III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES
15 a 17 de Maio de 2013
Universidade do Estado da Bahia – Campus I
Salvador - BA
QUANDO O FEMININO FALA: AS CONFISSÕES DE MERCEDES EM DIVÃ
Autora: Raquel Guimarães Mesquita1
Co-autor: Antônio Cristian Saraiva Paiva2
A partir de uma perspectiva elisiana, de que não existe indivíduo externo à sociedade,
mas que indivíduos em inter-relação é o que formam o que conhecemos por social,
compreendemos a escrita de Martha Medeiros como que inscrita numa rede de
interdependências, onde só foi possível a ela criar enredos protagonizados por mulheres
maduras, problematizando questões como o vínculo matrimonial, papeis de gênero,
sexualidade porque está inserida em um conteto figuracional favorável. Neste artigo,
discutimos a partir do romance Divã, temas como família, sexualidade e casamento,
pensando essas categorias a partir da enunciação da personagem principal, Mercedes,
uma mulher de quarenta e poucos anos que questiona suas certezas quando começa a ir
ao divã de um analista.
Palvaras-chaves: SOCIOLOGIA DA LITERATURA, RELAÇÕES DE GÊNERO,
ESCRITA DE SI.
Historicamente, na sociedade patriarcal o sujeito feminino esteva ligado somente
à natureza, não participando da inscrição na cultura. O mundo público, as ciências, as
artes faziam parte do universo masculino. Na literatura essa dicotomia se refletiu como
o masculino ocupando o lugar de sujeito criador e o feminino, o de objeto a ser
representado. A mulher seria então um sujeito silenciado, não havendo um lugar onde
ela se auto-inscrevesse. Com as transformações ocorridas na sociedade e as conquistas
do movimento feminista a literatura passou a ser produzida também por mulheres, que
puderam enfim se auto-inscrever, se auto-representar.
Neste artigo, tomamos como campo de análise o romance da gaúcha Martha
Medeiros, Divã. Lançado pela editora Objetiva em 2002 a narrativa que já foi
transformada em peça de teatro, filme e série de TV, nos apresenta como protagonista
Mercedes, uma mulher que inicia um processo de terapia, indo sistematicamente à
clínica do Dr. Lopes, e que durante três anos relata fragmentos de sua vida como a
infância sem a mãe, as dificuldades durante o processo de divórcio, o recomeço na vida
de solteira, a ambição de entender a si mesma, a discordância com as regras impostas, o
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Mestranda em Sociologia, da Universidade Federal do Ceará- [email protected]
Doutor em Sociologia, pela Universidade Federal do Ceará e professor do programa de Pós
Graduação em Sociologia da referida universidade- [email protected]
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desejo por viver a sexualidade de maneira mais livre, dentre outros temas que surgem na
fala da personagem.
É por meio dessa narração de si (RICOEUR, 2010) que a personagem tece sua
trajetória (BOURDIEU,1998) e si reescreve. Nosso intuito é entender como o feminino
está sendo figurado (ELIAS, 2006) em uma das escritoras expoentes de uma nova safra
de autores brasileiros. Quais são as questões expostas pela personagem, qual sua
concepção sobre amor, sexo, casamento e maternidade? Entendemos aqui a literatura
como uma expressão significativa para a representação e a interpretação do mundo
social, se constituindo não fora dele, mas no emaranhado de significações e relações
sociais (TODOROV, 2009).
Quando o feminino fala
Martha Medeiros é uma escritora gaúcha, publicitária por formação que tem se
aventurado pela literatura desde 1985, quando lançou seu primeiro livro de poesia StripTease e desde então tem se mantdido no mercado editorial com bastante regularidade,
na última década (de 2001 à 2010) Martha publicou 8 livros, tendo sua coletânea de
crônicas Montalha-russa (2004) recebido o Prêmios-açorianos, além de ficar em
segundo lugar na 64° edição do Prêmio Jabuti, na categoria Contos e Crônicas.
Martha é uma mulher que escreve sobre mulheres, em seus três romances (Divã,
Selma e Sinatra e Fora de Mim) as protagonistas são personagens femininas e as
narrativas giravam em torno das inquietações que estas personagens colocavam. Se em
Divã Mercedes vai ao psicanalista e fala sobre sua vida, lembrando-se de fatos ocorridos
na infância, falando sobre o divórcio e a dificuldade em adentrar novamente na vida de
solteira ou se questionando sobre o que seria de fato a felicidade, em Selma e Sinatra
(2005), são duas as protagonistas que se interpelam, Selma, uma cantora de muito
sucesso já aposentada dos palcos que está sendo entrevistada por Guta, uma jornalista
que foi contratada para biografá-la, ambas vão se conhecendo e descobrindo os segredos
e angustias uma da outra. Em Fora de mim, livro de 2010, Martha nos apresenta uma
personagem sem nome que apenas confessa ao leitor sua dor de fim de caso e o
processo de superação desse término.
