Africanos livres emancipados e a experiência da liberdade controlada
Enidelce Bertin1
No Brasil, a categoria dos africanos livres tem origem localizada no complexo
contexto do combate ao tráfico de escravos, mais precisamente a partir do Alvará de 26 de
janeiro de 1818, que ratificava os tratados anteriores entre Portugal e Inglaterra para a
cessação do tráfico e definia a criação de comissões mistas que apreenderiam as embarcações
e emancipariam os africanos embarcados. Entretanto, os libertos apenas seriam efetivamente
emancipados depois que servissem por um período mínimo de 14 anos em postos públicos ou
para particulares, segundo definições do próprio Alvará de 1818. Ou seja, o meio para a
adaptação e capacitação dos africanos livres para a liberdade seria a submissão ao trabalho
compulsório, o que beneficiava tanto os arrematantes como o próprio governo. Nem sempre,
porém, o cumprimento daquele prazo de trabalho resultou na imediata emancipação dos
mesmos, uma vez que foram mantidos por muitos anos sob a tutela do Estado com a alegação
da proteção contra a escravização ilegal. Na prática as relações entre os africanos livres e seus
"protetores" não se distanciavam das relações escravistas, seja porque a tutela reafirmava a
incapacidade deles para a autonomia, seja porque a coação ao trabalho guardava relação com
a idéia de que seria meio para regeneração racial.
Estudando as relações entre africanos livres e Estado, especialmente entre aqueles que
serviram em estabelecimentos públicos, pudemos constatar os distintos significados que a
condição de africano livre assumia para cada uma das partes. Os tutelados colocavam-se
diante das autoridades como indivíduos livres, enquanto estas lhes reservavam pouca
distinção com relação aos escravos. O choque entre ambos os pontos de vista foi evidenciado
1
Este paper é parte do capítulo 5 da tese de doutorado intitulada "Os meia-cara. Africanos livres em São Paulo
no século XIX", defendida na FFLCH-USP em dezembro de 2006. Agradecimentos ao Cnpq.
1
em toda a trajetória dos africanos livres, desde sua apreensão até muito depois de sua
emancipação.
Em tese, a emancipação dos africanos livres encerraria o período de tutela, uma vez
que provadas as condições para o auto-governo, os emancipados teriam autonomia, para, por
exemplo decidirem sobre locais de residência e para negociarem contratos de trabalho.2
Entretanto, na prática, a emancipação não resultou em autonomia para os africanos livres, a
começar porque eram obrigados a cumprir o que lhes havia sido designado pelo presidente da
Província.
Ao analisar as emancipações de africanos livres que serviam em estabelecimentos
públicos de São Paulo, confirmamos que ainda após o recebimento da carta de emancipação,
muitos deles continuavam servindo no mesmo posto de trabalho, na Capital. Desta forma,
entendemos a permanência na cidade como um indício de atendimento de possíveis interesses
e conveniências dos emancipados, bem como sinal de controle do próprio Estado, uma vez
que a cidade de São Paulo oferecia melhores condições para a vigilância daquela população.
Para entendermos, ao menos em parte, a experiência dos africanos livres no período pósemancipação, tanto no que diz respeito à sua relação com o Estado, como à condição de
emancipado, apresentamos a história de Damásio Guaratinguetá e seu esforço para concretizar
sua liberdade.
Damásio, tido como de "nação" marambe foi remetido do Rio de Janeiro para servir
na fábrica de Ferro São João do Ipanema, na região de Sorocaba, aonde permaneceu quinze
anos (de 1845 até 1860). Em 1860 aquele carpinteiro foi transferido para a colônia militar de
Itapura, na divisa entre as províncias do Mato Grosso e São Paulo, ali servindo até 1872.
Damásio recebeu sua emancipação em 1864 e no registro consta que continuaria servindo em
Itapura, agora como colono. Quando, em 1872, o ministério da Guerra mandou Damásio e sua
família de volta para a Fábrica de Ferro, este acumulava 27 anos de trabalho àquelas
instituições. Após o retorno, contudo, a permanência na fábrica durou apenas 4 meses, uma
vez que em dezembro daquele ano Damásio apresentou requerimento para contratar os
serviços seus e os dos familiares com um particular, "em condições muito mais vantajosas do
que as que proporciona[va] o governo."3 Damásio era casado com a crioula liberta Ana, com
quem tinha quatro filhos, além de duas enteadas já adultas, filhas de Ana. O interessado nos
2
As emancipações de africanos livres foram pautadas pelos decretos de 28 de dezembro de 1853 e de 24 de
setembro de 1864. O primeiro determinava o direito do interessado requerer a emancipação desde que houvesse
cumprido 14 anos de serviço para particulares; o segundo abrangia todos os africanos livres, independentemente
dos locais de trabalho e do tempo de serviço prestado.
