UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ - UFC
INSTITUTO DE CULTURA E ARTE - ICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
REGINALDO FERREIRA RODRIGUES
AS DIMENSÕES DA LINGUAGEM NO FEDRO DE PLATÃO
FORTALEZA
2012
REGINALDO FERREIRA RODRIGUES
AS DIMENSÕES DA LINGUAGEM NO FEDRO DE PLATÃO
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Filosofia,
do Instituto de Cultura e Arte da
Universidade Federal do Ceará, como
requisito parcial para obtenção do Título
de Mestre em Filosofia. Área de
concentração: Filosofia antiga
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Silva de
Almeida
FORTALEZA
2012
REGINALDO FERREIRA RODRIGUES
AS DIMENSÕES DA LINGUAGEM NO FEDRO DE PLATÃO
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Filosofia,
do Instituto de Cultura e Arte da
Universidade Federal do Ceará, como
requisito parcial para obtenção do Título
de Mestre em Filosofia. Área de
concentração: Filosofia antiga.
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Silva de
Almeida
Aprovado no dia 28 de maio de 2012.
BANCA EXAMINADORA
DEDICATÓRIA
A Deus.
Ao meu filho, Ryênan .
A Frankciane, minha companheira divina.
Aos meus pais.
AGRADECIMENTOS
À FUNCAP, pelo apoio financeiro com a manutenção da bolsa de auxílio.
À SEDUC, por ter permitido o tempo necessário para a pesquisa.
Ao Prof. Dr. José Carlos Silva de Almeida por ter acreditado em minha
capacidade e oferecido sua orientação
À Profª Drª. Maria Aparecida de Paiva Montenegro por seus seminários de
Platão, os quais me guiaram para novas leituras.
Ao Prof. Dr. Marcelo Marques, que me recebeu muito bem na UFMG durante
a missão de estudos do PROCAD de Filosofia antiga e que me concedeu valiosas
orientações.
Aos meus pais que sempre estiveram ao meu lado dando o melhor de si para
que eu pudesse ter condições de realizar a pesquisa;
Ao Ryênan e Frankciane, meu filho querido e esposa dedicada, por
suportarem a ausência quando foi necessário e por acreditarem em mim.
Aos colegas da turma de mestrado Josivan, com quem partilhei a missão de
estudos na UFMG, e ao Gilberto pelas reflexões e sugestões recebidas.
“A verdade é, portanto, antes de mais, o
empenho de uma vida: o empenho em
nunca aceitar o que se diz, de quem quer
que seja dito, sem submetê-lo ao exame à
tortura da razão. E, por conseguinte, do
discurso.
(Giovanni Casertano)
RESUMO
Nesta pesquisa pretendemos mostrar que Platão, ao examinar o poder da
escrita e da arte do discurso enquanto uma técnica racional e lógica de comunicação
do saber como entendem os logógrafos de sua época, ganha espaço para mostrar
sua dimensão afetiva e irracional e assim comprovar que a racionalidade da
linguagem enquanto técnica não está dissociada e nem em contradição com sua
dimensão desiderativa, passional. Veremos que o alvo de Sócrates é indicar os
fatores que empobrecem o uso do discurso oral ou escrito por seus produtores, pois
estes o empregam ignorando os elementos essenciais da dialética, que jamais deixa
de levar em consideração a especificidade de cada tipo de ouvinte em particular,
assim como cada tema discutido.
Palavras-chaves: Discurso. Escrita. Dialética. Memória. Retórica.
ABSTRACT
In our research we aim at showing that Plato, as he examines the power of writing
and the art of speech understood as rational and logical technique of communication,
such as the logographers of his time conceive it, makes room to show its affective
and irrational dimension, thereby proving that the rationality of language trought of as
technique is not dissociated or in contradiction with its desiderative and passional
dimension. We show that Socrates´aim is to point out the factors that impoverish the
use of oral or written speech by its producers, insofar as they ignore elements that
are essential to dialectic, which should never leave out the specifificit of each kind of
listener as well the topic under discussion.
Keywords: Speech. Writing. Dialectic. Memory. Rhetoric.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................
1.
09
PRIMEIRA PARTE: Discurso e ensinamento filosófico no
Fedro...................................................................................
16
1.1.
Escrita e Memória...............................................................
16
1.2.
O discurso como imagem do Belo.......................................
27
1.3.
A dimensão erótica e farmacológica do discurso................
34
1.4. A inspiração divina e a fluidez do lógos...............................
38
2.
SEGUNDA PARTE: A arte retórica e a sofística................
48
2.1.
A retórica corrente de Lísias................................................
48
2.2.
A retórica platônica.............................................................
58
2.3.
Verdade e verossimilhança................................................
65
2.4. O mythos como arte das emoções......................................
68
3.
72
TERCEIRA PARTE: O Diálogo e a dialética no Fedro..........
3.1. A Unidade temática do Fedro...............................................
72
3.2. O diálogo da alma..................................................................
74
3.3. A escrita na alma e o socorro do lógos..................................
77
3.4. A dialética platônica e a dialética do Fedro...........................
79
CONCLUSÃO........................................................................
84
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................
87
9
INTRODUÇÃO
O objeto de investigação desta pesquisa diz respeito à linguagem, mas
dizer isso ainda é um tanto vago. Ele se limitará em perceber as dimensões da
linguagem, escrita ou falada, bem como de seus efeitos na alma do leitor ou ouvinte,
no diálogo Fedro de Platão.
Esta temática é de grande relevância para as discussões filosóficas
atuais, pois a linguagem parece ter se transformado no ponto de interesse comum
de quase todas as disciplinas da Filosofia e, neste sentido, o pensamento de Platão
é um dos pilares que fundamentam essa problemática que tanto tem sucitado
pesquisas na filosofia contemporânea.
No Fedro em 277 b, Platão parece acreditar que a pretensão da Filosofia
é dizer a verdade, “pois é preciso conhecer a verdade a respeito do que se fala ou
escreve.” Todavia, parece que o discurso nunca conseguiu dizer o todo do Ser, em
sua suposta totalidade, mas apenas partes de uma possível verdade. Verdade esta
que nunca se deixa apreender puramente em conceitos, pois a verdade em Platão
não diz respeito somente ao inteligível, mas também e ao sensível, ao mundo da
multiplicidade.
Neste sentido, é que pretendemos investigar como o discurso se
apresenta enquanto manifestação humana. E como construção do homem, no Fedro
ele se mostra ambíguo e versátil, ora racional, ora irracional. Portanto uma das
respostas que buscaremos diz respeito, a saber, como poderemos confiar a verdade
a uma ferramenta que pode falhar. Ora, Platão sempre se mostrou um filósofo
apaixonado por discursos. E neste diálogo específico ele parece fazer um inventário
daquilo que a linguagem é capaz.
A metodologia que usamos para realizar esta investigação parte do
pressuposto teórico de que o diálogo platônico é um método de fazer Filosofia, um
método que jamais admite o pensamento como algo adquirido de forma solitária.
Nesse sentido, não esperamos com nossa leitura retirar conteúdos e
doutrinas fixas, acabadas e prontas, distanciando-nos assim de certos intérpretes
antigos e modernos que leem os diálogos interessados em obter, geralmente do
interlocutor principal dos diálogos, como uma doutrina a ser transmitida.
10
Nossa leitura partilha em certa medida de que não há como negar que
nas falas dos interlocutores, dos diferentes diálogos, estão presentes concepções de
determinados temas. Ora estas ideias estão de acordo em diferentes diálogos,
dando a entender que cada obra platônica possui uma relação com o todo do
pensamento de Platão, ora essas ideias se confrotam, permitindo pensar cada
diálogo como uma unidade ou que os mesmos fazem parte de uma unidade.
Ora bem, o que nos ajuda a sair desse problema é também partilhar de
outra forma de ler os diálogos de Platão. Ou seja, eles fazem parte de um projeto
filosófico de educação para a Filosofia. Foram escritos para que os leitores reflitam
por si mesmos sobre o tema e as ideias discutidas. Não comungamos com a ideia
de que os diálogos seriam destinadas a um público neófilo, diferentemente, portanto,
doutrinas não escritas, reservadas aos frequentadores da Academia.
Assim sendo, esta pesquisa pretende averiguar o que Platão mencionou
no âmbito do Fedro, a respeito das dimensões e dos efeitos do logos sobre a alma
humana, seja este um logos erótico, filosófico, retórico, mítico, poético ou fármaco.
Nossa contribuição consiste em ser mais um interlocutor nessa discussão presente
no Fedro, assim como em fomentar academicamente, através da colocação de
novas perguntas, esse debate dentro do campo da filosofia antiga.
A primeira parte da pesquisa tratará da relação entre o discurso e o
ensinamento filosófico. Esta começará pelo mito de Teuth, o deus inventor da
escrita. Alguém poderá indagar porque este relato está no final do diálogo e é a
primeira parte da dissertação. A nossa resposta é a de que não seguimos a ordem
da escrita platônica, pois que, se assim fosse, teríamos que tratar de Eros (amor),
logo no início.
Nossa escolha foi temática e a mesma recaiu sobre a questão do estatuto
da palavra enquanto instrumento capaz de modificar o comportamento e o caráter
do homem, o que se encontra presente em todo o diálogo. Esta se mostrou uma
questão fundamental na medida em que o Fedro está inserido no contexto de
transição da tradição oral grega para a escrita, e isso significou uma mudança muita
grande na transmissão do saber, assim como na forma mesma de pensar.
Um dos conceitos arcaicos do qual Platão se valeu e que abrirá um leque
de perspectivas para nossa pesquisa será o termo grego mnéme, memória.
11
Tentaremos buscar o sentido deste termo numa perspectiva epistemológica no
tempo em que a verdade era fruto da revelação divina.
Tentaremos também, através da análise das dimensões da linguagem,
mostrar que em Platão a memória continuou a ser fonte geradora do saber, porém
uma sabedoria humana, ou seja, construída a partir de tudo que faz parte do
humano, suas paixões, desejos e razões. Todavia, a sabedoria humana não pode
prescindir de certo “resquício” do divino que existe na alma, pois sem este
conhecimento não seria capaz de se efetivar.
Partindo do relato mítico da parelha alada 246 a, do Fedro, do
pressuposto que é da memória, através da visão ou audição do belo que a alma tem
acesso às formas, procuraremos investigar o conceito de eidolon, imagem,
especificamente quando esta é dita bela, boa e divina. Nossa intenção será procurar
entender como as coisas sensíveis, seja um discurso ou uma imagem conseguem
dar prazer e fazer a alma movimentar essa parte e se relacionar com as outras. Para
tal demonstração, será necessário tratar do desejo, de Eros, o tema do erotikos do
logógrafo Lísias, o qual defende a tese de que o amor é uma perturbação para o
amado.
No entanto, a tese contrária presente no Segundo discurso de Sócrates
244 a , qual o mesmo defende, é de que o desejo, o impulso, é uma vantagem para
a atividade do pensamento, desde que a razão seja o guia que saiba usar para o
bem essa força.
Para finalizar essa primeira parte, abordaremos o lógos enquanto
phármakon, cujo signficado é ao mesmo tempo remédio e veneno. Por isso, assim
como o médico, o filósofo é o aquele que se utilizando das palavras pode escolher,
de acordo com o tipo de alma, a melhor terapia. Neste sentido, será conveniente
mencionarmos o Elogio de Helena, de Górgias, pois este antes de Platão, já havia
tratado dessa dimensão da linguagem. Platão se apropria dessa ideia e através da
comparação com a medicina, uma das atividades mais nobre e valiosa entre os
gregos, criará em termos teóricos, um conjunto de advertências e cuidados para os
que pretenderão conduzir-se através da linguagem, da palavra.
A segunda parte tratará da retórica e da sofística. Nesta, a investigação
começará por apresentar a principal função da retórica corrente praticada nos
tribunais e assembleias políticas, a persuasão. Buscaremos apresentar uma base
12
teórica dos motivos que levaram Platão a eleger esse assunto no Fedro.
Acompanharemos então uma linha interpretativa apontada por Trabattoni que coloca
como uma das causas dessa investigação de Platão pela retórica a condenação de
Sócrates, considerado um homem justo, que o tribunal julgou uma pessoa perigosa
à cidade ateniense. A pergunta que se fará então é: por que a razão ficou cega
diante dos ornamentos da linguagem dos seus acusadores. A resposta poderia ser
formulada nos seguintes termos: Por que o conceito de justiça se tornou plástico nas
mãos dos fabricadores de discursos.
Nosso esforço será mostrar que verdade e persuasão para a retórica
corrente não eram necessariamente um par conciliável, mas que se poderia muito
bem fazer belos discursos, levar a multidão a acreditar naquilo que se diz, sem o
conhecimento do que se fala, pois o forte da retórica sofística era convencer e não
formar cidadãos ou transmitir verdades.
Neste sentido é que mencionaremos a Apologia de Sócrates como um
exemplo do excepcional talento de Platão enquanto logógrafo. Discorreremos sobre
o que se pode pensar a respeito do parricídio, na medida em que no tribunal Platão
dá voz a Sócrates para fazer sua defesa. Mostar-se-á de que forma Platão como
mestre do discurso estará presente na Apologia e Lísias no erotikos de Lísias, pois
apesar de alguns intérpretes negarem a presença do autor do discurso no caso
destes serem encomendados, Sócrates, diante do manuscrito de Lísias, encontra ali
sua presença (228 e). É exatamente essa presença ou ausência do orador ou do
mestre que Sócrates parece querer tratar com Fedro ao examinar o poder dos
discursos retóricos. Sua análise, assim como no Mênon, só para citar um exemplo
de um dos diálogos da juventude de Platão, é saber sobre a natureza do saber. No
caso do Fedro, se ele pode ser ensinado através de um discurso ou de um escrito,
ao mesmo tempo em que indaga a legitimidade da educação retórico-sofística.
O erotikos de Lísias servirá de modelo para que Sócrates realize um
debate sobre esse assunto. Neste caso, trataremos do por que Eros foi o tema
escolhido, assim como teremos a oportunidade de pôr em questão a diferença entre
antilogia e erística.
Logo após esses conceitos, a pesquisa se dirigirá para o que Platão
entende por retórica. Para tanto, será necessário mencionar o Górgias, um dos
diálogos em que o tema principal é a retórica sofística. A concepção de retórica
13
corrente para Platão é a de que esta tem por missão agradar os ouvintes e ser útil
para quem pretende ganhar a disputa verbal ou convencer. Todavia, Sócrates
apresenta para Fedro uma nova abordagem de retórica, ou seja, esta tem como
papel conduzir almas. Neste sentido, faz-se fundamental conhecer a alma do
ouvinte, para que seja elaborado um discurso de acordo com os tipos de alma, ou
seja, para almas simples discurso simples, para almas complexas discursos
complexos.
Nossa tentativa será mostrar que na retórica platônica, como arte de
psicagogia, o conceito de alma terá um sentido antropológico significativo, isto é,
tanto condutor quanto conduzido pelo discurso retórico serão convocados a
reconhecer sua condição humana e, assim como sua origem divina.
Neste ponto da discussão será conveniente mencionar que o lógos possui
uma dimensão ética e política, na perspectiva da retórica platônica, o que também
aparece de modo enfático no tão conhecido mito da caverna, do livro VII da
República. Tanto este quanto o mito da parelha alada do Fedro parecem mencionar
a função do filósofo enquanto condutor de alma através de discursos. Todavia, tal
função não parece ser uma tarefa fácil, visto que a condição humana mostrar-se-á
um tanto tendenciosa para o vício, para o prazer desmedido.
Todavia, veremos que nem sempre o prazer é um mal na ótica de
Sócrates. Pois os melhores discursos são os discursos belos, aqueles que permitem
ao homem ser absolvido pela visão ou a escuta da beleza, algo que lhe causa
prazer. Nesta parte teremos a oportunidade de relacionar o conceito de beleza e
erotismo, arte e beleza.
Ora, isso nos levará a buscar o conceito de verdade do discurso, pois
para Sócrates um discurso que seja belo pressupõe na mente do falante a verdade.
Mas como ter acesso à verdade enquanto ser humano? Essa questão nos conduzirá
para a diferença entre verdade e opinião, pois segundo o mito da parelha alada, as
almas na Planície da Verdade se alimentam da episteme, e quando estão na terra,
de opinião.
No entanto, veremos que opinião é aquilo que é verossímil, ou seja,
aquilo que não é verdadeiro, porém não é ignorância; nas palavras de Hesíodo, é
uma mentira símil, ela tem para onde apontar.
14
No final da segunda parte abordaremos a relação entre mythos e lógos.
Isso porque a linguagem mítica, embora apresente elementos irracionais, carrega
em si também o racional; da junção dos dois, Platão parece conseguir
retirarinteressantes resultados. Isso nos será relevante porque na hora da
comunicação da narração mítica o ouvinte se deixa emocionar e revela seus
sentimentos, permitindo assim ser conduzido pela linguagem que seduz, assim
como tem a liberdade de pensar, imaginar o que sugere o relato, as imagens e as
metáforas.
A terceira e última parte terá como foco principal a dialética. Nossa
hipótese partirá do pressuposto de que mesmo no Fedro não apresentando
aparentemente uma unidade temática de imediato, existe um centro que Platão
desejou tematizar, a alma, sede do pensamento que em si mesma é dialética, pois
possuindo partes distintas precisa procurar uma harmonia, uma unidade para
promover a felicidade (eudaimonia) do homem. Felicidade esta que é diferente do
que nós modernos entendemos por esse termo. Para Platão, a felicidade consiste
num misto de prazer com inteligência e discernimento.1
Destarte, nossa intenção será entender o conceito de alma no Fedro. O
que nos encaminhará mais uma vez para o mito da carruagem alada, que para
alguns intérpretes representa um conceito inovador de alma, pois a mesma é
carregada de uma dimensão antropológica, algo determinante para o conceito de
Filosofia em Platão. Isso será o suficiente para encaminhar nossa pesquisa rumo ao
entendimento de como se dará o movimento dialético, visto que o mesmo parece
possuir uma dimensão individual e outra coletiva, ou seja, cada homem vai tentar
através da Filosofia, que no Fedro é razão e amor, buscar conhecer a si mesmo e
ajudar os outros a buscar esse entendimento, pois ele é fundamental para que se
compreenda o mundo, uma tarefa que é sempre processo.
E para finalisar a pesquisa, investigaremos recomendação platônica de
que cabe ao dialético escrever seus dicursos na alma do ouvinte ou leitor. Isso
implicará numa discussão sugestiva sobre o silêncio e a omissão que é
recomendada ao condutor do diálogo, isto é calar diante de algumas almas e falar
frente a outras, já que Sócrates anunciará que o método dialético é o que lhe faz
falar e pensar, que no Fedro são aplicados a partir da união e da divisão, da
1
PLATÃO, Filebo 22a
15
diaíresis (divisão) e da synagogé (união), dois processos que permitirão ao homem ir
do plano dos fenômenos para o plano das ideias, do múltiplo ao uno e vice-versa.
.
16
PRIMEIRA PARTE
Discurso e ensinamento filosófico no Fedro2
Se alguém ama um objeto e sente um parentesco
com ele, tem simpatia até mesmo por imagens
desse objeto.
(PLOTINO, Tratado das Enéadas, I).
1.1. Escrita e memória
No passo (274 c) do Fedro, ao examinar a conveniência ou
inconveniência da escrita, Sócrates narra para seu interlocutor o mito de Teuth3, que
dentre muitas invenções, como o jogo de damas, os números, a geometria, a
astronomia, também criou a escrita. Esta, segundo o deus egípcio, tornaria os
homens “mais sábios e de melhor memória”. Porém o rei a quem Teuth permitiu
distribuir tais inventos questionou a eficácia da escrita da seguinte forma:
[...] essa descoberta provocará nas almas o esquecimento de quanto se
aprende, devido à falta de exercício da memória, porque confiados na
escrita, é do exterior, por meio de sinais estranhos, e não de dentro, graças
a esforços próprios, que obterão as recordações. Por conseguinte, não
descobriste um remédio para a memória (μνήμης), mas para a recordação
4
(ἀναμιμνῃσκομένους).
Por que então Platão condenaria a escrita? Ou, na verdade, pensar “em
condenação” é ser simplório demais? Não estaria Sócrates fazendo um convite no
final do Fedro para se examinar a relação entre o que é mesmo o saber, qual sua
natureza, como ele se transmite e quais os seus limites, já que através de discursos
prontos se pretendia repassar uma verdade? Assim diz Derrida:
[...] um velho escritor não teria condenado a escritura como Platão o faz no
Fedro. [...] Somente uma leitura cega ou grosseira pôde, com efeito, deixar
2
Estamos tratando do diálogo Fedro, não confundir com a personagem. Toda vez que este nome se
encontrar em itálico se refere à obra platônica, caso contrário ao personagem interlocutor de Sócrates
desta mesma obra.
3
Teremos no segundo capítulo, a oportunidade de elucidar a escolha de Platão ao recorrer à
linguagem mítica aqui no Fedro como mais uma das dimensões da linguagem.
4
Fedro 275 a-b: “τοῦτο γὰρ τῶν μαθόντων λήθην μὲν ἐν ψυχαῖς παρέξει μνήμης ἀμελετησίᾳ, ἅτε διὰ
πίστιν γραφῆς ἔξωθεν ὑπ᾽ ἀλλοτρίων τύπων, οὐκ ἔνδοθεν αὐτοὺς ὑφ᾽ αὑτῶν ἀναμιμνῃσκομένους:
οὔκουν μνήμης ἀλλὰ ὑπομνήσεως φάρμακον ηὗρες”.
17
correr o boato de que Platão condenava simplesmente a atividade de
escritor. (DERRIDA, 2005, p. 6).
Tais perguntas nos remetem para investigar qual é mesmo o caráter
dessa preocupação de Platão pela forte atuação dos discursos escritos e orais no
mundo clássico ateniense. Cabe-nos investigar porque falar e escrever naquele
contexto do século IV a.C. se tornou uma questão de enorme interesse para o
fundador da Academia.
As tentativas de responder a estas questões têm rendido muitas páginas
e debates calorosos, e até formado Escola. Apesar disso, não há uma unanimidade
entre os especialistas, embora No entanto haja refinadas pesquisas que respondem
relativamente a essas nossas indagações, mesmo que a questão continue aberta e
seja sempre atualizada com novas abordagens.
Talvez o lado positivo disso seja que Platão continue a falar através de
seus diálogos e a nos colocar como participantes desse grande debate que, no que
nos compele, começa com essa crítica, porém ela parece ser apenas a ponta de um
grande iceberg, pois talvez nos conduza ao modo como Platão entendia como a
linguagem e que maneira pode revelar o Ser do mundo e o Ser do homem, através
de suas diversas dimensões.
Começar a analisar essa crítica apresentada no Fedro é partir do que
significou o aparecimento do letramento, da alfabetização e como isso veio a
remodelar o pensamento do homem grego, é também mergulhar um pouco na
tradição oral anterior a Platão, já que oralidade e escrita se fundiram numa só arte.
Segundo Brandão (2007, p. 177), as pesquisas arqueológicas e históricas
defendem que o primeiro tipo de escrita surgido na Grécia foi a Linear B. A mesma
surgiu no século XII a.C e era utilizada apenas pelos escribas para registros
administrativos e comerciais.
Porém é sabido a partir de Havelock (1996, p. 11), que o alfabeto adotado
do fenício só veio a se tornar literatura a partir de Platão, o qual viveu no centro da
mudança “oralidade-literácia”, ou melhor, na passagem de um mundo onde a
Paidéia5 grega tinha como fonte exclusiva a memória oral e que a partir de então,
5
Modernamente se traduz Paidéia por educação, embora seja uma “coisa” grega. Segundo Jaeger
não se pode evitar o emprego de palavras como civilização, cultura, tradição, educação ou literatura
para dizer o que essa expressão significa. Porém segundo o mesmo, “nenhuma delas, coincide
18
com a alfabetização consolidada, a proliferação de livros e manuais tornava público
o conhecimento, o que provavelmente deixou muitos gregos acreditando na tese do
deus egípcio, de que o livro e o discurso escrito, tornariam os homens sábios.
Um provável motivo que aparece refletido na análise que Platão faz da
escrita, colocado pelos comentadores, é o nascimento da Pólis6 grega e junto com
ela, a democracia.7 Isto é, tanto a cidade e sua organização só serão possíveis pela
presença do discurso, do debate aberto e igual. Discursos serão escritos, lidos em
tribunais, na praça pública e vendidos. A lei (nómos) e o poder não serão mais
imposições de um rei que tudo pode, conforme assinala Vernant (2006, p.11), mas
resultado de um embate que se dará através da palavra, do diálogo e do discurso.
Portanto, é nesse reino da palavra que Platão insere sua análise da linguagem
enquanto instrumento de poder e de saber, ou seja, tem poder aquele que sabe
convencer, embora não diga a verdade, mas dela se aproxime.
Consideramos perspicaz a observação de Luc Brisson (2003, p. 36) ao
analisar o mito da invenção da escrita, dado que o mesmo entende que não há uma
“condenação, sem recurso”, ou seja, absoluta da escrita no Fedro, mas que ao
analisar sua inconveniência (kai aprepeias), sua conveniência (euprepeias) é
resguardada. Assim como também analisa Sousa:
Certamente Platão não desconhece o valor da palavra para a filosofia, mas
em oposição a Isócrates, aos sofistas e aos erísticos, ele jamais admite o
emprego da palavra unicamente como meio de convencimento dos
adversários, sejam argumentos verdadeiros ou falsos. Platão exige do
discurso filosófico um logos coerente e verdadeiro. (SOUSA, 2000 p. 96).
Tendo isso em vista, é lógico pensar que, como faz em seus diálogos,
Platão não estaria exatamente tomando uma posição radical de rejeição em relação
à criação, isto é, à arte dos discursos escritos (em biblíois), mas colocando em
xeque seus limites e suas possibilidades enquanto instrumento de ensinamento,
visto que não era unívoca a proposta de ensinamento filosófico na Atenas clássica.
realmente com o que os Gregos entendiam por Paidéia”, mas teríamos de empregá-los todos de uma
só vez. ( JAEGER, 2010 p.2)
6
Pólis é uma comunidade urbana a qual possui uma constituição (politeía), significa também Estado,
pois cada cidade da Grécia constituía um Estado. O mesmo cita Platão em República livro III, 343 d;
Leis livro II, 667; e a Política de Aristóteles livro I. (GOBRY, 2007, p. 119)
7
Lembramos que o conceito de democracia grego é diferente do que se entende por democracia na
atualidade. No entendimento de Canfora (1994, p. 108) “é cidadão, aquele que faz parte de pleno
direito da comunidade através da participação nas assembleias deliberativas, quem é capaz de
exercer a principal função dos homens adultos livres, isto é, a guerra”.
19
Provavelmente buscasse também submeter à escrita ou o discurso oral os critérios
de verdade e do saber?
