético é uma característica constante na obra. Segundo
Genette (1972, p. 227), esse nível trata-se de “uma narrativa no segundo grau”. RimmonKenan (2001, p. 188), relendo esse teórico, afirma que a metadiegese é “una narración dentro
de una narración, un segundo grado de ficción”. O que ocorre em La hora violeta são
narrativas dentro de narrativas que vão sendo encaixadas umas às outras.
Os fragmentos que compõem o romance são separados, normalmente, por um sinal
gráfico (***) ou por uma citação de algum verso de um escritor espanhol. A cada fragmento,
pode-se mudar ou não a voz narrativa sem que haja padrões ou regras que estabeleçam essa
mudança. Também não há regras na obra que determinem quando ou como será introduzido
um novo assunto. Existem vários saltos entre uma narradora e a voz de Natàlia que narra seus
devaneios.
No terceiro fragmento do segundo capítulo, que se inicia na página 65, o leitor deparase com a primeira ruptura brusca entre as reflexões de Natàlia e uma narrativa em terceira
pessoa, na voz de uma narradora onisciente que dará a conhecer a personagem Agnès. O
emprego do pretérito imperfeito ganha destaque nesse momento, e o leitor passa a conhecer
com maior propriedade o período em que Agnès esteve casada com Jordi, assim como seu
cotidiano e os fantasmas que a atormentavam. Através de várias analepses, o cotidiano dessa
personagem é revelado, como em: “Agnès se despertaba todos los días con la boca pastosa y
escupía pelos imaginários, como cuando estaba preñada” (ROIG, 2000, p. 75). Normalmente,
essas retrospecções aludem a um tempo anterior ao do início da narrativa.
Através de diversas vozes narrativas, as histórias são contadas de diferentes pontos de
vistas, por exemplo, a personagem Agnès tem a história de sua vida, narrada a partir das
perspectivas de Natàlia, da sua própria e de uma narradora onisciente.
As reflexões de Natàlia ocorrem durante o tempo que estivera na ilha com Jordi,
portanto, suas narrativas apresentam um discurso mais prolongado do que o da história
narrada devido às constantes digressões. O que se comprova no capítulo que encerra o
romance: La hora abierta, onde fica claro que o período de reflexões de Natàlia foi
proporcional ao momento de leitura da obra Odisséia, o que não foi realizada com muitas
demoras: “Natàlia cerró la Odisea. La había leído de un tirón” (ROIG, 2000, p. 302). O último
capítulo, se tentássemos uma leitura linear da obra, apresenta-se como continuação do
segundo, quando Natàlia inicia a leitura da Odisséia.
91
Segundo Antonio Candido (2009, p. 55), a personagem de ficção pode ser considerada
o elemento mais atuante dentro de um romance, mas só atinge pleno significado no contexto,
por isso, “[...] a construção estrutural é o maior responsável pela força e eficácia de um
romance”. O romance sempre apresenta os personagens de forma fragmentária, eles são
construídos através de seleções e combinações de elementos que os caracterizam. Portanto, a
construção do personagem é “mais um problema de organização interna que de equivalência à
realidade exterior” (CANDIDO, 2009, p. 75). Nesse sentido, a verossimilhança acaba
dependente da organização estética do romance e não dos princípios de comparação entre
mundo real e fictício. Nas palavras desse teórico:
Cada traço adquire sentido em função de outro, de tal modo que a
verossimilhança, o sentido da realidade, depende, sob este aspecto, da
unificação do fragmentário pela organização do contexto. Essa organização é
o elemento decisivo da verdade dos seres fictícios, o princípio que lhes
infunde vida, calor e os faz parecer mais coesos, mais apreensíveis e atuantes
do que os próprios seres vivos (CANDIDO, 2009, p. 80).
Aparentemente a obra La hora violeta se apresenta, como dizíamos, um labirinto, mas
não significa que seja desprovida de organização. O que acontece é um estranhamento por
parte do leitor, muitas vezes, acostumando com uma narrativa linear. Mas, é importante
termos claro que essa composição e organização que aparentemente é estranha, na verdade,
trata-se de uma forma minuciosamente escolhida pela autora. Como observado por Todorov
(2004, p. 177), a organização da narrativa se situa no nível das ideias, não dos
acontecimentos.