3
AESP, CO 5535 A. Ofício do presidente da Província de São Paulo ao ministro e secretário de estado dos
negócios da agricultura e obras públicas, José Fernandes da Costa Pereira Júnior, 08.03.1874.
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serviços de Damásio, Antonio José Soares, que era um fornecedor de carnes para a colônia de
Itapura, preparou um contrato de serviços e o apresentou para o administrador do
estabelecimento.
O documento foi rechaçado sob diversos argumentos tanto pela direção da fábrica,
quanto pela presidência da província, o que motivou extensos requerimentos de aprovação e
diferentes apreciações sobre o tema. A proposta de contrato constava de seis artigos que
estabeleciam a obrigação de prestação de serviços na lavoura ou outros compatíveis, por no
mínimo, três anos; os serviços seriam prestados em qualquer lugar da província de São Paulo
ou Rio de Janeiro; estipulava ainda os salários de cada um dos membros da família de
Damásio, inclusive as crianças. Estabelecia também que em caso de enfermidade apenas seria
pago um terço do salário, desde que o afastamento não se estendesse por mais de seis dias
consecutivos, quando não haveria pagamento algum. A contrapartida do locatário se daria
com o transporte da família até o local de trabalho, o fornecimento anual de duas mudas de
roupa, e o adiantamento do valor de 150$000 réis, que seria descontado no prazo de dois anos.
Estipulava ainda que os contratantes teriam um dia de descanso semanal, exceto se já
houvesse dia santo, porém, sem a percepção de salário. Para o caçula da família, Henrique, de
nove anos, ficava prevista a sua alfabetização nas horas vagas.
Indignado com aquela proposta, o diretor da fábrica, engenheiro Joaquim de Souza
Mursa foi enfático na sua discordância com as pretensões de Damásio. Primeiramente,
lembrava que o africano, em sendo integrante do corpo de operários, estava submetido aos
termos do regulamento da mesma, ou seja, estava obrigado a manter-se por, no mínimo, seis
anos naquele estabelecimento. Importante lembrar aqui que naquele princípio da década de
1870 a Fábrica de Ferro tentava recuperar a produtividade e o grande número de operários que
alcançara nos anos 1850. Nesse sentido, o diretor não aceitava a saída de Damásio e família.
Entretanto, seus argumentos esbarravam também numa retórica paternalista. Evocando uma
preocupação com a moralidade das jovens enteadas de Damásio, o diretor entendia que a
aceitação daquele contrato as jogaria na prostituição. Mais adiante defendia sua negativa
numa pretensa proteção aos emancipados: "Por meu lado, pronto sempre a concorrer para
melhorar a sorte dos libertos da nação empregados nesta Fábrica, não posso apoiar esta
proposta porque a locação de serviços destes libertos vai colocá-los em piores circunstâncias
do que a que se acham atualmente".4 Além do evidente lapso ao assumir que as condições em
4
AESP CO 5535 A. Parecer do diretor Joaquim de Souza Mursa sobre a proposta de Antonio José Soares,
07.12.1872. In: Ofício do presidente de São Paulo ao ministro e secretário da agricultura e obras públicas,
08.03.1873.
3
Ipanema não eram boas, seu parecer também apontava para a preocupação com uma ameaça
de disseminação de novas propostas de contrato. "Se o Exmo conselheiro presidente da
Província julgar dever atender ao pedido de Soares, deve contar que novas propostas se
apresentarão, e que os libertos da nação, que a lei deixou por 4 anos sob a inspeção do
governo, serão desencaminhados e reduzidos a uma nova forma de cativeiro."5
Diante do indeferimento do diretor da fábrica, um novo requerimento foi apresentado,
a rogo de Damásio, agora ao presidente da província. O texto é incisivo na defesa do direito
do africano emancipado para realizar contratos de trabalho, bem como em levar consigo sua
família. Tendo por base o art.6 da lei de 28 de setembro de 1871, que estabelecia liberdade
aos escravos da nação e a obrigação de contratarem serviços, o requerimento reforçava o
direito para estabelecer contrato de trabalho com terceiro. Vale lembrar, contudo que Damásio
nunca havia sido escravo da nação, e, portanto, não se enquadrava naqueles termos. Porém,
considerando que ele serviu durante 8 anos após sua emancipação em 1864, esse tempo
encerrava qualquer limite à sua liberdade.
