LILITH E O ARQUÉTIPO DO FEMININO CONTEMPORÂNEO
Cátia Cilene Lima Rodrigues
Psicóloga, Professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie, Mestre e
doutoranda em Psicologia social da Religião pela PUC/SP
Resumo:
O trabalho tem por objetivo compreender a simbologia existente nos
mito Judaico-Cristão de Lilith, primeira mulher de Adão, bem como relacioná-la
com a experiência mítica da mulher em sua vida cotidiana. Para tal, utiliza-se
de pesquisa teórica bibliográfica e método fenomenológico de observação com
análise de referencial na abordagem da Psicologia Analítica. Uma vez que o
estudo e análise dos mitos da cultura de um povo revela o universo simbólico
deste, no que diz respeito às experiências e relacionamentos, e que o conteúdo
mítico é arquetípico, inconsciente e coletivo, observa-se a atual relevância do
papel social da mulher, e evidencia-se a importância da melhor compreensão
do universo simbólico feminino. Lilith, como primeira companheira de Adão,
feita do mesmo material que ele, cheia de sangue e saliva, possui sensualidade
e força demoníacas, que perturbam Adão; mas também é aquela que lhe
apresenta o prazer orgástico. O relacionamento é perturbado pela imposição
do homem em permanecer por cima da mulher, ao que ela não aceita e por isto
dele se afasta. Este mito simboliza, entre outros aspectos, a instintividade
feminina manifestada em sua sensualidade, bem como a reivindicação por
igualdade sexual e social contra o machismo. Desta forma, observa-se que o
mito traça um panorama de controle, submissão, repressão sexual e luta por
igualdade sexual e social femininas. A feminilidade é um todo, porém este mito
enfatiza um pólo de uma cisão: o lado da mulher sensual, a prostituta, porém
com a força da autonomia e dignidade, presentes na busca feminina
contemporânea por equilíbrio nas relações afetivo-eróticas.
Abstract:
This paper works the simbolysm present on the Lilith´s mith and his
connect with the mistical experience of moderm womam, througt of the
phenomenological method and the Analitical Psycology. It follows that the mith
denote one view of the control, submission, sexual repression and fight for
sexual and social equality to the woman into the companionship.
Palavras Chaves: feminino, simbologia, mitos.
A mitológica personagem Lilith não é explicitamente apresentada nas
escrituras Judaico-Cristãs, porém está presente na tradição popular e,
conforme Vera Paiva (Paiva apud Sicuteri, 1998), vem sendo estudada em
textos da antigüidade, principalmente da Torah assírio-babilônica e hebraica,
além de outros textos apócrifos.
Lilith é a primeira companheira de Adão, criada do mesmo material que
ele, igual a ele. Para melhor elucidar o mito, será apresentado aqui as lacunas
bíblicas que permitem a hipótese da retirada desta personagem do texto, além
do mito em si e as análises pertinentes à Psicologia.
“O mito de Lilith pertence à grande tradição dos
testemunhos orais que estão reunidos nos textos da sabedoria
rabínica definida na versão jeovística, que se colocada lado a
lado, precedendo-a de alguns séculos, da versão bíblica dos
sacerdotes (...) a lenda de Lilith, primeira companheira de
Adão, foi perdida ou removida durante a época de transposição
da versão jeovística para aquela sacerdotal, que logo após
sofre as modificações dos pais da Igreja.”
(Sicuteri, 1998, p23)
Sendo assim, anterior na redação jeovística, o mito de Lilith é arcaico e
precede o mito de Eva: Lilith é a primeira companheira de Adão. De acordo
com Cavalcanti (1987), tal mito possui grande conteúdo revolucionário,
expressando a problemática feminina em busca da sua identidade,
denunciando a necessidade da sociedade patriarcal de sujeitar e invalidar a
presença da mulher. O grande mal em Lilith está em sua desobediência ao
masculino.