Várias vozes são ouvidas ao longo do romance. Natàlia se faz ouvir na carta que
encaminha à Norma, na sua narração em primeira pessoa que se desenvolve através do fluxo
de consciência, principalmente, no segundo e no último capítulo. Norma é a narradora
onisciente do primeiro capítulo “Primavera de 1979” e de alguns fragmentos do capítulo “La
hora dispersa (Ellos y Norma)”, onde narra os conflitos amorosos e as dificuldades para
escrever a história de Judit e Kati. No capítulo “La novela de la hora violeta”, as vozes
narrativas são as das personagens Judit, Kati e Tía Patricia, através de apontamentos sobre a
vida dessas mulheres. Além das personagens, há a presença de uma narradora onisciente que
aparece em diversos fragmentos ao longo da obra.
Essa confusão entre as vozes narrativas faz com que o leitor retome a leitura numa
tentativa de completar supostas lacunas porque sempre permanece a sensação de que lhe falta
alguma coisa para compreender a narração. Na verdade essa é mais uma técnica utilizada por
92
Roig, pois o leitor nunca conseguirá preencher por completo essas lacunas, como observa a
própria autora em Dime que me quieres, aunque sea mentira:
Hay que recordar y olvidar al mismo tiempo. La memoria también es
olvido. Alguien dijo que todos tenemos dos memorias: la pequeña memoria,
que sirve para recordar lo pequeño, y la memoria grande, que sirve para
olvidar lo grande. A medida que avanzan, los narradores/narradoras dejan
pistas de los olvidos más que de los recuerdos (ROIG, 1992, p. 32 apud
OLIVEIRA, 2010, p. 26).
Os narradores em La hora violeta não demonstram preocupações em relação ao
conteúdo daquilo que é narrado. As marcações como os asteriscos (***), as reticências (...) e
as interrogações são recursos gráficos que representam o vazio daquilo que não pode ser
recordado ou que não quer ser dito, por isso, uma narradora se cala e passa a vez para outra, o
que se verifica em passagens como a que segue, retirada da página 65 do romance:
Y me gustaría ser capaz de no separar estas dos cosas.
***
Se puso el vestido rosa, aquel que a Jordi le gustaba tanto. Pasó un
largo rato en la bañera, donde se sumergió suavemente […].
Os pontos de reticências deixam em suspenso aquilo que seria narrado, mas que não é
lembrado ou talvez seja melhor que permaneça no esquecimento:
A todas las mujeres, por muy honestas que sean, se les trastorna el cerebro
con eso del amor… Pobres, dice el poeta […] (ROIG, 2000, p. 61).
As interrogações sem respostas também aparecem por toda a narrativa. Apesar de não
serem direcionadas ao leitor, mas aos personagens que participam dos monólogos, são
levados a construir hipóteses sobre os diversos assuntos abordados.
Essas interrupções bruscas da linearidade da narrativa provocam no leitor uma
insegurança em relação à compreensão das histórias narradas. Todorov (2004, p. 123) chama
de “encaixe” o surgimento de uma personagem que provoca a interrupção da história para que
seja contada a da personagem que adentra o cenário, ou seja, “uma história segunda é
englobada na primeira”. Em La hora violeta há diversos “encaixes” ao longo da narrativa,
mas, nem sempre são as personagens que provocam a ruptura do fluxo narrativo, às vezes
alguma narradora é responsável por interrompê-lo.
Os tempos presentes no romance são descontínuos, não se prendem à linearidade dos
acontecimentos. Nunes (2002, p. 25) observa que “o tempo da ficção liga entre si momentos
que o tempo real separa”. Na obra La hora violeta esse é um acontecimento comum,
entretanto, algumas anacronias aparecem com maior destaque em relação a outras, como
93
ocorre no penúltimo capítulo da obra, quando, na página 239, é narrado o processo de
elaboração da obra sobre os catalães nos campos nazistas e a primeira obra que Norma
escrevera sobre Judit e Joan, obras que, na primeira página do romance aparecem como
concluídas:
Yo había terminado un largo libro sobre los catalanes en los campos nazis,
[...] Natàlia quería que me metiese dentro del universo de dos mujeres a las
que no había conocido, aunque escribí algo sobre ellas en las novelas
anteriores (ROIG, 2000, p. 43).
Na página 245 é confirmado, através da voz de uma narradora onisciente, que Norma
havia concluído esses livros e, no momento, voltava-se para a elaboração da história de Judit e
Kati, confirmando as informações do início da obra:
Pasaron tres años. Norma había terminado el libro sobre los catalanes en los
campos nazis y la novela que Juan Miralpeix, el padre de Natàlia, se
enamora de Judit mientras ésta toca piano […] También se había separado
de Ferran, después de dejar la húmeda casa de la hondonada. […] Y ahora
regresaba a la casa de paredes mohosas para escribir la historia de Kati y
Judit. Ahora eran distintos los fantasmas que rodeaban a Norma (ROIG,
2000: 245).
