VALORES IDEOLÓGICOS E CULTURAIS DESVENDADOS PELO DISCURSO LITERÁRIO Aparecida Regina Borges Sellan Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Resumo: Este estudo se insere na Análise Crítica do Discurso, de vertente sócio-cognitiva, e propõe analisar formas de representação das ideologias que identificam os diferentes grupos sociais. Tem por objetivo verificar por marcas lingüísticas e discursivas, como a organização micro e macroestrutural do discurso literário possibilita explicitar os valores culturais e ideológicos referentes aos grupos sociais por ele representados. Palavras-chave: Análise Crítica do discurso; discurso literário; ideologia; valores culturais. Abstract: This paper based on Analisys Discourse Critical by search social cognitive and purpose studier forms of representation about ideologys that identify the diferents socials groups. Has by objective examiner expressions linguistics e discoursives as an organization micro and macro structural about literacy discourse can be show culturals values and ideologics about socials groups for it represented. Key-Words: Analisys Critical Discourse; Discourse Literacy; Ideology; Culturals values. Apresentação Este estudo se insere na Análise Critica do discurso, de vertente sóciocognitiva, e propõe analisar formas de representação das ideologias que identificam os diferentes grupos sociais. Assim, objetiva verificar por marcas lingüísticas e discursivas, como a organização micro e macroestrutural do discurso literário, formalizado pelo conto, possibilita explicitar os valores culturais e ideológicos referentes aos grupos sociais por ele representados. Embasamento Teórico De modo geral e vista como produto do trabalho intelectual humano, a literatura tem sido compreendida, única e exclusivamente, como uma prática voltada para a ficção e, como tal, descompromissada com o que se acredita ser verdade. Segundo Freire (2001:153), como uma re-apresentação do mundo. No entanto, resultados de inúmeros estudos que procuram situar o real estatuto de seu caráter literário além do ficcional, tem possibilitado redimensionar o lugar da literatura no conjunto dos discursos que representam as diferentes práticas sociais. Nesse sentido, pode-se considerar que a literatura, enquanto discurso que expressa uma entre as diferentes práticas sociais, tem por função representar não o que é ou foi, mas o que poderia ter sido; isto é, pelo caráter da verossimilhança, representa um mundo possível criado pela escritura do texto, focalizando um prisma, ou um ponto de vista, do acontecido no mundo real. Ainda que faça referência ao mundo real, esta referência é apenas para fazer representar um outro olhar possível. Nesse sentido, é preciso compreender o texto e o discurso segundo a orientação da lingüística textual e da lingüística do discurso. Por uma visão inter e multidisciplinar, a lingüística textual considera o texto como espaço de materialidade de diferentes representações que os produtores/autores fazem, em língua, dos acontecimentos que povoam o mundo. Já para a Análise do Discurso, numa visão crítica, o discurso deve ser compreendido como uma prática social que coloca em interação indivíduos que são personagens com papéis sociais a desempenhar em um tempo e lugar específicos. A sociedade, que organiza esses indivíduos, é compreendida como um conjunto de grupos sociais que defendem interesses, propósitos e objetivos comuns, em razão de suas crenças. Crenças essas resultantes de conhecimentos avaliativos sobre fatos que ocorrem no mundo. A cognição é um conjunto de conhecimentos construídos a partir de um prisma do grupo. Tais conhecimentos expressam a opinião como forma de avaliação sobre o que ocorre no mundo. No entanto, o que ocorre no mundo produz reações diferentes nas diferentes pessoas que observam tais ocorrências. Nesse sentido, uma representação mental de um acontecimento, de algo ou de alguém do universo real, depende de uma focalização dada nas coisas desse universo, de forma a criar para elas um determinado estado de coisas. (cf. Silveira, 2000:11) Assim, tudo depende de como e de onde se olha o mundo. Um ponto de vista decorre de objetivos, interesses e propósitos, ou seja, respectivamente, do que se pretende, do que é bom ou mau (para o Eu e o Mim) para os indivíduos e que decisões são