Assim seguiram-se outras solicitações do contratante para aprovação do contrato com
Damásio Guaratinguetá, que por sua vez foram acompanhadas de novos pareceres da direção
da fábrica, bem como do presidente da Província. O ponto central nos argumentos estava no
direito ou não do africano livre emancipado deixar o corpo de operários da fábrica para
contratar seus serviços com um particular. Do ponto de vista do contratante – e do próprio
Damásio-, o contrato era mais vantajoso para o africano do que sua permanência sob a tutela
do Estado. Nos requerimentos havia uma crítica direta à primazia do Estado na utilização do
trabalho do liberto e a acusação de que ali as relações se assemelhavam ao cativeiro. Para os
administradores públicos (diretor e presidente da província), por sua vez, a permanência de
Damásio e seus familiares na fábrica representaria maior proteção à cobiça e aos interesses
dos particulares. Contudo, a fala do diretor não omite que também ele tinha seus interesses.
Diz ele: "Devo em conclusão dizer, que a conceder-se o contrato pedido por Antonio José
Soares, V.Exa pode ter certeza que nenhum liberto da nação ficará nesta Fábrica, pois não
faltará quem lhes venham fazer os mesmos oferecimentos e abusar de sua ignorância..."6
Fica patente, portanto, o quão frágil era a situação dos africanos livres, mesmo depois
de emancipados. Primeiramente eram submetidos à tutela do Estado, o que pressupunha o
trabalho compulsório por muitos anos; depois, por conta da emancipação, quando a liberdade
5
Idem.
AESP CO 5535 A. Ofício de Joaquim de Souza Mursa ao presidente da Província João Teodoro Xavier,
05.02.1873.
6
4
parecia completa, ainda deviam cumprir as designações de lugar para moradia, e, finalmente
estavam sujeitos aos termos desfavoráveis dos contratos de serviço. A tutela do Estado,
porém, não era gratuita, voltada à proteção efetiva dos tutelados, mas repleta de interesses que
atendiam as conveniências do estabelecimento público, fosse através do uso da mão-de-obra
ou através do controle imposto pela disciplina. Não podemos ignorar também que a tutela
apresentava uma carga de desvalorização da capacidade de autonomia dos emancipados.
A última etapa que pudemos acompanhar deste caso foi o recurso apresentado, em
nome do contratante Soares, para o imperador. O documento procurava dar uma interpretação
para a lei de 1871, diferente daquela apresentada pelos administradores públicos sobre o papel
do Estado na condução dos interesses dos libertos. Nesse sentido, o eixo da argumentação
referia-se à crítica às interpretações das relações entre liberto e Estado e a uma defesa na
alteração dessa relação que pudesse considerar também o contratante particular. Condenando
a tutela do Estado aos libertos sob a alegação de obstáculo à liberdade, o contratante
reclamava que o Estado dificultava os contratos dos libertos com particulares porque defendia
seus próprios interesses.
O que parece central nos argumentos de ambos os lados é a questão do papel do
Estado junto aos libertos. Lembrando que, embora Damásio fosse africano livre emancipado,
sua esposa Ana era liberta de nação, e, por conseguinte seus filhos também. Ainda que
deixasse transparecer os interesses da Fábrica, o diretor justificou o indeferimento alegando
prejuízos para Damásio, numa tentativa de protegê-lo de uma possível reescravização. Já para
o contratante, a tutela do Estado não devia se sobrepor à liberdade adquirida por aquela
família para contratar seus serviços. Vemos então Damásio inserido no complexo processo de
transição para o trabalho livre inaugurado com a aprovação da lei de 28 de setembro de 1871.
Complexo porque deu personalidade jurídica aos escravos, porque interpôs a figura do
Estado na relação entre senhor e escravo, porque garantiu aos proprietários uma transição
lenta e gradual para o trabalho livre, porque reforçou a disciplina e o controle sobre a força de
trabalho. Portanto, ao conduzir a transição para o trabalho livre, o Estado dava condições para
os proprietários se prepararem evitando qualquer risco à ordem e à oferta de mão-de-obra.