Sócrates é bastante explícito no Fedro em lembrar que “[...] escrever em
si mesmo não é feio e nem vergonhoso” (257 d). Mas feio seria falar ou escrever8
sem beleza. Se quisermos, podemos elencar vários solicitações e elogios de
Sócrates aos escritores de discursos. Só para citar alguns, lembremo-nos de seu
pedido a Fedro9 que solicite a Lísias, que “escreva o mais depressa possível” (243 e)
um discurso de reparação, pois assim como Sócrates, ambos falaram mal de Eros,
uma divindade. Outro exemplo seria o elogio feito ao sofista e poeta Eveno de
Paros, por ”ter escrito versos para auxílio da memória” (267 a).
Como se confirma, Sócrates concorda com a ideia de Eveno, de que a
escrita é um estímulo para a memória. Eis aqui uma opinião a favor da tese de
Tamos, o rei de todo Egito (274 d), de que é na memória que o saber pode emanar e
fluir.
Porém, que saber é este, qual sua natureza? A escrita ou o discurso oral
seria capaz de comportá-lo, armazená-lo e transmiti-lo de forma adequada? Qual a
forma mais adequada para sua transmissão? E a palavra certa seria mesmo
transmissão?
O que não é difícil de notar é de que a memória ocupa um lugar
privilegiado no Fedro. Logo no início do diálogo, Fedro afirma que desejaria tê-la
mais que uma grande fortuna (227 d -228 a). Porém, Sócrates tratando de certas
ideias que ouviu, (talvez da bela Safo, ou do sábio Anacreonte) sobre o mesmo
assunto do discurso de Lísias diz: “contudo, por desleixo esqueceu-me até como e a
quem ouvi esses pensamentos” (235 d), mostrando, diferentemente de Fedro, que
passou toda a manhã tentando memorizar o manuscrito de Lísias, que não é uma
pessoa que guarda de cor, aquilo que escuta dos outros, como se tratasse de um
saber acumulado, depositado, congelado.
Era uma prática comum entre os gregos encomendar esses discursos:
8
Seguimos a interpretação de Monique Dixsaut, Trabattoni e Victor Goldschmidt que consideram falar
e escrever uma mesma arte.
9
Trata-se de Fedro personagem do diálogo platônico já presente na República e que motivou os
discursos proferidos sobre o Amor, eros. No diálogo homônimo ele é um jovem aprendiz de retórica
que passou toda a manhã com seu mestre Lísias e encontra-se saindo das muralhas de Atenas para
continuar seu treino na arte de bem falar, e nesta ocasião se encontra com Sócrates.
20
“[...] os logógrafos vendiam discursos forenses que os litigantes deviam
memorizar e declamar na audiência. São, contudo, inúmeros os
testemunhos da capacidade de recitação de memória de um texto, ou
debate, mesmo ouvido a tempo considerável.” (SANTOS, 2008, p.37).
Embora Platão redija uma defesa para Sócrates (Apologia) e escreva
diálogos nos quais exibe relatos guardados na memória de seus personagens, como
é o caso de Aristodemo no Banquete, ele não parece entender o saber como algo
estranho ao interior da alma. Porém, jamais renega o valor que a memória possui,
pelo contrário. Todavia, no contexto do Fedro ela é ineliminável para o problema do
conhecimento. Embora como lembre Santos (2008, p.37) exista um aspecto
negativo no uso da memória, a memorização em si, pois esta inviabiliza qualquer
posição crítica que possa surgir.
Tudo leva a crer que Sócrates defende o saber como algo vivo e presente
em cada discurso que se faz, ou seja, na linguagem mesma e no pensamento. Ainda
se referindo no Fedro a respeito do que ouviu dos poetas, Platão faz Sócrates
admitir: “creio eu, que as recebendo de certas fontes estranhas, quaisquer que elas
sejam, através dos ouvidos, me sinta encher à maneira de uma bilha” (235 d).
Ora, os conceitos de saber, aprendizagem e educação aqui estão em
jogo. Sócrates critica o leitor ou ouvinte passivo, aquele que recebe acriticamente as
informações. Essa ideia é também recorrente no Banquete quando Agatão, o
anfitrião do jantar, pede que Sócrates sente-se ao seu lado para repassar para ele o
pensamento que teve lá fora, antes de entrar na sala. Ao que Sócrates diz no
Banquete 175 d-e:
Reclina-te ao meu lado, afim de que ao teu contato desfrute eu da sábia
ideia que te ocorreu em frente da casa. Pois é evidente que encontraste, e
que a tens, pois não terias desistido antes. Sócrates então senta e diz: Seria
bom, Agatão, se de tal natureza fosse a sabedoria que do mais cheio
escorresse ao mais vazio, quando um ao outro nos tocássemos, como a
água dos copos que pelo fio de lã escorre do mais cheio ao mais vazio. Se
é assim também a sabedoria, muito aprecio reclinar-me ao teu lado, pois
creio que de ti serei cumulado com uma vasta sabedoria. A minha seria um
tanto ordinária, ou mesmo duvidosa como um sonho, enquanto que a tua é
brilhante e muito desenvolvida, ela que de tua mocidade tão intensamente
brilhou, tornando-se anteontem manifesta a mais de trinta mil gregos que a
10
testemunharam.
10
Banquete 175 d-e: παρ᾽ ἐμὲ κατάκεισο, ἵνα καὶ τοῦ σοφοῦ ἁπτόμενός σου ἀπολαύσω, ὅ σοι
προσέστη ἐν τοῖς προθύροις. δῆλον γὰρ ὅτι ηὗρες αὐτὸ καὶ ἔχεις: οὐ γὰρ ἂν προαπέστης.καὶ τὸν
Σωκράτη καθίζεσθαι καὶ εἰπεῖν ὅτι εὖ ἂν ἔχοι, φάναι, ὦ Ἀγάθων, εἰ τοιοῦτον εἴη ἡ σοφία ὥστ᾽ ἐκ τοῦ
πληρεστέρου εἰς τὸ κενώτερον ῥεῖν ἡμῶν, ἐὰν ἁπτώμεθα ἀλλήλων, ὥσπερ τὸ ἐν ταῖς κύλιξιν ὕδωρ τὸ
διὰ τοῦ ἐρίου ῥέον ἐκ τῆς πληρεστέρας εἰς τὴν κενωτέραν. εἰ γὰρ οὕτως ἔχει καὶ ἡ σοφία, πολλοῦ
21
Que papel, portanto a memória exerce no contexto da crítica platônica
que hora analisamos? Somos reconhecedores de que a memória é um tema muito
amplo e fértil a ser pesquisado dentro da história do pensamento grego, inclusive
também na filosofia platônica. Nosso propósito aqui se limita ao modo como esse
conceito possa contribuir para elucidar alguns pontos da nossa análise em relação
com a escrita, pois junto dela está imbricado o tema da alma, da reminiscência e do
saber; ou seja, é uma questão que se ramifica e só pode ser entendida em Platão no
contexto dialógico.
Segundo o deus Theuth, a memória é o reservatório do saber, porém
parece que nem ela, nem o saber e nem essa relação são captados de modo
perfeito pelo conceitual, por isso ao tratar desse assunto, Sócrates não recorre a
uma argumentação lógica, mas ao mito. Segundo Genevière (1997, p. 9) a verdade
do saber “não aceita, assim tão facilmente, ficar circunscrita unicamente à linguagem
da racionalidade conceitual”.
Para que possamos entender como se dá a relação da escrita com a
memória e a recordação, é indispensável perquirir um pouco como Platão se
apropria desse conceito dos “antigos (memória)” e de que modo isso pode colocar
luzes em nossa investigação.
Por muito tempo diz Detienne (1988, p.16), a Memória (Mnemosýne)
ocupou um estatuto religioso entre os gregos, dado que era uma sociedade
desprovida de escrita. Portanto, era pela oralidade que o homem grego tinha acesso
à verdade e a sua visão do mundo.
Ora, como, então, a verdade poderia habitar uma linguagem dessa
natureza? Como manter uma informação que fosse fidedigna aos fatos através da
memória?
τιμῶμαι τὴν παρὰ σοὶ κατάκλισιν: οἶμαι γάρ με παρὰ σοῦ πολλῆς καὶ καλῆς σοφίας πληρωθήσεσθαι. ἡ
μὲν γὰρ ἐμὴ φαύλη τις ἂν εἴη, ἢ καὶ ἀμφισβητήσιμος ὥσπερ ὄναρ οὖσα, ἡ δὲ σὴ λαμπρά τε καὶ πολλὴν
ἐπίδοσιν ἔχουσα, ἥ γε παρὰ σοῦ νέου ὄντος οὕτω σφόδρα ἐξέλαμψεν καὶ ἐκφανὴς ἐγένετο πρῴην ἐν
μάρτυσι τῶν Ἑλλήνων πλέον ἢ τρισμυρίοις.
22
Segundo o relato mítico de Hesíodo, Mnemosýne era uma deusa da
clarividência e que juntamente com Zeus tivera nove filhas, as Musas, as quais têm
o privilégio de “dizer a verdade (Alétheia)”.11
Neste sentido, o saber tem como matriz, a Memória, de modo que, tudo
concorre para que Platão herde da tradição arcaica o conhecimento da verdade
como um atributo divino. Essa atribuição da divindade como fonte de sabedoria
também encontramos no Elogio de Helena, (6) de Górgias: “a divindade é mais
poderosa que o homem, tanto na força como na sabedoria e em tudo mais”.
Sendo assim, aos humanos, que são providos de memória (agora num
sentido psicológico do termo, mas sem deixar de carregar resquícios da tradição),
cabe buscar, não mais invocando as Musas, mas seu interior, o eu mesmo, a
verdadeira realidade, ou seja:
Os filósofos são aqueles que gostam de contemplar a verdade. Isso
significa que eles a buscam na sua totalidade. Isto é, admitem a
possibilidade da Teoria das Idéias, acreditam que há o belo, o justo e o bom
em si mesmos. (MAGALHÃES, 2009, p.36)
Para Trabattoni (1994, p.61), quando o rei Tamos afirma que a finalidade
da escrita é para relembrar o que já se sabe e não para se tornar um sábio, Sócrates
enuncia a diferença entre memória e recordação, mnéme e anámnesis. Nesta
senda, consideramos a analise desses conceitos um dos pontos fundamentais para
que se entenda como a alma desperta, através da linguagem, para a atividade
filosófica.
A presença desses elementos só vem confirmar a hipótese de que fazer
filosofia não diz respeito somente ao uso do pensamento dito racional, mas que,
como assinala Montenegro (2010, p. 61), a filosofia pensada por Platão a partir do
Fedro marca a existência dos elementos passionais necessários para o sucesso da
atividade filosófica.
Mnéme, para Theuth é a sede do conhecimento presente na alma
(psychê), um dado inato do constituir humano. É lá que estão todas as ideias
(lembradas e esquecidas) contempladas na Planície da verdade, pois,
11
Estamos nos referindo às Deusas Musas, filhas de Zeus e de Memória segundo o relato de
Hesíodo. Eram nove e assim se chamavam: Glória, Alegria, Festa, Dançarina, Alegra-coro, Amorosa,
Hinária, Celeste e Belavoz. Segundo Jaa Torrano elas constituem o fundamento transcendente do
cantos e, ao mesmo tempo, a garantia divina da verdade que nesses cantos se revela. (TORRANO,
2007, primeira orelha).
23
O grande interesse em ver a Planície da Verdade reside no fato de a
pastagem conveniente à melhor parte da alma provir do prado que aí se
12
encontra e de a natureza das asas, que tornam a alma leve, ai se nutrir.
O “pasto da alma” se encontra na Planície da Verdade. Platão está
sempre usando metáforas e imagens para se referir às essências. Ora, podemos
dizer com Casertano (2010, p.94) que este pasto é composto de verdades e a
verdade é constituída pelas ideias, portanto falar delas significa dizer a verdade.
Ora bem, aqui parece se mesclar aquilo que é humano e divino no
homem. Ou seja, há um alimento, uma nutrição de natureza divina que permite ao
homem transpor sua condição mortal. Podemos lembrar aqui o relato de outra
planície que Platão cita na República, quando menciona o rio Améles, o rio do
esquecimento:
Assim, ao anoitecer, elas montaram suas tendas, perto do rio Améles, cujas
águas nenhum vaso pode guardar. Era necessário então que todas as
almas bebessem certa quantidade dessa água, mas as que não
preservavam pela sabedoria bebiam além da medida. Ora, sempre que
13
alguém bebe, se esquece de tudo.
Caberia aqui nos perguntar se a privação da memória estaria ligada à
ignorância e a perda da identidade. Pois, conforme diz Montenegro (2010, p.452),
“assim, a dialética não só não pode como também não pretende oferecer nenhuma
doutrina acabada, pois para cada alma será necessária uma abordagem que lhe
seja propícia.”
Sócrates está em quase todos os diálogos solicitando que seu
interlocutor conheça a si mesmo, pois o conhecimento está intrisicamente ligado ao
autocoonhecimento. Portanto é preciso esforço para recordar. Só identificando o tipo
de natureza que a alma possui é que se pode determinar o tipo de linguagem que se
deve aplicar.
12
Fedro 248 b-c: οὗ δ᾽ ἕνεχ᾽ ἡ πολλὴ σπουδὴ τὸ ἀληθείας ἰδεῖν πεδίον οὗ ἐστιν, ἥ τε δὴ προσήκουσα
ψυχῆς τῷ ἀρίστῳ νομὴ ἐκ τοῦ ἐκεῖ λειμῶνος τυγχάνει οὖσα, ἥ τε τοῦ πτεροῦ φύσις, ᾧ ψυχὴ κουφίζεται,
τούτῳ τρέφεται.
13
República 621 a-b: σκηνᾶσθαι οὖν σφᾶς ἤδη ἑσπέρας γιγνομένης παρὰ τὸν Ἀμέλητα ποταμόν, οὗ
τὸ ὕδωρ ἀγγεῖον οὐδὲν στέγειν. μέτρον μὲν οὖν τι τοῦ ὕδατος πᾶσιν ἀναγκαῖον εἶναι πιεῖν, τοὺς δὲ
φρονήσει μὴ σῳζομένους πλέον πίνειν τοῦ μέτρου: τὸν δὲ ἀεὶ πιόντα πάντων ἐπιλανθάνεσθαι.
24
Sobre a questão da ignorância é importante salientar que o
conhecimento resultante da rememoração, mesmo através da dialética não é um
conhecimento infalível e objetivo, pois:
[...] de acordo com o Fedro e com a doutrina da reminiscência, tudo aquilo
que o homem pode conhecer sobre as essências está vinculado à
rememoração individual, e jamais poderá se tornar um conhecimento
objetivo, disponível, indiscutível, como acontece com os objetos que todos
podem ver e que para todos aparecem sempre do mesmo modo.
(TRABATTONI, 2010, p. 98).
Falar
de
conhecer
para
Platão
é
falar
de
recordação
e
consequentemente, é falar da alma humana. Porém, para isso Sócrates recorre ao
mito, pois esta não é algo que se possa falar com exatidão diz Platão, “[...] dizer o
que ela é exigiria uma exposição de todo em todo divina e muita longa” (246 a3),
apenas através da linguagem mítica é possível ter algumas ideias verossímeis de
sua essência.
Não parece ser tão simples entender o que seja recordar e sua relação
com o logos. Isso constitui um problema a ser enfrentado, pois conforme diz Platão
no Fedro, “[...] lembrar-se das realidades de lá de cima a partir dos objetos terrenos,
não é fácil [...]” (250 a).
Neste sentido, não podemos esquecer de que o logos é genuinamente do
campo do humano. Todavia, segundo Montenegro (2010, p. 453), “[...] é justamente
porque o logos padece de imprecisão que há várias possibilidades de formulá-lo e
de usá-lo, cabendo ao filósofo o cuidado de primar pelo sentido com o qual emprega
os seus termos [...]”.
Evidentemente, a partir desse horizonte entre escrita e memória,
podemos inferir que a crítica à escrita, quer advertir que tanto a natureza do saber
filosófico, quanto da alma é algo que participa do devir.
A maioria das interpretações atuais aponta para uma nova visão desses
conceitos (alma, memória e discurso) em Platão, justamente como consequência de
uma vontade de reforma da educação ateniense. Pois se fosse realizado um exame
desses termos notaríamos que Platão dá um novo contorno a cada um deles, e
ainda, sempre relacionando-os; é como, a grosso modo, o próprio pensamento
seguisse o movimento dialético, ou seja, são conceitos que estão sempre em
relação.
25
Dito isto, podemos pensar que o conhecimento filosófico, segundo o que
é apresentado nas entrelinhas do Fedro, não tem um caráter prescritivo, como
manuscrito de Lísias; donde se seguem passar por duas “reparações”, que são os
dois discursos de Sócrates, que podem ser entendidos como reparações ao estilo e
ao conteúdo do discurso do logógrafro de onde Fedro passara a manhã.
Poderíamos então afirmar que fazer filosofia seria fazer do esquecimento
uma fonte donde brotam os dicrusos? Discursos esses que se podem dizer das mais
variadas formas? Haveria uma relação mesma entre memória e verdade de um
discurso?
Para Montenegro o lógos se apresenta como possibilidade de sempre
reparar o que já foi dito indevidamente:
[...] é justamente porque o logos é prenhe de polissemias e de diferentes
possibilidades de formulação que há sempre a possibilidade de redizermos
ou repararmos aquilo que dizemos inadvertidamente. E essa possibilidade
se viabiliza quando a alma humana decide, por sua feita, reparar a perda de
suas asas e recuperá-las a partir de uma vida dedicada àquela forma de
Eros que se identifica à filosofia. (MONTENEGRO, 2010, p. 454).
Mas se assim fosse, que elementos seriam responsáveis para que a
partir do desejo fosse feito um discurso melhor? Eros, e somente Eros? O desejo
desprovido do racional, não cairia no absurdo? E como seria o racional sem o
desejo? Como harmonizar essas forças presentes na alma?
Vejamos o comportamento de Fedro no início do diálogo. Este é
encontrado por Sócrates, correndo (ele está descalço e é comparado aos
sacerdotes corimbânticos) rumo aos campos aprazíveis da zona rural ateniense. O
motivo do passeio de Fedro é afastar-se da cidade para memorizar, em primeira
maão, o manuscrito de Lísias, o que acaba carregando também Sócrates:
Tu, porém, pareces ter encontrado o remédio para me fazer sair, porquanto,
tal como se conduzem os animais que têm fome, estendendo-lhes um ramo
ou algum fruto, do mesmo modo tu, acenando-me com discursos em livros,
é evidente que me levarás a percorrer toda a Ática e qualquer outro lugar
14
que queiras.
14
Fedro 230 d-e: σὺ μέντοι δοκεῖς μοι τῆς ἐμῆς ἐξόδου τὸ φάρμακον ηὑρηκέναι. ὥσπερ γὰρ οἱ τὰ
πεινῶντα θρέμματα θαλλὸν ἤ τινα καρπὸν προσείοντες ἄγουσιν, σὺ ἐμοὶ λόγους οὕτω προτείνων ἐν
βιβλίοις τήν τε Ἀττικὴν φαίνῃ περιάξειν ἅπασαν καὶ ὅποι ἂν ἄλλοσε βούλῃ.
26
Sócrates pressupõe que a essência da alma é ser princípio de movimento
(245 e). Com efeito, Trabattoni (2003, p.141) supõe que o cerne da questão aqui é
saber que tipo de movimento é capaz de revolver a memória e colocá-la em ordem.
Seria isso possível pelo discurso de Lísias? O que significa colocar as ideias em
ordem? Precisará saber de sua natureza?
Sócrates é enfático ao afirmar que um dos requisitos para quem pretende
compor discursos belos é conhecer de modo exato a natureza da alma humana, a
fim de que o discurso seja direcionado individualmente a cada uma:
No entanto, os autores actuais de Artes de Retórica, de quem tu (Fedro)
ouviste falar, são astutos e, apesar de terem um conhecimento perfeito no
que diz respeito à alma, dissimulam-no. Por isso, enquanto falarem e
escreverem desse modo, não nos deixemos persuadir de que escrevem
15
com arte.
Certamente tal afirmação é certeira no sentido de que um bom mestre
precisa conhecer o objeto de seu ensinamento, e Sócrates está convicto de que os
retores e sofistas16 conhecem a alma. Mas porque não aplicam seus discursos de
forma correta?
Como sabemos, pelo mito da biga alada contada no Fedro, a alma
humana é tripartida e essas partes embora juntas, como diz Montenegro (2009, p.
453) comportam no todo, a marca da precariedade. E como consequência dessa
qualidade, para que a psykhé possa realizar suas rememorações, se exige, no
contexto que hora analisamos uma sintonia entre o tipo de alma e de discurso a ser
aplicado no ensinamento, pois:
Depois compreender a natureza da alma pelo mesmo método e encontrar
para cada uma a forma de discurso apropriada, dispô-lo e ordená-lo em
conformidade, de modo a oferecer à alma complexa uma oração complexa
e elaborada, e discursos simples à almas simples. Antes disso não será
15
Fedro 271c: ἀλλ᾽ οἱ νῦν γράφοντες, ὧν σὺ ἀκήκοας, τέχνας λόγων πανοῦργοί εἰσιν καὶ
ἀποκρύπτονται, εἰδότες ψυχῆς πέρι παγκάλως: πρὶν ἂν οὖν τὸν τρόπον τοῦτον λέγωσί τε καὶ
γράφωσι, μὴ πειθώμεθα αὐτοῖς τέχνῃ γράφειν.
16
Segundo Casertano, (2010, p.10) “[...] se pesquisarmos o termo sophistés iremos descobrir que o
mesmo era usado entre os gregos como sinônimo de sophós”.
19
Fedro 277 b-c: περί τε ψυχῆς φύσεως διιδὼν κατὰ ταὐτά, τὸ προσαρμόττον ἑκάστῃ φύσει εἶδος
ἀνευρίσκων, οὕτω τιθῇ καὶ διακοσμῇ τὸν λόγον, ποικίλῃ μὲν ποικίλους ψυχῇ καὶ παναρμονίους διδοὺς
λόγους, ἁπλοῦς δὲ ἁπλῇ, οὐ πρότερον δυνατὸν τέχνῃ ἔσεσθαι καθ᾽ ὅσον πέφυκε μεταχειρισθῆναι τὸ
λόγων γένος, οὔτε τι πρὸς τὸ διδάξαι οὔτε τι πρὸς τὸ πεῖσαι
27
possível manejar com arte – dentro do que nos concede a natureza – o
17
gênero oratório, quer para ensinar quer para persuadir.
Dito isto, fica evidente que a sintonia do discurso com o tipo de alma
depende muito da experiência do dialético, do mestre que sabe o momento certo, a
velocidade certa e o tamanho certo de aplicar ora um recurso persuasivo, ora um
imagético, outra um discurso retórico ou racional para que movimente o olhar da
alma. Aprender, portanto, segundo o Fedro, é movimentar-se para dentro de si
mesmo.
Por outro lado, Schuler (2003, p.13), afirma que essa questão entre
memória e movimento pode aparecer no Fedro como um movimento “repetitivo e
oco” e vai ganhar riqueza filosófica quando o diálogo se transforma em dialética.
Essa necessidade da dialética nos dicursos seria então um dos motivos de se
examinar o poder da escritura e dos discursos orais?
Ora, mas para isso é necessário não somente o uso da técnica do bom
discurso, mas para que ele seja profícuo é necessária paixão que mova a alma rumo
ao Belo. Mas que relação guarda o Belo em si com a letra ou a fala, enfim com o
discurso?
1.2. O discurso como imagem do Belo
A observação de Gazola (2003, p. 49) “[...] de que não é difícil detectar que há
na cultura grega antiga um privilégio do olhar”, nos remete diretamente para o Fedro,
a começar pelo seu título: Da Beleza. Bela não é somente a paisagem que Fedro e
Sócrates contemplam nos campos rurais de Atenas, mas belo é também o discurso
de Lísias na visão de Fedro; bela é a palinódia que Sócrates faz a Eros, como diz
Platão no passo 277c: “esta foi querido Amor, dentro das nossas forças, a mais bela
e a melhor palinódia que eu poderia oferecer-te e dedicar-te”.
Como vemos Sócrates embora sempre tenha buscado em seus
interlocutores a definição das coisas, não define com precisão o conceito de beleza,
17
Fedro 227c: περί τε ψυχῆς φύσεως διιδὼν κατὰ ταὐτά, τὸ προσαρμόττον ἑκάστῃ φύσει εἶδος
ἀνευρίσκων, οὕτω τιθῇ καὶ διακοσμῇ τὸν λόγον, ποικίλῃ μὲν ποικίλους ψυχῇ καὶ παναρμονίους διδοὺς
λόγους, ἁπλοῦς δὲ ἁπλῇ, οὐ πρότερον δυνατὸν τέχνῃ ἔσεσθαι καθ᾽ ὅσον πέφυκε μεταχειρισθῆναι τὸ
λόγων γένος, οὔτε τι πρὸς τὸ διδάξαι οὔτε τι πρὸς τὸ πεῖσαι, ὡς ὁ ἔμπροσθεν πᾶς μεμήνυκεν ἡμῖν
λόγος.
28
mas apenas cita exemplos de coisas belas. Vejamos o que diz Platão no Fedro (249
d), a respeito da beleza: “o homem, quando vê a beleza de cá e se recorda da
verdadeira beleza, é provido de asas e, munido delas, arde no desejo de voar.”
É evidente aqui o postulado da existência de uma ideia de beleza. Mas
em que está fundada essa ideia? O que faz um texto ou uma fala guardar em si algo
de belo? Como conhecemos um discurso belo? Como escrever belamente?
Sócrates fala de uma beleza sensível que está nas coisas, nos discursos,
nas letras, nas imagens. Ele, no final do Fedro, faz uma prece desejando uma forma
de beleza, a beleza interior. Assim ele se expressa: “Ó bem amado Pã e quantas
divindades habitais este lugar, concedei-me a beleza interior.” (279 b-c). Cabe
perguntar então: o que é a beleza interior?
Conforme afirma Sócrates, a beleza interior é a coisa mais preciosa que
possa existir, mas ele não diz como ela é. Há, todavia, no Banquete, uma referência
a esse tipo, quando Alcebíades se encontra diante de Sócrates, por quem está
apaixonado:
E senti diante desse homem, somente diante dele, o que ninguém
imaginaria haver em mim, o envergonhar-me de quem quer que seja, ora,
eu, é diante desse homem somente que me envergonho. Com efeito, tenho
certeza de que não posso contestar-lhe que não se deve fazer o que ele
manda, mas quando me retiro sou vencido pelo apreço em que tem o
público. Safo-me então de sua presença e fujo, e quando o vejo
envergonho-me pelo que admiti. E muitas vezes sem dúvida com prazer o
veria não existir entre os homens; mas se por outro lado tal coisa ocorresse,
bem sei que muito maior seria a minha dor, de modo que não sei o que
18
fazer com esse homem.
