A PRÁXIS DA PSICOLOGIA NO CONTEXTO DAS ORGANIZAÇÕES E DO
TRABALHO: IMPACTOS PARA A SUBJETIVIDADE E A SAÚDE MENTAL DO
TRABALHADOR E PARA A SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA.
André Luís Vizzaccaro-Amaral*
Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP
RESUMO:Este estudo insere-se na área da psicologia social e do trabalho, tomando,
como objeto, a práxis da psicologia e, como objetivo, refletir sobre os possíveis
impactos dessa práxis para a subjetividade e a saúde mental do trabalhador e para a
saúde pública e coletiva. A hipótese aventada é a de que há processos de regulação,
normalização e mediação por parte de tal práxis que afetam sobremaneira o trabalhador
e que se revertem em problemas para a saúde pública e coletiva. Sua metodologia
refere-se aos pressupostos da dialética freudo-marxista, com influências da genealogia
deleuzeana, envolvendo pesquisa bibliográfica e trabalho de campo. Os resultados
apontam para a relação entre as estratégias da organização e as ações do psicólogo,
estabelecendo uma relação direta entre a idéia ou modelo de pessoa ou de trabalhador,
por parte da primeira, e a ação do segundo em manter, recrutar, selecionar e/ou
desenvolver pessoas com o perfil o mais próximo possível desse modelo. As
conseqüências dessa ação do psicólogo aparecem tanto no aumento da eficiência no
trabalho, na diminuição dos conflitos organizacionais objetivos e no maior controle dos
recursos humanos como também na maior pressão sobre os mesmos, no aumento do seu
desgaste físico e mental e na exclusão daqueles que não se enquadram no modelo
organizacional. Para o trabalhador empregado na organização, nota-se a predominância
de características perversas em seu comportamento profissional e, para os candidatos a
adentrá-la, a necessidade de alinhamento do seu perfil individual ao perfil
organizacional sob ameaça de exclusão. Tal situação permite a difusão do modelo de
homem produtivo das organizações, impondo, também, a necessidade de adequação, por
parte das instituições formativas (escolas, universidades, etc.), do perfil de seus
formandos ao do mercado de trabalho. Estudos apontam para reações como
descompensações psiconeuróticas e psicossomatizações, por parte de trabalhadores
empregados, e para a perda da auto-estima, a depressão reativa e a instabilidade
emocional, entre outros, por parte de desempregados, representando mais de 30% dos
diagnósticos nos serviços primários de saúde brasileiros, sinalizando que o trabalho e o
desemprego representam fatores de risco para as morbidades psiquiátricas menores.
Conclui-se, com isso, que a ação do psicólogo é reguladora, porque difunde um modelo
ideal de homem produtivo (recrutamento), é normalizadora, porque vigia a
compatibilidade entre trabalhador e organização (seleção de pessoal e avaliações de
desempenho) e é mediadora, porque promove a antecipação de conflitos entre
organização e trabalhador por meio do alinhamento de perfis.
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Introdução
Este estudo insere-se na área da psicologia social e do trabalho,
tomando, como objeto, a práxis da psicologia. Tem como objetivo, refletir sobre os
possíveis impactos dessa práxis para a subjetividade e a saúde mental do trabalhador e
para a saúde pública e coletiva.
A hipótese aventada é a de que há processos de regulação,
normalização e mediação por parte de tal práxis que afetam sobremaneira a
subjetividade e a saúde mental do trabalhador e que se revertem em problemas para a
saúde pública e coletiva.
Sua metodologia refere-se aos pressupostos da dialética freudomarxista, com influências da genealogia deleuzeana, envolvendo pesquisa bibliográfica
e trabalho de campo, e autores como Lima (1995), Dejours (1992), Bobbio et alli (2000)
e Negri & Hardt (2001).