tomadas para que os objetivos sejam atingidos. Dependendo do ponto de vista do individuo, há sempre uma representação nova do que existe no mundo, de forma a satisfazer o fator da informatividade que define a textualidade humana. Contudo, quando os objetivos, os interesses e os propósitos são comuns a um grupo de pessoas, o ponto de vista delas também é comum, de forma a construir representações como forma de conhecimentos sociais. Segundo Van Dijk (1997: 63), do ponto de vista interacional que fundamenta a vertente sócio-cognitiva a ACD, não há diferença, como tradicionalmente se propõe, entre conhecimentos epistêmicos e conhecimentos avaliativos. Segundo essa tradição, os conhecimentos epistêmicos resultam da observação de acontecimentos do mundo real e, por essa razão, podem ser confirmáveis no próprio mundo real, estabelecendo-se, por isso, um critério de verdade/falsidade. Trata-se de conhecimentos relativos à concretude do real como, por exemplo, ao referir-se, como informação, que o Bexiga é um bairro da capital paulista. Tal conhecimento, por ser confirmável no mundo real, é o que a tradição define como conhecimento epistêmico. Sem dúvida, porém, quando alguém diz algo, é necessário saber quem disse, para quem disse e por que disse e que intenção tinha de dizer. Esses dados estão envolvidos na representação das informações no mundo real, pois em que medida representar o Bexiga como bairro da capital paulista se restringe a uma focalização de espaço, e não a uma ideologia de grupo. Por essa razão, ninguém diz algo ingenuamente, embora o dizer resulte, neste caso, de uma informação do que existe no mundo. Já os conhecimentos avaliativos decorrem de como o que existe no mundo é representado como positivo/negativo: bom/mau; grande/pequeno; caro/barato; útil/inútil, entre outros. Uma avaliação não é constatável no mundo real e, portanto, uma representação mental avaliativa não pode ser definida pelos critérios de verdade/falsidade. Trata-se, pois de uma crença, como, por exemplo, dizer que, no bairro do Bexiga, encontra-se toda a tradição italiana no Brasil. Com o desenvolvimento das Ciências da Cognição, verificou-se que qualquer forma de conhecimento é resultado de uma opinião. Van Dijk (2000: 26) define a opinião como uma forma especial de conhecimento por ser um conhecimento avaliativo. Silveira (1998:19, 2000:15) define a opinião como um tipo de representação mental construída a partir de um ponto de vista e, por essa razão, há opiniões individuais e sociais. As opiniões individuais são expressas em eventos discursivos particulares e as opiniões sociais, pelos discursos institucionais. Estes, no entanto, guiam as opiniões individuais no momento em que os membros de um grupo social, e todas as pessoas o são, identificam-se por terem pontos de vistas comuns, porém estes pontos de vista são mutáveis dependendo de como uma pessoa possa interagir com os pontos de vista mútuos. Nesse sentido, postula-se o discurso literário como relativo a eventos discursivos particulares uma vez que, de algum modo, expressa a opinião daquele que o produz, ou seja, o escritor. No entanto, segundo Maingueneau (1996:53), sabe-se que o escritor/autor, ao produzir sua obra, o texto por ele escrito, pragmaticamente, pressupõe um certo universo, aquele no qual é permitido falar como ele o faz. Esse universo é justamente aquele que faz surgir por sua enunciação. É porque no mundo possui certas propriedades que o texto enuncia de certa maneira, mas é essa maneira que suscita o mundo que supostamente a legitima. No entanto, ainda que o escritor/autor aparentemente expresse uma opinião particular, deve-se considerá-lo marcado por um meta-discurso que pode ser representado não só pelas classes críticas, envolvendo outros literatos e seus respectivos grupos ou escolas, as instituições de educação e cultura, entre outros, mas também pelos diferentes poderes relativos aos campos políticos, econômico e social. Discussão dos Resultados Assim, a guisa de exemplificação sobre o modo como o discurso da literatura traz implícitos, linguisticamente materializados, das representações sobre os valores culturais e ideológicos que revelam a sociedade da época em o texto literário foi produzido, metodologicamente, para a analise, selecionou o conto A Sociedade, de Alcântara Machado, publicado