A existência de tal mito no texto sagrado da tradição Judaico-Cristã se
fortifica ao analisar-se mais atenciosamente seus trechos. Embora diversas
culturas considerem o primeiro homem (ou o homem original) como um ser
andrógino - o que pode significar um traço divino na natureza humana ou a
completude entre macho e fêmea com princípios masculino e feminino no sexo
oposto (Anima e Animus) - e esta possibilidade também exista na interpretação
dos textos da referida cultura, partamos da verdade contida nos testemunhos
orais que evidenciam a existência de um ser feminino anterior à Eva nas
origens humana.
Em Gênesis I,27, verifica-se a criação do homem segundo à imagem
divina, “homem e mulher” ou “macho e fêmea”, o que sugere a androginia de
Adão ou a existência da entidade feminina junto a ele que não trata-se de Eva.
Isto porque apenas no capítulo posterior, após ter sido concluída toda a
criação, é que Adão solicita uma companheira e Deus irá produzir Eva da
costela de Adão.
“Gênesis I, 26: ‘Deus disse: façamos o homem à nossa
imagem, segundo a nossa semelhança’
Gênesis I, 27: ‘Deus criou o homem à sua imagem, à
imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou’
Gênesis I, 28: ‘Deus os abençoou e Deus lhes disse:
crescei e multiplicai-vos’
Assim, nestas três fases, vemos aparecer o homem com
indivíduo composto de duas partes. O pronome que muda do
singular ao plural é revelador do conceito de hermafroditismo
ou androginia, ou então se deve, com certeza, pensar que se
tratava nem mais nem menos do verdadeiro casal distinto,
Adão e a ‘primeira companheira’, isto é, Lilith.”
(Sicuteri,1998, p 20)
Em Gênesis II, entre os versos 7 e 20, observa-se que primeiro Deus
modelou o homem a partir do pó, soprando-lhe a vida e, após a criação total e
completa, verifica-se a solidão do homem e, então, deseja-lhe criar uma
companheira, fazendo-o depois que o homem conhecera todos os animais e
não encontrara nenhum conveniente a si.
“Nesta passagem bíblica é reconfirmado que Adão
estava só e tinha dado nome aos animais, isto é, os havia
conhecido no acasalamento. Somente de tal modo havia
compreendido a necessidade da diferenciação(...) É neste
ponto exato do mito que Adão abandona o caráter de
identificação com o divino exprimido pela androginia e supera a
sexualidade animal como ser vivente. É o momento no qual é
pedido a Deus a companheira mulher.”
(Sicuteri, 1998, p 20)
O fato de o mito de Lilith ser encontrado em textos da Torah e Midrash
(O ensinamento e A Procura para os Judeus), textos repletos de fé, mas
também de testemunhos, sagas, lendas mitos e folclore, fortifica mais a
expressão arquetípica no mito religioso: Lilith nasce, segundo Sicuteri (1998),
“de uma necessidade ou fantasia coletiva”(p25).
Assim, nas lacunas em Gênesis, pode-se dizer que a própria cultura
harmonizou as duas versões, pois Deus criou o homem e os abençoou, macho
e fêmea, e depois criou Eva para a solidão de Adão. De modo que, excluindo a
androginia como arquétipo celeste refletido no ser terrestre, logo pensa-se na
existência de dois seres diferentes, mas com a mesma natureza feminina.
Outro trecho bíblico que remete a uma experiência de Adão com o universo
feminino precedente à Eva encontra-se em Gênesis II., 22-25, quando ele
expressa alegria com uma mulher que derive dele, ou seja, que ele conheça e
que domine, ao invés de alguém como ele.
R. Jehudah em nome de Rabi disse: no princípio a criou,
mas quando o homem a viu cheia de saliva e de sangue
afastou-se dela, tornou a criá-la uma segunda vez, como está
escrito: ‘Desta vez. Esta e aquela da primeira vez’.”