Nos três romances, notamos que o feminino está em um lugar de fala, seja no
divã de um psicanalista, na condição de entrevistada ou apenas narrando para um leitor
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imaginário os infortúnios de um rompimento amoroso, em todas as narrativas o
feminino preza por um lugar de enunciação de si, ou como colocaria Paul Ricoeur
(2010), a vida seria uma narrativa em busca de narrador.
Mercedes e o divã: do que se fala?
No romance em questão a personagem Mercedes reflete sobre uma série de
questões, relatando algumas de suas experiências e expondo suas inquietações em
relação às mesmas. Desde a infância com a morte prematura da mãe, a adolescência e
seus beijos intermináveis, a perda da virgindade com um dos namorados, o casamento
com Gustavo e a sensação de estar oficializando algo que já tinha acontecido desde
muito tempo, a suspeita de traição, o divórcio, a nova vida de solteira, a inabilidade em
ser a “mulher exemplar”, estes são alguns dos temas que são abordados durante o
romance. Devido ao espaço limitado de um artigo, elegemos apenas alguns pontos
como nossas categorias de análise para adentrarmos a obra.
Uma das questões mais presentes na fala da personagem é sobre os papeis que a
mulher deve assumir em nossa sociedade, como a de ser sempre amorosa, delicada e
afetuosa. Uma das reflexões sobre o que é ser mulher é quando ela conta sobre sua tia
Mika, meia-irmã de seu pai, que é uma senhora que mora praticamente sozinha, sendo
auxiliada por uma outra mulher, que eles chamam de Muda, já que esta só fala em caso
de emergência. Como Mercedes é a única sobrinha é ela que é sempre cobrada a
desempenhar uma função afetiva, dando carinho e atenção a tia. Essa demanda devida
ao gênero de Mercedes (afinal ela é a única sobrinha mulher!) a inquieta, e ela resiste, se
ausente, é tida como megera pela falta de solidariedade com tia Mika. Mulheres seriam
mais parentes do que homens, deveriam ser mais boazinhas, mais afetuosas? Por que?
Mercedes não se sente a vontade com isso, parece que a mesma está apenas
fingindo compartilhar dessas demandas, apenas para se sentir integrada, enquanto outra
parte dela grita por romper com os padrões: “Se eu lhe disser que estou com medo de
ser feliz para sempre, você acreditaria? Se ser feliz para sempre é aceitar com
resignação católica o pão nosso de cada dia e sentir-se imune a todas as tentações, então
é deste paraíso que quero fugir” ³
___________________________________________________
³ MEDEIROS, Martha. Divã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 14.
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Mercedes questiona o script já traçado para os sujeitos, ela não aceita as atribuições de
gênero, e se coloca numa posição que muitas vezes a desfavorece, seja na omissão de
carinho a tia, com quem ela mal convive ou quando ela revela ao analista que se
masturba frequentemente, o que Mercedes mostra em sua enunciação de si é que ela
tenta traçar linhas de fuga aos padrões impostos. De forma pensada ou não, Martha
Medeiros problematiza nesse romance questões importantes para pesarmos categorias
como relações de gênero, família e sexualidade.
Uma das perspectivas que dominou os estudos sobre família foi a funcionalista,
em que se acreditava que a família desempenhava duas funções principais: a
socialização primária e a estabilidade da personalidade. A primeira trata do processo no
qual as crianças aprendem as primeiras normas necessárias à vida em sociedade e a
segunda, se volta ao papel que a família teria de amparar os indivíduos emocionalmente.
Um dos teóricos dessa perspectiva, Parsons, afirmava que homens e mulheres teriam
papéis bem demarcados, os homens exerceriam uma função “instrumental”, trabalhando
fora e provendo o sustento da família, enquanto que as mulheres exerceriam uma função
“afetiva”, permanecendo em casa e cuidando dos filhos.
Tal teoria foi duramente rebatida pela perspectiva feminista que em 1965, com
Betty Friedan, que denunciou o isolamento e o tédio das donas de casa americanas que
se perdiam em um ciclo de trabalho interminável, dividindo seu tempo entre os filhos e
os afazeres domésticos.