Através das variações do tempo narrativo, como as anacronias citadas acima, o
romance vai se construindo, sem qualquer preocupação com a ordem dos acontecimentos. O
tempo da narrativa é o psicológico, assim, o presente se torna compreensível a partir de
retomadas do passado ou de projeções futuras. Portanto, o leitor deve adentrar esse universo
ficcional desprendendo-se de qualquer princípio de causalidade, pois os fatos não se prendem
a conexões de causa e efeito.
O uso da linguagem segue certa linearidade, já a história narrada pode retornar ao
passado, assim como projetar o futuro. Não há, portanto, como construir um discurso que
comporte uma simultaneidade temporal dos fatos narrados, como observou Todorov:
O tempo discursivo é, num certo sentido, um tempo linear, enquanto que o
tempo da história é pluridimensional. Na história muitos eventos podem
desenrolar-se ao mesmo tempo. Mas o discurso deve obrigatoriamente
colocá-los um em seguida do outro; uma figura complexa se encontra
projetada sobre uma linha reta (TODOROV, 1966, p. 139 apud NUNES,
2002, p. 27).
Nas histórias narradas em La hora violeta pode-se perceber esses acontecimentos que
se desenrolam ao mesmo tempo, por exemplo, quando Norma estava na casa da baixada
escrevendo as histórias de Judit e Kati enquanto Natàlia estava em uma ilha do mediterrâneo
com Jordi, lendo a obra Odisséia e pensado: “[...] A lo mejor está ahora en algún sitio
94
intentando escribir la historia de dos mujeres tan diferentes como mamá y Kati […]” (ROIG,
2000, p. 141).
A personagem Natàlia se refugia em um tempo mítico, o da Odisséia, permanece presa
nesse tempo do início do romance, quando inicia a leitura da trama homérica em uma ilha do
mediterrâneo, ao final, quando conclui a leitura, mas não se sente segura para sair do tempo
mítico, pois continua esperando o retorno de um “Ulisses”. Conforme Tsuchiya, “Natàlia
permanece presa ao mito, como ela espera, em seus sonhos, o cavaleiro – o “charmoso
príncipe” dos contos de fada patriarcais” – sair do oceano para levá-la embora” (1998, p. 167 –
tradução nossa)27. Para essa autora, já citada, estudiosa da obra roigueana, esse aprisionamento
de Natàlia em um tempo mítico é uma alegoria da historiografia franquista e do mito da
essência nacional que, semelhante aos mitos românticos, apontam para um amor heterossexual
que a mulher encontra em seu destino. Assim, Natàlia permanece presa ao mito e, como
Penélope em seu castelo a espera de Ulisses, volta para a casa de Tía Patricia e “Ahora tendría
que esperar, y no sabía qué. Esperar, destino pasivo de las mujeres [...]” (ROIG, 2000, p. 302).
Natàlia não sabe exatamente quem vem, em sua imaginação, para buscar-la. “si, vendrá
un barco branco de velas temblorosas, una nave que romperá las ondas y, en ella, estará él. ¿O
ella? ¿Quién, Dios mío? [...]” (ROIG, 2000, p. 299). Essa possibilidade de uma mulher vir
buscar Natàlia na ilha, reflete os conflitos em relação ao seu comportamento sexual. Isso
acontece com outras personagens, como podemos perceber, ainda que implicitamente, uma
relação amorosa entre Judit e Kati. Além de Norma que, em uma noite de solidão quando
Ferran viajara para reuniões do partido comunista, encontra na estrada um casal de hippies,
convida-os para jantar e, depois de beberem e fumarem, acabam mantendo relação sexual.
Pensava Norma que aquilo seria “una nueva experiencia” quería sentir “lo que sentían los
hombres” (ROIG, 2000, p. 279). Depois, viveu certos momentos de arrependimento e de
dúvidas sobre o porquê resolvera ter relação com aquele casal.
Em conversa com uma poetisa, uma editora e uma francesa que acreditavam que o único
amor verdadeiro somente existiria em uma relação lesbiana, afirmando que “Entre dos mujeres
no se establecen relaciones de poder”, Norma havia se posicionado contra essa ideia, e
defendera que “había encontrado ternura en más de un hombre”, como recorda Natàlia,
“Norma, que no pudo callar nunca, se empeñó en defender una posible reconciliación sexual.