(Bresit-Rabbá apud Sicuteri, 1998, p 27)
A mulher da primeira vez é Lilith, que provoca em Adão uma sensação
angustiante, que lhe amedronta. O sangue mencionado na citação acima
sugere a menstruação, uma característica carnal e instintiva da mulher, além
da ausência de pudor e tabus de Lilith, que apresenta-se livremente ao homem,
disposta também à experiência sexual no ciclo menstrual. A saliva reforça o
caráter sexual simbólico, remetendo à uma idéia de secreções eróticas. Deste
modo, fica evidente a condição sensual e libertada dos preconceitos dentro do
universo simbólico feminino em Lilith; é essa atuação sexual, que leva o
homem ao êxtase e fora do controle sobre si mesmo, o que amedronta o
universo simbólico masculino expressado em Adão: por isto, ele se afasta e
busca uma companheira adequada - ou seja, submissa, obediente, que sintase inferior.
De acordo com Sicuteri (1998), a lenda da criação de Lilith relata que ela
fora criada “assim como Adão”, porém sendo utilizado por Deus fezes ao pó.
Deste modo, a mulher buscava a igualdade junto ao homem, rejeitando a
condição de submissão ao masculino, pois nascera impura, porém das mãos
divinas como Adão.
Nos relatos não citados no texto sagrado, e de acordo com Sicuteri
(1998), desde o início Lilith fora chamada ‘demônio”, seja por sua força
instintual, seja por ter sido criada logo após Adão nas últimas horas do sexto
dia, juntamente com os demônios no início das trevas. A criação se finda no
sexto dia, pois no sétimo dia Deus descansara.
“Os dois protagonistas estão no palco do mundo. Adão e
Lilith, aquela que primeiro exprimia a seu homem algo de
importante, de fundamental no que diz respeito à sua relação
de criaturas viventes; de homem e mulher”
(Sicuteri, 1998, p 29)
Deste modo, Adão e Lilith consumaram sua relação nas trevas, na
escuridão do Sábado, o sétimo dia, em que Deus descansou: dia sagrado aos
hebreus. O homem sente a potência feminina/demoníaca, que provoca o
prazer e o descontrole da situação. Lilith lhe apresenta isto. Para Sicuteri
(1998), “Neste ponto, digamos que o mito de Lilith representa certamente o
arquétipo da relação homem-mulher, ao nível mais primitivo no sentido
evolucionista”(p. 30).
Lilith apresenta-se, então, cheia de desejo e sensualidade, sedutora,
gemendo e oferecendo um ofuscamento de consciência, um orgasmo ao
homem: é uma mulher que é demônio. É o sonho erótico que perturba a noite
do homem-Adão, apresentando-lhe a “potência da energia vital” 1 .
1
Sicuteri, 1998, p 33
A relação entre o casal original indica ser total, intensa, um amor que
foge ao controle, muito bom, de dimensão divina. É uma união alquímica que
não é uma oposição, mas uma perfeita complementação. Nisto se dá a
perturbação ao universo masculino: o macho perde o controle na relação e sua
grande intimidade com o Criador é ferida, uma vez que a mulher lhe apresenta
um amor de intensidade e dimensão semelhante.
Deste modo, a união carnal/sexual de Lilith e Adão, a princípio tão
prazeirosa, perturba-se. Adão busca uma união carnal sobre a mulher, e Lilith
torna-se descontente. De acordo com Sicuteri (1998):
“todos os seres praticam o ato sexual com a cara de um
voltada para as costas do outro, afora dois que se unem dorso
a dorso: camelo e cão, e afora três, que se unem cara a cara,
porque a Presença divina lhes falou, e são o homem, a
serpente e o peixe”(p 33).
Assim, Adão a procura sexualmente numa posição em que os parceiros,
de frente, permaneçam ele em cima e ela por baixo.
Tal trecho do mito exprime o desejo de controle, não só sexual, mas
social do macho, bem como seu receio quanto à instintividade da fêmea. Ficar
por ‘cima’ dela significa dominá-la e submetê-la a seu controle; porém, a
primeira mulher não aceita tal condição.