Dez premissas sobre a práxis da psicologia no contexto das organizações
Muitos recortes podem ser realizados a respeito da nossa temática, por
isso mesmo, consideramos dez premissas sobre a práxis da psicologia no contexto das
organizações e do trabalho para direcionarmos nossa reflexão:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
A área da Psicologia Organizacional e do Trabalho está entre as 03 que concentram o maior
número de psicólogos em atuação no Brasil; (CFP, 2004)
O Recrutamento e a Seleção de Pessoal são as principais funções exercidas pelos psicólogos
dentro das organizações; (VIZZACCARO-AMARAL, 2003)
O Recrutamento e a Seleção de Pessoal são funções relativas à Provisão de Pessoas para as
organizações; (CHIAVENATO, 1994)
A Provisão de Pessoas é parte da atribuição da área de Gestão de Pessoas nas organizações;
(CHIAVENATO, 1994)
A Gestão de Pessoas destina-se ao Planejamento, à Organização, à Direção e ao Controle das
pessoas nas organizações; (CHIAVENATO, 1994)
O Planejamento, a Organização, a Direção e o Controle das pessoas nas organizações
subordinam-se às Políticas de Gestão de Pessoas das organizações; (CHIAVENATO, 1994)
As Políticas de Gestão de Pessoas das organizações derivam das Políticas Organizacionais;
(CHIAVENATO, 1994)
3
8.
9.
10.
As Políticas Organizacionais descendem de modelos ou Paradigmas de Gestão Organizacional;
(CHIAVENATO, 1994)
Os Paradigmas de Gestão Organizacional configuram-se a partir de Teorias Organizacionais;
(BOBBIO et alli, 2000)
As Teorias Organizacionais são influenciadas por correntes de pensamento que acabam por
elaborar, entre outras coisas, propostas para a Organização do Trabalho. (BOBBIO et alli, 2000)
Tais premissas permitem-nos observar a relação entre as estratégias
das organizações (idéias) e as ações do psicólogo dentro dessas organizações (execução
das idéias). Permitem-nos, portanto, compreender que há uma relação lógica entre a
idéia ou modelo de Pessoa ou de Trabalhador, por parte da organização, e a ação do
psicólogo em manter, recrutar, selecionar e/ou desenvolver pessoas com o “perfil” o
mais próximo possível desse modelo.
Em nosso mestrado, usamos o mito cosmogônico de Platão, no Timeo,
para metaforizar essa relação, tomando o psicólogo, e os demais gestores, como
demiurgos que forjam no “caos” uma “ordem” (o “cosmos”) que advém do mundo das
idéias (idéia platônica que notamos nas atuações dos gestores e psicólogos
organizacionais). Não convém, entretanto, desenvolver tal nota nesta oportunidade,
bastando, aqui, apenas a sua menção e referência. (VIZZACCARO-AMARAL, 2003)
As estratégias das organizações
No que diz respeito às teorias que fomentam as estratégias
organizacionais, podemos ressaltar que existem pelo menos três escolas de autores que
produziram, ou ainda produzem, paradigmas de gestão organizacional e que objetivam a
Organização do Trabalho com base em elementos peculiares:
Escola Clássica ou Científica
•
Início do século XX;
•
Principais autores: Taylor, Ford e Fayol;
•
racionalista (Marx e Weber);
•
valoriza aspectos materiais;
•
“ser humano = autômato”;
•
despótica e hierarquizada;
•
disciplinar.
4
Escola Neoclássica ou de Relações Humanas
•
Meados do século XX;
•
principal autor: Mayo;
•
organicista (Saint-Simon e Spencer);
•
valoriza aspectos simbólicos;
•
“ser humano = sistêmico”;
•
laissez-faire e noção de grupo e de interações simbólicas;
•
“flexibilidade” com vigilância.
Novas Teorias
•
A partir da década de 1970;
•
principais autores: Drucker (no mundo) e Chiavenato (no Brasil);
•
mesclam elementos das duas escolas rivais e ignoram as suas diferenças;
•
participativas e horizontalizadas;
•
controle diluído e introjetado pelas pessoas das organizações.
Essa divisão e nomenclatura são consoantes às observadas em Bobbio
et alli (2000) e trazem elementos presentes em Lima (1995) e em Negri & Hardt (2001).