Todas gritábamos” (ROIG, 2000, p. 108).
27 “Natàlia remains trapped in myth, as she awaits, in her dreams, the horseman – the “charming prince” of the
patriarchal fairy tale – to rise out of ocean to take her away” (TSUCHIYA, 1998: 167).
95
Esses conflitos quanto aos comportamentos sexuais são mais alguns dos reflexos da
condição de fragmentação na qual essas mulheres viviam. Condição esta, representada pela
dúvida com relação ao objeto de desejo.
As subjetividades das personagens, também fragmentadas, são representadas em suas
atitudes. Norma, por exemplo, quando retorna à sua casa, depois de ter permanecido alguns
dias na casa da baixada para escrever a história de Kati e Judit, vai deixando seus objetos
espalhados pela casa:
Fue dejando los objetos por el pasillo, nadie le reprocharía el desorden,
mañana cada pieza continuaría en su sitio. El nécessaire, la ropa sucia, las
medias, los zapatos… Piezas de sí misma […] (ROIG, 2000: 308).
Metaforicamente, essas peças dispersas representam as próprias recordações de Norma e
das outras personagens, que são as peças-chave do romance, o qual resulta de vários
fragmentos, “peças”, textos, histórias e recordações. Natàlia, também se encontrava nessa
condição fragmentada, confessa através de sua introspecção esse estado: “me he dispersado en
centenas de partículas, de fragmentos, de piezas desprendidas de mí misma; me he dispersado
para no encontrarme” (ROIG, 2000, p. 50).
A intertextualidade se faz amplamente presente na obra. Vários fragmentos de textos de
escritores catalães são citados ou comentados porque aludem às temáticas que se desenvolvem
na obra. Dentre os escritores citados, podemos destacar: Homero, Marx, Simone Beauvoir,
além de intertextos e citações diretas de alguns versos dos poemas do escritor espanhol
Vicente Aleixandre, da Geração de 27, do barcelonês Joan Maragall (1860 -1911),
fragmentos da novela La muerte en Venecia, de Thomas Mann, comentários do pintor inglês
William Hogarth (1697 - 1764), de Madame de Stäel, de Doris Lessing, de Harmonía
Carreres, entre outros. Como podemos perceber, a construção do romance se dá como uma
colcha de retalhos. Através da junção de vários discursos vai sendo construída a narrativa de
forma muito peculiar.
Há ainda os intertextos da própria escritora Montserrat Roig, como o livro que conta a
história do amor que existiu entre os pais de Natàlia que, coincidentemente, a obra Tiempos de
cerezas (1987) escrita por Roig trata desse assunto. O que Norma escreve sobre os catalães nos
campos nazistas é exatamente o título de uma obra de Roig Los catalanes en los campos nazis
(1978). Esta obra, para Tsuchiya (1998, p. 163 – tradução nossa) é “um intertexto
autobiográfico chave em L’hora violeta”28. Nessa linha de raciocínio, Tsuchiya29 afirma que
28 “Which is to become a key autobiographical intertext in L’hora violeta” (TSUCHIYA, 1998, p. 163).
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Norma “pode ser considerada uma imagem ficcional da própria autora”30. Nesse ponto,
concordamos com esta estudiosa porque a densidade narrativa é uma projeção do eu narrador.
No romance de Roig podemos perceber que surgem na mente da personagem Norma, ao
escrever seu romance, um emaranhado entre palavras, sentimentos e sensações que funcionam
como fios condutores para a recordação de outras palavras, outras lembranças e outros
sentimentos. Considerando que “o contexto designa portanto, a configuração de ativação de
uma grande rede semântica em um dado momento” (LÉVY, 2008, p. 24), percebemos que em
La hora violeta Norma está inserida em uma sociedade que ainda carrega os resultados ou
conseqüências de muitos traumas.
A complexidade da estrutura da obra se dá pela complexidade do trabalho, é o
sofrimento materializado em uma estrutura. Os fragmentos dos textos que compõem a obra
representam a negação da possibilidade de uma reconstrução do passado de maneira linear e
cronológica.
Considerando que a narrativa trata de pessoas que se encontram nesse estado de
fragmentação, esteticamente falando, não teria uma forma mais adequada que se relacionasse
com o conteúdo do que uma narrativa em fragmentos.