As feministas também denunciaram outros aspectos da
opressão feminina, dentre eles três se sobressaíram: a divisão do trabalho doméstico;
que era dividido entre homes e mulheres de maneira desigual ocasionando uma
sobrecarga de trabalho para as mulheres; as relações desiguais de poder, que
possibilitavam até mesmo casos de abuso sexual e violência doméstica e por último, as
atividades assistenciais, que demandavam das mulheres um ‘trabalho emocional’, pois
estas eram incumbidas de cuidar dos enfermos da família, dos idosos, além de terem
que cultivar as relações interpessoais, ouvindo, aconselhando e negociando com os
vários membros da família. É contra essa organização social, em que mulheres ocupam
um lugar de destaque na família, como uma administradora do lar e dos afetos que
Mercedes se coloca, seja no caso de tia Mika, ou quando a mesma diz “[...] Sou eu a que
controla a contabilidade da casa, a que arquiteta os planos para o futuro, a que
administra os verões, os invernos, a estiagem e as inundações, sou eu que segura a barra
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de todos [...]”3.
Mercedes conta que se masturba com alguma regularidade, nada de brinquedos
ou vibradores, apenas as mãos e a imaginação, para ela nada mais poderoso do que uma
fantasia erótica. Para ela a masturbação é algo bem prático, com um único objetivo: o
orgasmo. Uma excitação encomendada, de segunda ordem, ela sabe bem, mas um
prazer que não merece ser negado, reprimido. Ao conversar sobre isso com uma amiga,
Mônica, confessando a prática, a amiga se assusta, a olhando com pena, como se fosse
vergonhoso “precisar” disso para ter prazer. E Mercedes esclarece, “masturbação não é
muleta, não substitui coisa nenhuma, é uma relação como outra qualquer [...]. O corpo
da gente foi programado para nos dar prazer sem se importar de que mão vem o toque
[...]” 4.
As reflexões sobre sexo surgem novamente quando Mercedes fala sobre a
maturidade, ela tinha em mente que ao chegar à meia-idade iria “sossegar o facho”,
pensar como os outros, se adequar ao ambiente em que vive, mas não, ela continuava
criando as próprias regras, fazendo seu próprio jogo, e enquanto os mais jovens usam
piercings, tatuagens, o que faz ela revolucionar a si mesma é o sexo. Para ela o sexo é
que move as pessoas e o mundo e deveria ser algo tão natural e rotineiro quanto banharse. Mercedes pensa o ato sexual como algo positivo, prazeroso, algo que pode ser obtido
sem maiores promessas de amor eterno, apenas feito por prazer.
Durante muitos anos, no Ocidente, as mulheres tiveram seus corpos e sua
sexualidade oprimidos por causa de uma rígida moral civilizatória que as negava as
experiências sexuais antes do casamento e mesmo estando nele tinham que se contentar
com os atos sexuais destinados à procriação.
Em seu artigo intitulado Os silêncios do corpo da mulher, Michelle Perrot vai
apontar que o corpo feminino esteve, desde a construção cristã do mito de Eva, ligado a
luxúria, a promiscuidade, ao pecado, logo tal corpo deveria ser domado, enjaulado,
silenciado. A partir daí às mulheres foram impostos certos padrões de comportamento
que garantiriam sua subordinação ao macho, o que garantiria assim o silêncio de seu
3
4
MEDEIROS, Martha. Divã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 64.
MEDEIROS, Martha. Divã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p.33.
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corpo, “A mulher decente não deve erguer a voz. O riso lhe é proibido” (PERROT,
2003, p. 15).5
À mulher é negado o prazer, este estando ligado a figuras de comportamento
dissoluto, como as prostitutas ou as escravas negras aqui no Brasil. A mulher direita,
aquela pra casar, é justamente aquela calada, frágil, comedida, obediente como Perrot
deixa claro em: “A mulher ‘tal como deve ser’, principalmente a jovem casadoura, deve
mostrar comedimento nos gestos, nos olhares, na expressão das emoções, as quais não
deixará transparecer senão com plena consciência.” (PERROT, 2003, p. 15). 6
Lembro aqui dos casos das histéricas, do final do século XIX, mulheres tidas
como doentes por não conseguirem adaptar seus corpos e sua sexualidade aos padrões
da época que enclausuravam as mulheres nos seus lares, juntos de seus esposos e filhos,
sendo a principal imagem da mulher histérica a da mãe ociosa. Por essa época, se
imaginava que o casamento possibilitaria uma total compensação às restrições impostas
à vida sexual das mulheres, sendo o casamento o remédio para os males femininos,
como sublinha Silvia Alexim Nunes (2000). Porém, os estudos de Freud sobre esse
tema apontaram para uma denúncia de que, pelo contrário do que se pensava, muitas
vezes era o próprio casamento o motivo dos sintomas histéricos. As mulheres ao se
desiludirem com as relações no matrimônio acabavam contraído neuroses cuja cura
estava na infidelidade conjugal, porém, devido a educação moral que tiveram, se
estabelecia um dilema na mente dessas mulheres, pois para elas tal possibilidade de
sublimação seria moralmente condenável. Como seria entendido o desejo de Mercedes
em meados do século XIX? Como ela viveria esse desejo em uma outra configuração
social em que mulheres não poderiam viver? Se hoje o desejo da personagem é exposto
de maneira tão clara e objetiva, enunciando os gostos e preferências sexuais isso só é
possível devido a um dado arranjo social que permite não só que uma mulher escreva
sobre sexualidade feminina, mas que também dá a possibilidade de acesso a mulheres (e
homens) de lerem tais narrativas.