“Assim perguntava a Adão: ‘- Por que devo deitar-me
embaixo de ti? Por que abrir-me sob teu corpo?’ Talvez aqui
houvesse uma resposta feita de silêncio ou perplexidade por
parte do companheiro. Mas Lilith insiste: ‘- Por que ser
dominada por você? Contudo eu também fui feita do pó e por
isto sou tua igual’. Ela pede para inverter as posições sexuais
para estabelecer uma pariedade, uma harmonia que deve
significar a igualdade entre os dois corpos e as duas almas.
Malgrado este pedido, ainda úmido de calor súplice, Adão
responde com uma recusa seca: Lilith é submetida a ele, ela
deve estar simbolicamente sob ele, suportar seu corpo.
Portanto: existe um imperativo, uma ordem que não é lícito
transgredir. A mulher não aceita esta imposição e se rebela
contra Adão. É a ruptura do equilíbrio. Qual é a ordem e a
regra do equilíbrio? Está escrito: ‘o homem é obrigado à
reprodução, não a mulher’”.
(Sicuteri, 1998, p 35)
Deste modo, a primeira companheira de Adão afasta-se após sua
recusa, provocando nele a sensação de abandono ao descer das trevas do
sétimo dia. Não encontrando Lilith, Adão sente desespero e amargor pela
perda, recorrendo ao Pai: ao desafiar o homem, a mulher desafia o Divino assim, Lilith afirma-se um demônio, pois profana o nome do Pai. Torna-se a
serpente-demônio, veículo do pecado e da transgressão, numa busca instintual
pela igualdade sexual. Eva, também de natureza feminina, tenta ato
semelhante, porém o desfecho de cada ato as diferencia miticamente.
“Em Lilith há o pedido da inversão das posições sexuais
equivalentes aos papéis, enquanto em Eva há o ato de
transgressão da árvore, em obediência à serpente (...) Lilith
pede para ser considerada igual, Eva pensa que não há morte
ao assumir a sabedoria proibida. Lilith desobedece à
supremacia de Adão, Eva desobedece à proibição. Ambas
assumem um risco, mediante um ato”.
(Sicuteri, 1998, p 37/38)
Após o afastamento de Lilith, Deus lhe ordena que volte para Adão,
porém ela não o deseja mais e se nega a realizar a ordem divina, neste ponto
do mito, Lilith definitivamente transforma-se, preferindo permanecer na região
dos demônios do Mar Vermelho. Torna-se ela também um ser demoníaco,
lascivo, sedutor.
Há uma tentativa no mito de resgate da mulher por parte dos anjos de
Deus, mas sem sucesso eles a ameaçam de morte; porém ela os desafia,
posicionando-se em seu papel: “E como poderei morrer, se Deus mesmo me
encarregou de me ocupar de todas as crianças nascidas homens, até o oitavo
dia de vida, a data da circuncisão, e das mulheres até os seus vinte anos?” 2 .
Assim, por vontade divina, assume o papel de serpente-demônio; mas Deus a
pune, exterminando seus filhos da face da terra.
2
Ibidem, p 39
“Não há uma conclusão. Lilith permanece na própria
liberdade endemoniada, quem sabe rainha no palácio do
Demônio, com o seu espírito feminino. Do momento em que
declara guerra ao Pai, e o Pai a sujeita ao papel, desencadeia
sua força destrutiva e desde aquele dia não há paz para o
homem”
(Sicuteri, 1998, p 40)
A conclusão do mito não ocorre, pois o próprio mito está ocorrendo até
os dias atuais. Toda energia libidinal e sensual de Lilith transforma-se em
volúpia.
O mito simboliza a força sexual e psíquica feminina, que amedronta o
universo masculino pela sensação de impotência que tal força lhes gera. Na
tradição sumérico-acadiana, Lilith é descrita como principal demônio feminino,
sensual, caracterizada por sua “vagina vibrante”, “seios rutilantes”, “ventre e
coxas iminentes”, “um vampiro que suga os fluídos vitais” 3 . Desta forma,
Sicuteri (1998) descreve que ela causa aos homens a “sensação de impotência
absoluta, onde os indivíduos não se sentiam livres, pelo contrário, percebiam
logo a ameaça de uma feitiçaria”(p. 49).