Como a memória é falha, a reelaboração das histórias à qual Norma se propõe são
repletas de lacunas, as quais devem ser completadas, quando possível, pela imaginação. Roig
constrói uma obra com uma organização estrutural que representa a própria complexidade de
reelaboração do passado através das memórias. A estratégia da autora ao inserir documentos
de cunho testemunhal, como cartas, apontamentos, diários, atribuem ao romance um caráter
de “realidade”. O leitor se depara com vários fragmentos de textos que, a princípio, parecem
desconexos, mas que depois ganham diversas possibilidades de leitura. Uma história
sobrepõe-se a outra, um tempo ao outro e assim o romance ganha uma representação gráfica
do que seria a própria memória, sem regras e sem pontos delimitando-a.
Todo esse trabalho formal elaborado por Roig em La hora violeta, assim como o de
Norma ao confeccionar o romance sobre Judit e Kati, representa a preocupação da autora e da
sua personagem em retomar as memórias de um passado marcante para a sua sociedade. No
entanto, essa retomada não se dá por mero interesse de registrar fatos ocorridos, mas sim por
se preocupar com o momento presente, com aqueles que carregam sequelas de uma época que
29
Idem (p. 164).
30 “Who may be considered a fictionalized image of the author herself” (TSUCHIYA, 1998, p. 164).
97
não foi ainda compreendida, pois muitos não puderam narrar suas histórias no passado, o
qual, por não poder ser compreendido acarreta em problemas para a atual sociedade.
O uso da memória deve ter um aproveitamento, através do seu reconhecimento, como
fonte para interpretação e utilização do passado. Como observa Todorov (2000, p. 151): “É
por ter em vista uma ação no presente que o indivíduo busca, no passado, exemplos
suscetíveis de legitimá-lo”. Ao evocar o passado, Norma conhece seu interior e, assim, vai
compreendendo ao outro e a si mesma, fazendo um “bom uso da memória” (TODOROV)31,
com uma justa causa e não simplesmente uma reprodução do passado sem função pedagógica
ou humanitária, sem cair na sua sacralização e nem na banalização.
Quando Norma termina de escrever a história de Judit e Kati, ela recebe um telefona
do velho deportado pedindo-lhe que fosse visitá-lo, alegando que morreria devido a um
câncer. A escritora não sente vontade de vê-lo, pensava que era o exagero de um deportado
chamando a atenção. Ao ter a confirmação de sua hipótese por um parente do velho, sente-se
mais tranquila para se preocupar com a sua própria vida, pois não queria mais viver do
passado:
Norma se tranquilizó. Pronto olvidaría la historia de los deportados, de los
fantasmas que exigían, desde el pasado, sobrevivir en su memoria. La
historia había quedado archivada en su libro, éste era su homenaje, ¿qué más
querían? Y se entregó a la espera de Alfred. Ahora quería ser feliz, se repetía
(ROIG, 2000: 298).
Nesse momento Norma também conclui as histórias de Kati e Judit: “Puso el punto
final al manuscrito sobre Judit y Kati” (ROIG, 2000, p. 297) e, com a tarefa concluída, opta
por continuar vivendo, pensava no presente e não permaneceria mais presa ao passado.
Precisava esquecer o velho deportado e também as histórias das amigas, não porque
deixara de ter consideração pelo que ele fizera por ela, colaborando com informações para seu
livro, ou porque não se preocupasse mais com a humanidade para com a qual demonstrava
tanto respeito, mas precisava esquecer para continuar vivendo. Todorov (2002, p. 219),
lembra que Primo Levi acreditava que “Se devêssemos e pudéssemos sofrer os sofrimentos de
todos, não conseguiríamos viver”.
A memória é falha e, portanto, seleciona alguns acontecimentos em detrimento de
outros, e ainda não se sabe o critério dessa seleção e como esses acontecimentos retidos na
memória serão utilizados no futuro. Segundo Todorov,
31
Idem (p. 204).
98
Como la memoria es una selección, ha sido preciso escoger entre todas las
informaciones recibidas, en nombre de ciertos criterios; y esos criterios,
hayan sido o no conscientes, servirán también, con toda probabilidad, para
orientar la utilización que haremos del pasado ( TODOROV, 2000, p. 17).
Portanto, independentemente de a seleção ser consciente ou não, os acontecimentos
preservados sempre têm, no futuro, alguma utilidade. Aquelas memórias que Judit e Kati
registraram serviram, por exemplo, para que Natàlia fosse estimulada a refletir sobre si
mesma, como relata à Norma: “[...] No te lo vas a creer, pero ese montón de papelotes me ha
obligado a pensar en mí misma. A mirarme por dentro [...]”. (ROIG, 2000, p. 46).