“[...] Você sabe que eu amo Gustavo, mas entre ele e meus irmão já não há
muita diferença. É um amor tão certo, verdadeiro e inatacável que, pombas, nem parece
amor, parece parentesco’7, é dessa relação que Mercedes quer escapar e por isso o
5
PERROT, Michelle. O corpo feminino em debate. São Paulo: UNESP, 2003 p.15.
PERROT, Michelle. O corpo feminino em debate. São Paulo: UNESP, 2003 p.15.
7
MEDEIROS, Martha. Divã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p.72.
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assunto divórcio. Uma separação não por causa de uma traição, mas antes pelo
comodismo que se instaurou na vida do casal. Gustavo não gosta da ideia da separação,
mas sabe que continuar juntos seria muito mais comodismo do que de fato paixão ou
amor, afinal ter a certeza de alguém ao seu lado ainda sustenta muitas relações. E
Mercedes vai em frente com a ideia, tanto que de fato, separam-se. Ela pensava que
teria um alívio imediato, voltaria ao antigo sobrenome, teria mais momentos seus, mais
espaço nos armários, mais liberdade. Tinha a certeza de não mais querer viver ao lado
de Gustavo, mas ela saberia viver sem ele? “[...] Não queria mais ser infeliz com
Gustavo. A dúvida é: saberei ser infeliz sozinha?”8 (MEDEIROS, 2002, p, 90). Os
papeis foram assinados, ele ainda buscaria alguns pertences em casa, as coisas foram
feitas, ambos estavam tristes e falsamente mostravam-se otimistas.
Após a oficialização do fim do casamento as dificuldades em recomeçar. A tão
sonhada liberdade se apresentava mas sem grandes perspectivas de felicidade, o medo
surge com a ausência de respostas, Mercedes não queria continuar casada, mas também
não ficou feliz solteira. Ela passa a refletir sobre os rompimentos, primeiro com o cara
que lhe tinha preenchido os dias com sexo e aventura, depois Gustavo que tinha lhe
dado uma vida de segurança, uma família, um lar e agora a solidão. Mercedes sente
dificuldade em se acostumar com seu novo estado civil e segue com dificuldade os dias.
Durante muitos séculos, no Ocidente, o casamento foi considerado indissolúvel,
sendo permitida a separação apenas em casos particulares, como na não-consumação do
casamento. Para ser concedido o divórcio era necessário que um dos cônjuges
apresentasse acusações de adultério, crueldade, ou algo do tipo. Os primeiros divórcios
concedidos a casos ‘não-faltosos’ (ou seja, divórcios que não eram motivados por
infidelidade, abusos, etc.) foram concedidos na década de 1960, desde então muitos
governos adotaram leis semelhantes. Na Grã-Bretanha, entre 1960 e 1970, a taxa de
divórcios cresceu bastante. Tentando explicar esse fenômeno é chamada atenção para as
lutas e conquistas feministas (GIDDENS, 2010). Com o aumento de mulheres no
mercado de trabalho e a sua emancipação em relação ao marido, somado à mudança de
concepção do casamento, que agora não é visto mais como uma maneira de juntar
fortunas e perpetuar propriedades, mas antes, como vínculo conjugal se tornou mais
fácil a dissolução dos laços.
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MEDEIROS, Martha, Divã. Rio de Janeiros: Objetiva, 2002, p.90.