Lilith está por trás dos fenômenos histéricos, a partir da repressão da
sexualidade, que origina somatizações e enfermidades. É ela a responsável
pela desunião da família, seja projetada em uma amante sedutora que ‘tira’ e
‘rouba’ o marido da esposa, seja projetada na rebeldia da esposa que não
suporta o “não” de seu marido-Adão. Esse mito representa toda a
irracionalidade gerada quando as proibições sociais são colocadas como
barreiras à realização dos desejos.
Contudo, também representa uma cisão do arquétipo da Grande mãe,
uma vez que Lilith é também projetada na lua, sendo o lado negro do satélite:
assim, é demônio terrestre e divindade celeste. Na antigüidade egípcia e grecoromana, Lilith não aparece como demônio, mas é identificada com divindades
destas culturas: é o momento da história humana ocidental em que a
sexualidade não é considerada um perigo, mas fonte de prazer.
Deste modo, associa-se as fases lunares ao ciclo de fertilidade da
mulher, em que a projeção assume um caráter numinoso e religioso a partir da
ferocidade das divindades femininas. Sem cisão do arquétipo, a Lua-Lilith pode
ser simultaneamente boa ou má, cheia ou negra.
Desta maneira, o mito simboliza também a fertilidade e produtividade
femininas, mesmo que haja na sua natureza humana um mal implícito, um
demônio noturno, voraz e insaciável: o instinto. Se Lilith expressa força sensual
e mistério, também denota a angústia, o medo da morte, prazeres histéricos; o
instinto pode gerar prazer do polo saudável , como também através da luxúria,
perversão e imoderação sexual. Lilith simboliza todas estas possibilidades.
“Entre a Lua cheia e a Lua negra não há um salto: Lilith
permanece no exílio, mas para a alma grega a potência do
instintual negado se manifesta com toda a evidência na cisão e
chega a sobrepujar o Eu.”
( Sicuteri, 1998, p 90)
A obscuridade e mistério que geram a incompreensão de Adão em
relação a Lilith nada mais simbolizam que o temor ao mistério da feminilidade
para o macho e, conseqüentemente, tal incompreensão gerou superstições nas
quais o mito fora projetado (amazonas, bruxas, sereias).
“Por que a feminilidade conhece de dentro; quase nunca
a partir de fora, pois traz em si, no próprio ventre - em sentido
estrito e metafórico - a mais profunda experiência vital, e
permanece numa perene, indissolúvel união com sua criatura.”
(Sicuteri, 1998, p 108)
O perigo psicológico vivido pelo homem em relação à feminilidade está
no domínio a que ele se submete quando frente aos poderes da sedução da
mulher que, seduzindo-lhe, fica por cima dele, o que é insuportável ao macho.
Explica Sicuteri (1998),
“É ainda repetitiva e reforçada, a rejeição agressiva de
Lilith. Em consequência, a mulher opera na imaginação a mais
cruel desforra. Combatida com a exasperada sublimação
religiosa e com a desdenhosa razão do homem, a Anima
enquanto ‘mulher’ e totalidade instintiva e criativa, volta a
representar o conto, a protestar, a exigir resposta a sua
3
Ibidem, p 47/48.
dolorosa pergunta: ‘Por que me dizes não? Não somos iguais?
Não sou eu igual a ti?”( p. 109).
Neste contexto, inúmeras mulheres sofrendo de conflitos sexuais,
histéricas, ou com mania de perseguição, foram a personificação de Lilith para
a obsessão masculina durante a Idade Média. De modo que, a “caça às
bruxas”
nada mais significou que a concretização do desejo de controle
masculino, com o domínio do macho sobre a crença da inferioridade da mulher.