Segundo Todorov (2000, p. 30), “el acontecimiento recuperado puede ser leído de
manera literal o de manera ejemplar”32. O primeiro permanece intransitivo e não vai além
de si mesmo, já o segundo constrói um exemplo e extrai uma lição, o que faz do passado um
princípio de ação para o presente.
El uso literal, que convierte en insuperable el viejo acontecimiento,
desemboca a fin de cuentas en el sometimiento, del presente al pasado. El
uso ejemplar, por el contrario, permite utilizar el pasado con vistas al
presente, aprovechar las lecciones de las injusticias sufridas para luchar
contra las que se producen hoy día, y separarse del yo para ir hacia el otro
(TODOROV, 2000, p. 32).
Tanto Natàlia quanto Norma, a partir daquelas memórias, estabelecem comparações
entre o passado e o presente, o que lhes conferirá melhores possibilidades para viver o futuro.
Como se verifica em passagens como:
El amor de Kati y mamá fue intenso porque ellas lo creyeron eterno.
Supusieron que no se acabaría nunca, a pesar de que aquella cochina guerra,
como dicen los que la vivieron. Jordi me pidió muy poco: sólo la
continuidad de lo que ya existía. Nuestra época es demasiado mediocre para
poder vivir sentimientos intensos. Pero no deja de ser triste que necesitemos
una guerra para saber amar. Como lo hicieron ellas dos, como lo hicieron
Kati y Patrick…” (ROIG, 2000, p. 51).
Nessa perspectiva, Benjamin, consciente de que o homem moderno vive isolado e,
portanto, não possui experiências comunicativas, acredita que a possibilidade de atribuir
significados para o presente está na reconstrução das experiências significativas do passado.
Assim, o passado é visto como inacabado e o narrador do presente pode continuar a história.
Esse narrador é chamado por Benjamin de “sucateiro”, pois deverá recolher os detritos e os
cacos, e não os grandes feitos da História. Esse narrador, nas palavras de Gagnebin,
32
Grifo do autor.
99
Deve muito mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que
não tem significação, algo que parece não ter nem importância nem sentido,
algo com que a história oficial não sabe o que fazer (GAGNEBIN, 2009, p.
54).
Os elementos de “sobra”, os papéis avulsos, do discurso histórico são o sofrimento
indizível que a Segunda Guerra levaria ao auge com os campos de concentração que o
próprio governo tentou, por diversos meios, apagá-los da memória e da história, assim como
aconteceu em relação com a Guerra Civil Espanhola, período em que os governantes
tentaram passar a imagem de que queriam salvar o país das mãos dos republicanos. Através
dos testemunhos de experiências limites é que se pode refletir acerca dos motivos que
levaram a humanidade a passar por atrocidades como as que marcaram o século XX.
Conforme Gagnebin33, a retomada do passado visando uma fidelidade transformadora
do presente é de cunho ético e político e não epistemológico ou científico. É superando a
dificuldade de dizer o sofrimento, de “desfazer os nós da dor na multiplicidade das palavras”
e alcançando o “fluxo de uma narração redimida” que se pode chegar “até o mar do feliz
esquecimento”. Neste ponto, o esquecimento não seria mais negligência ou injustiça em
relação ao passado, mas a intensidade do presente.
33
Idem, (p. 110).
100
4. A HORA DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo desse estudo alguns questionamentos direcionaram nossas leituras e
reflexões. Partindo da principal indagação que sustentou essa pesquisa, sobre quais seriam e o
porquê das dificuldades enfrentadas pela personagem Norma para reconstruir literariamente o
passado de duas mulheres da burguesia catalã que presenciaram os conflitos da Guerra Civil
Espanhola e dos primeiros anos da ditadura franquista, dedicamos-nos, primeiramente, a
compreender as questões sobre a (im)possibilidade da representação estética de catástrofes ou
eventos traumáticos para o ser humano. Alguns teóricos como Adorno, De Marco, André,
Felman, Levi, Semprún e Seligmman-Silva nos auxiliaram na compreensão de que, apesar da
existência de uma corrente teórica que não acredita na possibilidade da representação por
parte de sobreviventes de catástrofes há outra que acredita que, somente a arte é capaz de
representá-las.