Contudo, como mostraram estudos sobre o tema, inicialmente, não foi ampla a aceitação
dessa estratégia de transição entre os proprietários porque temiam a desestabilização do
mercado de trabalho.Estado e classe senhorial não se opunham nessa questão, apenas
divergiam quanto à forma e momento dessa ação.7
7
GEBARA, A. O mercado de trabalho livre no Brasil.Op.cit.
5
Mas, afinal, a emancipação de Damásio lhe trouxe alguma vantagem concreta? Se a
distância entre ser escravo e ser africano livre era muito pequena, ser liberto e emancipado
garantia melhor tratamento e um distanciamento do cativeiro?
O fato do contratante e do administrador público mostrarem-se preocupados com o
cativeiro disfarçado e de usarem isso como argumento principal na defesa de seus interesses,
não foi apenas mais um recurso de retórica, mas a constatação da real condição dos africanos
livres - ainda que o problema apenas fosse identificado no lado do outro. A certeza que fica é
que a vivência daqueles homens e mulheres no interior dos estabelecimentos públicos ou a
serviço de particulares estava pautada pela coerção ao trabalho e revestida pela tutela. E isso
tudo confirma que a emancipação era apenas mais uma etapa a ser vencida na difícil luta dos
africanos livres em direção ao sonho da real liberdade.
Observando o caso de Damásio Guaratinguetá e os embates empreendidos para
efetivar sua condição de emancipado, questionamos se a administração dos africanos livres
pelo Estado não era um grande ensaio para testar a tutela dos libertos em geral no momento
em que a escravidão acabasse. Afinal, a questão do controle sobre os libertos foi assunto dos
mais delicados, entre outros motivos pela dificuldade de manter o domínio sobre aqueles
indivíduos com maior mobilidade. Nesse processo, o contrato de trabalho e o trabalho
propriamente, funcionavam como dispositivos de controle, por isso era preciso que o liberto
estivesse sempre vinculado a eles.
Damásio era emancipado, mas isso não lhe garantiu liberdade para contratar seus
serviços com quem quisesse, primeiro porque estava vinculado aos termos do regulamento da
Fábrica de Ferro, e depois porque sua família era formada por libertos, estando sujeita à
inspeção do governo, conforme definia a lei de 1871. Assim como Damásio, muitos outros
africanos livres resistiram não apenas à ameaça de escravização como também à postergação
da liberdade imposta pela tutela do Estado. A proteção definida para preparar o africano livre
para a autonomia durante um período de adaptação, extrapolou esse tempo resultando não
apenas em fracasso na intenção de aprendizado, como também em direcionamento da vida
daqueles, mesmo depois de emancipados. Desta forma, a tutela significou a manutenção do
domínio sobre os emancipados, o que pode ser traduzido em disciplinamento de um grupo
com vistas ao controle geral dos libertos e escravos. Ou seja, numa perspectiva mais ampla,
esse controle visou a organização de um disciplinado - e dependente - mercado de trabalho
livre.8
8
Gebara, A. Op. cit.
6
Damásio Guaratinguetá queria trabalhar e queria o contrato, ainda que soubesse dos
interesses escusos dos contratantes. O Estado, alegando defender os interesses de Damásio,
negou o contrato e foi acusado pelo contratante de desrespeitar a emancipação. Entre as
opiniões (e interesses) da partes, a experiência daquele africano livre emancipado resumiu
perfeitamente a frustração do anseio à autonomia. Tutela e contrato de trabalho
representavam, portanto, um freio ao acesso à liberdade.
Contudo, os africanos livres tentaram, apesar das adversidades, acreditar na
especificidade de sua condição para defender a efetiva liberdade a que teriam direito. Ao
longo de nossa pesquisa, da qual extraímos este pequeno recorte, pudemos constatar que a
valorização da especial condição de africano livre não ficou restrita aos processos formais de
emancipação, mas também perpassou o cotidiano daqueles homens que faziam questão de
lembrar que não eram escravos, tampouco libertos, enfatizando a condição de
ter sido
"sempre livre [s]". 9
9
AESP. Crimes. Rolo 35 Ref 508. 1862
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