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Uma das grandes ameaças para as esposas era a separação. Além da perda
afetiva via-se também a perda econômica, uma vez que a maioria das mulheres da
classe média e alta dependiam do marido para sobreviver. A mulher separada era
extremamente mal vista, criticada e, às vezes, punida, como mostra Michelle Perrot, no
livro História da vida privada (vol. 4). Tais mulheres não deveriam esperar por parte do
ex-cônjuge qualquer tipo de ajuda ou indulgência. A possibilidade de separação na
década de 1950 não dissolvia os vínculos conjugais nem admitia novos casamentos. Em
1942 foi introduzido o artigo 315 ao Código Civil brasileiro que estabelecia a separação
sem a dissolução de vínculo, o famoso desquite. No caso de Mercedes, notamos que
suas questões ao se divorciar não são em momento algum de ordem econômica, já que
esta trabalha, é professora particular de matemática, detendo de recursos próprios para o
sustento, suas inquietações são muito mais relacionadas a uma dimensão subjetiva, de
bem-estar, de satisfação, ela não se sente mais feliz com Gustavo, sua relação de
cônjuge se deslocou para uma relação de parentalidade.
O final da narrativa é marcado por uma reflexão sobre a finitude da vida e a
transitoriedade das coisas. Com a morte uma amiga, Mônica, Mercedes passa a se
questionar sobre o que realmente importa e passa a reconhecer as pequenas coisas como
algo de grande valor, tendo um sentimento de gratidão por tudo aquilo que possui. A
segurança das certezas é uma mera ilusão, já que as próprias certezas mudam, tudo está
em movimento e sempre podemos ser surpreendidos, inclusive por nós mesmos. Não
devemos então nos prender a uma única verdade de nós mesmos, mas sentirmos livres
para sermos os vários de nós: “[...] Agora entendo que nunca estarei pronta, e que tudo o
que preciso é conviver bem com meu desalinho e inconstância, que enfim, aceito. Bom
trabalho, doutor”9 (MEDEIROS, 2002, p, 154).
Que feminino é possível?
Seria justo dizer que as figurações criadas na literatura também são engendradas
a partir de figurações específicas de uma época, podendo funcionar como constituintes
de tal contexto ou já apresentando modificações e anunciando novas formas de relações,
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MEDEIROS, Martha. Divã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 154.
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modos e costumes, etc (isto é, modificando as figurações por meio de uma relação
processual).
Tomando Martha Medeiros como que inserida numa rede de interdependências,
seguimos o rastro de Elias ao pensar que sua possibilidade de criação está mediada pela
figuração na qual ela está inserida, assim, o feminino engendrado por ela em seus textos
só é possível devido a uma figuração que lhe deu margem de elaborar o feminino de tal
maneira. Ao mesmo tempo em que a demanda por um público que consuma esse tipo de
literatura, com textos que revelam questões como por exemplo divórcio e orgasmo, só é
possível em uma figuração onde mulheres tenham a possibilidade de se estruturarem
como um público leitor (sendo alfabetizadas e tendo livre acesso à leitura), como uma
maior liberdade em falar desses temas.
Entendemos a escrita de Martha também como discurso, ou seja, ao mesmo
tempo em que se elabora uma narrativa literária sobre o feminino também está se
construindo a própria ideia de feminino. Se nos romances de formação (bildungsroman)
femininos, que serviam como manual para as leitoras, as heroínas tinham finais trágicos
(morriam, enlouqueciam), devido à incompatibilidade entre o crescimento pessoal da
personagem e a impossibilidade de realização dentro da trama (PINTO, 1990), notamos
que nos romances de Martha é dado ao feminino uma maior possibilidade de realização.
Considerações finais
Nosso intuito com esse artigo foi o de apontar algumas questões que dizem
respeito às problematizações construídas em torno do debate sobre as relações de
gênero, como família, sexualidade e casamento, a partir da literatura, acreditando que a
prática da escrita e a construção de personagens, enredos e narrativas está intimamente
ligada ao mundo social, uma vez que o escritor está inserido em um sistema de
interdependência com outros sujeitos. É a existência de uma determinada figuração que
possibilitará a invenção de uma determinada narrativa, que contará por sua vez com um
determinado público.
A escrita de Martha Medeiros, em Divã, nos informa de algumas questões do
feminino que muitas vezes são simplismente silenciadas ou esquecidas, mas que ainda
fervilham no imaginário social. As várias demadas destinadas às mulheres, por serem
mulheres, a necessidade de administrar os afetos familiares, o desejo sexual que muitas
vezes choca, surpreende os outros, a decisão de pôr um fim no relacionamento por uma
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insatisfação pessoal, essas inquietações que são salientadas na escrita de Martha nos
chama atenção mais uma vez para problemáticas que dizem respeito não apenas a uma
esfera íntima, privada, mas que nos coloca de frente com nossas ferramentas de
interpretação do social, afinal, ainda estão na esteira das concep~ções de masculino e
feminino tradicionais? Quais esteriótipos e preconceitos reproduzimos no dia a dia
baseado ainda em concepções que pintam as mulheres como Evas pecadoras ou Virgens
Maria?
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