Pelo que sabemos Sócrates não apresentava uma boa aparência. E, no
entanto Alcibíades e os belos jovens de Atenas eram atraídos por sua beleza
interior. Parece que sua beleza se encontrava naquilo que pronunciava, isto é, num
logos erótico, o qual seduzia. Qual era, portanto, o segredo de sua arte da sedução?
Seria a mesma que seduziu Fedro e Sócrates para o discurso de Lísias?
Vejamos o que Jaeger diz a respeito da oração de Sócrates a Pã:
18
Banquete 216 b-c: πέπονθα δὲ πρὸς τοῦτον μόνον ἀνθρώπων, ὃ οὐκ ἄν τις οἴοιτο ἐν ἐμοὶ ἐνεῖναι,
τὸ αἰσχύνεσθαι ὁντινοῦν: ἐγὼ δὲ τοῦτον μόνον αἰσχύνομαι. σύνοιδα γὰρ ἐμαυτῷ ἀντιλέγειν μὲν οὐ
δυναμένῳ ὡς οὐ δεῖ ποιεῖν ἃ οὗτος κελεύει, ἐπειδὰν δὲ ἀπέλθω, ἡττημένῳ τῆς τιμῆς τῆς ὑπὸ τῶν
πολλῶν. δραπετεύω οὖν αὐτὸν καὶ φεύγω, καὶ ὅταν ἴδω, αἰσχύνομαι τὰ ὡμολογημένα. καὶ πολλάκις
μὲν ἡδέως ἂν ἴδοιμι αὐτὸν μὴ ὄντα ἐν ἀνθρώποις: εἰ δ᾽ αὖ τοῦτο γένοιτο, εὖ οἶδα ὅτι πολὺ μεῖζον ἂν
ἀχθοίμην, ὥστε οὐκ ἔχω ὅτι χρήσωμαι τούτῳ τῷ ἀνθρώπῳ.
29
[...] é esta a única oração com que deparamos em Platão, modelo e
exemplo do modo como o filósofo deve orar. A tragédia do amor de
Alcibíades por Sócrates, a quem procura e de quem ao mesmo tempo quer
fugir, pois Sócrates é a consciência que o acusa a ele mesmo, é a tragédia
de uma natureza filosófica esplendidamente dotada, tal qual Platão a
descreve na República, e que por ambição se degrada em homem de
sucesso e de poder. É ele próprio que, no grandioso discurso de confissão,
no final do Banquete, põe a descoberto a sua complexa psicologia,
admiração e adoração por Sócrates, mas com mistura de temor e ódio.
(JAEGER, 2010, p. 748).
Neste sentido podemos associar amor e beleza. Sócrates via nos corpos
belos a possibilidade de, a partir do belo sensível, chegar ao belo inteligível. Platão,
no Banquete (201 d), explora a dimensão desejante de Eros como uma fonte de
incompletude, segundo a narração de Diotima no Banquete. Neste discurso que
Sócrates afirma ter ouvido de certa mulher de Mantinéia, Eros está entre um deus e
um gênio. Eros, portanto seria um mediador entre os deuses e os homens. Sua
origem está no mito que Sócrates relata ao afirmar que o Amor foi gerado em um
banquete em homenagem ao nascimento de Afrodite, por isso sua aspiração pelo
que é belo. Seus pais são os deuses, Pobreza e Recurso, pela parte da mãe é pobre
e feio, e sempre convivendo com necessidade. Pela natureza do pai, ele é corajoso
e cheio de maquinações para conseguir o que é belo e bom. Portanto o Amor estaria
entre a sabedoria e a ignorância.
Montenegro afirmar que (2010, p. 451), “não podemos esquecer que o
Eros de Diotima é igualmente constituído de uma natureza ambígua, não podendo
ser belo e nem feio [...]”.
Sócrates ao falar dos discursos está falando de uma “verdadeira beleza”,
que está além do sensível. Resta saber, portanto como se dá essa relação entre
esses dois níveis de beleza, que parece não ser um oposto ao outro, embora uma
leitura desavisada tenda para esta conclusão.
Vamos partir do princípio enunciado no Fedro de que um discurso é uma
imagem (276 a). Porém, o problema que surge aqui é saber que conceito de imagem
está sendo tratado neste passo, pois são muitos os significados da palavra imagem
nos diálogos platônicos.
No Fedro, Sócrates usa a palavra eidolon para se referir ao discurso
escrito como imagem, aquilo que aparece grafado no papel e que representa uma
ideia, seja na fala ou na escrita. Mas o que é uma ideia para Platão? No passo 247
c, do Fedro o filósofo da Academia usa o termo (οὐσία- ousía) para se referir às
30
verdadeiras Realidades, ou seja, o que transcende as coisas, a essência das coisas.
Ele usa também os termos (ἰδέα-idea) e (εἶδος-eidos) para signicar a mesma coisa.
Segundo Reale (1994, p. 61), esses dois termos derivam ambos de ἰδέῖν que
signfiica “ver”. Neste sentido, pode-se dizer que um discurso pode ser belo e assim
conseguir movimentar, através dos sentidos19, a alma do leitor/ouvinte.
Porém, lembra Gazola (2009, p.49), jamais poderemos investigar sobre
a visão do belo discurso sem tocar na questão da sensação (aisthesis).
Consideremos que jamais haveria conhecimento sem a visão do sensível, no caso
da linguagem, o ouvir e ver, pois é preciso ter contato com a “beleza de cá”, como
salienta Sócrates. Neste sentido as palavras de Sócrates revelavam sua beleza
interior? Sua alma, o tipo de alma que ele possuía?
O que não pode passar despercebido é que todas as pessoas são
atraídas pela visão do belo, esta arrasta a alma e dá prazer. Prova disso é o encanto
que o manuscrito de Lísias provoca em Fedro, como diz Sócrates, através de Platão
(1997, p. 37): “... olhava-te com admiração durante a leitura, porque me parecias
iluminado pelo discurso.” (234 d).
Todavia, é preciso ter em mente que a sedução que o belo provoca, não
é tudo, embora seja fundamental para uma vida dita filosófica, conforme pensa
Sócrates, no contexto do diálogo. Mas cabe perguntar: toda visão ou escuta que
seduz é bela ou nossos sentidos podem nos enganar? O manuscrito de Lísias deve
ser considerado belo?
Platão nunca negou a participação dos sentidos como fundamental para
a aquisição do conhecimento. Concordamos com a ideia de Casertano (2010, p.36)
quando afirma que Platão foi um grande metafísico, mas o menos metafísico de
todos. Para ele, os sentidos sempre exercem sua função com a devida precisão.
Agora, talvez o que preocupava Sócrates e o que fez acompanhar
cuidadosamente o discípulo de Lísias foi o pressuposto de que não se pode fundar
um conhecimento como verdade a partir de uma sensação particular de um escrito.
Então, como podemos caracterizar o discurso de Lísias? Ele é uma imagem do
belo? Se não é, por que seduziu? Algo pode seduzir sem ser belo?
19
Trabattoni afirma (2003, p. 142) que “[...] após haver admitido que a escrita não constitui uma
alternativa válida ao saber da alma, poder-se-ia, em todo caso, sustentar que ela pertence à classe
dos fatores estimulantes em vista do aprendizado interior.”
31
A maioria das interpretações considera que Sócrates estaria, ao fazer
uma crítica ao erotikos de Lísias, tentando superar a arte dos sofistas e dos retores.
Isso significa dizer que o manuscrito que Fedro portava era persuasivo, talvez por
isso com certo grau de beleza, embora faltassem outros elementos que
aproximassem mais ainda esse discurso do Belo inteligível, como observa Sócrates
em seu segundo Discurso.
Mas o que se entende por beleza em um discurso? O que é o Belo?
Platão (1997, p.59) usando Sócrates como personagem define o Belo no Fedro (246
a) a partir do divino: “... ora o divino é o que é belo, bom e o que possui todas as
qualidades do mesmo gênero”.
E ainda acrescenta em seguida que a alma se alimenta dessas
excelências para chegar ao conhecimento da verdade. Isso significa então que o
caminho para a filosofia é uma vida dedicada ao cultivo da visão constante das
coisas belas.
Mas seria apenas o encanto, a beleza, a sagacidade suficientes para se
fazer um belo discurso? Onde fica então a verdade no meio de tudo isso? Ou este
rigor está misturado com o desiderativo? O importante, para a retórica dos sofistas,
segundo parece sugerir Platão, é apenas fazer acreditar naquilo que parece ser
verdadeiro. Porém esse parecer verdadeiro já não é algo que aponta para o
filosófico? Não é o caminho da filosofia?
Uma das propostas de Sócrates no Fedro é mostrar que se podem fazer
bons discursos, assim como seu contrário. E o diferencial estaria justamente na
questão filosófica desse discurso, pois não basta seduzir a alma, mas é necessário
levá-la em direção às formas.
Sócrates coloca em questão se os sofistas e retores estavam
preocupados, por exercerem uma atividade prática, em convencer para ganhar uma
questão, seja no tribunal ou na assembleia (272 e) ou tentar levar seus ouvintes ou
leitores a fazer o caminho dialético.
Ora bem, se a atividade dos sofistas era política e prática, sem fins de
verdade verificáveis, isso não diminui seu valor enquanto pensadores e produtores
de discursos, mas apenas os diferencia da proposta educativa de Platão, pois para
Jaeger (2010, p. 191), Platão foi o primeiro a encarar a filosofia como a formação de
um novo tipo de homem. E no caso do Fedro, fazer da retórica uma retórica
32
filosófica o que significa, que a partir de então, que os discursos fariam parte da
formação do homem e não seriam meras palavras lançadas ao vento, assim como
fora no passado os poemas de Homero.
Essa retórica filosófica, para ser divina, deveria ser conduzida por alguém
que possa imitar através da linguagem o que contemplou no nível inteligível, pois
segundo Platão (1997, p. 65), “apenas o homem que fizer um reto uso de tais
recordações [...] apenas esse se torna na realidade perfeito” ( 249 c). E assim imitar
na fala ou na escrita discursos que se aproximem o máximo possível da forma
inteligível.
Uma ilustração que Sócrates apresenta a Fedro para explicar tal imitação
é quando diz que a escrita (graphe) é semelhante a uma pintura, que no passo
aparece escrito, zografia (ζωγραφίᾳ). Vejamos:
É isso precisamente, Fedro, o que a escrita tem de estranho e que se torna
muito semelhante à pintura. Os produtos desta apresentam-se na verdade
como seres vivos, mas se lhes perguntares alguma coisa, respondem-te
com um silêncio cheio de gravidade. O mesmo sucede também com os
20
discursos escritos.
Em A República 596a-597e, a pintura aparece como a melhor arte da
ilusão. Mas ilusão não significa uma condenação do uso da imagem, mas muito
mais o cuidado com os frutos, pois logo em seguida Sócrates utiliza a metáfora do
Jardim de Adônis, um costume segundo o qual as pessoas semeavam plantas em
vasos e as colocavam sobre o telhado, e com o calor do Sol logo cresciam,
floresciam, mas logo morriam, simbolizando a existência passageira da vida do
deus:
Pois absolutamente. E agora diz-me: o agricultor inteligente, que se
preocupa com as sementes e deseja torná-las fecundas, acaso as semeia
diligentemente em pleno verão nos “jardins de Adonis”, pela alegria de ver
que esses jardins se tornaram belos em oitos dias? Ou pelo contrário, se o
chega a fazer, as semeia por divertimento e só na ocasião da festa? Mas
com as sementes que lhe interessam, não usa as técnicas agrícolas, não as
20
Fedro 275 d.: δεινὸν γάρ που, ὦ Φαῖδρε, τοῦτ᾽ ἔχει γραφή, καὶ ὡς ἀληθῶς ὅμοιον ζωγραφίᾳ. καὶ
γὰρ τὰ ἐκείνης ἔκγονα ἕστηκε μὲν ὡς ζῶντα, ἐὰν δ᾽ ἀνέρῃ τι, σεμνῶς πάνυ σιγᾷ. ταὐτὸν δὲ καὶ οἱ
λόγοι: δόξαις μὲν ἂν ὥς τι φρονοῦντας αὐτοὺς λέγειν, ἐὰν δέ τι ἔρῃ τῶν λεγομένων βουλόμενος μαθεῖν,
ἕν τι σημαίνει μόνον ταὐτὸν ἀεί.
33
semeia no terreno apropriado e não fica contente, se tudo o que semeou
21
atingir a maturidade passados oito meses?
Tal metáfora da semeadura, em relação à escrita e à pintura, permite
entrever que a atenção se volta para o resultado que se tem com a semente ou com
a pintura, discurso. Sócrates estava tentando dizer que falar bem sem conhecimento
da verdade e do terreno não é algo que traga resultados sólidos e perenes, assim
como a relação amorosa entre duas pessoas que não se amam, a saber a tese do
escrito de Lísias (227 c).
O que Sócrates quer atinar é para a questão do cuidado que os
produtores de discursos devem ter, pois a alma sendo comparada uma carruagem
puxada por um cocheiro que representa a razão, este deve ter conhecimento e
experiência para conduzir bem os dois cavalos, que são de raças distintas, um puro
e o outro mestiço. Pois caso contrário, a alma pode não ser direcionada para a
ascese das formas. Muitos acharão que a beleza desprovida do amor seria o
caminho certo. Mas seriam somente beleza e amor os elementos necessários para
essa subida? Não seria necessário o cultivo da parte racional da alma?
A grande parte dos intérpretes analisa somente na perspectiva do silêncio
da escrita e sua falta de vida mencionada por Sócrates como algo muito negativo.
Todavia se olharmos na perspectiva da relação com Eros, que gera um sentimento
duradouro pela busca da verdade, provavelmente Sócrates não negaria o valor de
todos os escritos, porque ele mesmo se dedicou bastante a essa atividade.
Refutaria sim, o escrito que fosse forjado sem a dedicação do seu pai,
apenas de uma forma técnica, aquele discurso que gera um fascínio passageiro,
aquele escrito sem fertilidade, em que as imagens sairiam logo da memória e não
renderia filhos:
O que considerar que tais discursos devem ser considerados como seus
filhos legítimos, primeiro o que traz dentro de si desde que o descobriu,
depois todos os que, filhos e irmãos daquele, nasceram nas almas dos
outros, segundo o mérito de cada uma. O que proceder assim, com o
21
Fedro 276b: παντάπασι μὲν οὖν. τόδε δή μοι εἰπέ: ὁ νοῦν ἔχων γεωργός, ὧν σπερμάτων κήδοιτο
καὶ ἔγκαρπα βούλοιτο γενέσθαι, πότερα σπουδῇ ἂν θέρους εἰς Ἀδώνιδος κήπους ἀρῶν χαίροι θεωρῶν
καλοὺς ἐν ἡμέραισιν ὀκτὼ γιγνομένους, ἢ ταῦτα μὲν δὴ παιδιᾶς τε καὶ ἑορτῆς χάριν δρῴη ἄν, ὅτε καὶ
ποιοῖ: ἐφ᾽ οἷς δὲ ἐσπούδακεν, τῇ γεωργικῇ χρώμενος ἂν τέχνῃ, σπείρας εἰς τὸ προσῆκον, ἀγαπῴη ἂν
ἐν ὀγδόῳ μηνὶ ὅσα ἔσπειρεν τέλος λαβόντα;
34
abandono dos demais discursos – esse talvez seja, Fedro, o homem que eu
22
e tu desejaríamos ser.
Todavia, cabe perguntar se nessa relação paternal do discurso não
estaria, além dos instrumentos técnicos da dialética, o lado afetivo, desiderativo da
linguagem? Mas a dialética é puramente um método racional de fazer filosofia?
Como bem interpreta Schuler (2011, p.9), como um bom educador
Sócrates está preocupado com sua prole, sabe que o discurso comprometido com a
verdade é um discursar sem fim. Tem consciência do potencial que o logos possui
de se reproduzir, de fecundar, e não se encerra numa visão passageira do belo. Mas
que este é importante, pois desperta uma força capaz de movimentar as palavras
em busca da verdade, mesmo que seja uma força de início composta de elementos
irracionais, ou seja, a inspiração divina, sobre o que vamos falar agora.
1.3. A inspiração divina e a fluidez do lógos
Sócrates, no Fedro, permite que se perceba a íntima relação entre o
influxo divino e a fluência das palavras. A força divina e a inspiração parecem que
permite a Sócrates dizer coisas que em seu estado normal não seria capaz. Mas o
que se diz nesse estado emocional teria algum sentido? Seria válido ter isso como
verdadeiro? Sócrates assim diz para Fedro:
Então ouve-me em silêncio. É que este lugar, na realidade, me parece
divino; desse modo, se eu, no decorrer do discurso, vier a ficar muitas vezes
possuído pelas Ninfas, não te deves admirar, já que as palavras agora
23
proferidas por mim não estão longe do ditirambo.
Ora bem, sabemos o quanto Platão herda da tradição poética. Não
podemos ignorar, como bem salienta Havelock (1995, p. 164), que o poeta, através
de sua linguagem, tinha o poder de controlar as memórias individuais para ter o
22
Fedro 278 b : δεῖν δὲ τοὺς τοιούτους λόγους αὑτοῦ λέγεσθαι οἷον ὑεῖς γνησίους εἶναι, πρῶτον μὲν
τὸν ἐν αὑτῷ, ἐὰν εὑρεθεὶς ἐνῇ, ἔπειτα εἴ τινες τούτου ἔκγονοί τε καὶ ἀδελφοὶ ἅμα ἐν ἄλλαισιν ἄλλων
ψυχαῖς κατ᾽ ἀξίαν ἐνέφυσαν: τοὺς δὲ ἄλλους χαίρειν ἐῶν—οὗτος δὲ ὁ τοιοῦτος ἀνὴρ κινδυνεύει, ὦ
Φαῖδρε, εἶναι οἷον ἐγώ τε καὶ σὺ εὐξαίμεθ᾽ ἂν σέ τε καὶ ἐμὲ γενέσθαι.
23
Fedro 238 d: σιγῇ τοίνυν μου ἄκουε. τῷ ὄντι γὰρ θεῖος ἔοικεν ὁ τόπος εἶναι, ὥστε ἐὰν ἄρα πολλάκις
νυμφόληπτος προϊόντος τοῦ λόγου γένωμαι, μὴ θαυμάσῃς: τὰ νῦν γὰρ οὐκέτι πόρρω διθυράμβων
φθέγγομαι.
35
controle sobre a memória coletiva. Mas como isso se dava e o que Platão traz disso
para sua Filosofia?
Sabemos que o fazer poético antes de Platão era resultado de uma
inspiração.24 O poeta era possuído e ficava fora de si, fora da razão, falava belas
coisas que servia de orientação para a vida de todos os gregos. Mas isso só era
feito pela presença audível e visual entre o poeta e seu público, uma psicologia que
Platão acolhe como fundamental para a persuasão e aprendizagem?
Destarte, indaga Santos (2008, p.96) ao se referir à República: os poetas
não foram expulsos da cidade depois que foram coroados de grinalda? Aqui,
segundo Havelock (1995, p.28), não se trata de uma recusa da linguagem poética,
mas da conhecida crítica que Patão faz à educação tradicional existente em Atenas,
pois os poetas eram importantes na estrutura dessa educação.
Ora, o que parece ser motivo de recusa por Platão é o conteúdo dos
poemas e não sua linguagem. É também o ataque a uma educação doutrinária,
baseada na memorização, repetição e recordação, conceitos que tomarão outros
sentidos em Platão, no Fedro.
Vejamos o que Sócrates ainda diz da possessão divina:
Um terceiro gênero de possessão divina e de loucura provém das Musas;
quando encontra uma alma delicada e pura, desperta-a e arrebata-a,
levando-a a exprimir-se em odes e outras formas de poesia, embeleza as
inúmeras empresas dos antigos e educa os vindouros.E quem chegar às
portas da poesia sem a inspiração das Musas, convencido de que pela
habilidade se tornará um poeta capaz, revela-se um poeta falhado, e a
poesia do que está no domínio de si mesmo é ofuscada pela dos inspirados.
25
Para Sócrates a inspiração divina é a responsável pelos maiores bens. Tudo
tende para a afirmação de que na experiência poética a alma seja desperta para o
prazer.
Falando da tradição oral, da educação que o próprio Platão esteve mais
próximo do que nós, salienta Havelock (1995, p. 176): “está claro que o processo de
24
Para Oliveira (2010, p.105), “acredita-se que a noção de poeta possuído, que compõe em estado
de entusiasmo, possa ser anterior a Platão, uma vez que, nas Leis 719 c, o filósofo a denomina de
uma velha estória: palaiòs Mythos.”
25
Fedro 245 a: τῶν παρόντων κακῶν εὑρομένη. τρίτη δὲ ἀπὸ Μουσῶν κατοκωχή τε καὶ μανία,
λαβοῦσα ἁπαλὴν καὶ ἄβατον ψυχήν, ἐγείρουσα καὶ ἐκβακχεύουσα κατά τε ᾠδὰς καὶ κατὰ τὴν ἄλλην
ποίησιν, μυρία τῶν παλαιῶν ἔργα κοσμοῦσα τοὺς ἐπιγιγνομένους παιδεύει: ὃς δ᾽ ἂν ἄνευ μανίας
Μουσῶν ἐπὶ ποιητικὰς θύρας ἀφίκηται, πεισθεὶς ὡς ἄρα ἐκ τέχνης ἱκανὸς ποιητὴς ἐσόμενος, ἀτελὴς
αὐτός τε καὶ ἡ ποίησις ὑπὸ τῆς τῶν μαινομένων ἡ τοῦ σωφρονοῦντος ἠφανίσθη.
36
aparendizagem do homem homérico precisava ser prazeroso para que que fosse
eficaz.”
Na República livro VII, Platão menciona a música, mousiké como
instrumento de educação pela palavra. Mas temos que ter em mente que esse termo
não se limita ao que entendemos por música, mas se refere as mais variadas obras
artísticas e intelectuais, incluindo até mesmo a filosofia:
Vamos então, como se compuséssemos histórias em forma de um mito e
dispuséssemos de tempo, eduquemos os homens pela palavra.
Por certo, é preciso.
Qual é então essa educação? Ou não será difícil encontrar uma melhor do
que aquela já descoberta através de uma longa tradição? Ora, temos à
26
nossa disposição a ginástica para os corpos e a música para a alma.
Para Jaeger (2010, p. 768) a música não se refere apenas ao tom e
ritmo, mas em primeiríssimo lugar, à palavra falada, ao lógos. Isso mostra que a
proposta de educar/ajustar a alma pelo discurso está em perfeita sintonia com o
Fedro. Pois logo no início deste diálogo, Sócrates se refere ao canto e a dança
quando compara seu interlocutor a um sacerdote Coribante (228 b). Isso não estaria
longe do que registra Havelock ao falar das Musas em Hesíodo:
Tanto a dança quanto o cântico são qualificados como “desejáveis”
(himeroeis) e o Desejo, assim como as Graças, habita próximo as Musas. A
batida do pé e as vozes que falam ou cantam são igualmente ligadas por
epítetos a eros, [...] Já sugerimos anteriormente, que quandos os recursos
do inconsciente eram mobilizados mediante reflexos físicos para auxiliar a
memorização, isso podia resultar na liberação de sentimentos eróticos
normalmente reprimidos. Portanto, se Hesíodo associa Mousike à
sensibilidade sexual, isso não nos deve surpreender. (HAVELOCK, 1995,
p.172).
Ora, mais adiante, através do mito das cigarras (258 e-259d), Sócrates
faz uma advertência para o cuidado com o canto e os perigos que este pode trazer
para a alma.
É minha opinião que as cigarras, cantando por sobre as nossas cabeças, na
força do calor, e conversando uma com as outras, nos observam também lá
de cima. Ora, se elas vissem que também nós os dois, como faz a maioria,
em vez de conversarmos na maré do meio-dia, dormitávamos e ficávamos
26
República 376 d-e: ἴθι οὖν, ὥσπερ ἐν μύθῳ μυθολογοῦντές τε καὶ σχολὴν ἄγοντες λόγῳ παιδεύωμεν
τοὺς ἄνδρας. ἀλλὰ χρή. τίς οὖν ἡ παιδεία; ἢ χαλεπὸν εὑρεῖν βελτίω τῆς ὑπὸ τοῦ πολλοῦ χρόνου
ηὑρημένης; ἔστιν δέ που ἡ μὲν ἐπὶ σώμασι γυμναστική, ἡ δ᾽ ἐπὶ ψυχῇ μουσική.
37
seduzidos com os seus cantos por preguiça mental, com razão se ririam de
nós, considerando-nos uns pobres diabos que vieram até este seu refúgio
para repousar, como cordeirinhos que dormem a sesta junto à fonte.Se pelo
contrário, nos virem conversar e evitá-las, como a Sereias, sem nos
deixarmos encantar, talvez que, tomadas de admiração, nos entreguem a
nós o prêmio que da parte dos deuses obtiveram para conceder aos
27
homens.
Já vimos que o logos seduz, e a música como sendo uma forma
espefícica de deste pode provocar a sedução, o que pode ou não levar ao
aprendizado. Mas segundo o mito da cigarra ela pode também levar ao sono e seria
este sinônimo de esquecimento ou de uma preguiça mental.
A música (mousiké) e o canto (aindontes) constituem, assim como
qualquer discurso por sua natureza, a ambiguidade. Poderíamos então dizer que
assim como a sedução é um convite para o aprender, o prazer dessa sedução pode
levar à preguiça?
Mas se no Fedro se encontra a proposta de uma Paidéia da alma, estaria
o primeiro diálogo em consonância ou em desacordo com o segundo, neste caso
específico? Se o canto desarmoniza, seduz e mexe com a organização da alma, não
seria a ele possível fazer o caminho inverso, o de harmonizar um organismo
fragmentado ou embevecido?
Para Schuler, (1998, p. 70) Sócrates tem plena consciência que a filosofia
por si só não é suficiente para convencer o público ou seu interlocutor. Os
ornamentos poéticos do discurso e a linguagem conotativa servem justamente para
seduzir e vencer a resistência, a desatenção e o cansaço dos ouvintes. Seria o
prazer da harmonia poética que provocaria essa disposição para o ouvir? O poético
seria uma saúde para a alma? O amor e a paixão fazem parte da inspiração
poética? É o que vamos agora analisar.
27
Fedro 258e-259a: καὶ ἅμα μοι δοκοῦσιν ὡς ἐν τῷ πνίγει ὑπὲρ κεφαλῆς ἡμῶν οἱ τέττιγες ᾁδοντες καὶ
ἀλλήλοις διαλεγόμενοι καθορᾶν καὶ ἡμᾶς. εἰ οὖν ἴδοιεν καὶ νὼ καθάπερ τοὺς πολλοὺς ἐν μεσημβρίᾳ μὴ
διαλεγομένους ἀλλὰ νυστάζοντας καὶ κηλουμένους ὑφ᾽ αὑτῶν δι᾽ ἀργίαν τῆς διανοίας, δικαίως ἂν
καταγελῷεν, ἡγούμενοι ἀνδράποδ᾽ ἄττα σφίσιν ἐλθόντα εἰς τὸ καταγώγιον ὥσπερ προβάτια
μεσημβριάζοντα περὶ τὴν κρήνην εὕδειν: ἐὰν δὲ ὁρῶσι διαλεγομένους καὶ παραπλέοντάς σφας ὥσπερ
Σειρῆνας ἀκηλήτους, ὃ γέρας παρὰ θεῶν ἔχουσιν ἀνθρώποις διδόναι, τάχ᾽ ἂν δοῖεν ἀγασθέντες.