pela primeira vez em 1927. (Anexo) Assim, no conto selecionado, por tratar-se de uma narrativa, pode-se verificar, numa situação inicial, a representação de dois grupos sociais bastante definidos: de um lado, o grupo representado pelo Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda, membro de uma família tradicional, conforme o nome e o titulo pelo qual é chamado sugerem, contudo falido, sem dinheiro. Desse grupo, fazem parte, ainda, a esposa do conselheiro, ou a mulher como é tratada por ele, a filha Teresa Rita, moça jovem e casadoira, que flerta com Adriano Melli. De outro lado, o grupo representado pelo Cav. Uff. Salvadore Melli, estrangeiro-italiano, sem tradição, mas com dinheiro. Desse grupo, faz parte, também, o filho Adriano Melli, rapaz boa pinta, vestido com roupas finas e usando chapéu Borsalino, que vivia passeando, com seu Lancia, diante do terraço da casa do Conselheiro, para fazer gracejos com Teresa Rita. A mãe, a todo o momento, manifesta sua insatisfação como o namoro da filha, que usa vestido do Camilo, verde, gruda à pele, com o filho do carcamano, que não perde a oportunidade de ostentar os bens que possui. Constata-se, por estes fragmentos, que o conflito estabelecido entre os dois grupos é devido aos valores relativos ao poder econômico e ao status dos lugares ocupados pelos personagens dos dois grupos. A família do Conselheiro, explicitamente controlada pela mãe, em defesa da tradição, manifesta, a princípio, grande desagrado pela possível aproximação entre os jovens, conforme se constata em; Filha minha não casa com filho de carcamano e. - Olha aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão de Teresa para o filho você aponte o olho da rua para ele, compreendeu? – já sei mulher, já sei. No entanto, outro conflito pode também ser identificado: por um lado, o Conselheiro era herdeiro e proprietário de terrenos que não lhe davam renda alguma, nem ele possuía capital para investir de forma a obter lucro. Por outro lado, o Cav. Uff. possuía o dinheiro, mas não o espaço onde pudesse aplicá-lo de forma a aumentar seu capital. A solução para o conflito vem exatamente do grupo com poder econômico manifesto, pois é o Cav. Uff. Salvadore Melli, o carcamano, que propõe a sociedade, como se constata pelos seguintes enunciados; O cav. uff. Salvadore Melli alinhou alguns algarismos torcendo a bigodeira. Falou como homem de negócio que enxerga longe. Demonstrou cabalmente as vantagens econômicas de sua proposta. ... Renovou a proposta e repetiu os argumentos pró. O conselheiro possuía uns terrenos em São Caetano. Cousas de herança. Não lhe davam renda alguma. O cav. uff. tinha a sua fábrica ao lado. 1.200 teares. 36.000 fusos. Constituíam uma sociedade. O conselheiro entrava com os terrenos. O cav. uff. com o capital. Arrumavam os trinta alqueires e vendiam logo grande parte para os operários da fábrica. Lucro certo, mais que certo, garantidíssimo. - É. Eu já pensei nisso. Mas sem capital o senhor compreende é impossível... - Per Bacco, doutor! Mas io tenho o capital. O capital sono io. O doutor entra com o terreno mais nada. E o lucro se divide no meio. O capital acendeu um charuto. O conselheiro coçou os joelhos disfarçando a emoção. Os elementos responsáveis por dar coesão a este conto, cujo enredo se fortalece pela relação amorosa, são os filhos de ambos os comerciantes: Teresa Rita e Adriano Melli, pois, ao se concretizar o negócio financeiro, também o amoroso se resolve com o casamento dos jovens, conforme se consta em; A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois. Desse modo, o casamento acaba por se configurar como a união da tradição e do capital. Os resultados apresentados confirmam que no discurso literário, cumpre sua função de representar os fatos que acontecem em sociedade como uma possibilidade do acontecido; ou seja, é possível que o universo representado no conto de Alcântara Machado, tenha existido no contexto real vivido e experienciado pelo autor. É possível, também, desvelar o cenário social, político e econômico de sua época a partir do que ele textualiza no conto; pois, sabe-se que o começo do século XX, as três primeiras décadas especialmente, foi de intensa mudança quer no contexto político e social, quer no contexto econômico. No contexto político, a quebra do acordo para