A sensualidade, que gera tanto prazer, gera também o temor ao universo
simbólico masculino; assim, o objeto de sensualidade ao homem, a mulherLilith, deve ser exterminada.
“Retorna ao pecado original, a Eva, para preparar o
processo contra a sensualidade feminina e, no Malleus
Maleficarum, sustenta-se que o pecado que começou com a
mulher é ‘um inimigo branco e oculto’ cuja concupiscência
carnal é insaciável.”
( Sicuteri, 1998, p 114)
A sensualidade feminina tem, para o universo simbólico masculino,
poder equivalente ao poder do falo e, quando exercida, o homem perde sua
condição de poder e controle sobre si e sobre a relação, entregando-se. Ao se
entregar ao prazer promovido pela mulher, o homem sente-se dominado por
ela, necessitando destruir tal sensualidade para comprovar seu poder fálico.
Assim sendo, reprimir a feminilidade significa afirmar o poder masculino.
De acordo com Sicuteri (1998), a figura da bruxa certamente é um
símbolo sexual:
“O ungüento, o bastão, o cavalo, o vôo, levam-no a
pensar no frenesi sexual, a ereção, o esfregar os genitais, as
posições animais do coito, o voar como símbolo do 6extase do
orgasmo, de poluções ou de masturbação”(p. 124).
Frente ao medo que a sensualidade feminina que era socialmente
repudiada pelo homem, mas desejada inconscientemente por ele, surge o
sadismo e as milhares de mortes que ocorreram contra as ‘bruxas’, a pior
personificação de Lilith que a história já conheceu.
Na atualidade Lilith ainda se manifesta, sombria e negativa, interrogando
o homem quanto sua igualdade: “e já Lilith retorna como amplificação dos mitos
lunares em conexão com as temáticas sexuais” 4 .
Nos protestos por igualdade sexual, na emancipação d mulher, na
astrologia, ainda aponta-se para a cisão do arquétipo da Grande mãe,
refletindo a repressão instintual e sexual da mulher. Os movimentos femininos
que marcaram o século que se finda indicam o despertar e a amplificação da
consciência feminina e o questionamento que a mitológica Lilith faz: ‘Por que
ficar embaixo de ti?’.
Lilith é o lado sombrio de Eva, pois não se submete, porque conhece
seu poder; De acordo com Cavalcanti (1987), “nenhuma deusa jamais se
submete ou está sob o comando do masculino porque conhece sua força e seu
poder”(p. 90).
Após a revolução sexual feminina, com auge nos anos 70, o mitologema
de Lilith não é mais encarado como símbolo de repressão, mas como
denúncia, numa busca de integração dos instintos na psique.
Começa-se a considerar a mitologia do feminino como
testemunha de uma incansável luta que o homem trava contra
o
instintivo,
e
sua
conseqüente
repressão
(...)
E,
constantemente, se repete o ‘não’ ao gozo, ao prazer pulsional.
A criatividade reflui. O objeto do desejo, o ato de desejar e ser
desejado são danificados pela censura e pela repressão e,
para conseguir este resultado - na véspera das grandes
descobertas sobre o inconsciente - ainda se atribuem às várias
personificações da ânima atributos, qualidades e formas as
mais desagradáveis ou destrutivas, a fim de conseguir a
repulsa e a rejeição da experiência”.
(Sicuteri, 1998, p 140).
Considerações Finais
O mitoe de Lilith, exatamente por possuir conteúdos arquetípicos
(sobretudo dentro do mundo de cultura ocidental), conta histórias de todas as
mulheres, pois configura narrativa atemporal e impessoal, expressando
4
Ibidem p 139.
características coletivas quanto ao universo simbólico feminino e a relação da
mulher com sua feminilidade e com o outro.