38
1.4. A dimensão erótica e farmacológica do discurso
A problemática que nos guia em direção de averiguar a dimensão
amorosa do discurso é saber se a arte da palavra é de algum modo divergente e
oposta a Eros ou pelo contrário, discurso filosófico e Eros seriam inseparáveis.
A primeira definição que encontramos no Fedro para o amor é que ele
constitui um desejo (237 d). Portanto, algo que foge aos liames do que se
comumente entende por discurso racional, filosófico e científico. E para enfatizar a
importância do passional como ingrediente fundamental da tessitura do discurso,
Platão (1997, p.45), através de Sócrates, ainda diz que foi “o desejo que motivou
tudo o que se disse até agora”. Eros neste sentido é a força que impulsiona a
produção dos discursos.
No entanto seria mais que natural perguntar se um discurso desse não
corre o risco de cair no irracional, já que sua base é um sentimento que foge à regra
dos padrões argumentativos e lógicos.
Sócrates, porém, defende que é mais vantajosa uma ação (neste caso um
discurso) quando feita por alguém que ama, pois:
Deve referir-se que não é verídica esta afirmação que, na presença de um
amante, declara ser preferível conceder os favores a quem não ama, sob
pretexto de que aquele que se encontra em delírio, enquanto este mantém o
bom senso. Se se pudesse afirmar, sem restrições teria falado bem, mas na
realidade os maiores bens vem-nos por intermédio da loucura, que é sem
28
dúvida um dom divino.
Como se vê neste passo, conforme assinala Montenegro, (2009, p.88) a
loucura no Fedro vem associada ao Amor e é ao mesmo tempo conciliável com a
filosofia. Tal afirmação se mostra fecunda na medida em que defende uma
concepção não tão comum da filosofia e do próprio discurso, que é seu aspecto
maníaco e entusiástico29.
28
Fedro 244 a: λεκτέος δὲ ὧδε, ὅτι οὐκ ἔστ᾽ ἔτυμος λόγος ὃς ἂν παρόντος ἐραστοῦ τῷ μὴ ἐρῶντι
μᾶλλον φῇ δεῖν χαρίζεσθαι, διότι δὴ ὁ μὲν μαίνεται, ὁ δὲ σωφρονεῖ. εἰ μὲν γὰρ ἦν ἁπλοῦν τὸ μανίαν
κακὸν εἶναι, καλῶς ἂν ἐλέγετο: νῦν δὲ τὰ μέγιστα τῶν ἀγαθῶν ἡμῖν γίγνεται διὰ μανίας, θείᾳ μέντοι
δόσει διδομένης.
29
“Em sentido profano se refiere a um estado psíquico anómalo com my poça matizacion ya que
puede significar desde ‘estar loco’ simplesmente, lo que se manifiesta em acciones o palabras ímpias,
39
Outro diálogo que trata melhor e de maneira mais completa sobre Eros é
o Banquete e conforme lembra Cardoso (2003, p.121) não há como fazer um
aprofundamento desse tema sem colocar o que lá é pensado sobre ele.
Todos sabem que os simpósios têm uma longa história que vem desde a
Grécia arcaica. Estes eram feitos para homenagear um hóspede ilustre. Platão inova
essa tradição para apresentar seu pensamento sobre o Amor. Desse modo, se pode
dizer que o Banquete é a narração de uma narração, isto é, Apolodoro conta o que
ouvira de Aristodemo de Cidatenão, amigo e discípulo de Sócrates, a respeito do
banquete que Agatão havia oferecido aos seus amigos mais íntimos depois de
vencer a um concurso teatral.
No entanto, para a surpresa de todos, depois do jantar, Pausânias fala da
ressaca da véspera e convida a todos para não beber, lembrando os conselhos da
medicina. No Fedro, há também algumas vezes referência à recomendação médica;
a primeira dela é a própria caminhada que o jovem Fedro realiza pela boa saúde,
conforme manda o médico ateniense Acúmeno e a segunda é a do médico e
educador físico Heródico, o que aponta para a educação do corpo pela ginástica e
da alma pela música, presente na República, quando se tratava da educação dos
guardiões.
O Fedro do Banquete é considerado o pai da ideia de que os discursos ali
pronunciados sejam discursos que louvem a Eros, pois:
Não é estranho, Erixímaco, que para outros deuses haja hinos e peãs, feitos
pelos poetas, enquanto que o Amor todavia, um deus tão venerável e tão
grande, jamais um só dos poetas que tanto se engrandeceram fez sequer
um encômio? Se queres, observa também os bons sofistas: a Hércules e a
outros eles compõem louvores em prosa, como o excelente Pródico e isso é
menos de admirar, que eu já me deparei com o livro de um sábio em que o
sal recebe um admirável elogio, por sua utilidade; e outras coisas desse tipo
em grande número poderiam ser elogiadas; assim portanto, enquanto em
tais ninharias despendem tanto esforço, ao Amor nenhum homem até o dia
de hoje teve a coragem de celebrá-lo condignamente, a tal ponto é
negligenciado um tão grande deus! Ora, tais palavras parece que Fedro diz
30
com razão.
hasta ‘enfurecerse’, ‘desear vivamente’, ‘estar excitado’ por La alegria o el dolor y ‘estar tonto’,
sentido más cercano a La oligofrenia que la locura em sí y que se emplea a menudo como insulto.”(
MARTINEZ, 1990, p. 159
30
Banquete 177 a-c: φησίν, ὦ Ἐρυξίμαχε, ἄλλοις μέν τισι θεῶν ὕμνους καὶ παίωνας εἶναι ὑπὸ τῶν
ποιητῶν πεποιημένους, τῷ δὲ Ἔρωτι, τηλικούτῳ ὄντι καὶ τοσούτῳ θεῷ, μηδὲ ἕνα πώποτε τοσούτων
γεγονότων ποιητῶν πεποιηκέναι μηδὲν ἐγκώμιον; εἰ δὲ βούλει αὖ σκέψασθαι τοὺς χρηστοὺς σοφιστάς,
Ἡρακλέους μὲν καὶ ἄλλων ἐπαίνους καταλογάδην συγγράφειν, ὥσπερ ὁ βέλτιστος Πρόδικος—καὶ
40
Mas porque o interesse pelo Amor? Quais as definições que Platão
através de seus diferentes personagens forja sobre essa força que move as ações
humanas? Até que ponto essas considerações podem iluminar nossa avaliação sobre
esse princípio irracional, gerador dos belos discursos?
O primeiro a discursa no Banquete é o retórico Fedro. Para este Eros é o
mais antigo dos deuses e por isso causa dos maiores bens (178 c). Tal tese não
parece ser diferente do Fedro quando diz Sócrates que é através do impulso, da força
desse delírio que temos acesso às maiores bênçãos.
Ainda no Banquete, Fedro cita as grandes e belas obras como resultado
da força de Eros. Lembra o ardor do herói que inspirado pelo Amor, tem coragem
para socorrer o amado em perigo. Isso estaria em consonância com o diálogo Fedro
se pensarmos que não seriam as forças irracionais uma fonte de energia capaz de
fazer o homem buscar o racional como uma atividade constante? Será que a ordem
racional de um discurso seria capaz de dar forças aos interlocutores para continuar
argumentando e buscando uma espécie de cosmos do discurso, uma espécie de
ordem lógica?
Ao tentar melhorar a definição da natureza de Eros no jantar de Agatão, o
discurso de Aristófanes é de grande importância para a nossa pesquisa, pois mostra a
incompletude presente no desejo, em Eros, assim como no discurso de Diotima,
citado por Sócrates.
Ao que tudo indica, o impulso tirânico pelo belo, que é desqualificado por
Lísias, só vem confirmar a sua desconsideração pelo destinatário do discurso, pois
ele não percebe que junto com o excesso, (hýbris) está também presente a
moderação (sophrosýne), e falando miticamente, é a presença do cocheiro (razão)
que vai equilibrar a vontade dos dois cavalos (o mestiço e o de boa raça) e assim
permitir uma dialética comprometida com o existencial, com a busca pela recordação
do Belo.
Se considerarmos um discurso na perspectiva de Lísias, o desejo
filosófico não estaria presente, mas apenas uma satisfação pelo imediato, sem
τοῦτο μὲν ἧττον καὶ θαυμαστόν, ἀλλ᾽ ἔγωγε ἤδη τινὶ ἐνέτυχον βιβλίῳ ἀνδρὸς σοφοῦ, ἐν ᾧ ἐνῆσαν ἅλες
ἔπαινον θαυμάσιον ἔχοντες πρὸς ὠφελίαν, καὶ ἄλλα τοιαῦτα συχνὰ ἴδοις ἂν ἐγκεκωμιασμένα—τὸ οὖν
τοιούτων μὲν πέρι πολλὴν σπουδὴν ποιήσασθαι, ἔρωτα δὲ μηδένα πω ἀνθρώπων τετολμηκέναι εἰς
ταυτηνὶ τὴν ἡμέραν ἀξίως ὑμνῆσαι: ἀλλ᾽ οὕτως ἠμέληται τοσοῦτος θεός. ταῦτα δή μοι δοκεῖ εὖ λέγειν
Φαῖδρος
41
nenhum compromisso com a verdade ou com o esforço metódico daquilo que se
busca. Aliás, neste viés, nem há busca, apenas satisfação imediata do apetite.
Nesta perspectiva, Lísias se esqueceu de que em toda relação amorosa
deve haver uma cumplicidade dos amantes. Diz Platão: “Mas o quê? Julgas que eu
não considero, no dizer de Píndaro, mais que premente do que qualquer outra
ocupação ouvir a tua conversa com Lísias? (227 b). E ainda: “Dirigia-se ele (Fedro)
para fora das muralhas, para se exercitar a declamá-lo, quando encontra alguém
que é um doente por ouvir discursos. Ao vê-lo, alegra-se, porque terá um
companheiro no delírio coribântico [...]”(228 c).
Desse modo, podemos dizer que o desejo filosófico requer um
companheiro que partilhe e festeje o amor pelo objeto amado. Ou seja, é sempre
necessário, dentro da concepção que Platão tem da filosofia, ter alguém para nos
ajudar a lembrar daquilo que nossa memória não foi capaz, a perceber a mesma
coisa que se busca, de outra forma, com outro olhar, no exercício dialético, isto é,
liberdade e inteligência.
Somente alguém que ama pode ocupar seu tempo com aquilo que lhe
apraz. Fedro diz para Sócrates que este saberá a respeito de toda a conversa entre
aquele e Lísias, mas apenas se tiver tempo livre para acompanhá-lo e escutá-lo (227
b), pois a dificuldade em investigar a pergunta exige esforço e dedicação.
Segundo Tordesilhas (1992, p.88) é então possível fazer uma ligação
entre o desejo (epithymía) e o tempo (kairós), ou seja, a oportunidade circunstancial
dos efeitos de Eros durante a atividade filosófica. Ou seja, cada pessoa tem o seu
tempo para que a linguagem possa realizar seus efeitos? Parece-nos que para se
manter um exercício dialético é preciso uma forte intimidade entre os interlocutores e
isso não se faz sem uma reserva de tempo em que os amantes se dão a conhecer,
tanto ao outro como a si mesmos. Pois para o projeto platônico, se assim não fosse,
não teria sentido.
Ora, assim escreve Platão no Fedro (229e – 230 a): “A razão, meu amigo,
aqui tens: ainda não fui capaz, como manda a inscrição délfica, de me conhecer a
mim mesmo. Parece-me ridículo que, desconhecedor ainda dessa realidade, me
dedique ao exame do que me é estranho.” Podemos comprovar isso quando
Sócrates revela no mesmo diálogo: “Ó Fedro, se eu não conheço Fedro, então perdi
42
também a consciência de mim próprio. Mas, na verdade, não se dá um nem outro
desses casos” (228b).
Isso vem elucidar que para Platão a filosofia não é uma ciência eficaz
que pode ser usada apenas com seus procedimentos técnicos, mas a mesma requer
o irracional como útil, que é o envolvimento da própria vida com aquilo que se busca.
Mas porque o conhecimento de si mesmo teria com a dimensão amorosa da
filosofia?
Fedro é um exemplo dessa sedução amorosa que o discurso provoca,
pois desde a madrugada que se empenha (227 a), ocupa seu tempo e agora está
inquieto, delirante pelas palavras do manuscrito de seu mestre logógrafo. Sócrates
poderia ter arrancado o jovem Fedro de seu delírio causado pela palavra retórica e
erótica de Lísias, de seu entusiasmo exigido do mesmo, racionalidade, enfim, ter
violentado essa paixão.
Porém, Sócrates toma como ponto de partida a situação do interlocutor,
procura com ele uma relação, um encontro, tem uma abertura, até é contagiado pela
exaltação da alma de Fedro, o que é frequante nos diálogos de Platão, a saber, a
busca comum e apaixonada por aquilo que se deseja.
Neste sentido, é bom notar que sem esse companheirismo, esse
sentimento erótico provocado pelo objeto amado, o diálogo não permanece firme.
Parece ser fundamental essa tensão é necessária pela busca daquilo que ainda não
se tem, mas que em parte está ali, presente na fala que se faz diálogo.
A partir da dimensão amorosa do discurso podemos pensar que Platão,
através das palavras de Sócrates, está demonstrando que colocar em análise
nossas maiores verdades é confiar o pensamento à espontaneidade do diálogo, que
é sempre aberto e incompleto. O outro que também ama é capaz de partilhar suas
certezas através da fala, ouvir atentamente seu interlocutor e assim, numa atitude de
amor pelo conhecimento, gerar uma nova ideia, uma nova verdade que permanece
sempre em construção, sem cair no relativismo dogmático em que cada um tem sua
verdade, que por uma atitude egoísta abdica da investigação feita através do diálogo
amoroso.
Um aspecto que ainda precisamos investigar é sobre a definição de Eros,
e sua importância para a filosofia enquanto diálogo. Esta é a definição dada por
43
Platão no passo (242 e), do Fedro: “Ora, se o Amor é – como de fato sucede – um
deus ou uma divindade, nunca pode ser um mal”.
Destarte, se o amor não é uma coisa ruim, aqueles que estão possuídos
pelo delírio de Eros têm como fonte de inspiração um deus. Lísias privou o Amor do
delírio, pois seu discurso é um discurso de quem não ama, ele nem se preocupou
em definir a natureza do amor.
Disso podemos afirmar que seu discurso é frio, sem desejo e emoção, é
apenas vontade vazia que deseja preencher uma falta, um saciar-se de forma
mesquinha e por assim ser, seus frutos são estéreis.
Neste sentido, o discurso possui em si a potência de gerar reações
físicas e psicológicas boas e ruins. Ele vai além, ultrapassa a dimensão erótica e
chega a ser remédio ou veneno (phármakon).31
Neste sentido é que a filosofia enquanto linguagem não está longe de ser
associada ao ofício de um médico. E o Fedro tem vários passos que comprovam
essa aproximação. Logo no início da caminhada, quando Fedro e Sócrates se
encontram saindo das muralhas de Atenas, Platão (227 a), nas palavras de Fedro,
faz a seguinte alusão: “Em obediência às instruções do teu e meu amigo, Acúmeno,
costumo dar os meus passeios pelas estradas, porque, segundo ele diz, são mais
revigorantes que os dados nos pórticos.”
A começar pelo exercício para se obter uma boa saúde, a caminhada é
apontada como uma boa prática. Em sentido figurado, com o discurso a mesma
coisa se dá. Ele tem como usuário ideal, o filósofo32, pois este sabe dos males e dos
bens que o excesso ou a falta o lógos podem causar porque, como já vimos, ele
conhece a natureza da alma e sabe identificar os tipos de discursos que podem
curar ou prejudicar a saúde da alma.
Outra referência à prática médica que encontramos no Fedro é quando
Sócrates compara o lógos a um “organismo vivo”:
Poderás pelo menos admitir, creio eu, que todo o discurso deve ser
constituído como um organismo vivo, com corpo próprio, que não seja
31
Para Montengro (2009, p.89) não só a escrita, mas a própria linguagem deve ser pensada aqui
como pharmakon.
32
Expressão usada por Montenegro (2009, p. 89), o filósofo como usuário ideal da linguagem.
44
acéfalo ou ápodo, mas possua tronco e membros, escritos de forma a convir
33
entre si e ao seu todo.
Tendo isso em vista, os intérpretes costumam considerar que Sócrates
estava tentando mostrar que o discurso, além de ser um recurso terapêutico para
curar as doenças ligadas à linguagem, também corre o risco de ser atingido por
alguma doença. O discurso de Lísias não fora por todo condenado, mas foi curado
de sua erística, através da palinódia, remédio que curou Estesícoro34 por ter
caluniado Helena de Tróia (243 d).
Ora, isso só vem confirmar a dimensão ambígua que o lógos possui, isto
é, a possibilidade de errar, mas remediar o erro. Porém, como adverte Trabattoni
(2003, p.131), esse remédio não funciona como um medicamento comum, o qual
tem um efeito químico incontrolável ou “irrefletido” no corpo humano, mas se adapta
conforme o consentimento do interlocutor que é seduzido pela palavra e deixa ser
contagiado naturalmente pelo discurso. Por isso o dialético tem que ser um
conhecedor tanto da alma, como do logos na sua dimensão ontológica, pois é
preciso diversificar as terapias de acordo com o estado em que se encontram as
almas.
Outra referência no pensamento grego que podemos citar neste
momento, com relação aos efeitos do logos como fármaco, é o discurso intitulado
Elogio de Helena, do rhetor e sofista Górgias de Leontine. Conforme assinala nosso
intérprete, o sofista Górgias tenta mostrar o funcionamento da palavra como droga
que leva as pessoas a agirem contra a sua vontade racional.
Neste discurso, se fala de Helena de Tróia, e a tese defendida é a de que
a mesma não fora culpada por deixar o marido e o lar espartano, mas como está na
defesa feita por Górgias (6) “foi levada à força, convencidas pelos discursos”.
Através da leitura do Fedro, nota-se que Platão tinha convicção de que as
pessoas não são convencidas apenas por raciocínios e argumentações, mas que o
discurso também possui seu lado ilógico e irracional que leva o homem a agir e
33
Fedro 264 c: ἀλλὰ τόδε γε οἶμαί σε φάναι ἄν, δεῖν πάντα λόγον ὥσπερ ζῷον συνεστάναι σῶμά τι
ἔχοντα αὐτὸν αὑτοῦ, ὥστε μήτε ἀκέφαλον εἶναι μήτε ἄπουν, ἀλλὰ μέσα τε ἔχειν καὶ ἄκρα, πρέποντα
ἀλλήλοις καὶ τῷ ὅλῳ γεγραμμένα.
34
Conforme um costume da tradição oral grega, segundo Sócrates, havia um remédio para quem
proferisse mal um discurso quando falava se tratava de uma divindade, pois conforme o pensamento
de Platão, os deuses não são maus. Homero como não fez uma retratação quando caluniou Helena
de Tróia, acabou ficando cego.
45
pensar de forma até inconsciente. Sócrates se compara a um animal quando é
conduzido pelo manuscrito de Lísias, como anota Platão (1997, p.33), “Tu, porém,
pareces ter encontrado o remédio para me fazer sair, porquanto, tal como se
conduzem os animais que têm fome, estendendo-lhes um ramo ou algum fruto (230
d)”.
O destaque aqui pode ser dado pelo fato de Fedro ter encontrado o
remédio que fez Sócrates sair da cidade. É o único diálogo que não tem seu cenário
dentro da cidade grega. Isso se mostra um tanto significativo quando, contra seu
bom senso, Sócrates é obrigado a ir além das muralhas de Atenas. Ele parece
mudar o pensamento de que não são apenas os homens da cidade que têm algo a
lhe ensinar, mas esse passeio aparece como solução, uma nova visão de que se
pode aprender com a Natureza35.
Essa temática da Natureza se mostra no Fedro como possível de se
relacionar com a temática da alma e do discurso. Ela é minuciosamente detalhada
no início do diálogo e seria uma leitura apressada não considerar esse aspecto em
relação ao que agora estamos tentando elucidar. Assim Sócrates se expressa:
Todas as artes que são grandes exigem loquacidade e altas especulações
sobre a natureza, pois é de algures daí que parece derivar a sublimidade de
concepção e a sua inteira realização. Foi isso que Péricles, além dos seus
dotes naturais, soube adquirir. Tendo encontrado Anaxágoras, que é,
segundo creio, um homem desse gênero, embebeu-se de sublimes
especulações e atingiu a natureza do espírito e da inteligência, assuntos de
que Anaxágoras muito se ocupava, dali retirando para a arte da oratória
36
tudo o que lhe fosse útil.
É sobre a Natureza da alma que se deve conhecer. É sobre a Natureza
do discurso que se deve trabalhar para que ele seja sadio e assim tenha uma forma
harmoniosa, pois os discursos segundo Platão (267 b): “não devem ser longos nem
curtos, mas de uma justa medida”. Retirar da Natureza o modelo para entender o
35
Sobre a natureza da Alma além do Fédon, Platão trabalha essa questão no Timeu; lá ele explica
como as almas e o mundo foram feitos pelo demiurgo.
36
Fedro 270 a: πᾶσαι ὅσαι μεγάλαι τῶν τεχνῶν προσδέονται ἀδολεσχίας καὶ μετεωρολογίας φύσεως
πέρι: τὸ γὰρ ὑψηλόνουν τοῦτο καὶ πάντῃ τελεσιουργὸν ἔοικεν ἐντεῦθέν ποθεν εἰσιέναι. ὃ καὶ Περικλῆς
πρὸς τῷ εὐφυὴς εἶναι ἐκτήσατο: προσπεσὼν γὰρ οἶμαι τοιούτῳ ὄντι Ἀναξαγόρᾳ, μετεωρολογίας
ἐμπλησθεὶς καὶ ἐπὶ φύσιν νοῦ τε καὶ διανοίας ἀφικόμενος, ὧν δὴ πέρι τὸν πολὺν λόγον ἐποιεῖτο
Ἀναξαγόρας, ἐντεῦθεν εἵλκυσεν ἐπὶ τὴν τῶν λόγων τέχνην τὸ πρόσφορον αὐτῇ.
46
discurso parece ser o cerne da questão apontada por Platão nas palavras de
Sócrates.
Conforme assinala Montenegro (2010, p.442), admitir que Platão fosse
um filósofo da phýsis parece algo estranho, talvez um absurdo. Porém, Platão não
está trazendo nenhum problema novo, mas tentando responder de uma forma
diferente as questões já presentes na reflexão grega a respeito da Natureza.
Poderemos perceber isso quando a Anaxágoras e os seus contemporâneos de
Mileto, que tentaram entender como o universo surgiu e se desenvolveu a partir de
um princípio material.
Isso já nos ajuda a entender o pressuposto socrático de que é preciso
conhecer aquilo com que se trabalha e, analogicamente, de que não se faz um
medicamento sem ter conhecimento dos elementos que o constituem. Não se pode
misturar qualquer elemento e dele se obter uma fórmula de maneira irresponsável.
Os físicos comprovaram que mesmo sendo a natureza algo material, seu
funcionamento possui uma ordem de natureza imaterial, o que Platão vai denominar
“alma do mundo” no Timeu.
Com isso, podemos comprovar juntamente com Sócrates que o discurso é
um “organismo vivo”. E se assim é, é preciso muito cuidado de quem mexe com
esse ser vivo, principalmente seus genitores,37 pois os “infectados” por esse
organismo, embora não incuráveis, precisarão de cuidados especiais, de
observação e de um antídoto para se curar dos malefícios que a palavra pode
causar.
Assim como um açougueiro que conhece todas as articulações naturais
de um organismo e disseca-o sem mutilações, Platão deduz analogicamente que os
genitores de discursos devem conhecer todas as articulações do lógos para que não
acabem por fazer ligações equivocadas nos elementos do mesmo, pois a saúde da
alma requer um medicamento eficaz. Para Manon (1993, p.42) “o que obriga cada
um a não se entregar a qualquer um.”
37
“ A filosofia, então, pode ser vista, metaforicamente, como a infecção por um microrganismo, tal
como o vírus da imunodeficiência humana (HIV). A analogia – técnica muito empregada por Platão
em seus diálogos – é bastante útil para esta particular visão, na medida em que explicita dois
aspectos da maior relevância – e sobre os quais se deseja chamar atenção: o primeiro, referente à
radical distinção entre “infectados” e os não “infectados”, haja vista a marcante mudança de atitude –
e perspectiva – diante da vida e da realidade; o segundo diz respeito à inexorabilidade do processo,
uma vez que não se pode simplesmente “abortar” a infecção – sendo premente que se aprenda a
lidar com ela...”(BATISTA, 2003, p.20)
47
Sócrates critica a falta de ordem e cuidado de Lísias quando tem a
impressão de que:
Não te parece que foram atiradas a esmo as várias partes do discurso? Ou
pensas que os argumentos apresentados por ele em segundo lugar devem
ser aí colocados por qualquer necessidade, em vez de alguma outras das
razões que proferiu? Pois eu, pessoa ignorante como sou, deu-me a
impressão de que o autor disse, não sem nobreza, o que lhe veio ao
espírito. E tu encontras por acaso alguma necessidade “logográfica”, que o
tenha constrangido a colocar assim em série, uns a seguir aos outros, os
38
argumentos do discurso?
É, portanto necessário ter o “conhecimento” e “prática” para não fabricar
aberrações com as palavras. No caso do discurso, o importante parece ser o
cuidado com as relações que essas partes estabelecem entre si. No Fedro, como
pensam os intérpretes, nada está isolado, mas tudo mantém uma relação. Eros não
pode estar separado da filosofia; o irracional não pode estar distante do racional;
filosofia e retórica não são opostas. Cada uma dessas dimensões guarda em si sua
individualidade, sua natureza; porém, contribui de alguma forma para que o homem
encontre o caminho correto da filosofia e possa ser feliz na medida do possível.
38
Fedro. 264 b: οὐ χύδην δοκεῖ βεβλῆσθαι τὰ τοῦ λόγου; ἢ φαίνεται τὸ δεύτερον εἰρημένον ἔκ τινος
ἀνάγκης δεύτερον δεῖν τεθῆναι, ἤ τι ἄλλο τῶν ῥηθέντων; ἐμοὶ μὲν γὰρ ἔδοξεν, ὡς μηδὲν εἰδότι, οὐκ
ἀγεννῶς τὸ ἐπιὸν εἰρῆσθαι τῷ γράφοντι: σὺ δ᾽ ἔχεις τινὰ ἀνάγκην λογογραφικὴν ᾗ ταῦτα ἐκεῖνος οὕτως
ἐφεξῆς παρ᾽ ἄλληλα ἔθηκεν;
48
SEGUNDA PARTE
A arte retórica e a sofistica
O ordenamento duma cidade está na coragem dos
seus cidadãos, o dum corpo na sua beleza, o
duma alma na sua sabedoria, o duma ação na sua
excelência e o dum discurso na sua verdade.