a sucessão presidencial da política do café-com-leite, permitiu, em meio a inúmeras revoluções, que um gaúcho, Getúlio Vargas, ocupasse a presidência da nação, pondo fim à Velha República, dando lugar ao Estado Novo. No contexto econômico, a fonte de renda antes agrária, com a queda do café e, conseqüentemente, a quebra dos barões do café, passa a ser urbana com o incentivo para o surgimento de grandes e pequenas indústrias e comércios, bem como o aparecimento de banqueiros em ascensão. Entre os grupos considerados tradicionais, a economia praticamente está inerte porque suas fortunas normalmente são frutos de heranças, como bens imóveis, difíceis de serem comercializados em razão da crise econômica que assola especialmente os grandes centros, como São Paulo. Esta é a representação dada ao personagem Conselheiro José Bonifácio. Nesse contexto, destaca-se a importante presença de imigrantes, entre os quais os italianos representados pelo cav. uff. Salvatore Melli. Há, naturalmente, uma mudança bastante acentuada na sociedade que tem de se adaptar e esse novo contexto, fortemente marcado por valores ideológicos e culturais voltados para o prestígio econômicos, conforme se verifica no desfecho da narrativa. Estas constatações nos remetem, conforme Van Dijk, aos conhecimentos epistêmicos, isto é, ao que se sabe e ao que se pode confirmar/verificar sobre a época representada no texto e definida no parágrafo anterior. No entanto, quanto ao modo como esses conhecimentos foram re-apresentados no conto A Sociedade, estes se remetem à avaliação do autor/produtor, e do grupo ao qual se insere, sobre os valores e as ideologias predominantes naquele começo do século XX. Trata-se, pois, de conhecimentos avaliativos que manifestam, de acordo com a cognição daqueles grupos, o modo como aquela sociedade, ideológica e culturalmente marcada por empenhos voltados para o poder e para o controle econômico, resolve seus problemas de acordo com interesses, propósitos e objetivos comuns, em razão de suas crenças, o que lhes faculta empreendem esforços para pertencerem ao mesmo grupo social. Os resultados obtidos indicam que o discurso literário, afora sua suposta neutralidade em razão de seu suposto caráter ficcional, configura-se como um objeto propício quando se pretende analisar as estruturas sociais de diferentes épocas, seus valores e ideologias, tendo por referência os sentidos lingüística e discursivamente materializados no texto. Bibliografia MACHADO, A. A. Brás, Bexiga e Barra Funda e Laranja da China. Coleção vestibular. Estado de São Paulo. São Paulo: Klick Editora. 1999. FAIRCLOUGH, N. Discurso e Mudança Social. Brasília. Editora Universidade de Brasília, 2001. FREIRE, J.A.T. História e Ficção em Mad Maria (Márcio Souza): Um caso de recuperação de discursos. In GREGOLIN, M.R.V. et al (org.) Análise do discurso: entornos do sentido. Araraquara: UNESP, FCL, Laboratório Editorial; São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2001. SILVEIRA, R. C. P. (org.) Português Língua Estrangeira: perspectivas. São Paulo: Cortez, 1998. _____________ Identidade cultural do brasileiro a partir de crônicas nacionais. In Norimar Júdice (org.) Português/Língua estrangeira-leitura produção e avaliação de textos. Niterói, Intertexto, 2000. VAN DIJK, TA. Racismo y análisis critico de los medios. Barcelona: Paidós, 1997 a. _______ El discurso como interación social-estudios del discurso: introducción multidisciplinaria. Trad. Española, Barcelona: Gedisa, 2000. Anexo: A sociedade Antônio de Alcântara Machado - Filha minha não casa com filho de carcamano! A esposa do conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas. Teresa Rita misturou lágrimas com gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O conselheiro José Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o fraque. O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rita do escritório para o terraço. O Lancia passou como quem não quer. Quase parando. A mão enluvada cumprimentou com o chapéu Borsalino. Uiiiiia – uiiiiia! Adriano Melli calcou o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a Rua da Liberdade. Pouco antes do número 259-C já sabe:uiiiiia – uiiiiia! - O que você está fazendo aí no terraço, menina? - Então nem tomar um pouco de ar eu posso mais? Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido do Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no terraço. - Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando ele chegar! - Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus! Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para a Avenida Paulista. Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone da beiçoarra para gritar: Dizem que Cristo nasceu em Belém... Porque os pais não a haviam acompanhado (abençoado furúnculo inflamou o pescoço do conselheiro José Bonifácio) ela estava achando um suco aquela vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais. Os pares dançarinos maxixavam colados. No meio do salão eram um bolo tremelicante. Dentro do círculo palerma de mamãs, moças feias e moços enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de vozes e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe. O banjo é que ritmava os passos. - Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade. - Não! - Como não? Sim senhora. Virou a cara quando me viu. ... mas a história se enganou! As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum! - Meu pai quer fazer um negócio com o seu. - Ah sim? Cristo nasceu na Baía, meu bem... O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bom mas a destra espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons. ... e o baiano criou! - Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão de Teresa para o filho você aponte o olho da rua para ele, compreendeu? - já sei, mulher, já sei. Mas era cousa muito diversa. O cav. uff. Salvatore Melli alinhou algarismos torcendo a bigodeira. Falou como homem de negócios que enxerga longe. Demonstrou cabalmente as vantagens econômicas de sua proposta. - O doutor ... - Eu não sou doutor, senhor Melli. - Parlo assim para facilitar. Non é para ofender. Primo o doutor pense bem. E poi me dê a sua resposta. Domani, dopo domani, na outra semana, quando quiser. Io resto à sua disposição. Ma pense bem! Renovou a proposta e repetiu os argumentos pró. O conselheiro possuía uns terrenos em São Caetano. Cousas de herança. Não lhe davam renda alguma. O cav. uff. Tinha a sua fábrica ao lado. 1.200 teares. 36.000 fusos. Constituíam uma sociedade. O conselheiro entrava com os terrenos. O cav. uff. com o capital. Arruavam os trinta alqueires e vendiam logo grande parte para os operários da fábrica. Lucro certo, mais que certo, garantidíssimo. - É. Eu já pensei nisso. Mas sem capital o senhor compreende é impossível ... - Per Bacco, doutor! Mas io tenho o capital. O capital sono io. O doutor entra com o terreno mais nada. E o lucro se divide no meio. O capital acendeu acendeu um charuto. O conselheiro coçou os joelhos disfarçando a emoção. A negra de broche serviu o café. - Doppo o doutor me dá a resposta. Io só digo isto: pense bem. O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou para um quadro. - Bonita pintura. Pensou que fosse obra de italiano. Mas era francês. - Franceses? Não é feio non. Serve. Embatucou. Tinha qualquer coisa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se. - Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... sob minha direção si capisce. - Sei, sei ... O seu filho? - Si. O Adriano. O doutor... mi pare ... mi pare que conhece ele? O silencio do conselheiro desviou os olhos do cav. uff. na direção da porta. - Repito um’altra vez: o doutor pense. O Isotta Fraschini esperava-o todo iluminado. - E então? O que devo responder ao homem? - Faça como entender, Bonifácio ... - Eu acho que devo aceitar. - Pois aceite... E puxou o lençol. A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois. O conselheiro José Bonifácio De matos e Arruda e senhora Têm a honra de participar a V. Exa. e Exa. família, o contrato de casamento de sua filha Teresa Rita com o sr. Adriano Melli. Rua da liberdade, n. 259-C. São Paulo, 19 de O cav. uff. Salvatore Melli e senhora Têm a honra de participar a V. Exa. e Exa. família, o contrato de casamento de seu filho Adriano com a senhorinha Teresa Rita de Matos e Aruda. Rua da Barra Funda, n. 427. Fevereiro de 1927. No chá do noivado o cav. uff. Adriano Melli na frente de toda a gente recordou à mãe de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe vendia cebolas e batatas, Olio di Lucca e bacalhau português quase sempre fiado e até sem caderneta.