Ainda que possuam uma cronologia específica, é possível observar características das
duas primeiras escolas mesmo nos dias atuais.
Nas organizações mais modernas, todavia, o paradigma participativo e
estratégico das novas teorias é o que acaba tendo maior aceitação porque congrega
parâmetros relativos à dinamização que a chamada nova ordem global imprimiu às
organizações produtivas, sobretudo nos aspectos concorrenciais.
As ações dos psicólogos
As ações dos psicólogos, nesse contexto, são pragmáticas e técnicas
porque procuram garantir o equilíbrio organizacional (CHIAVENATO,1994). Nesse
sentido, suas ações dependem de seu lugar na organização:
Quando executam funções estratégicas ou táticas de gestão de pessoas, os psicólogos colocam em prática
três procedimentos fundamentais:
1.
Horizontalização do quadro de funcionários (política de enxugamento e de enriquecimento de cargos);
2. técnica de governo à distância (política de gestão participativa e de controle dos pares);
3. antecipação dos conflitos (política de treinamento de sensitividade e de seleção criteriosa);
•
objetivo: dinamizar os processos, aumentar a eficiência e a eficácia no trabalho e atingir as metas
organizacionais (atingir os resultados ideais).
Quando executam funções táticas ou operacionais de recrutamento e seleção, os psicólogos procuram
atender a três requisitos fundamentais:
1.
Utilização de testes psicológicos e situacionais para garantirem informações objetivas dos candidatos;
2. ênfase na entrevista para garantir informações subjetivas e precisas dos candidatos;
3. procedimentos complexos e preocupação quanto à cientificidade do processo;
5
objetivo: chegar ao perfil mais alinhado ao modelo ideal de trabalhador da organização e, assim,
promover a antecipação dos conflitos já no processo de contratação do trabalhador.
•
Em alguns casos de Diagnóstico Organizacional é possível notar um
trabalho mais crítico, analítico e reflexivo, entretanto, ele só ocorre com a anuência da
organização e sob sua forte vigilância, tratando-se, quase sempre (senão sempre), de um
“auto-exame” controlado para possíveis mudanças controláveis (qualquer ação em
contrário pode ser compreendida como um “vírus” que desestabiliza o “organismo”).
Essas ações pragmáticas e técnicas possuem alcances e limites que
podem apresentar-se de maneira bastante antagônica:
•
•
•
ALCANCES
Aumento da eficiência produtiva;
diminuição dos conflitos (objetivos);
maior sensação de controle.
•
•
•
LIMITES
Maior pressão sobre os trabalhadores;
aumento do desgaste físico e mental do trabalhador;
é mais excludente.
Esses alcances e limites da práxis da psicologia acabam por gerar
impactos para a subjetividade e para a saúde mental dos trabalhadores empregados e
desempregados, para as populações humanas e para a saúde pública e coletiva.
Impactos da práxis da psicologia no contexto das organizações e do trabalho
Podemos observar impactos diferentes para aqueles que estão
empregados na organização e para os que estão fora dela, sejam desempregados ou
trabalhadores que pretendem candidatar-se a um novo posto de trabalho:
•
IMPACTOS PARA A SUBJETIVIDADE DO TRABALHADOR
Para os trabalhadores da organização
Para os trabalhadores de fora da organização
Predominância de características perversas
•
Necessidade de alinhamento do perfil individual
no comportamento organizacional . (LIMA,
ao perfil organizacional sob ameaça de
1995)
exclusão. (VIZZACCARO-AMARAL, 2003)
6
•
•
IMPACTOS PARA A SAÚDE MENTAL DO TRABALHADOR
Para os trabalhadores da organização
Para os trabalhadores desempregados
Descompensações psiconeuróticas;
•
Perda da auto-estima, do moral, da
autoconfiança e do prestígio;
psicossomatizações. (DEJOURS, 1992)
•
instabilidade emocional;
•
depressão geral e reativa;
•
distorção da percepção temporal.