(GÒRGIAS, Elogio de Helena, I).
2.1. A RETÓRICA CORRENTE DE LÍSIAS
Fedro, no diálogo homônimo, se servindo da concepção tradicional de
retórica diz, conforme escreve Platão (261 b-c) “Não, por Zeus, não foi exatamente
assim; mas que é, sobretudo nos processos judiciais que se fala e escreve com arte;
que sucede o mesmo na Assembleia Popular. Sobre as demais coisas não ouvi
dizer nada” .
Eis, portanto, de forma sumária, uma das definições de retórica oferecida
por Platão aos seus leitores. Tal conceituação se mostra importante porque teremos
além dessa, outra concepção a qual o personagem Sócrates assume como sendo
sua, justamente aquilo que Fedro nunca ouviu dizer. Mas antes vamos analisar um
pouco do drama e cenário que parecem comungar com o próprio tema, assim como
buscar no Górgias e na Apologia mais suporte teórico para nossa análise.
Muitos afirmam que o problema central que relaciona os temas (Eros,
dialética, alma, lógos) no Fedro, seja a retórica (rhetorike). Evidentemente, quem
assim entende a unidade desse diálogo tem boas razões para sustentar tal tese,
pois é de fato uma aula prática (oralidade) e um discurso retórico (escrito) que vai
criando aos poucos a matéria-prima do diálogo, além do próprio drama e cenário
carregarem um forte tom de beleza e erotismo, elementos fundamentais para
entender os conceitos de filosofia e retórica em Platão, neste diálogo específico.
A cena do diálogo começa quando Sócrates, estando na saída das
muralhas da cidade ateniense demonstra interesse pela direção (condução), (de
onde vens e para onde vais?) e também pela pessoa do jovem Fedro, que assim se
expressa, através da pena de Platão (227 b): “Venho de junto de Lísias, filho de
49
Céfalo, Sócrates; e vou passear para fora das muralhas, pois me demorei ali muito
tempo sentado, desde manhã”.
Temos então diante de nós uma relação de amizade e ao mesmo tempo
uma disputa pelo objeto amado, o jovem Fedro, que neste momento está com
Sócrates, mas ainda com o pensamento nas palavras de Lísias. Nada estranho
quando se pensa numa retórica como disputa verbal. Neste caso, para convencer
um jovem a oferecer seu amor.
Ora, quem tem uma visão geral do diálogo em estudo já percebe que a
condução e o cuidado com a pessoa com que se fala já anuncia o que Sócrates
pretende estabelecer como retórica enquanto arte, ou seja, o cuidado com o
interlocutor, com o que ele tem de mais importante, a alma, o que será anunciado
como retórica filosófica, pois a corrente ainda não percebia isso como importante.
O quandro pintado por Platão que faz a abertura do Fedro, já se constitui
uma linguagem retórica, pois carrega o peso da sedução através de imagens
belíssimas do espaço campestre onde suas personagens prazerosamente irão
dialogar:
Platão reproduziu nos menores detalhes a paisagem onde se passa esta
cena; e, sobre esta representação, flutuam um brilho e um perfume, como
raramente encontramos em descrição da natureza, na Antiguidade.
Sócrates e Fedro sentam-se à sobra de um plátano, junto a um manancial
refrescante; o ar estival se agita benigno e doce e inunda-o o zunir das
cigarras. (CASSIRER, 2009, p.15)
Ligeiramente esta cena lembra o cenário de um simpósio quando cita que
ambos sentaram para conversar. Só faltava a bebida, a comida e a presença de
Lísias. Mas em lugar dessas iguarias está a natureza que se oferece como tal, assim
como o discurso de Lísias que será causa de muito debate.
Os oradores desse debate formam um triângulo envolvendo um logógrafo
e mestre de retórica, um filósofo e um ávido aprendiz da arte retórica. Seria um
triângulo amoroso?
Parece que Platão retira do modelo do “amor grego”, do
homoerotismo o modelo para o amor filosófico. Vejamos um pouco o que significava
essa relação amorosa entre os gregos.
Conforme Dover (1994, p.34), era comum na Atenas clássica o
homoerostismo masculino, ou seja, o amor de um jovem, o erómenos, pelo homem
mais velho, o erastés. Ambos pertenciam à aristocracia e geralmente essa relação
50
era estabelecida nos banquetes e ginásios. Segundo Vrissimtzis (2002, p.104), o
erastés deveria desempenhar um papel ativo na sociedade e o erómenos tinha uma
idade entre 12 e 18 anos.
Todo cuidado deve ser tomado para que não seja confundida aqui
pedofilia com pederastia, pois para os atenienses o segundo termo não tem em si o
sentido de pornografia que hoje o primeiro termo possui para a civilização ocidental.
Mas, ao contrário, a relação entre o erastés e o erómenos era de educação, de
condução.
Consideramos por bem colocar essa questão aqui junto da retórica
porque a base a partir da qual Platão elabora seu discurso é a partir dessa prática
ateniense, do desejo que vai do sensível, dos corpos, das visões e das palavras
belas para o desejo que se faz filosofia. Conforme Siqueira (2011, p.102), Sócrates
no primeiro discurso compara Eros a um mero desejo, um falso Eros. Já no segundo
discurso, trata-se de um amor ligado às Ideias, um Eros ligado à filosofia.
Até então nada de descabido dentro do contexto da pólis grega. Mas
como sempre Platão institui um confronto com a cultura tradicional. Este filósofo
grego é considerado um dos mais consistentes avaliadores do estatuto da atividade
dos retores e sofistas, pois pretendiam assim como ele oferecer um saber.39
Todavia Platão não pretende negar a retórica dos sofistas, mas apenas
criticá-la, buscar seu fundamento enquanto uma atividade de importância
fundamental para a vida dos atenienses, como bem expressa Platão (261 e): “ora,
não se limita apenas aos tribunais e à Assembleia a arte de combater com palavras,
mas, ao que parece, para todo o gênero oratório, haverá uma arte única, se de fato
existe [...]”.
Curiosa é a dúvida de Sócrates, se de fato existe essa arte. Mas em que
consistia a arte retórica? Para Coelho (2010, p.29) os pesquisadores de retórica
antiga afirmam que discutir a própria questão da origem desse termo é uma tarefa
complexa.
39
Isso porque antes de Platão a palavra rétor (rhetor) tinha o sentido
“Por conseguinte, a fundação da escola de Isócrates coincide no tempo, pouco mais ou menos com
a de Platão. Já no seu discurso programático Contra os Sofistas, Isócrates tinha diante dos olhos as
obras proselitistas de Platão. O Górgias e o Protágoras- e procurava manter-se afastado do seu ideal
de paidéia. Isto leva-nos à mesma época. A nosso ver, o valor incomparável do seu discurso sobre os
sofistas reside na viveza com que nos faz presenciar, passo a passo, o início da luta entre as duas
escolas pela educação, luta que se prolongaria em seguida ao longo de uma geração
inteira.”(JAEGER, 2010, p. 1073).
51
apenas do orador que fala a uma assembleia, seja com finalidade de apresentação
de ideias políticas ou para defender um causa na corte de justiça.
Ora, no diálogo Górgias, escrito por Platão antes do Fedro, aparece também
uma definição semelhante:
É a capacidade de persuadir pela palavra os juízes no Tribunal, os
senadores no Conselho, o povo na Assembleia, enfim, os participantes de
qualquer espécie de reunião política. Com este poder farás teus escravos o
médico e o professor de ginástica, e até o grande financeiro chegará à
conclusão de que arranjou o dinheiro não para ele, mas para ti, que sabes
40
falar e que persuades a multidão.
Se Sócrates, no Fedro, tem algo a mais para dizer sobre o uso da
retórica, seu interlocutor desconhece. Mas quais os motivos que levaram Platão a
escolher este tema como merecedor de uma discussão? Se seu propósito era
contestar a cultura tradicional e a cultura de seu tempo, em que isso consistia?
Há uma interpretação, conforme assinala Trabattoni (2010, p.35), que
defende ser o processo de condenação de Sócrates um dos motivos que levou
Platão a questionar o poder e as consequências da atividade do orador.
Pois que tipo de arte é a retórica que levou uma cidade inteira a
condenar seu cidadão mais justo e sábio? A noção do que seja o justo em si,
portanto haveria caído no relativismo? Os homens não podem ter o conhecimento
da justiça em si e acabam se enganando e enganando os outros? O poder estaria à
disposição de quem sabe convencer e não de quem possui o conhecimento da
verdade?
Tudo isso poderia ser motivação do drama elaborado no Fedro, o que
levou Platão a ser um tanto ríspido com Lísias que, segundo afirma Gomes (1997,
p.9), foi um dos implicados no processo que conduziu Sócrates ao tribunal e à morte
pela cicuta.
Para Schuler (1998, p. 232), a Apologia é um discurso que evidencia a
excepcional capacidade oratória de Platão, o que o coloca entre os mais geniais dos
logógrafos. Esse detalhe não nos poderia passar despercebido, já que estamos
tratando desse tema em Platão, principalmente porque, assim como no Fedro, o
40
Górgias 452 d: τὸ πείθειν ἔγωγ᾽ οἷόν τ᾽ εἶναι τοῖς λόγοις καὶ ἐν δικαστηρίῳ δικαστὰς καὶ ἐν
βουλευτηρίῳ βουλευτὰς καὶ ἐν ἐκκλησίᾳ ἐκκλησιαστὰς καὶ ἐν ἄλλῳ συλλόγῳ παντί, ὅστις ἂν πολιτικὸς
σύλλογος γίγνηται. καίτοι ἐν ταύτῃ τῇ δυνάμει δοῦλον μὲν ἕξεις τὸν ἰατρόν, δοῦλον δὲ τὸν παιδοτρίβην:
ὁ δὲ χρηματιστὴς οὗτος ἄλλῳ ἀναφανήσεται χρηματιζόμενος καὶ οὐχ αὑτῷ, ἀλλὰ σοὶ τῷ δυναμένῳ
λέγειν καὶ πείθειν τὰ πλήθη.
52
discurso em defesa de Sócrates vai reclamar pela verdade do que se diz, ou seja, a
Defesa de Sócrates já se apresenta como uma retórica filosófica. Por isso
consideramos profícuo fazer a análise da retórica de Lísias em comparação com
alguns trechos da Apologia. Esta não seria mais um modelo de retórica filosófica que
herdamos do mestre da Academia?
Nesta única defesa ele se empenha para mostrar que seu mestre não
merecia as acusações de que fora vítima; isso implica dizer que as palavras de seus
acusadores não disseram a verdade, não disseram como de fato as coisas são,
“dificilmente haja uma única palavra de verdade no que disseram”, diz Sócrates na
defesa (17 a-b). Todavia, o acusado se propõe a dizer a verdade. Mas não estaria
também o discurso de Sócrates, seja na Apologia ou nos pronunciados no Fedro
carregados de retórica?
Neste sentido, poderíamos pensar e considerar que as inquirições de
Sócrates, ou seja, suas perguntas eram veneno que corrompe a juventude? E se
não era, isso denunciava a cegueira da razão dos seus acusadores? Sócrates assim
se expressa:
Desconheço como vós, homens de Atenas, fostes afetados por meus
acusadores. Quanto a mim, por pouco não perdi a noção da minha própria
identidade tal a persuasão com que discursavam. E no entanto, dificilmente
haja uma única palavra de verdade no que disseram. Das muitas mentiras
que disseram, uma especialmente surpreendeu-me bastante a saber, que
deveis vos acautelar para não serdes ludibriados por mim porque eu era um
41
orador extraordinariamente hábil.
Schuler (1998, p.323), ao comparar o Fedro com a Apologia, enfatiza que
Platão vai buscar a verdade onde ela não se encontra, isto é, no tribunal, pois lá é o
reduto da retórica. É lá, diz Platão no Fedro que o orador pode “tornar cada coisa
semelhante a qualquer outra, dentre aquelas que é comparável”(261 e).
Como estamos citando um discurso cujo autor não se encontra no
momento de sua leitura, como fica então a questão do parricídio? Todo discurso traz
41
Defesa de Sócrates 17 a-b: ὅτι μὲν ὑμεῖς, ὦ ἄνδρες Ἀθηναῖοι, πεπόνθατε ὑπὸ τῶν ἐμῶν
κατηγόρων, οὐκ οἶδα: ἐγὼ δ᾽ οὖν καὶ αὐτὸς ὑπ᾽ αὐτῶν ὀλίγου ἐμαυτοῦ ἐπελαθόμην, οὕτω πιθανῶς
ἔλεγον. καίτοι ἀληθές γε ὡς ἔπος εἰπεῖν οὐδὲν εἰρήκασιν. μάλιστα δὲ αὐτῶν ἓν ἐθαύμασα τῶν πολλῶν
ὧν ἐψεύσαντο, τοῦτο ἐν ᾧ ἔλεγον ὡς χρῆν ὑμᾶς εὐλαβεῖσθαι μὴ ὑπ᾽ ἐμοῦ ἐξαπατηθῆτε ὡς δεινοῦ
ὄντος λέγειν. τὸ γὰρ μὴ αἰσχυνθῆναι ὅτι αὐτίκα ὑπ᾽ ἐμοῦ ἐξελεγχθήσονται ἔργῳ,
53
o caráter do pai ou somente aquele discurso que é cultivado levando em conta as
características dos ouvintes?
No caso do diálogo Fedro, Sócrates considera que Lísias ali está
presente, embora não possa socorrer sua prole. Todavia, seria possível ou
impossível por este meio de comunicação fazê-lo?
Na senda de Schuler não podemos pensar num parricídio absoluto, mas
considerar o discurso escrito um meio de comunicação limitado para o ensino.
Todavia, limitado aqui não quer dizer ineficaz, pois discursos, como diz Sócrates no
próprio Fedro, são sementes e quando alguém se apropria de um discurso este
herda traços do pai e se transforma em outro.
No entanto, Sócrates adverte que esses discursos têm que brotar
naturalmente da alma, sem os ornamentos, mas com justiça:
Entretanto, por Zeus, ó homens de Atenas, não ouvireis discursos
expressos com frases ornamentadas e estilizadas como os deles, mas
apenas coisas ditas casualmente com palavras que me ocorrerem, pois
confio que há justiça no que digo, e que nenhum de vós espere algo mais
42
do que isso.
Para Schuler, (2008, p.325), Platão jamais nega o parricídio. O réu, que
no caso da Defesa é Sócrates, sente que tal discurso lhe pertence, mas não é um
discurso autoritário e mostra que o saber é acessível a todos, pois sua linguagem é
simples, assim como os interlocutores dos diálogos de Platão se expressam do jeito
que sabem. O mesmo se pode dizer dos discursos elaborados no Fedro?
Uma questão de ordem fundamental, que é sugerida nesta fala, toca um
assunto que está presente sempre em Platão e que aparece de forma clara e
insistente no Fedro, que é o saber e sua natureza. Esse assunto é bem mais
aprofundado no Mênon, um diálogo classificado como da juventude, que é
caracterizado pela busca insistente pelas definições.
No Mênon, a pergunta chave que suscita a discussão é saber se a
virtude é ensinada, se ela é adquirida pelo exercício ou algo que nasce com a
pessoa.
42
Apologia de Sócrates 17 b-c: ὦ ἄνδρες Ἀθηναῖοι, κεκαλλιεπημένους γε λόγους, ὥσπερ οἱ τούτων,
ῥήμασί τε καὶ ὀνόμασιν οὐδὲ κεκοσμημένους, ἀλλ᾽ ἀκούσεσθε εἰκῇ λεγόμενα τοῖς ἐπιτυχοῦσιν
ὀνόμασιν—πιστεύω γὰρ δίκαια εἶναι ἃ λέγω
54
Podes dizer-me, Sócrates: a virtude é coisa que se ensina? Ou não é coisa
que se ensina mas que se adquire pelo exercício? Ou nem coisa que se
adquire pelo exercício nem coisa que se aprende, mas algo que advém aos
43
homens por natureza ou por alguma outra maneira?
No Mênon são examinadas várias respostas, as quais se mostram
inadequadas, constituindo-se assim um dos diálogos aporéticos.
Pelo que fica subtendido em relação à retórica no Fedro, é que é possível
ensinar alguém a se tornar um bom orador como diz Platão (269 d), “a possibilidade,
Fedro, de alguém se tornar um perfeito orador é natural” (269 d). Porém, é preciso
conhecimento e prática, conhecimento das formas.
Destarte isso não quer dizer que o orador não tenha conhecimento delas.
Pois não ter necessidade de conhecê-las significa que é possível persuadir sem
recorrer a elas. Talvez seja por isso Sócrates irá exigir para um ensino melhor desta
arte que a mesma seja associada à filosofia, pois quem não conhece as formas
pode até persuadir, porém também pode acabar “fazendo o elogio da sombra de um
asno, como se de um cavalo se tratasse” (260 d).
Ora, cabe então se perguntar que recursos utiliza o orador para conseguir
parecer ser verdadeiro aquilo que ele diz ou escreve? Onde está o seu sucesso? A
aparência parece ser sua fabricação mais valiosa, segundo o jovem aprendiz de
retórica. Pois, pelo que sabemos, os oradores eram bastante procurados pelos
jovens e ganhavam muito bem para ensinar sua arte. Se fizermos uma pequena
pausa, poderemos lembrar que um conceito chave de todo o pensamento de Platão
é a aparêcia que, tradicionalmente, foi estereotipada como algo inferior por fazer
parte do sensível. Porém parece não ser isso na verdade o que Platão quer dizer
quando trata desse assunto, pois jamais se poderia pensar em Platão como um
filósofo que despreze o sensível.
Não podemos deixar de concordar com Jaeger (2010, p.1259) quando diz
que a cultura tradicional grega não se baseava na verdade, mas na aparência. Isto
é, numa sociedade predominantemente de oráculos e poetas, o conceito de verdade
é totalmente diferente do que Platão/Sócrates está tentando estabelecer como
critério de verdade, embora não se encontre uma definição exata para isso nos
diálogos.
43
Mênon. 70 a: εἶναι ἀνάγκην τῷ μέλλοντι ῥήτορι ἔσεσθαι τὰ τῷ ὄντι δίκαια μανθάνειν ἀλλὰ τὰ δόξαντ᾽
ἂν πλήθει οἵπερ δικάσουσιν, οὐδὲ τὰ ὄντως ἀγαθὰ ἢ καλὰ ἀλλ᾽ ὅσα δόξει: ἐκ γὰρ τούτων εἶναι τὸ
πείθειν ἀλλ᾽ οὐκ ἐκ τῆς ἀληθείας.
55
Ora, o rhetor, ao se dirigir à multidão, não tinha a pretensão de ensinar
algo e nem discutir a essência do que é afirmado ou negado, mas apenas para
conduzi-la a tomar determinadas decisões, a concordar ou discordar de uma
determinada ideia; enfim, fazer nascer ali uma opinião (dóxa). Ou seja, o critério de
verdade neste caso provém daquilo que a maioria das pessoas considera certo
sobre o assunto e não de um conhecimento (epistéme). Por isso a cultura tradicional
se baseava naquilo que o poeta “cantava” e os adivinhos, de forma ambígua, diziam.
No Fedro, embora seja uma visão particular de discurso persuasivo e
conte com o elemento ficcional, Platão brinda seus leitores com um modelo de
retórica: o manuscrito que Fedro trouxe da aula de Lísias. Por outro lado nos
restaram alguns discursos dos próprios logógrafos, como a Defesa de Palamedes, o
Tratado do Não-ser ou da Natureza e o Elogio de Helena, de Górgias, só para citar
alguns exemplos, assim como alguns testemunhos e fragmentos.
O erotikos de Lísias é um discurso-modelo, um testemunho que não se
exime de conter suas verdades tanto em relação ao conteúdo como no estilo de
muitos discursos que Platão deve ter ouvido em sua cidade.
Ora bem, é negando o discurso retórico de Lísias que Platão reconhece a
força e o potencial que a palavra tem, tanto como persuasão, como uma
oportunidade para levar o jovem Fedro para os caminhos da filosofia, embora de
forma velada reformule o erotikos de Lísias.
Assim, diz Sócrates, no Fedro (237 a) “falarei velado, para chegar ao fim
do discurso o mais depressa possível e para que, ao olhar para ti, não fique
embaraçado pela vergonha”.
Mas porque Sócrates se arriscaria a pronunciar um discurso cuja tese não
concebia como sendo verdadeira? O véu que usou como máscara teria o significado
de uma alienação em relação a si mesmo? Embora não se tratasse de uma
máscara, é sabido, conforme diz Vernant (1988, p.104), que esta, entre os gregos,
era usada quando alguém deixava de ser o que é e incorporava outra personalidade.
Qual, portanto, é o interesse de Fedro pelo manuscrito de Lísias? A
principal engenhosidade do discurso que impressionou aquele foi o paradoxo
apresentado. Diz Fedro, segundo Platão (227 c): “Lísias tinha escrito sobre o modo
de seduzir um jovem belo, sem ser por um apaixonado. E aí reside precisamente o
56
seu engenho, porquanto afirma que devemos agradar, de preferência, a quem não
ama e nunca a quem ama.” (227c).
Mas por que Lísias elegeu Eros como assunto principal do seu discurso?
Ora, assinala Jaeger (2010, p.1259) o motivo mais comum é que este era um tema
corrente nas discussões e debates entre os alunos de retórica, como podemos
comprovar isso no Banquete (193 e e 198 d) e no Lísis (204 b-c).
Ora, no caso de nossa pesquisa, nossa hipótese é a de que Sócrates
queria mostrar que a filosofia ou a retórica filosófica não é algo puramente racional,
mas carrega em si a presença das paixões. Todavia há quem seja contra a
interpretação de Trabattoni e diga que:
[...] não faz sentido afirmar que Platão esteja no Fedro articulando uma linha
de argumentação que reconhece um certo grau de dependência da filosofia
e da dialética com relação a éros característico do desejo e ligado à
dimensão irracional da alma.(SIQUEIRA, 2011, p.104).
Entretanto, no caso particular de Lísias, o que mais o interessava era as
implicações de seus argumentos, pois ele tinha a necessidade de construir
argumentos e um discurso que se adequasse aos seus fins particulares: que era
convencer Fedro a “agradar” a quem não ama; isto é, seu próprio mestre.
Sócrates dirá em Fedro 242 d, que ele e Lísias cometeram uma grande
falta com Eros, pois ele sendo filho de Afrodite, é um deus e sendo uma divindade
não pode ser má.
Como se vê, Sócrates se apega a um ponto fraco da argumentação de
Lísias e nisso se apoia para demolir todo o resto do discurso. No Hípias Menor é
assim registrado:
Lá está tu, Sócrates, como sempre, a enredar raciocínios especiosos!
Sempre a agarrares no ponto fraco da argumentação e a apoiares-te nele
para demolir peça por peça, em vez de combater a ideia global a que o
argumento se reporta! Mas é para já: se assim queres, vou dar-te uma serie
de exemplos e demonstrar, com argumentos bastantes, que Aquiles, tal
como Homero o caracteriza é superior a Ulisses e isento de mentira, ao
passo que este último é um embusteiro, um mentiroso de primeira e inferior
a Aquiles. Se queres, contrapõe a tua argumentação à minha a ver qual
delas é a melhor; e assim os nossos ouvintes poderão também avaliar
44
quem fez melhores discursos...
44
Hípias Menor 369 b-c: ὦ Σώκρατες, ἀεὶ σύ τινας τοιούτους πλέκεις λόγους, καὶ ἀπολαμβάνων ὃ ἂν ᾖ
δυσχερέστατον τοῦ λόγου, τούτου ἔχῃ κατὰ σμικρὸν ἐφαπτόμενος, καὶ οὐχ ὅλῳ ἀγωνίζῃ τῷ πράγματι
57
Na verdade, a concepção de Lísias e de todos os oradores está na ideia
geral do discurso, e não em suas minúcias argumentativas. O pronunciamento do
discurso retórico é feito apenas uma vez e tem o objetivo de gerar um efeito imediato
na opinião de seus ouvintes. Já Sócrates, como filósofo, pretende ir às profundezas
do que é dito e fazer uma análise da ideia (eidos).
A antilogia ou erística era uma prática bastante comum no contexto
oratório. Há registros, segundo Gobry (2007, p.58), de que Platão em sua juventude
fora aluno de Euclides, um discípulo de Sócrates que no século IV a.C. que havia
fundado uma escola de erística em Mégara.
No geral essas duas práticas oratórias que consistiam em colocar
argumento contra argumento ou discurso contra discurso, tal que parecem ser a
mesma coisa. No entanto, Marques (2000, p.67) acredita que entre ambas há uma
sutil diferença, pois enquanto a primeira visa à dialética, sendo um momento
necessário desta, aquela é praticada apenas para vencer o argumento contrário,
para ganhar a disputa verbal, sem se preocupar com a verdade.
Neste caso, podemos afirmar sem medo de errar que estamos com o
discurso de Lísias e os dois discursos pronunciados por Sócrates diante de um
exemplo antilógico. Isso por que é a partir da argumentação de Lísias sobre eros
que Sócrates e Fedro terão a oportunidade de examinar dialeticamente o conteúdo
da argumentação tanto sobre o amor, quanto sobre a retórica, o que desqualifica a
discussão como erística, que seria o “falar bem”, simplesmente para comover ou
imprimir na multidão um ponto de vista com finalidade imediata.
É oportuno observar que a antilogia era uma prática compartilhada por
retores e sofistas. Segundo Marques (2000, p.67) o sofista é “enquanto contraditor,
um expert em antilogias.” Mas em que se baseia o erista? Ele possui um
fundamento ontológico?
περὶ ὅτου ἂν ὁ λόγος ᾖ: ἐπεὶ καὶ νῦν, ἐὰν βούλῃ, ἐπὶ πολλῶν τεκμηρίων ἀποδείξω σοι ἱκανῷ λόγῳ
Ὅμηρον Ἀχιλλέα πεποιηκέναι ἀμείνω Ὀδυσσέως καὶ ἀψευδῆ, τὸν δὲ δολερόν τε καὶ πολλὰ
ψευδόμενον καὶ χείρω Ἀχιλλέως. εἰ δὲ βούλει, σὺ αὖ ἀντιπαράβαλλε λόγον παρὰ λόγον, ὡς ὁ ἕτερος
ἀμείνων ἐστί: καὶ μᾶλλον εἴσονται οὗτοι ὁπότερος ἄμεινον λέγει.