Percebemos através do diálogo com as teorias que por mais complexa que seja a arte
literária, ela consegue representar esses eventos que extrapolam nossa concepção de
“realidade”, justamente porque uma produção que se volte à representação realista é
insuficiente e somente a “realidade” acrescida de imaginação e recriação consegue produzir
sentidos a esses eventos. Mas, é através da linguagem que a personagem Norma consegue, por
fim, dar uma configuração estética às memórias dos outros personagens do romance, até
porque a linguagem se reincorpora desses eventos muito mais enriquecida. Como observa
André, a linguagem surge, ainda que mutilada e sofrida, para registrar e mimetizar os
horrores, porque é preciso que haja testemunhos que denunciem a dor que deteriora a
humanidade. Portanto, as narrações “Nacen de entre los escombros para testimoniar que lo
que no se extingue es el lenguaje” (ANDRÉ, 2005, p. 18).
Objetivando a reconstrução do passado, tendo como fonte de informação as vozes
marginalizadas de sua sociedade, a memória é o recurso primordial do trabalho roigueano.
O projeto literário de Roig é amplo e desafiador. Escolher sua língua materna para
escrever suas obras literárias e Barcelona como o espaço para desenrolar os enredos, foi um
tanto quando complexo para o seu reconhecimento como escritora, já que a ditadura
franquista havia abolido o uso de outras línguas tornando obrigatório o uso do idioma
espanhol. Além disso, Roig escolhe os discursos minoritários, pela riqueza em relação aos
referenciais diretos e suas diversas significações no âmbito de sua realidade, para serem
reelaborados esteticamente através da literatura. Ao dedicar-se aos discursos não oficiais, opta
101
por dar voz às mulheres e aos oprimidos, criticando o patriarcado que dominara sua sociedade
durante longos anos, bem como a ditadura e o fascismo que destruíra sonhos e ideais.
Em La hora violeta, Roig dá voz às mulheres, são elas que falam, registram os
acontecimentos e organizam as histórias, pois é consciente de que a “História Oficial”,
organizada por homens negou-lhe o direito de participar da sua elaboração, alegando que
deveriam gastar o seu tempo com o esposo e com a maternidade.
A obra, apesar de não ser escrita por um sobrevivente direto dos conflitos da Guerra
Civil Espanhola, dos campos de concentração para presos republicanos ou dos campos
nazistas, se constrói através de relatos ficcionais que representam uma sociedade marcada
pelo trauma.
Criando Norma, Roig lhe atribui a função de organizar o passado a partir de uma
roupagem literária. Norma precisa, portanto, escrever sobre o passado de duas mulheres da
burguesia catalã, Judit e Kati, mas não é capaz de fazer isso sem que acrescente nessas
histórias a sua própria imaginação, pois muitas informações permaneciam ocultas. Como
observa sua amiga Natàlia afirmando que: “Como puedes ver, todas las soluciones confluyen
en una: que no sabemos nada de ellos o que sabemos poca cosa” (ROIG, 2000, p. 51).
Todas as mulheres do romance se mantêm interligadas por algum tipo de
relacionamento, seja por parentescos ou por amizades. Por isso, ao reescrever sobre o passado
daquelas mulheres, Norma experimenta as mesmas aflições, dúvidas e conflitos de suas
personagens. Sabe que precisa encontrar uma forma para representá-lo, razão pela quall
permanece rodeada por questionamentos como: “¿Cómo retener la fugacidad?”, “¿Cómo
expresar el instante que se va?” (ROIG, 2000, p. 243). Questionamentos que só podem ser
elucidados através da literatura, pois, “El orden de la imaginación se sale de todos los datos,
de todos los hechos. Ésta es la venganza de la literatura contra la Historia” (ROIG, 2000, p.
141).
Entretanto, não era fácil para configurar, representar ou estetizar histórias cheias de
sofrimentos e de feridas que remetiam às suas próprias dores e aflições, de forma que
simultaneamente ao processo de escrita, padecia das mesmas turbações que suas personagens.
O reconhecimento de suas próprias angústias está ligado ao compromisso, às vivências
indiretas com familiares e amigas que presenciaram muita dor e desespero. Judit e Kati, por
exemplo, testemunharam as tragédias da Guerra Civil, presenciaram de muito perto os
combates bélicos, os bombardeios à cidade de Barcelona, a morte, o abandono, a solidão.