(COUTINHO; ALMEIDA-FILHO; MARI, 1999)
Com base nesses impactos para o trabalhador podemos estender
nossos olhares para as populações humanas, de maneira geral, e para a saúde pública e
coletiva em especial. Nesse intuito, podemos notar ainda mais a gravidade do problema:
IMPACTOS PARA AS POPULAÇÕES HUMANAS E PARA A SAÚDE PÚBLICA E COLETIVA
Para as populações humanas
Para a saúde pública e coletiva
•
Difusão do modelo de homem produtivo
•
Mais de 30% dos diagnósticos nos Serviços
das organizações;
Primários de Saúde dizem respeito à Morbidade
Psiquiátrica Menor (MPM), ou seja, distúrbios
•
necessidade de adequação, por parte das
não-psicóticos caracterizados por sintomas
instituições formativas (escolas,
ansiosos, depressivos e somatoformes;
universidades, etc.), do perfil de seus
•
os trabalhos braçal e administrativo e o
formandos ao do mercado de trabalho.
(VIZZACCARO-AMARAL, 2003)
desemprego são fatores de risco para as MPMs.
(COUTINHO; ALMEIDA-FILHO; MARI, 1999)
Diante de tal quadro, ressaltamos a difusão de ideais e modelos
pragmáticos e técnicos nas instituições formativas, atingindo grande parcela das
populações humanas, e suas conseqüências para os processos de subjetivação e de
cronificação de distúrbios mentais e para a onerosidade dos serviços de saúde pública,
dificultando o acesso da população a serviços de saúde de qualidade.
Considerações Finais
Podemos considerar, com isso, que a ação do psicólogo no contexto
das organizações e do trabalho é reguladora, porque difunde um modelo ideal de
homem produtivo (recrutamento), é normalizadora, porque vigia a compatibilidade
entre trabalhador e organização (seleção de pessoal e avaliações de desempenho), e é
mediadora, porque promove a antecipação de conflitos entre organização e trabalhador
por meio do alinhamento de perfis.
7
Dessa forma, a práxis da psicologia no contexto das organizações e do
trabalho propõe-se à manutenção do controle (poder), da organização sobre o
trabalhador, e contribui, como parte do processo, para a cronificação de problemas de
saúde mental pública e para a onerosidade do sistema público de saúde, que não tem
estrutura para atender tamanha demanda resultante.
Referências Bibliográficas
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política.
Coord. Trad. João Ferreira. 5ª Ed. Brasília: Editora UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
CHIAVENATO, Idalberto. Recursos humanos. Ed. Compacta. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 1994.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Pesquisa de opinião com psicólogos
inscritos no Conselho Federal de Psicologia. 2004. Disponível on line em
http://www.pol.org.br/publicacoes/pdf/Pesquisa_IBOPE.pdf, em 26/05/2006.
COUTINHO, Evandro da Silva Freire; ALMEIDA-FILHO, Naomar; MARI, Jair de
Jesus. Fatores de risco para morbidade psiquiátrica menor: resultados de um estudo
transversal em três áreas urbanas no Brasil. In: Revista de Psiquiatria Clínica. ISSN
0101-6083, Vol. 26, nº 5, Set/Out 1999, Edição Internet. Disponível On Line em
http://www.hcnet.usp.br/ipq/revista/r265/artigo(246).htm, em 26/05/2006.
DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. Trad.
Ana Isabel Paraguay e Lúcia Leal Ferreira. 5ª Ed. Ampliada. São Paulo: Cortez-Oboré, 1992.
LIMA, Maria Elizabeth Antunes. Os Equívocos da excelência: as novas formas de
sedução na empresa. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.
NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Império. Trad. Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2001.
VIZZACCARO-AMARAL, André Luís. Entre o kháos e o kósmos, a demiourgía da
excelência: a seleção de pessoal como regulação, normalização e mediação no contexto
das novas políticas de gestão de recursos humanos. 2003. 148 f. Dissertação (Mestrado
em Psicologia) — Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2003.
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