58
2.2. A retórica platônica
O Górgias, como já tivemos a oportunidade de mencionar, além do Fedro,
constitui um dos diálogos platônicos que trata com detalhe o tema da arte retórica
corrente na Grécia clássica. A maioria das interpretações afirma que Platão não
admite uma conciliação entre retórica e filosofia no primeiro diálogo, pois aquela
nem se quer pode ser chamada de arte. Porém, no Fedro, é possível que exista a
boa retórica, a qual possa ser denominada de arte, embora Sócrates diga que a arte
de Lísias seja imperfeita.
Mas o que faz algo ser considerado como tal, perfeita? Sua aproximação
da verdade que representa ou sua função estética? Esta função (estética) tem
autonomia simplesmente por agradar os sentidos ou por ser útil no sentido de
transmitir um conteúdo ou virtudes morais?
Vejamos o que pensa Sócrates no Fedro a esse respeito:
Que homem generoso! Oxalá escrevesse que seria melhor amar o pobre
que o rico, o mais velho do que o mais novo, e tantas outras desgraças que
me são inerentes, bem como a muitos de nós. As suas palavras seriam
45
então agradáveis e úteis ao povo.
Ora, Fedro tem consciência de que a retórica tem dois papéis: agradar e
ser útil. Essa seria a verdadeira função dessa arte? Para Brisson (2003, p.167), a
retórica no Fedro deve ser examinada numa perspectiva estendida, não apenas à
psicologia e à dialética, mas também à cosmologia e à metafísica. Porém, o
interessante é que todos esses conceitos estão relacionados com a alma.
Perguntaríamos se não deveríamos incluir também nesta perspectiva estendida a
estética.
Plotino (Tratado das Enéadas, I), pergunta por que tudo que está
relacionado à alma é belo. Esse parentesco nos faz lembrar a exigência de
Sócrates, no Fedro, de que se devem escrever os discursos na alma, desse modo,
estes devem ser belos, afim de que possam atingir seus objetivos. Quais objetivos?
No caso do Fedro (no qual foi apresentado um discurso de reparação) poderíamos
dizer que também pode haver uma reescrita na alma? Como isso se daria?
45
Fedro 227 c-d: ὢ γενναῖος. εἴθε γράψειεν ὡς χρὴ πένητι μᾶλλον ἢ πλουσίῳ, καὶ πρεσβυτέρῳ ἢ
νεωτέρῳ, καὶ ὅσα ἄλλα ἐμοί τε πρόσεστι καὶ τοῖς πολλοῖς ἡμῶν: ἦ γὰρ ἂν ἀστεῖοι καὶ δημωφελεῖς εἶεν
οἱ λόγοι.
59
Reale (1994, p.171) resume em poucas palavras o que Platão disse
negativamente sobre a arte, ou seja, esta não desvela, mas oculta a verdade; não
melhora o homem porque é mentirosa e deseduca porque se dirige às faculdades
irracionais da alma.
Mas no Fedro essas teses se sustentam? O belo artístico neste caso é
visto como algo autônomo ou se relaciona com a verdade?
Sócrates parece preocupado com o conteúdo do ensinamento de Lísias.
Platão está sempre atento à influência que a arte pode exercer sobre a educação
das pessoas. Desse modo assinala Jaeger (2010, p.61) que o filósofo da academia
reconheceu o valor pedagógico da arte, isto é, esta como um instrumento de
normatizações e valores na vida das pessoas.
Sócrates, em seu segundo discurso (237 b), acredita ser inevitável o
fracasso daqueles que pretendem tecer discursos sem saber sobre o que vai
deliberar. Em um tom de suave ironia ele afirma que os oradores esquecem de que
não conhecem a natureza do objeto de que tratam:
A respeito de qualquer assunto, ó jovem, há apenas um ponto de partida
para quem intenta bem julgar: precisa de saber em que consiste o objeto
sobre que se delibera, ou então é inevitável que falhará totalmente. Ora a
maioria esquece que não sabe qual é a essência de cada coisa. Assim,
como se já o soubessem, procuram pôr-se de acordo no início do exame e,
ao prosseguir, pagam o justo castigo, já que não encontram acordo consigo
mesmos nem com os outros. Ora eu e tu não devemos suportar o que lhe
censuramos. Por isso, quando entre mim e ti se põe a questão de saber a
quem devemos conceder de preferência nossa amizade, se ao que ama, se
ao que não ama, temos de chegar a acordo sobre a definição da natureza e
efeitos do amor, para os termos presentes e nos referimos a ele, quando
46
discutimos se é proveito ou dano que nos proporciona.
Ora bem, neste comentário de Sócrates, aparece a palavra acordo três
vezes. Platão parece eleger esse princípio como uma boa regra para a retórica. Ou
seja, para que o discurso seja progressivo, tenha um bom encaminhamento. É
46
Fedro 237 c-d: περὶ παντός, ὦ παῖ, μία ἀρχὴ τοῖς μέλλουσι καλῶς βουλεύσεσθαι: εἰδέναι δεῖ περὶ οὗ
ἂν ᾖ ἡ βουλή, ἢ παντὸς ἁμαρτάνειν ἀνάγκη. τοὺς δὲ πολλοὺς λέληθεν ὅτι οὐκ ἴσασι τὴν οὐσίαν
ἑκάστου. ὡς οὖν εἰδότες οὐ διομολογοῦνται ἐν ἀρχῇ τῆς σκέψεως, προελθόντες δὲ τὸ εἰκὸς
ἀποδιδόασιν: οὔτε γὰρ ἑαυτοῖς οὔτε ἀλλήλοις ὁμολογοῦσιν. ἐγὼ οὖν καὶ σὺ μὴ πάθωμεν ὃ ἄλλοις
ἐπιτιμῶμεν, ἀλλ᾽ ἐπειδὴ σοὶ καὶ ἐμοὶ ὁ λόγος πρόκειται πότερα ἐρῶντι ἢ μὴ μᾶλλον εἰς φιλίαν ἰτέον,
περὶ ἔρωτος οἷόν τ᾽ ἔστι καὶ ἣν ἔχει δύναμιν, ὁμολογίᾳ θέμενοι ὅρον, εἰς τοῦτο ἀποβλέποντες καὶ
ἀναφέροντες τὴν σκέψιν ποιώμεθα εἴτε ὠφελίαν εἴτε βλάβην παρέχει.
60
preciso no inicio definir a natureza daquilo que se pretende discorrer. Encontramos
evidências disso no Banquete (195 a) quando Agatão exclama para Fedro:
Eu então quero primeiro dizer como devo falar, e depois falar. Parece-me
com efeito que todos os que antes falaram, não era o deus que elogiavam,
mas os homens que felicitavam pelos bens de que o deus lhes é causador;
qual porém é a sua natureza, em virtude da qual ele fez tais dons, ninguém
o disse. Ora, a única maneira correta de qualquer elogio a qualquer um é,
no discurso, explicar em virtude e que a natureza vem ser a causa de tais
47
efeitos aquele de quem estiver falando.
A retórica platônica é uma retórica da conformidade entre o discurso e o
objeto, como já dissemos em outra ocasião. Essa advertência de pedir permissão
para como falar já parece ser um aceno na exigência clara que será feita no Fedro a
respeito da arte do discurso como psicagogia. A maneira de como falar depende da
natureza da alma que vai receber esse discurso.
Assim, Sócrates fala da sua concepção de arte retórica no Fedro:
Não é verdade que, tomada em sentido geral, a retórica é uma atividade de
arte de psicagogia por meio de palavras, não apenas nos tribunais e muitas
outras assembléias públicas, mas também nas reuniões privadas, a mesma
a respeito de questões de pequena como de grande monta? E o seu uso
correto não se torna a coisa mais honrada quando trata de assuntos sérios
48
ou insignificantes?
Antes de falar da retórica como uma arte, e afirmar isso já é polêmico,
gostaríamos de acrescentar algo que não colocamos quando falamos da alma, mas
que aqui vale ser enfatizado porque tem estreita ligação com a retórica, que é o
conhecimento da natureza da alma em particular, o que implica o conhecimento da
alma em geral e o lugar dessa alma na hierarquia psíquica que começa na alma do
mundo à da ostra. Vejamos a lista que Sócrates apresenta no Fedro em 248 d, na
ordem em que cada uma teve a melhor visão e mais longa das ideias:
47
O banquete 194 e – 195 a: ἐγὼ δὲ δὴ βούλομαι πρῶτον μὲν εἰπεῖν ὡς χρή με εἰπεῖν, ἔπειτα εἰπεῖν.
δοκοῦσι γάρ μοι πάντες οἱ πρόσθεν εἰρηκότες οὐ τὸν θεὸν ἐγκωμιάζειν ἀλλὰ τοὺς ἀνθρώπους
εὐδαιμονίζειν τῶν ἀγαθῶν ὧν ὁ θεὸς αὐτοῖς αἴτιος: ὁποῖος δέ τις αὐτὸς ὢν ταῦτα ἐδωρήσατο, οὐδεὶς
εἴρηκεν. εἷς δὲ τρόπος ὀρθὸς παντὸς ἐπαίνου περὶ παντός, λόγῳ διελθεῖν οἷος οἵων αἴτιος ὢν τυγχάνει
περὶ οὗ ἂν ὁ λόγος ᾖ.
48
Fedro 261 a-b: ἆρ᾽ οὖν οὐ τὸ μὲν ὅλον ἡ ῥητορικὴ ἂν εἴη τέχνη ψυχαγωγία τις διὰ λόγων, οὐ μόνον
ἐν δικαστηρίοις καὶ ὅσοι ἄλλοι δημόσιοι σύλλογοι, ἀλλὰ καὶ ἐν ἰδίοις, ἡ αὐτὴ σμικρῶν τε καὶ μεγάλων
πέρι, καὶ οὐδὲν ἐντιμότερον τό γε ὀρθὸν περὶ σπουδαῖα ἢ περὶ φαῦλα γιγνόμενον;
61
[...] a alma que tiver visto maior quantidade de realidades entrará no germe
de um homem destinado a ser um amigo da sabedoria ou do belo, ou
alguém consagrado às Musas ou ao amor; a segunda, no germe de um rei
de um rei justo ou no de um guerreiro e governante; a terceira, no de um
político ou no de algum ecônomo e financeiro; a quarta, no de um homem
amante da fadiga, de um atleta ou de alguém que tenha por missão a cura
do corpo; a quinta terá uma vida de adivinho ou de iniciado; à sexta
corresponderá um poeta ou alguém que se dedique a outra vida arte
qualquer de imitação; à sétima, um artífice ou um lavrador; à oitava, um
49
sofista ou um demagogo; à nona, um tirano.
Ora bem, lembra Brisson (2003, p. 170) quanto mais baixo a alma estiver
na escala apresentada acima, mas complexa ela é, e como a retórica em Platão se
apresenta como aquela que tem uma influência sobre a alma, o orador deve saber
em qual direção conduzi-la, se para o alto ou para baixo.
Mas o que significa conduzir com palavras alguém para o alto ou para
baixo? Essa subida e descida sugerem para os intérpretes que Sócrates estaria se
referindo ao movimento dialético, por isso se afirma que se trata de uma retórica
filosófica.
Parece não ser claro o conceito de “emcima” e “embaixo” em relação ao
espaço, não devemos imaginar um mundo das ideias separado do mundo real.
Segundo Droz (1997, p.80) o alto, o lá em cima que a alma deve atingir significa “o
cume de seu esforço pessoal”, e no caso da retórica filosófica, o orador seria apenas
um provocador.
Pensando nessa função de guiar a própria alma e a dos demais por meio
de discursos, os intérpretes sempre citam o mito da caverna presente na República,
livro VII, ao lado do mito da parelha alada. Vejamos um pouco da imagem que
Sócrates imagina na República:
Depois disso então, disse eu, compara a nossa natureza, no que concerne
à educação ou falta de educação, a uma situação como esta. Imagina, por
exemplo, homens numa morada subterrânea em forma de caverna, a qual
tem grande entrada aberta para a luz ao longo de toda a cavidade. Estão ali
49
Fedro 248 c: θεσμός τε Ἀδραστείας ὅδε. ἥτις ἂν ψυχὴ θεῷ συνοπαδὸς γενομένη κατίδῃ τι τῶν
ἀληθῶν, μέχρι τε τῆς ἑτέρας περιόδου εἶναι ἀπήμονα, κἂν ἀεὶ τοῦτο δύνηται ποιεῖν, ἀεὶ ἀβλαβῆ εἶναι:
ὅταν δὲ ἀδυνατήσασα ἐπισπέσθαι μὴ ἴδῃ, καί τινι συντυχίᾳ χρησαμένη λήθης τε καὶ κακίας πλησθεῖσα
βαρυνθῇ, βαρυνθεῖσα δὲ πτερορρυήσῃ τε καὶ ἐπὶ τὴν γῆν πέσῃ, τότε νόμος ταύτην μὴ φυτεῦσαι εἰς
μηδεμίαν θήρειον φύσιν ἐν τῇ πρώτῃ γενέσει, ἀλλὰ τὴν μὲν πλεῖστα ἰδοῦσαν εἰς γονὴν ἀνδρὸς
γενησομένου φιλοσόφου ἢ φιλοκάλου ἢ μουσικοῦ τινος καὶ ἐρωτικοῦ, τὴν δὲ δευτέραν εἰς βασιλέως
ἐννόμου ἢ πολεμικοῦ καὶ ἀρχικοῦ, τρίτην εἰς πολιτικοῦ ἤ τινος οἰκονομικοῦ ἢ χρηματιστικοῦ, τετάρτην
εἰς φιλοπόνου ἢ γυμναστικοῦ ἢ περὶ σώματος ἴασίν τινος ἐσομένου, πέμπτην μαντικὸν βίον ἤ τινα
τελεστικὸν ἕξουσαν: ἕκτῃ ποιητικὸς ἢ τῶν περὶ μίμησίν τις ἄλλος ἁρμόσει, ἑβδόμῃ δημιουργικὸς ἢ
γεωργικός, ὀγδόῃ σοφιστικὸς ἢ δημοκοπικός, ἐνάτῃ τυραννικός.
62
desde crianças com as pernas e os pescoços presos, de modo que
permanecem no mesmo lugar, olhando somente para a frente e incapazes
de movimentar as cabeças ao redor porque estão acorrentados: uma chama
de fogo brilha para eles, acima e ao longe, por trás deles, e entre o fogo e
os prisioneiros há um caminho superior, ao longo do qual imagina que está
construído um pequeno muro, semelhante aos tabiques que os
prestigiadores lançam diante dos homens, por cima dos quais ostentam os
seus truques prodigiosos. Se um deles fosse libertado e obrigado a
imediatamente levanta-se, movimentar o pescoço, caminhar e erguer os
olhos para a luz, mas, ao fazer isso, sentisse dores e por causa do brilho da
luz fosse incapaz de observar os objetos cujas sombras ele via há pouco,
que pensas que ele responderia se alguém lhe dissesse que antes ele via
há pouco, que pensas que ele responderia se alguém lhe dissesse que
antes ele via insignificâncias, mas que no momento está um tanto mais
próximo da realidade, e voltando para as coisas mais reais, vê de modo
50
mais correto?
Tanto Cardoso (2006, p. 180) quanto Morais (2010 p.482) insistem na
concepção antropológica da alma humana presente no Fedro, o que nos permite
citar a alegoria da caverna e perceber a continuidade do pensamento de Platão no
que diz respeito ao filósofo como um condutor de almas.
E aqui vale lembrar as palavras de Mouse (2006, p. 179) quando diz que
se alguém denomina Platão de pensador idealista, esquece que sua concepção de
filosofia e filósofo no Fedro é de todas as mais realistas, pois jamais se esquece da
condição humana.
A filosofia, portanto, precisa da retórica para persuadir a alma que se
encontra presa, a primeira mostra o caminho que ela precisa percorrer para lhe
ensinar a desejar, a mostrar o belo que um dia essa alma contemplou.
Isso se desdobra na dimensão política e ética que a retórica possui nas
roupagens que Platão lhe dá no Fedro, ou seja, de que a tarefa do filósofo enquanto
50
República 514 a – 515 d: μετὰ ταῦτα δή, εἶπον, ἀπείκασον τοιούτῳ πάθει τὴν ἡμετέραν φύσιν
παιδείας τε πέρι καὶ ἀπαιδευσίας. ἰδὲ γὰρ ἀνθρώπους οἷον ἐν καταγείῳ οἰκήσει σπηλαιώδει,
ἀναπεπταμένην πρὸς τὸ φῶς τὴν εἴσοδον ἐχούσῃ μακρὰν παρὰ πᾶν τὸ σπήλαιον, ἐν ταύτῃ ἐκ παίδων
ὄντας ἐν δεσμοῖς καὶ τὰ σκέλη καὶ τοὺς αὐχένας, ὥστε μένειν τε αὐτοὺς εἴς τε τὸ πρόσθεν μόνον ὁρᾶν,
κύκλῳ δὲ τὰς κεφαλὰς ὑπὸ τοῦ δεσμοῦ ἀδυνάτους περιάγειν, φῶς δὲ αὐτοῖς πυρὸς ἄνωθεν καὶ
πόρρωθεν καόμενον ὄπισθεν αὐτῶν, μεταξὺ δὲ τοῦ πυρὸς καὶ τῶν δεσμωτῶν ἐπάνω ὁδόν, παρ᾽ ἣν
ἰδὲ τειχίον παρῳκοδομημένον, ὥσπερ τοῖς θαυματοποιοῖς πρὸ τῶν ἀνθρώπων πρόκειται τὰ
παραφράγματα, ὑπὲρ ὧν τὰ θαύματα δεικνύασιν. 515 c-d: σκόπει δή, ἦν δ᾽ ἐγώ, αὐτῶν λύσιν τε καὶ
ἴασιν τῶν τε δεσμῶν καὶ τῆς ἀφροσύνης, οἵα τις ἂν εἴη, εἰ φύσει τοιάδε συμβαίνοι αὐτοῖς: ὁπότε τις
λυθείη καὶ ἀναγκάζοιτο ἐξαίφνης ἀνίστασθαί τε καὶ περιάγειν τὸν αὐχένα καὶ βαδίζειν καὶ πρὸς τὸ φῶς
ἀναβλέπειν, πάντα δὲ ταῦτα ποιῶν ἀλγοῖ τε καὶ διὰ τὰς μαρμαρυγὰς ἀδυνατοῖ καθορᾶν ἐκεῖνα ὧν τότε
τὰς σκιὰς ἑώρα, τί ἂν οἴει αὐτὸν εἰπεῖν, εἴ τις αὐτῷ λέγοι ὅτι τότε μὲν ἑώρα φλυαρίας, νῦν δὲ μᾶλλόν τι
ἐγγυτέρω τοῦ ὄντος καὶ πρὸς μᾶλλον ὄντα τετραμμένος ὀρθότερον βλέποι, καὶ δὴ καὶ ἕκαστον τῶν
παριόντων δεικνὺς αὐτῷ ἀναγκάζοι ἐρωτῶν ἀποκρίνεσθαι ὅτι ἔστιν; οὐκ οἴει αὐτὸν ἀπορεῖν τε ἂν καὶ
ἡγεῖσθαι τὰ τότε ὁρώμενα ἀληθέστερα ἢ τὰ νῦν δεικνύμενα;
63
aquele que trabalha com a linguagem é fazer com que cada um possa, através de
um longo aprendizado, efetivar o governo de si mesmo.
Neste sentido poderíamos dizer que somos prisioneiros de nós mesmos e
que a chave dessa prisão está em nossas mãos? Como o cocheiro debatendo-se
para manter o equilíbrio dos cavalos e o prisioneiro da caverna conseguem na
condição de um ser humano sua libertação, através da retórica? Seria a parte divina
que, enfeitiçada pelos discursos, buscaria forças para se libertar?
O filósofo é aquele que através da palavra evoca o que cada alma possui;
jamais ele irá enxertar conteúdos dentro de alguém como se tratasse de um local
vazio, mas os ornamentos e feitiços da linguagem retórica incitam o que está no
interior de cada alma.
Ora, se a retórica é dita uma arte, precisamos saber se ela o é por ser
bela, isto é, desempenhar uma função estética ou porque quando ligada à filosofia
permite ter acesso à verdade.
Reale (1994, p.173) diz que é historicamente pouco correto associar o
problema da arte ao problema da beleza, mas seria bem mais frutífero associar
beleza e erótica, embora ele veja o Hípias maior como uma alternativa para
tematizar arte e beleza. Como sabemos, os outros textos nos quais Platão trata da
produção estética são o Banquete, o livro X da República, o Fedro e o Íon.
Como estamos vendo, Platão nunca negou o poder da arte, o poder do
belo. Mas toda arte é bela? Toda arte é útil? Toda arte é verdadeira ou ela também
serve ao falso?
Como já vimos, Fedro acreditava que tal arte era usada apenas nos
“processos judiciais” e “nas assembleias populares”. Ou seja, para eventos
importantes e sérios da polis grega.
Mas para sua surpresa, Sócrates realiza uma ampliação do conceito de
retórica, fazendo inclusive nas entrelinhas uma alusão ao já conhecido “diálogo
socrático”, que em si é retórico, pois conduzir almas é tarefa da retórica e ao próprio
diálogo que naquele momento está sendo feito entre Sócrates e Fedro. Ou seja,
mostra que também para os assuntos simples, a legítima utilidade do uso persuasivo
da palavra é um fato. Reconhece que ela é uma atividade de persuasão universal,
presente em todas as ciências e saberes humanos.
64
No Górgias, passo 462 a, Sócrates afirma para Polo que não considera a
retórica uma arte, e por isso não se trata de uma coisa bela. É interessante notar
que no Fedro (267 c) quando Polo é mencionado, este aparece como autor de uma
obra dedicada à retórica, a saber: “E como anunciar o Tesouro oratório das Musas
de Polo, com as suas reduplicações, coleções de máximas e símiles, e o
Vocabulário com que Licímnio o presenteou para a composição do seu belo estilo?”
Ora, a existência de tratados de retórica seria a garantia de que a mesma
se constitui uma techné? No caso do Fedro, a retórica já é considerada uma arte,
mas sem jamais esquecer que ela precisa da dialética, para ser considerada como
tal. Estaria mesmo Platão apresentando uma nova retórica?
Ora bem, a novidade que aparece sobre o entendimento do que seja
retórica no Fedro é de que ela não é apenas um método científico aplicável de
qualquer modo para convencer as pessoas, como muitos sofistas e oradores
pretendiam, mas além desse caráter de ciência, é uma atividade de condução de
almas, e por isso o conhecimento de seu objeto deve ser fundamental à alma, o que
torna o conceito de ciência menos mecânico que o Górgias, pois lá a ciência, para
ser considerada como tal, não necessita de uma associação com a arte retórica.
Casertano (2010, p.57) diz que a retórica dos sofistas guarda uma
saliente diferença da retórica platônica. De fato, a interlocução de Platão com os
sofistas gerou na história da filosofia uma imagem negativa desses pensadores, pois
não se notava com cuidado que a definição do sofista (sophistés) para Platão estava
a serviço de sua crítica a ela. Essa concepção negativa do sophistés, que surge no
século IV a.C., segundo Reale, tornou-se corrente já em Sócrates e seus discípulos,
incluindo Platão, que já mencionamos, e Xenofonte. Conforme diz Reale (1994,
p.189) Aristóteles, seguindo a senda do seu mestre, acabou de pintar a imagem dos
sofistas. Todavia, isto não pode ser visto com um ligeiro olhar. É preciso ter no
horizonte a visão de que Platão desejava, com sua performance, redimensionar os
procedimentos da atividade sofística e não negar seu valor.
Com a grande oferta da Paidéia sofística uma crise dos domínios da
linguagem estava se alastrando na polis ateniense. A falta de uma norma reguladora
da atividade discursiva tornava relativa qualquer tese defendida, o que gera uma
crise epistemológica e ontológica, respectivamente, pois os sofistas pretendiam
65
discutir qualquer assunto e isso é visto por Platão como uma pretensão audaciosa,
pois ninguém pode ser especialista em tudo, somente os deuses são oniscientes.
Somos favoráveis à interpretação de Casertano (2010, p.19) quando
considera que a educação sofística não representava uma pura técnica a serviço de
apenas vencer verbalmente o opositor, mas no movimento sofista estava presente
um novo entendimento da cultura, que ele chama de “consciência da relatividade
dos valores”. Ou seja, de que a areté, a virtude não era mais uma herança de
sangue, mas que era uma conquista. Assim, tem-se com os sofistas a noção de que
não existe uma verdade absoluta das coisas que era transmitida aos mortais por
alguém com dotes especiais. Mas antes, que o homem é o responsável, juntamente
com os demais, pela organização da vida em sociedade.
Neste sentido, concordamos com Marques quando afirma:
Enquanto palavra humana, que pertence a todos e a cada um, ela torna-se
cada vez mais circuscrita ao momento da enunciação. Não mais revelação
exclusiva-alétheia, mas confrontação pública – diálogos. Ela depende de
vários fatores circustanciais para se fazer valer como coisa real isto é, sua
eficácia, seu poder de realização tende a esvanecer-se na multiplicidade de
variáveis que determinam o evento do discurso público. (MARQUES, 1994,
p.6).
Neste sentido estariam também os valores estéticos dentro deste
contexto da vida como ela é? Existe uma definição do que seja o belo si e do que
seja o feio em si, assim como o justo e o injusto, o pequeno e o grande? O bom e o
belo são de fato acessíveis à multidão através de um discurso?
2.3. Verdade e verossimilhança
Como já mencionamos anteriormente, mas de uma forma sumária, o
Fedro é uma amostra da árdua batalha que Platão travou para estabelecer um
critério que pudesse ser referência aos discursos proferidos, o que vai desembocar
na questão da verdade do lógos, que por si mesma é uma questão delicada. 51
51
“Não me parece que nos diálogos platônicos haja uma verdadeira definição da verdade.”
(CASERTANO, 2010, p. 109)
66
Vale relembrar aqui que a exigência de Sócrates para que um discurso
seja belo é a de que o orador tenha conhecimento da verdade do que diz a fim de
que não venha também a ser enganado pelo próprio discurso, pois ele declara no
Fedro “Então quem se propõe enganar outro, sem se deixar enganar a si, deve
discernir exatamente a semelhança das coisas e a sua diferença (262 a).”
A questão para Caertano (2010, p.91) que se apresenta como problema é
saber então se o orador sabe mesmo da verdade ou apenas está convencido de
uma verdade que não passa de uma opinião, pois a opinião pode gerar engano e
desentendimentos entre a multidão.
Falando metaforicamente sobre a importância de conhecer a diferença, e
o prejuízo que a sua falta traz, Sócrates adverte para o mal causado pelo equívoco
que poderá ser cometido quando alguém for para a guerra levando um asno ao
invés de um cavalo, assim como o mal que o orador poderá causar a uma cidade
quando não souber a diferença entre o bem e o mal. Ele poderá levar uma cidade
inteira à ruína:
Pois, quando um orador que desconhece o bem e o mal encontra uma
cidade em igual situação e tenta persuadi-la, não já fazendo o elogio da
sombra de um asno, como se de um vavalo se tratasse, mas exaltando o
mal como se fosse o bem; quando, depois de estudar as inclinações da
multidão, a convencer a praticar o mal em vez do bem, depois disto, que
52
fruto julgas tu que a retórica possa colher das sementes que lançou?