Como pertenciam a uma burguesia, ainda que não sofressem diretamente a fome, assistiram-
102
na de muito perto. Viveram sob a repressão e censura franquista. Já as personagens como
Norma, Natàlia e Agnès viveram em um período de pós-guerra que ainda arrastava todas as
sequelas da guerra. Não se pode eludir, então, de que os assuntos tratados no romance não
mexam emocional, psíquica e politicamente em seu papel de escritora. A presença da
perturbação e do desassossego para escrever sobre esse passado está ligada ao ato da criação.
Em relação à estrutura e organização dos múltiplos discursos que permeiam o
romance, percebemos que a autora rompe com qualquer ordem de linearidade temporal e
espacial. Não há uma sequência linear da narrativa, as vozes dos personagens e os momentos
narrados são sobrepostos. A disposição dos textos e dos discursos dentro de uma lógica
aparente são estratégias textuais utilizadas por Roig para representar o próprio estado de
deterioro de seus personagens e de seu país.
Montserrat Roig propõe a reconstrução do passado a partir das vozes testemunhais de
seus personagens. Portanto, os textos que aparecem no romance como fontes documentais,
tratados como mananciais de recordações e de memórias, são artefatos através dos quais cria
um caráter de “verdade” que contribui para a configuração do romance como fonte de
memórias, que instigam a recordação e, consequentemente, a arte literária, como observa
Natàlia: “A veces me parece que me refugio en el recuerdo porque ya no soy capaz de vivir.
Como si hubiese echado el cerrojo. Sin embargo, el recuerdo es literatura, recreación” (ROIG,
2000, p. 65).
Percebemos que Roig se preocupou com essa organização, pois através dela os
conteúdos são unidos à forma ganhando uma configuração estética em que o conteúdo externo
(contexto) se interliga com o interno (forma), como observado por Candido (2002), até
resultar um produto ficcional. À maneira de um labirinto, a narrativa vai sendo construída e
diversas vozes falam, como um coro que grita, pois não aguenta mais permanecer no silêncio.
Querem falar de si ou sobre si mesmas para se encontrarem no maremoto da sociedade incerta
e sem rumo e se solidarizarem. Querem, assim como Norma, libertarem-se de um passado
tumultuado e viver o presente com alguma harmonia. Tanto as mulheres quanto os homens de
La hora violeta querem e precisam encontrar respostas para seus questionamentos e suas
angústias, pois a sociedade no período do pós-guerra se fragmentou para todos e todos
estavam em estilhaços devido aos traumas e as sequelas.
Norma consegue escrever, testemunhar, mostrar que a arte é capaz de dar forma ao
silêncio, à mudez que o mesmo trauma impõe. A memória se liberta num processo dialético
de lembranças e esquecimentos, mas, essa libertação permanecerá até o seu próximo
103
compromisso de representação. Pois, assim como concluía o livro sobre os catalães nos
campos nazi, o romance sobre o amor entre Judit e Joan e, agora, a história de Judit e Kati,
outras histórias ou memórias cairão em suas mãos para ganharem uma roupagem literária.
As vozes das personagens de Roig representam uma coletividade que se faz ouvir, mas
também a sua própria voz pode ser ouvida através delas, pois transmitem os anseios e projetos
de libertação política, social e cultural da própria autora. Da mesma forma como sua
personagem podia escrever e testemunhar, Roig também podia e foi isso que fez. Ela divulga,
por meio de toda sua produção, o seu projeto libertador através das vozes de suas
personagens, principalmente de Norma que, de alguma forma, é uma projeção de Roig. As
histórias narradas em La hora violeta giram em torno de uma sociedade enferma e distorcida,
cheia de traumas e conflitos. Através da elaboração literária de Roig as mulheres podem falar
por si mesmas, pois é chegada a hora de serem ouvidas. Assim como é chegada a hora de
compreender o passado para poder compreender o presente e projetar um futuro mais
humano, solidário e libertário para o seu país.
Ao chegarmos nesse ponto do trabalho, percebemos que concluir essa trajetória acaba
sendo algo paradoxal, já que analisamos a obra La hora violeta como uma obra literária que
aborda a reconstrução do passado através das memórias, o que significa dizer que as histórias
narradas nunca se fecham ou são concluídas, senão que sofrem constantes reajustes e novas
possibilidades de serem narradas e também de serem lidas. Assim, a leitura da obra não se
esgota com o término desse trabalho, a obra continuará pulsando em nossas memórias e em
nossas releituras que provavelmente acarretará em novas possibilidades de interpretação.
104
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DANIELE CRISTINA DA SILVA