Deste modo, narra a realidade feminina no que diz respeito a gestos,
emoções, imagens simbólicas, etc, que estão no Inconsciente humano. Toda a
contestação sobre a irracionalidade presente neste mito não importa, pois o
mito não pode ser lógico: para abranger a totalidade do Real, precisa ser
simbólico. Assim, a questão da existência efetiva da primeira esposa de Adão é
irrelevante na área de Psicologia; antes diz respeito a uma questão teológica. À
Psicologia compete justamente o estudo do que é irracional, sem lógica e
simbólico na história, ou seja, a verdade última que ela contém e que expressa
conteúdos psíquicos coletivos.
Além
de
espelhar
o
comportamento,
sentimentos,
imagens
inconscientes comuns na cultura ocidental de tradição Judaico-Cristã, foi
observado no presente trabalho que este mito também foi utilizado como
modelo e influência para a manipulação de certos comportamentos, sobretudo
no que diz respeito ao controle da sexualidade.
Neste sentido, simboliza diferentes manifestações da feminilidade na
mulher (que por serem atemporais, abrangem a mulher atual também),
especialmente quanto à vivência da sexualidade. Os principais conteúdos
observados foram o controle, a submissão, e a repressão sexual feminina pelo
universo simbólico masculino/machista, bem como a luta por igualdade sexual
e social da mulher.
Expressam o “não” masculino quanto o pedido de igualdade da mulher,
indicando que no machismo existe grande ansiedade e desejo de poder sobre
o universo feminino, no que refere-se ao controle da instintividade, denotando o
temor do homem em relação à força instintiva e a criatividade femininas,
expressadas principalmente através da sexualidade.
Porém, embora temente em relação à instintividade, o universo
simbólico masculino necessita da energia que lhe é contrária e que lhe
completa, proporcionando-lhe o equilíbrio
no processo de individuação, na
relação Anima-Animus; deste modo, ainda que negando a satisfação do desejo
de igualdade da mulher, o homem busca sua companhia. Entretanto, de um
modo em que esteja por cima, ou seja, não considerando a mulher como sua
igual, mas submetendo-a na condição de inferioridade, que então é aceita pela
mulher. A sexualidade feminina, que expressa poder criativo e gerador, capaz
de promover um estado de êxtase orgástico sem controle à sexualidade
masculina,
por ser sua complementação natural, é desejo de controle
masculino.
A relevância do tema está na melhor compreensão dos conflitos sóciosexuais da mulher moderna, o que poderia sugerir nova dinâmica de análise
neste sentido. Tal hipótese continua sem comprovação, uma vez que seria
necessária maior e mais aprofundada observação científica sobre o tema.
Para finalizar, Neumann (1998) reflete:
“Ora, à esquerda há uma série negativa de símbolos, a
mãe da Morte, a Grande prostituta, a Bruxa, o Dragão, Maloch;
à direita há uma série positiva, oposta, na qual encontramos a
boa mãe que, como Sofia ou a Virgem, dá à luz e nutre, conduz
ao renascimento e à salvação. Lá Lilith, aqui Maria. Lá o sapo,
aqui a deusa, lá um pântano cruento e devorador, aqui o
Eterno Feminino.”
(Neumann apud Sicuteri, 1998, p 141).
Deste modo, não trata-se de representações de mulheres diferentes
mas, antes, de diferentes aspectos da sexualidade feminina como um todo. É
possível que em toda a dinâmica psicológica feminina exista os caracteres
destes mitologemas, por serem arquetípicos. A sensualidade, a instintividade, a
rebeldia, a submissão, a criatividade e a repressão sexual, aspectos
observados
neste
mito
não
se
excluem
ou
são
incompatíveis
de
simultaneidade; mas ao contrário, podem indicar as diferentes modalidades de
manifestação do que é próprio ao universo simbólico feminino enquanto Psique
Objetiva. Compreendê-las e analisá-las fazem parte do processo de integração
entre o que é simbólico
e coletivo no psiquismo e o Ego. Neste sentido,
viabilizaria-se uma melhor elaboração dos aspectos arquetípicos, bem como a
integração dos mesmos no contexto de relacionamentos interpessoais da
mulher, facilitando a reflexão e a ocorrência do processo de individuação.
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