Neste caso, Sócrates quer alertar Fedro para o cuidado que deve ter o
orador, pois este pode ao invés de se apoiar na verdade, construir um discurso
tendo como alicerce a ilusão, o engano.
Ora, então a retórica poderia neste caso ser considerada uma arte falível?
Mas como saber se o que está sendo dito ou lido é ou não um engano? E se
realmente o retórico trabalha produzindo ilusão, esta pode ser considerada uma
mentira? Fedro responde a Sócrates que a “ilusão nasce das coisas que difere
pouco” (262 a). Sócrates acrescenta: “Ora bem. Se te deslocares pouco a pouco, o
teu movimento para o lado oposto será mais imperceptível do que se o fizeres em
grandes passadas” (262 a).
52
Fedro 260c : ὅταν οὖν ὁ ῥητορικὸς ἀγνοῶν ἀγαθὸν καὶ κακόν, λαβὼν πόλιν ὡσαύτως ἔχουσαν
πείθῃ, μὴ περὶ ὄνου σκιᾶς ὡς ἵππου τὸν ἔπαινον ποιούμενος, ἀλλὰ περὶ κακοῦ ὡς ἀγαθοῦ, δόξας δὲ
πλήθους μεμελετηκὼς πείσῃ κακὰ πράττειν ἀντ᾽ ἀγαθῶν, ποῖόν τιν᾽ ἂν οἴει μετὰ ταῦτα τὴν ῥητορικὴν
καρπὸν ὧν ἔσπειρε θερίζειν;
67
Nesta mesma direção, o que coloca luzes nestas questões é o uso que
Platão faz da palavra grega tò eíkos, isto é, o verossímil, que aparece com
freqüência ao longo do diálogo. Uma de suas ocorrências no diálogo é quando
Sócrates através de um mito fala da natureza da alma:
E quanto à sua imortalidade, está dito o suficiente. Sobre a sua natureza, no
entanto, deve acrescentar-se o seguinte: dizer o que ela é exigiria uma
exposição de todo em todo divina e muito longa; mas dizer ao que se
53
assemelha (eiken) é empresa humana e de menores proporções.
Geralmente se pensa que os discursos retóricos e sofísticos se
encontram totalmente no campo da opinião e por isso sem um valor epistêmico mais
significativo.
No entanto, se for dada a devida atenção para o desempenho que a
verossimilhança tem nestes discursos ver-se-á que quando a verdade não está
absolutamente acessível, o único caminho é aproximar o máximo possível do
verdadeiro. Como lembra Oliveira (2009, p. 53), “Platão redimenciona a noção
mesma de verossimilhança, mostrando que o verossímil só o é realmente por se
aproximar do verdadeiro.”
E neste sentido já não se trata mais de uma simples opinião, mas daquilo
que se assemelha (eiken), e parece que é neste campo que não só o filósofo
trabalha, mas também o bom orador, aquele que é capaz de dizer uma coisa e seu
oposto sem se enganar.
Mas o engano (apáte) seria de todo uma coisa negativa dentro do
discurso? Essa palavra não teria um sentido diferente do que comumente se
entende? Como um engano pode convencer? Como dizer o falso?
Como sabemos, em Hesíodo há uma referência entre dizer o “ser –
mesmo” e as mentiras símeis.54 Evidentemente que o contexto do Fedro,
diferentemente do de Hesíodo e Hesíodo exige um comprometimento maior com o
elemento histórico do discurso do que a Teogonia. Como já tratamos disso quando
falamos da verdade no período arcaico da história grega, a verdade em Hesíodo é
53
Fedro 246 a: περὶ μὲν οὖν ἀθανασίας αὐτῆς ἱκανῶς: περὶ δὲ τῆς ἰδέας αὐτῆς ὧδε λεκτέον. οἷον μέν
ἐστι, πάντῃ πάντως θείας εἶναι καὶ μακρᾶς διηγήσεως, ᾧ δὲ ἔοικεν, ἀνθρωπίνης τε καὶ ἐλάττονος:
54
“Sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos e sabemos, se queremos, dar ouvir revelações.”
(HESÍODO,2007 . VV. 27-28)
68
resultante de uma revelação, embora as Musas digam quando querem aquilo que é
símil.
Já a relação entre o falso e o verdadeiro no discurso, segundo o Fedro,
tende a apontar para a situação histórica em que cada homem em particular está
inserido. Ou seja, não existe um discurso falso e outro verdadeiro, mas cada
discurso é uma possibilidade de dizer aquilo que cada um percebe do mesmo fato,
Se Lísias entende o amor como algo nocivo, isto não quer dizer que não seja
verdadeiro, pois há evidências de que em alguma situação isso pode acontecer, pois
quantos, porém, tem a felicidade de não amar, mas conseguiram pelo seu mérito,
atingir o que desejavam (232 d).
Ora, Sócrates já tem outra referência para situar o mesmo assunto. Os
seus juízos sobre o assunto naquele instante são aqueles que se contrapõem ao
discurso do logógrafo. Isso mostra, segundo Casertano (2010, p.54) que a verdade é
relativa dependendo do ponto de vista de cada um, naquele contexto, naquele
momento, isto é, “não pode existir um discurso falso, porque cada discurso diz aquilo
que é verdadeiro para ele [...] naquela situação, naquela disposição.”
Neste sentido, os três discursos sobre o amor presente no Fedro retratam
momentos diferentes do próprio devir do pensamento em relação à realidade, pois o
discurso e pensamentos não são idênticos.
Sócrates diz no mito da biga que os cavalos ao atingir o lugar supra
celeste, que nenhum poeta jamais cantou, se alimentam da epistéme (247 d). E que
quando caem dessa região têm apenas por alimento a opinião (248 b).
O
verossímil é, portanto, um conceito que está entre estes dois campos, não sendo,
assim idêntico a nenhum deles, mas só pode ser pensando quando temos no
horizonte a noção do eíkos.
2.4. O mythos como arte das emoções
Uma das dimensões da linguagem que tem sido causa de estudos
infindáveis é a presença do elemento mítico na filosofia de Platão. Isso é importante
para nossa pesquisa porque, segundo Brisson (2003, p.302), trata-se de um
69
discurso que tem como objetivo primordial causar emoção no momento de sua
transmissão.
Não poderíamos deixar de tratar dessa dimensão da linguagem no Fedro
justamente porque este é um diálogo que apresenta muito dessa dimensão. A
primeira manifestação desse assunto no presente diálogo é o rapto de Oritia (229b),
e neste trecho Sócrates aproveita para questionar a eficácia dessas narrações, ou
seja, a função do mythos enquanto explicação de algum conceito ou fato. Depois, ao
longo do diálogo aparece o mito das cigarras (258 e), o mito da biga alada (246 a) e
o mito da invenção da escrita (274 c).
Seria uma tarefa larga tratar do conteúdo desses mitos ou do mito em
Platão, pois os seus diálogos estão repletos de alusões a esse modo de pensar dos
gregos. Não pretendemos enveredar por esse caminho.
Nossa referência ao uso do mito ou o que nos interessa aqui se limita a
alguns trechos do Fedro para que possamos examinar como Platão faz uso dessa
linguagem, os sentimentos e as emoções que ela provoca no momento de sua
transmissão ou no caso dos diálogos.
Ao se debruçar sobre a presença do discurso mítico no Fedro,
percebemos que todas as vezes que Sócrates tenta explicar algo de natureza
filosófica ele se dirige a essas narrativas, ora da tradição, ora criada ou reformulada
por ele mesmo. Seria então correto pensar com Marques (1994, p.2) que o mito é a
terra natal da filosofia? Mas porque seria? Segundo este pesquisador, a linguagem
mítica possui em si um desejo de saber, de buscar o sentido, vindo a evoluir para a
filosofia, em Platão, jamais a linguagem mítica será abandonada.
Qual, portanto seria o mérito da linguagem mítica no contexto do diálogo
que pesquisamos? Teria esse discurso uma função explicativa e demonstrativa no
sentido absoluto do termo?
É importante ressaltar que segundo Pinheiro (2003, p. 127), o termo
mythos e mito, o que modernamente se entende por este último termo, não é
sinônimo do primeiro. Aquele carrega em si todas as características que um discurso
oral provocava no contexto grego. Isso já contribui para que possamos ter uma
visão, ainda que parcial, do valor do mythos como uma obra de arte.
Assim se pronuncia Sócrates sobre as explicações míticas:
70
Pela minha parte, Fedro, considero que explicações desse gênero têm o
seu atrativo, mas são próprias de um homem excessivamente engenhoso,
resistente à fadiga e não muito feliz, pela simples razão de que, após isso,
lhe seria necessário ainda reconstituir a forma dos Hipocentauros e, a
seguir, a da Quimera; e submerge-o também um tumulto de criaturas
semelhantes, como Górgonas e Pégasos; uma multidão de seres
prodigiosos e o absurdo de outros tantos monstros lendários. Se alguém,
incrédulo, tentar reduzir cada um deles à verossimilhança, usando como
que de uma sabedoria um tanto grosseira, ser-lhe-á necessário muito tempo
55
disponível.
Para Schuler (1998, p.332) “da união do mythos com o lógos, Platão
obtém resultados benéficos a ambos.” Quais seriam esses resultados? Ambos
podem frequentar o mesmo espaço ao mesmo tempo?
Ora, diz Sócrates, o mito seduz. Porém sua natureza não é
argumentativa, demonstrativa. O ouvinte nem pode interferir na narração, mas
participa de outra forma.
Marques (1995, p.1), ao se pronunciar sobre a linguagem mítica em
Platão diz que a mesma tem uma função heurística. O que isso significa no projeto
platônico?
Os sofistas é que pretendiam dar uma explicação racional aos mitos.
Porém Sócrates vê o mito de outra maneira, ele enxerga nesse discurso seu poder
de sugerir imagens que possam tirar a crosta que impede o homem de fazer a
viagem para dentro de si mesmo.
Mas como conciliar um discurso racional de uma forma irracional de
pensar? Ora bem, quem disse que não há razão no mythos?
Nesta passagem sobre as explicações míticas, Sócrates parece fazer
uma crítica a quem pretende dar um esclarecimento racional desses seres
mitológicos, ou seja, talvez queira mostrar que tem certas coisas que a linguagem
não consegue dizer, mas que é possível imaginar ou pensar, que de qualquer forma
ajuda na busca do entendimento.
Ora, não há como não concordar com Marques (1994, p. 3) que, ao negar
uma explicação objetiva e racional para a linguagem mítica, Sócrates estaria
tentando mostrar que o mito torna possível o humano, o que vem concordar com a
55
Fedro 229 d-e: ἐγὼ δέ, ὦ Φαῖδρε, ἄλλως μὲν τὰ τοιαῦτα χαρίεντα ἡγοῦμαι, λίαν δὲ δεινοῦ καὶ
ἐπιπόνου καὶ οὐ πάνυ εὐτυχοῦς ἀνδρός, κατ᾽ ἄλλο μὲν οὐδέν, ὅτι δ᾽ αὐτῷ ἀνάγκη μετὰ τοῦτο τὸ τῶν
Ἱπποκενταύρων εἶδος ἐπανορθοῦσθαι, καὶ αὖθις τὸ τῆς Χιμαίρας, καὶ ἐπιρρεῖ δὲ ὄχλος τοιούτων
Γοργόνων καὶ Πηγάσων καὶ ἄλλων ἀμηχάνων πλήθη τε καὶ ἀτοπίαι τερατολόγων τινῶν φύσεων: αἷς εἴ
τις ἀπιστῶν προσβιβᾷ κατὰ τὸ εἰκὸς ἕκαστον, ἅτε ἀγροίκῳ τινὶ σοφίᾳ χρώμενος, πολλῆς αὐτῷ σχολῆς
δεήσει. ἐμοὶ δὲ πρὸς αὐτὰ οὐδαμῶς ἐστι σχολή:
71
filosofia antropológica do Fedro. Isso porque, para este estudioso, o mito também
tem uma função poética, o que leva o homem a ter acesso ao divino. Ou seja, ao
contemplar o belo na linguagem mítica, este reflete sobre sua condição humana.
72
TERCEIRA PARTE
O Diálogo e a dialética no Fedro
O discurso origina, alimenta, desconstrói discursos e ideias,
as platônicas e as demais. O discurso carrega ideias.
(SCHULER,1998 p.329)
3.1. A unidade temática do Fedro
Um dos problemas que tem se apresentado como pivô de muitas
discussões, e parece fundamental buscar o entendimento disso, é saber por que no
Fedro, Sócrates reclama pela organicidade do discurso, mas ao mesmo tempo não
fica claro qual o tema central do diálogo; além disso, há no mesmo diversas formas
literárias de estilos, do diálogo dito socrático, passando por monólogos até preces.
Tal fato não poderia ocorrer, já que ele mesmo é um crítico voraz da falta de
coerência em um discurso:
O quê?! Então devemos, eu e tu louvar o discurso também pelo facto de o
seu autor dizer aquilo de que tinha obrigação? Não chega declarar que o
seu estilo é claro, conciso e que cada termo foi torneado diligentemente?
Ora, se temos essa obrigação, em atenção a ti lha devemos conceder,
porque a mim pelo menos, talvez devido à minha nulidade, permanece
oculto o seu mérito nesse campo. Apenas me atraiu a atenção pela sua
56
retórica e, em meu entender, nem o próprio Lísias julgaria isso suficiente.
Platão não seria tão ingênuo para não perceber a falta de coerência do
seu diálogo, seria? Esta tese da falta de unidade temática revela mesmo um
problema dentro deste diálogo? Ou ao invés disso trata-se de artifício da arte
platônica? Isto é, na verdade, não há nenhuma incoerência, mas o leitor precisa
descobrir a chave de leitura desse diálogo?
Diz Trabattoni (1996, p.9) que há uma antiga tradição que remonta a
Diógenes Laércio e a Olimpiodoro que afirma ser o Fedro a primeira obra de Platão,
uma espécie de programa da Academia. Isso devido a alguns temas do próprio
56
Fedro 234 e- 235a: δé; καí ταúτῃ δεῖ ὑττ´ τε καì σοῦ τòν λóγον ἐπαινεθῆναι, ὡς τὰδέοντα εἰρηκóτος
τοῦ ποιητοῦ, ὰλ λ´ οὐκ ὲκεíνῃ μóνον, ὃτι σαφῆ καìστρογγúλα, καì ὰκριβῶς ἕκαστα τῶν ὀνομάτων
ὰποτετóρνευται; εἰ γὰ ρδεῖ, συγχωρητέον χάριν σήν, ἐπεὶ ἐμέ γε ἔλαθεν ὑπò τῆς ἐμῆςοὐδενίας· τῷ γὰρ
ῥητορικῷ αὐτοῦ μóνῳ τòν νοῦν προσεῖχον, τοῦτοδέ οὐδ´ ἂν αὐτòν ᾥμην Λυσíαν οἴεσθαι ίκανòν εἶναι.
73
Sócrates histórico, como confissão de ignorância, o deslocamento temático entre
retórica e Eros e a crítica à escrita, como uma justificativa do modelo escolhido para
fazer filosofia, o diálogo.
Haveria como enxergar no Fedro uma unidade temática ou uma rede de
articulações que se encaminhe para um núcleo central de discussão, à maneira do
organismo vivo que embora seja um divide em pequenas articulações?
Para Jaeger (2010, p. 1255), “um dos problemas mais difíceis e mais
discutidos é suscitado pela composição do Fedro.” Isto porque parece, para este
intérprete, que o discurso sobre Eros da primeira parte do diálogo não se funde com
a retórica filosófica da segunda parte. Todavia, essa é apenas uma visão, o que não
quer dizer que outros pesquisadores não pensem de maneira diferente.
Ora, ao contrário de Jaeger, Cardoso (2006, p. 11) estruturou um estudo
sobre o Fedro à luz da interpretação de Trabattoni, apontando a alma como o centro
da filosofia de Platão. Isso nos pareceu bastante sugestivo e convicente na medida
em que o mesmo concebe o pensamento de Platão como um verdadeiro movimento
dialético, ou seja, na própria estrutura do diálogo já se faz necessário usar uma
dinâmica, um movimento para que se possa captar o sentido geral da obra, ligando
todas as partes do diálogo: eros, retórica e dialética.
Neste sentido Delmar pressupõe que a alma seja o centro de todo o
filosofar. Todavia, centro só poderá ser entendido neste diálogo a partir de uma
periferia, ou seja, os temas estão sempre interligados, como formando uma espécie
de malha.
Ora, concordamos com Paviani (2001, p. 149) quando afirma que a noção
de alma em Platão é complexa, mas guarda uma importância fundamental, visto que
para se entender os processos dialéticos é preciso ter conhecimento de sua
natureza, pois se pode cair no mesmo erro de Lísias:
Em conclusão, Fedro, pareceu-me, se nada tens a dizer em contrário, que
ele repetiu as mesmas coisas duas ou três vezes, como se não tivesse
recursos suficientes para desenvolver o mesmo assunto, ou talvez porque
não tinha interesse algum em semelhante matéria. Deu-me, além disso, a
sensação de que falava como um jovem que quer mostrar a sua capacidade
em dizer as mesmas coisas, ora de um modo, ora de outro, e ambas com
57
perfeição.
57
Fedro 235 a: καὶ οὖν μοι ἔδοξεν, ὦ Φαῖδρε, εἰ μή τι σὺ ἄλλο λέγεις, δὶς καὶ τρὶς τὰ αὐτὰ εἰρηκέναι, ὡς
οὐ πάνυ εὐπορῶν τοῦ πολλὰ λέγειν περὶ τοῦ αὐτοῦ, ἢ ἴσως οὐδὲν αὐτῷ μέλον τοῦ τοιούτου: καὶ
74
Como se vê, Sócrates classifica o discurso de Lísias como redudante, ou
seja, não tem nada a acrescentar, um discurso sem nenhuma referência
epistemológica, e como analisa Jaeger (2010, p.1260) desprovido de interesse pelo
assunto. E se assim se apresenta, está claro que o mesmo esqueceu-se de pensar
no destinatário do seu discurso. Mas não seria Fedro o destinatário? A alma de
Fedro já não estava dialogando com as palavras de Lísias e desejosamente
procurava um companheiro para dialogar? Seria uma tendência natural da alma
buscar dialogar consigo mesma e com os outros?
3.2. O diálogo da alma
A quase totalidade da escrita platônica é uma tentativa de mostrar que
filosofia é diálogo. E no Fedro, podemos dizer com segurança, há uma identificação
entre filosofia e dialética, porém como denomina Schuler (2011, p.9), uma dialética
erótica.
Vê-se, portanto que a importância do diálogo em Platão é justamente
fazer com que tanto o dialético como o ouvinte possa desenvolver o diálogo interior
da alma consigo mesma, como Platão diz no Sofista (263 e).
Mas isso só acontece no próprio discurso, no ato da conversa, em que a
psykhé58 aprenderá a equilibrar os conflitos entre suas diferenças, e, aliás, possa vir
a fecundar outros discursos.
Como sabemos, a dialética no Fedro é erótica, é a dialética do amor e da
amizade. Platão no Lisis, um diálogo da juventude que fala da amizade, já anunciava
essa característica de sua filosofia. No mesmo ele menciona que o semelhante
busca no e com o semelhante àquilo que ele não possui.
Podemos dizer que no Fedro encontramos o desenvolvimento daquilo que
Sócrates anuncia no Sofista, isto é, de que pensar é o diálogo que a alma realiza
consigo mesma (263e). Isso se faz quando Sócrates fala da natureza dialógica da
alma que para obter um saber aproximativo da verdade precisa viver num
ἐφαίνετο δή μοι νεανιεύεσθαι ἐπιδεικνύμενος ὡς οἷός τε ὢν ταὐτὰ ἑτέρως τε καὶ ἑτέρως λέγων
ἀμφοτέρως εἰπεῖν ἄριστα.
58
“Veja-se, entre muitos possíveis, o caso da “alma”. Como explicar a coexistência de perspectivas
distintas sobre a alma, como genética no Timeu, a psicopolítica da República, a antropológica no
Fedro, a funcional do Teeteto e a sincrética do Fédon?” (SANTOS, 2008, p.38).
75
permanente diálogo com suas partes que não são iguais e ainda por cima
conflituosas:
Dos cavalos, dissemos, um é bom e o outro não. Qual seja, no entanto, a
excelência do bom ou o vício do mau, não o explicamos; e convém fazê-lo
agora. Pois um dos dois, o que tem um aspecto mais belo, é direito e bem
proporcionado, pescoço alto, linha do nariz recurva, cor branca, olhos
negros, apaixonado pela glória com moderação e recato, companheiro da
opinião verdadeira e, sem necessidade que lhe bata, deixa-se conduzir
apenas pelo incitamento e pela palavra. O outro, pelo contrário, é torto,
tosco, desproporcionado, pescoço espesso e curto, nariz achatado, cor
escura, olhos glaucos, sanguíneo, companheiro da insolência e da
vanglória, orelhas pelo hirsuto, surdo, obedece a custo ao chicote e ao
59
aguilhão.
Seu movimento, como diz o mito, com os dois corcéis, é circular (247c),
assim como é o diálogo e a dialética.60 Mas não se trata de um movimento vicioso,
pois as perguntas e respostas sustentam a dinâmica necessária para que o diálogo
não transforme o assunto em um dogma, mas deixa sempre uma abertura para que
algo a mais possa ser dito, possa ser visto, possa ser relembrado, possa ser
renovado e compartilhado.
Ora bem, é neste sentido que Schuler (2011, p.12) afirma que Platão
recusa o enunciador autoritário, mas opta pela pluralidade deles.
Ora, alguém poderá dizer que essa abertura imanente à argumentação
dialógica tem em si uma conotação cética, pois esse método de investigação não se
limita a proposições fechadas e nem revelam um saber absoluto, mas considera o
discurso algo que se encontra “incuravelmente enfermo”.
Afirmamos com Sardi (1995, p.32) que o diálogo, tanto interno como
externo, emerge como um instrumento capaz de instaurar uma dimensão ética e
epistemológica ao mesmo tempo. Isso no sentido de que a ascensão para as formas
puras considera tanto o caminho individual que cada um faz como leva em conta os
interlocutores como possuidores de igual liberdade e autonomia, ou seja, todos os
59
Fedro 253d –e : τῶν δὲ δὴ ἵππων ὁ μέν, φαμέν, ἀγαθός, ὁ δ᾽ οὔ: ἀρετὴ δὲ τίς τοῦ ἀγαθοῦ ἢ κακοῦ
κακία, οὐ διείπομεν, νῦν δὲ λεκτέον. ὁ μὲν τοίνυν αὐτοῖν ἐν τῇ καλλίονι στάσει ὢν τό τε εἶδος ὀρθὸς καὶ
διηρθρωμένος, ὑψαύχην, ἐπίγρυπος, λευκὸς ἰδεῖν, μελανόμματος, τιμῆς ἐραστὴς μετὰ σωφροσύνης τε
καὶ αἰδοῦς, καὶ ἀληθινῆς δόξης ἑταῖρος, ἄπληκτος, κελεύσματι μόνον καὶ. λόγῳ ἡνιοχεῖται: ὁ δ᾽ αὖ
σκολιός, πολύς, εἰκῇ συμπεφορημένος, κρατεραύχην, βραχυτράχηλος, σιμοπρόσωπος, μελάγχρως,
γλαυκόμματος, ὕφαιμος, ὕβρεως καὶ ἀλαζονείας ἑταῖρος, περὶ ὦτα λάσιος, κωφός, μάστιγι μετὰ
κέντρων μόγις ὑπείκων.
60
“É claro que o método dialético, se tal é a sua natureza, será sempre circular.” (TRABATTONI,
2010 p. 240).
76
homens nascem capazes de sair da ignorância, embora tragam consigo, por
natureza, a surdez, a insolência e a desmesura.
Mas isso não deve ser visto como uma característica negativa, segundo
Montenegro (2010, p.454), mas como uma conquista na concepção de alma em
Platão, pois somente entendendo essa natureza se pode ajudar a alma a debruçarse sobre si mesma, já que ela é o princípio do pensamento.
Ora, esse processo de renovação circular do lógos é sempre um produzir
e reproduzir constante, assim como diz Sócrates quando fala da semeadura dos
discursos.
Todavia, cabe lembrar que esse plantio somente é feito através da
disposição dos interlocutores em estar preparados para perguntar e responder, ou
seja, a atividade dialógica consiste em produzir e reproduzir.
Na República, a alma também se apresenta como dialógica, tendo cada
parte uma função diferente, isto é, a parte racional ( tò logistikón), a parte apetitiva
(tò epithymetikón) e a parte irascível (tò thymoidés), mas formando sempre relações
que as torna una:
Uma parte, digamos, seria aquela pela qual o homem aprende, outra seria
aquela pela qual ele se irrita, mas a terceira, por ser multiforme, não
conseguimos denominar com seu nome apropriado, mas aquilo que ele tem
de maior e de mais forte em si mesmo, com este nome o chamamos:
apetitivo é como por nós ele é designado, por causa da impetuosidade dos
desejos que se relacionam com o comer, com o beber, com os prazeres do
amor e com todos os outros apetites do mesmo gênero; e o chamamos
também amigo do dinheiro, porque semelhantes desejos se satisfazem
61
sobretudo em razão do dinheiro.
É importante pontuar que a tripartição da alma na República está em
conformidade com as funções sociais e políticas do homem na polis grega e que as
características relacionadas ao passional, ao desiderativo são mortais.
A divisão da alma tanto no Fedro quanto na República admite que suas
ações nunca sejam originárias de uma mesma causa, mas de uma mesma coisa, a
alma em si. Por isso o cocheiro da carruagem alada do primeiro diálogo tem um
61
República 580 d – 581 a: τὸ μέν, φαμέν, ἦν ᾧ μανθάνει ἄνθρωπος, τὸ δὲ ᾧ θυμοῦται, τὸ δὲ τρίτον
διὰ πολυειδίαν ἑνὶ οὐκ ἔσχομεν ὀνόματι προσειπεῖν ἰδίῳ αὐτοῦ, ἀλλὰ ὃ μέγιστον καὶ ἰσχυρότατον εἶχεν
ἐν αὑτῷ, τούτῳ ἐπωνομάσαμεν: ἐπιθυμητικὸν γὰρ αὐτὸ κεκλήκαμεν διὰ σφοδρότητα τῶν τε περὶ τὴν
ἐδωδὴν ἐπιθυμιῶν καὶ πόσιν καὶ ἀφροδίσια καὶ ὅσα ἄλλα τούτοις ἀκόλουθα, καὶ φιλοχρήματον δή, ὅτι
διὰ χρημάτων μάλιστα ἀποτελοῦνται αἱ τοιαῦται ἐπιθυμίαι.
77
trabalho árduo para conduzi-la. Mas pode haver ações contrárias numa mesma
coisa?
Neste sentido podemos dizer que Platão, para conseguir explicar a
natureza do conhecimento, teve que examinar o Ser do homem e reconhecer que
este não é só razão, não é só desejo, mas a causa do pensar, em sua essência é
mista. E sendo assim, é um trabalho impossível separar nitidamente o que é racional
e irascível na psyché. Por isso dizemos com Platão que a Filosfia é uma sempre
uma tarefa, porque é sempre dialética. O pensamento e a linguagem sempre estarão
enfermos como diz Schuler, precisarão necessariamente e constantemente de um
auxílio. De que auxilia se trata? Vejamos no tópico a seguir.
3.3.
A escrita na alma e o socorro do logos
Segundo Trabattoni (2003, p.71), existe uma longa e conhecida discussão
que afirma existir no Fedro, na Sétima Carta e em alguns testemunhos indiretos uma
doutrina não escrita de Platão. A mesma, segundo essa interpretação, foi transmitida
oralmente para os discípulos que frequentavam a Academia.
Nossa intenção aqui não é criar polêmica a favor e nem contra esse tema.
Nosso objetivo é captar, a partir do diálogo, o que Sócrates quis dizer ao exigir que
se escreva na alma, pois acreditamos que tal crítica ao lógos escrito está
relacionada à retórica e não à escrita em si mesma, mas ao diálogo também que
não leva em consideração a alma do ouvinte.
Vejamos o que Platão em 276 do Fedro, a afirma: “Aquele que com
conhecimento se escreve na alma de quem aprende, esse é capaz de se defender a
si próprio e sabe falar e ficar silencioso diante de quem convém.”62
Cabe perguntar o que significa escrever na alma, para Platão? E por que
um escrito que foi elaborado levando em consideração todos os requisitos da
retórica filosófica não seria capaz de socorrer a si próprio?
Trabattoni (2003, p. 144) analisa esse passo a partir de um elemento
fundamental no processo dialético: a pergunta. Isto porque à diversidade de almas é
que determina o tipo de pergunta e esta o tipo de discurso. Ou seja, ao criticar a
retórica corrente, Sócrates estava querendo mostrar que no ensinamento dialético o
62
Fedro 276 a: ὃς μετ᾽ ἐπιστήμης γράφεται ἐν τῇ τοῦ μανθάνοντος ψυχῇ, δυνατὸς μὲν ἀμῦναι ἑαυτῷ,
ἐπιστήμων δὲ λέγειν τε καὶ σιγᾶν πρὸς οὓς δεῖ.
78
mestre vem em socorro do discípulo e pode tirar sua dúvida em particular, o que
jamais poderia acontencer num tipo de retórica de Lísias.
Szlezák (1993, p.93) admite que não há nenhuma contradição e nenhum
problema aceitar que um logos escrito possa ser socorrido por outro também escrito.
Isso porque o leitor sabe que o segundo discurso ou diálogo também precisará de
um auxílio. Ora, então sempre a linguagem irá precisar de um auxílio?
Acreditamos que Sócrates está se referindo a linguagem como um todo
quando fala em “socorro”, pois sempre o autor ou o orador poderá trazer novos e
mais sólidos argumentos para a sua tese, não é que o acontece com a palinódia?
Ora, é claro que na perspectiva dessa interpretação se trata de afirmar
que a comunicação oral é mais vantajosa que a escrita:
Uma comunicaçã oral é mais verdadeira, em geral, do que uma escrita, não
porque possa dizer coisas mais verdadeiras, mas porque pode mostrar
promover e reproduzir a verdade nas almas muito melhor do que tudo que
possa fazer o escrito. (TRABATTONI, 2003, p. 145).
Isso, todavia, não impede que aquele que tem conhecimento escreva na
alma de seu leitor ou para a alma de seu leitor? Szlezák (p.26) nos lembra de que
não é todo dicurso oral que pode socorrer a si mesmo, mas é apenas aquele que
sabe daquele que passa o ensinamento.
Isso mostra que o que está sendo criticado não é a questão da escrita ou
da oralidade, mas as condições daquele que pretende auxiliar, ou seja, o
conhecimento da alma de seu aprendiz e o saber daquilo que diz.
Neste sentido não concordamos com a interpretação de Reale (1997,
p.57) quando afirma que “a oralidade não se limita a repetir as mesmas coisas que
diz o escrito. Portanto, vai além do escrito.”
Acreditamos que o que vai além do escrito possa também ir além da
oralidade. Essa é a dinâmica do diálogo e da dialética, isto é, é uma questão de
elevar o grau da argumentação. Assim se refere Sócrates aos discursos poderem
socorrer a si mesmos:
É de fato assim, meu caro Fedro. Mas, em minha opinião, muito mais bela
se torna a ocupação nestas matérias, quando alguém, no uso da arte
dialética, toma uma alma apta e nela planta e semeia discursos com
entendimento- discursos capazes de vir em socorro de si mesmos e de
79
quem os plantou, não improdutivos mas possuidores de germes, de que
mais discursos nascem em outros temperamentos e podem tornar para
sempre essa semente imortal, e assim conceder ao seu detentor o mais alto
63
grau de felicidade que um ser humano pode ter.
A partir disso, poderemos acreditar que o fundamental em um discurso
capaz de prestar contas consigo mesmo está na sua capacidade ontológica de
verdade e não no meio de comunicação oral ou escrito. As aporias são exemplos de
que às vezes é melhor ficar em silêncio ou mudar de assunto quando não se tem
uma alma apta ou argumentos consistentes para persuadir.
Neste sentido, calar-se em um diálogo não significa falta de conhecimento
ou ocultação de um saber, mas a responsabilidade do dialético com a alma que
naquele momento é cultivada. Seria essa a grande preocupação da dialética
platônica, uma semeadura fértil e capaz, comprometida com a verdade?
3.4.
A dialética platônica e a dialética do Fedro
O desejo da personagem Sócrates no Fedro é de que o orador se torne
um dialético. Mas o que é ser dialético e o que é a dialética? Qual sua natureza? Por
que Platão se utiliza desse método? A dialética seria complementar à reminiscência
ou teria progressivamente substituído esta, como afirmam alguns teóricos?
Conforme atesta Trabattoni (2010, p. 201) Platão começou a escrever os
diálogos dialéticos após concluir a escrita da República. Neles os assuntos que
foram esboçados nos diálogos precedentes foram de fato discutidos e aprimorados,
inclusive retificada a doutrina das ideias.
Para este comentador, a dialética platônica se divide em duas partes:
uma de caráter socrático, mais aberta, com a presença de aporias e dialógica, e a
outra originalmente platônica, onde o acordo “ético-epistemológico” entre os
interlocutores funciona como ferramenta para se chegar ao conhecimento.
Sócrates fala da dialética no Fedro nos seguintes termos:
63
Fedro 276e-277 a: ἔστι γάρ, ὦ φίλε Φαῖδρε, οὕτω: πολὺ δ᾽ οἶμαι καλλίων σπουδὴ περὶ αὐτὰ γίγνεται,
ὅταν τις τῇ διαλεκτικῇ τέχνῃ χρώμενος, λαβὼν ψυχὴν προσήκουσαν, φυτεύῃ τε καὶ σπείρῃ μετ᾽
ἐπιστήμης λόγους, οἳ ἑαυτοῖς τῷ τε φυτεύσαντι βοηθεῖν ἱκανοὶ καὶ οὐχὶ ἄκαρποι ἀλλὰ ἔχοντες σπέρμα,
ὅθεν ἄλλοι ἐν ἄλλοις ἤθεσι φυόμενοι τοῦτ᾽ ἀεὶ ἀθάνατον παρέχειν ἱκανοί, καὶ τὸν ἔχοντα εὐδαιμονεῖν
ποιοῦντες εἰς ὅσον ἀνθρώπῳ δυνατὸν μάλιστα.
80
Dessas divisões e sínteses eu mesmo, Fedro, sou um apaixonado, a fim de
ser capaz de falar e pensar. E se eu julgar qualquer outro capaz de
observar a unidade e a pluralidade nascida daquela, a esse eu perseguirei
no encalço dos seus passos, como se fora um deus. Ora, aos que são
capazes de o fazer, eu chamo-lhes, pelo menos até este momento,
64
dialéticos, se os nomeio retamente ou não, um deus o sabe.
Ora, sem o método dialético Sócrates se considera uma pessoa incapaz
de pensar alguma coisa. A diferença que este guarda com a retórica segundo
Dixsaut (2001, p.11) é a de que o orador tem o livre uso da palavra, embora não
tenha compromisso de demonstrar conceitualmente aquilo que expressa, por não
ser esta a natureza desse saber.
Ora, então para pensar, segundo o Fedro, é necessário partir do princípio
de que a realidade se apresenta múltipla aos sentidos, porém faz parte de uma
unidade inteligível. Sócrates acrescenta:
E o Palamedes de Eléia, não sabemos nós que falava de tal maneira com
arte que as mesmas coisas apareciam aos ouvintes semelhantes e
dessemelhantes, unas e múltiplas, ou ainda em repouso e em movimento?
65
Ou seja, cabe, portanto ao dialético ter experiência dessas duas
realidades: o da permanência do Ser, “gênero supremo”, que é apreendida pela
parte racional da alma, e a dos entes que sofrem mudanças e transformações.
No caso do Fedro, o método usado para buscar a Forma é o da divisão
(diaíresis) e da unificação (synagogé). Ora, Sócrates retoma o discurso de Lísias
justamente para mostrar que tal escrita é sem pé e sem cabeça, não sendo possível
(dividir e juntar), ou seja, não existe um caminho discursivo que possa fazer as
ideias se ligarem numa participação, pois a escrita ou o discurso oral deve “convir
entre si e ao seu todo (264 c).” Como iremos juntar algo que não tem pé e nem
cabeça?
Para ilustrar essa necessidade da conexão entre as formas Sócrates faz
uma alusão ao epitáfio do lendário rei da Frígia, Midas:
64
Fedro 266c: τούτων δὴ ἔγωγε αὐτός τε ἐραστής, ὦ Φαῖδρε, τῶν διαιρέσεων καὶ συναγωγῶν, ἵνα οἷός
τε ὦ λέγειν τε καὶ φρονεῖν: ἐάν τέ τιν᾽ ἄλλον ἡγήσωμαι δυνατὸν εἰς ἓν καὶ ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ᾽ ὁρᾶν,
τοῦτον διώκω ‘κατόπισθε μετ᾽ ἴχνιον ὥστε θεοῖο.’ καὶ μέντοι καὶ τοὺς δυναμένους αὐτὸ δρᾶν εἰ μὲν
ὀρθῶς ἢ μὴ προσαγορεύω, θεὸς οἶδε, καλῶ δὲ οὖν μέχρι τοῦδε διαλεκτικούς.
65
Fedro 261 d: τὸν οὖν Ἐλεατικὸν Παλαμήδην λέγοντα οὐκ ἴσμεν τέχνῃ, ὥστε φαίνεσθαι τοῖς ἀκούουσι
τὰ αὐτὰ ὅμοια καὶ ἀνόμοια, καὶ ἓν καὶ πολλά, μένοντά τε αὖ καὶ φερόμενα;
81
Sou uma brônzea virgem que jaz sobre o túmulo de Midas.
Enquanto a água fluir e as grandes árvores florescerem,
eu permaneço aqui sobre essa tumba tão chorada
66
a anunciar a quem passa que Midas aqui está sepulto.
Sócrates em sua conversa com Fedro a respeito da retórica tenta mostrar
que esta precisa avançar para o método dialético, sem jamais negar sua importância
dentro da sua função que é persuadir a alma.
Ora bem, o poema de Midas tem todos os versos soltos, isto é, tanto faz
ler o primeiro quanto o último, o leitor não precisará fazer ligações, o que foge ao
preceito do método dialético, pois conforme diz Bornhem (1997, p.31), “o ser está na
relação, o ser só é na relação”.
Além dessa falta de articulação do manuscrito de Lísias, Sócrates nota
que aquele não teve o cuidado de definir o tema do discurso, que é o amor.
Caracterizar e definir tal tema parece ser tarefa um tanto complexa, por se tratar de
um assunto cuja natureza difere dos objetos sensíveis, mais fácil de determinar.
Sobre o amor é possível diversas definições, dependendo do ponto de vista, seja do
amante, seja do amado ou de nenhum dos dois casos.
E essa relação no Fedro se dá através de subidas e descidas, onde a
filosofia enquanto dialética, conta com a mistura da força e da fraqueza, mencionam
alguns intérpretes que percebem a dialética do Fedro comprometida com a realidade
do mundo e do homem.
Ora, postula Bornhein (1997, p.32) então que se podemos realizar os dois
movimentos dialéticos (synagogé e diaíresis) isso significa dizer que o Ser é móvel e
imóvel ao mesmo tempo. Porém essa conclusão nos colocaria em uma aporia, diz
ele, pois como o repouso e o movimento podem ser a mesma coisa ao mesmo
tempo?
A solução para este estudioso é o recurso da participação, isto é, da
relação e da articulação das ideias. E o Fedro parece estar o tempo todo
reclamando por essa conexão de ideias.
66
Fedro 264 e: ἔστι μὲν τοῦτο τόδε—“χαλκῆ παρθένος εἰμί, Μίδα δ᾽ ἐπὶ σήματι κεῖμαι.
ὄφρ᾽ ἂν ὕδωρ τε νάῃ καὶ δένδρεα μακρὰ τεθήλῃ,
αὐτοῦ τῇδε μένουσα πολυκλαύτου ἐπὶ τύμβου,
ἀγγελέω παριοῦσι Μίδας ὅτι τῇδε τέθαπται.” Midas
ὅτι δ᾽ οὐδὲν διαφέρει αὐτοῦ πρῶτον ἢ ὕστατόν τι λέγεσθαι, ἐννοεῖς που, ὡς ἐγᾦμαι.
82
Dixsaut menciona (2000, p.9), e com ela concordamos que essa atividade
de unir, de relacionar o uno e o múltiplo somente é possível através do discurso,
embora o dialético mude o método. Mas sem a linguagem seria impossível pensar
ou falar alguma coisa como já dissera Sócrates.
Consideramos importante notar que para os intérpretes o método dialético
aplicado por Platão no Fedro é o mesmo utilizado no Sofista e no Político, mas com
a ressalva de que o componente mítico e a presença de Eros no contexto do Fedro
permite um enriquecimento teórico todo especial em torno da paixão pelo Belo.
O método dialético da divisão e da reunião no diálogo que examinamos
tem como objetivo estabelecer uma relação necessária e inseparável entre o
sensível e o inteligível, ou seja, do fluxo da realidade, do fluxo dos modos de dizer o
Ser.
Sócrates nos dá uma pista do ofício do dialético quando diz:
É de fato assim, meu caro Fedro. Mas, em minha opinião, muito mais bela
se torna a ocupação nestas matérias, quando alguém, no uso da arte
dialética, toma uma alma apta e nela planta e semeia discursos com
entendimento, discursos capazes de vir em socorro de si mesmos e de
quem os plantou, não improdutivos mas possuidores de gérmen, de que
mais discursos nascem em outros temperamentos e podem tornar para
sempre imortal, e assim conceder ao seu detentor o mais alto grau de
67
felicidade de que um ser humano pode ter.
Sócrates é transparente em afirmar que o dialético é aquele que tem a
função de educar a psykhé, de semear discursos capazes de ter vida própria. E o
dinamismo desse discurso significa que ele está sempre correndo o risco de não
dizer a totalidade do ser, mas sempre aberto ao aperfeiçoamento, eis aqui a fonte de
sua vitalidade: nunca ser exaustivo.
Ora, desde quando falamos do diálogo, a presença da alma é constante
tanto no processo da dialética como na reminiscência, pois ela parece ser o ponto
central de todo o filosofar. Mas cabe investigar se no Fedro há alguma evidência de
que Platão tenha substituído o segundo processo pelo método dialético, pois
67
Fedro 277 a: ἔστι γάρ, ὦ φίλε Φαῖδρε, οὕτω: πολὺ δ᾽ οἶμαι καλλίων σπουδὴ περὶ αὐτὰ γίγνεται,
ὅταν τις τῇ διαλεκτικῇ τέχνῃ χρώμενος, λαβὼν ψυχὴν προσήκουσαν, φυτεύῃ τε καὶ σπείρῃ μετ᾽
ἐπιστήμης λόγους, οἳ ἑαυτοῖς τῷ τε φυτεύσαντι βοηθεῖν ἱκανοὶ καὶ οὐχὶ ἄκαρποι ἀλλὰ ἔχοντες σπέρμα,
ὅθεν ἄλλοι ἐν ἄλλοις ἤθεσι φυόμενοι τοῦτ᾽ ἀεὶ ἀθάνατον παρέχειν ἱκανοί, καὶ τὸν ἔχοντα εὐδαιμονεῖν
ποιοῦντες εἰς ὅσον ἀνθρώπῳ δυνατὸν μάλιστα.
83
segundo Trabattoni (2010, p.96) há uma tese bastante difundida de que
gradualmente a reminiscência foi substituída pelo processo dialético.
Na concepção do nosso intérprete, a tese da substituição é inaceitável na
medida em que os dois métodos assumem papéis diferentes no pensamento de
Platão. No Fedro, está claro que um dia as almas tiveram acesso às Formas, pois:
No circuito, contempla a própria justiça, contempla a sabedoria, contempla a
ciência, não a que está sujeita à gênese, nem a que difere conforme se
aplica a um ou outro dos objetos que nós agora chamamos seres, mas à
68
ciência que se aplica ao Ser que verdadeiramente existe.
De uma forma mítica a anamnese está presente no Fedro e é o
fundamento de todo e qualquer discurso que o homem pretenda estabelecer como
verdadeiro, pois as Formas são objetos do exercício dialético. Mas qual a distância
do conhecimento que resulta da dialética para o Ser que verdadeiramente existe? É
possível ao homem ter conhecimento da coisa em si? Ora, a linguagem e suas
dimensões aparecem como um instrumento capaz de enriquecer o entendimento do
homem. É ela que revela o ser do mundo e do homem. Mas segundo Sócrates não é
tão fácil chegar a esse entendimento e o risco de se perder é muito grande.
68
Fedro 247 c – 247 e: ἡ γὰρ ἀχρώματός τε καὶ ἀσχημάτιστος καὶ ἀναφὴς οὐσία ὄντως οὖσα, ψυχῆς
κυβερνήτῃ μόνῳ θεατὴ νῷ, περὶ ἣν τὸ τῆς ἀληθοῦς ἐπιστήμης γένος, τοῦτον ἔχει τὸν τόπον. ἅτ᾽ οὖν
θεοῦ διάνοια νῷ τε καὶ ἐπιστήμῃ ἀκηράτῳ τρεφομένη, καὶ ἁπάσης ψυχῆς ὅσῃ ἂν μέλῃ τὸ προσῆκον
δέξασθαι, ἰδοῦσα διὰ χρόνου τὸ ὂν ἀγαπᾷ τε καὶ θεωροῦσα τἀληθῆ τρέφεται καὶ εὐπαθεῖ, ἕως ἂν
κύκλῳ ἡ περιφορὰ εἰς ταὐτὸν περιενέγκῃ. ἐν δὲ τῇ περιόδῳ καθορᾷ μὲν αὐτὴν δικαιοσύνην, καθορᾷ δὲ
σωφροσύνην, καθορᾷ δὲ ἐπιστήμην, οὐχ ᾗ γένεσις πρόσεστιν, οὐδ᾽ ἥ ἐστίν που ἑτέρα ἐν ἑτέρῳ οὖσα
ὧν ἡμεῖς νῦν ὄντων καλοῦμεν, ἀλλὰ τὴν ἐν τῷ ὅ ἐστιν ὂν ὄντως ἐπιστήμην οὖσαν: καὶ τἆλλα ὡσαύτως
τὰ ὄντα ὄντως θεασαμένη καὶ ἑστιαθεῖσα, δῦσα πάλιν εἰς τὸ εἴσω τοῦ οὐρανοῦ, οἴκαδε ἦλθεν.
ἐλθούσης δὲ αὐτῆς ὁ ἡνίοχος πρὸς τὴν φάτνην τοὺς ἵππους στήσας παρέβαλεν ἀμβροσίαν τε καὶ ἐπ᾽
αὐτῇ νέκταρ ἐπότισεν.
84
CONCLUSÃO
As dimensões da linguagem no Fedro. Eis a nossa pretensão ao iniciar um
estudo sobre o Fedro de Platão. Ora, o caminho que a pesquisa nos conduziu foi a
de que neste diálogo há uma concepção nitidamente antropológica da filosofia que é
também diálogo.
Não podemos dizer que foi uma tarefa fácil delimitar o tema dentro desse
diálogo tão misto. Mas podemos afirmar que conseguimos chegar ao que buscamos
que foi tentar enxergar no dicurso a mistura ineliminável da razão e do desiderativo,
forças capazes e promotoras do filosofar.
Pareceu-nos que ao relacionar os conceitos escrita e memória todas as
questões tomaram a posição de oferecer muitas respostas para o que tentamos
enxegar. Pois, ao por em xeque o poder do discurso escrito, Sócrates também
estava colocando a competência da linguagem como um instrumento capaz de
educar a alma e revelar o ser das coisas e do mundo, na pauta das discussões.
O que pareceu elucidativo em nosso estudo sobre a escrita ou o discurso oral
foi que o mesmo representa um estímulo para a memória. O conceito de memória foi
uma das chaves que abriu a pesperspetiva para que entendêssemos o
conhecimento como constituinte de uma origem divina. No entanto, jamais se pode
esquecer que o homem vive no mundo das sensações, da mudança e dos
fenômenos, e isso é fundamental para que se compreenda a relação entre memória
e recordação.
Todavia, sem o entendimento de que é através da linguagem que isso tudo
acontece, não haveria como sair do ponto inicial da pesquisa. Pois, se a alma
desperta através das sensações para buscar sua origem divina, o discurso surge
como estimulante dessas reminiscências. Ou seja, o esquecimento é a fonte da
busca que dá sentido ao ser do homem no mundo. Mas é preciso estimular,
despertar a alma com imagens belas. Educar a visão para aquilo que seduz, que dá
prazer, que lembra o belo em si que um dia foi vislumbrado. Mas essa visão não
significa o olhar literal do órgão dos sentidos; significa o olhar do inteligível, do noûs,
que se alimenta e se nutre com palavras que também são imagens.
O que não podemos deixar de registrar quando mencionamos o prazer é a
tese discutida entre os interlocutores se o amor é um mal ou um bem. A tese que se
85
apresenta como aceita pelos debatedores é a de que o amor é verdadeiramente o
desejo, a força que impulsiona as almas para a busca do conhecimento, isto é,
beleza e amor se confluem no impulso irracional que gera o saber.
Embora o Fedro seja um diálogo que trate do amor de uma riqueza
incomparável, fomos seduzidos pelos discursos sobre Eros no Banquete e embora
possuam contextos diferentes, foi profícua a relação que estabelecemos entre essas
duas obras, assim como quando buscamos um suporte do conceito de alma na
República. E com isso não percebemos um erro metodológico recorrer algumas
vezes, de forma específica a outra obra.
O conceito de alma se mostrou como um eixo condutor da discussão de todo
o diálogo. Isso porque ela estava sempre relacionada com a retórica quanto com o
amor e a filosofia. Poderíamos até concordar com Trabattoni que seja a alma o tema
central do Fedro, embora ela sem eros e sem filosofia perca esse sentido.
O fato de Sócrates perceber que a alma é mista de humano e divino coloca a
atividade filosófica num patamar muito acima da retórica da época, que era o
discurso concorrente. Isso porque Platão retira a verdade do poder do sagrado, mas
deixando ainda uma referência ao divino, e coloca essa mesma verdade na
responsabilidade dos homens, não de um grupo especializado, mas para qualquer
pessoa que deseje o saber e seja bem conduzido.
Todavia, é na linguagem que o Ser se revela, e ela aparece no Fedro como
capaz de muitos sentimentos, que vá da organização racional do pensamento ao
despertar dos mais nobres e terríveis desejos. Principalmente como responsável por
provocar a desmesura.
Ora, isso significa que um discurso pode ser remédio ou veneno. O que
confirma o que diz Jaeger (2010, p.1033), que a “medicina grega se enquadra
perfeitamente dentro da antropologia platônica.” Pois Sócrates pretende no Fedro
mostrar que a linguagem é sempre uma retórica, mas nem sempre conduz para o
bem. O orador é semelhante ao médico. Sua responsabilidade é enorme, pois trata
das almas enfermas pelos logos e cuida da saúde daquelas que estão bem.
Portanto, é preciso conhecer bem o objeto, a alma. Assim como os remédios.
E ainda mais, o acompanhamento dos efeitos que o medicamento pode causar, no
caso os discursos.
86
Deve-se pensar então na amplicação do conceito de retórica que Platão
pretendeu fazer ao associar essa dimensão da linguagem com a dialética. Pois o
discurso é algo vivo, assim como um organismo. Ele se movimenta o tempo topo, é
o próprio movimento do pensamento. Mas é um movimento que precisa ser vigiado,
guiado. É um movimento semelhante ao cosmos que a alma herdou, mas que
possui a liberdade própria dos seres do mundo. Ou seja, há influências externas e
internas no homem que lhe permitem pensar de um modo ou de outro.
A retórica de Lísias se apresentou como um modo de perceber o amor. O que
Sócrates pretende mostrar é que o pensamento pode avançar, pode elevar o nível
dos argumentos, até mudar de tese. Algo que não tinha pé e nem cabeça, pode
tomar forma, pode ser reparado através do logos.
Isso vai depender dessas forças externas e internas, ou seja, das dimensões
da linguagem que irão atuar nos interlocutores no momento da discussão, no diálogo
silencioso que ao mesmo tempo se faz linguagem partilhada.
Ora, as palavras por si só não dizem nada. Elas precisam estar em relação
umas com as outras. E essa relação carrega em seu bojo um compromisso ético e
epistemológico, pois sair da multiplicidade para buscar a unidade requer partir
sempre de um horizonte comum. E esse horizonte diz respeito ao acordo que os
interlocutores estabelecem ao iniciar o processo rumo à verdade. O processo
dialético que está, antes de tudo, ligado a Eros. Isto é, cada um sente a
necessidade, a carência que possui da verdade. Mas sabe que assim como o amor,
essa vontade sempre vai ser desejo.
Todavia isso não impede que o homem avance e busque o saber na medida
do possível. A dialética do Fedro nos ensinou que as subidas para o uno e as
descidas para o múltiplo são as forças e fraquezas da caminhada rumo às Formas.
E que essa fraquesa vem da própria fragilidade do logos que, embora auxiliado às
vezes pelo silêncio, pela linguagem mítica, pelo poético, não deixa de ser incapaz de
dizer o todo do Ser. Por isso o discurso sempre precisa de um socorro, de um
auxílio, pois é impossível ao homem dizer tudo de uma coisa, mas a cada momento
de entusiámos a razão procura dizer aquilo que naquele momento é suficiente.
87
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