CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO - MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM DIREITOS SOCIAIS
E POLÍTICAS PÚBLICAS
Eliana Weber
POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORTALECIMENTO CULTURAL DO
TRADICIONALISMO GAÚCHO FRENTE À FRAGMENTAÇÃO
DO SUJEITO NA GLOBALIZAÇÃO
Santa Cruz do Sul, março de 2010
1
Eliana Weber
POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORTALECIMENTO CULTURAL DO
TRADICIONALISMO GAÚCHO FRENTE À FRAGMENTAÇÃO
DO SUJEITO NA GLOBALIZAÇÃO
Dissertação apresentada ao Curso de Pós
Graduação em Direito – Mestrado – Área de
Concentração em Direitos Sociais e Políticas
Públicas, da Universidade de Santa Cruz do Sul –
UNISC, Linha de Pesquisa Políticas Públicas de
Inclusão Social, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Direito.
Orientadora: Prof. Pós-Dra. Marli Marlene Moraes
da Costa
Santa cruz do Sul, março de 2010
2
Eliana Weber
POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORTALECIMENTO CULTURAL DO
TRADICIONALISMO GAÚCHO FRENTE À FRAGMENTAÇÃO
DO SUJEITO NA GLOBALIZAÇÃO
Esta dissertação foi submetida à avaliação do
Programa de Pós graduação em Direito –
Mestrado – Área de Concentração em Direitos
Sociais e Políticas Públicas, da Universidade de
Santa Cruz do Sul – UNISC, Linha de Pesquisa
Políticas Públicas de Inclusão Social, como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Direito.
Orientadora: Prof. Pós-Dra. Marli Marlene Moraes
da Costa
Banca Examinadora
Prof. Pós-Dra. Marli Marlene Moraes da Costa
Orientadora
Prof. Pós-Dr. Clóvis Gorczevski
Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC
Prof.
Universidade
Santa Cruz do Sul, março de 2010
3
Ao João (in memorian), pela inspiração de
qualidades e virtudes, e por me mostrar até o
último momento o que significa ser “forte”,
vendo as idéias de “beleza”, “completude” e
“possibilidade” diante de qualquer dificuldade...
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço à essência Divina, que nos momentos mais difíceis transmitiu sua
força para a superação dos obstáculos. Como frutos dela, agradeço àqueles
que cruzaram meu caminho ao longo destes últimos dois anos, e o trilharam ao
meu lado sem temer o que vinha à frente - cada um sabe a parcela de sua
contribuição, bem como o lugar que ocupa, definitivamente, em minha vida:
À minha família e ao Antônio, meu amor, pela consciência da importância desta
conquista e pela paciência enquanto eu ia em busca dela.
Ao professor João Telmo por ter sido mais que um professor, me incluindo no
rol de seus filhos do coração. Tenho certeza de que está comigo neste
momento.
À professora Marli, principalmente pela força e carinho ao me ajudar a recolher
e colar cada “caquinho” deste período de verdadeira mutação, não só
intelectual, quanto pessoal – com certeza um dos períodos mais intensos
(e bem vividos) de minha existência.
Ao professor Clóvis, pelo apoio e incentivo constantes.
À Rosana, por ter literalmente me adotado - vou levar você
no coração para a vida inteira.
Ao programa de Mestrado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul,
pelo ensino de altíssima qualidade conferido, e ao Programa Institucional de
Bolsas de Pós Graduação Stricto Sensu – BIPSS/UNISC, pelo fomento à
pesquisa realizada.
Nas pessoas da Lucy, Viviane e Maglyane, agradeço a todos os meus queridos
amigos, por não terem deixado que o cansaço e as dificuldades tomassem
vulto e me desencorajassem – sem vocês, nada disso seria possível.
Aos incontáveis (e inacreditáveis) amigos que esta vivência no mestrado - e,
principalmente, desta pesquisa - me proporcionou, mostrando que literalmente
a amizade verdadeira não conhece distâncias ou diferenças.
5
“Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a terra”
(Hino Rio-Grandense)
6
RESUMO
O tempo e as mudanças sociais provocaram significantes alterações no
Rio Grande do Sul, em seus aspectos sociais, políticos, econômicos – o
Estado deixou de ser agro-pastoril para tornar-se integrado econômica e
politicamente com os demais Estados federados e com a comunidade
internacional. No mesmo sentido, transformou-se a própria identidade gaúcha,
ganhando novas sem nunca deixar, entretanto, de manter suas raízes. O
tradicionalismo gaúcho tem assumido espaço cada vez maior no cenário
mundial, o que demonstra a importância desta análise no contexto da
globalização - a fim de se evitar a fragmentação da sua identidade, pois a
unidade cultural possui implicâncias inclusive conceito de nacionalismo e na
necessidade humana cada vez mais de “pertencimento”. Em que pese até
então a sociedade tenha se organizado praticamente sozinha na tentativa de
proteger sua cultura, a complexidade social tem exigido políticas públicas
capazes de auxiliar esta demanda, a fim de fortalecer o tradicionalismo gaúcho
e assegurar que não haja rupturas capazes de afastar a identidade do sujeito e
aumentar a sensação de insegurança hoje estabelecida. É neste ínterim que se
desenvolve a presente pesquisa, mediante a análise das necessidades e
possibilidades das políticas públicas aplicáveis ao fomento cultural, através de
uma ação estatal (administrativo/jurídica) que atenda seu objetivo.
Palavras-chave: políticas públicas – cultura – tradicionalismo – globalização –
fragmentação
7
ABSTRACT
The pass of time and social changes has promoved significant alterations in Rio
Grande do Sul, in its social aspects, politicians, economic – the State left of
being agrarian and pastoral, to become integrated economically and politically
with the others Federative States and with the entire international community.
Into the same direction, has changed the properly identity of being gaucho,
without leaving, however, to keep it with the same roots from before. The
gaucho traditionalism is assuming a bigger and bigger space in the world-wide
scene, showing the importance of this analysis in the context of the
globalization – specially to prevent the spalling of its identity, therefore the
cultural unit also means the nationalism concept, and in the human necessity of
“belonging”. Despite the society is self organized to protect its culture, the social
and global complexity has demanded public politics capable to assist this
demand, in order to fortify the gaucho traditionalism and to assure that it does
not have ruptures, capable to move away the person identity and to increase
the sensation of insecurity today established. It is in this meantime that the
present research is developed, by an analysis of the necessities and
possibilities of the applicable public politics at the cultural promotion, through a
state action (administrative/legal) that it takes care of its objective.
Keywords: public politics - culture - traditionalism – globalization - spalling
8
LISTA DE ABREVIATURAS
CTG – Centro de Tradição Gaúcha
CBTG – Confederação Brasileira de Tradição Gaúcha
DTG – Departamento de Tradição Gaúcha
FAMURS – Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul
FTG/PC – Federação da Tradição Gaúcha do Planalto Central
IPHAE – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Estadual
IPHAN – Instituto do Patrimônio histórico e Artístico Nacional
IGTF – Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore
IPTU – Imposto Predial e Territorial Urbano
LDO – Lei de Diretrizes Orçamentárias
LIC – Lei de Incentivo à Cultura
LOA – Lei Orçamentária Anual
MTG – Movimento Tradicionalista Gaúcho
MTG/RS - Movimento Tradicionalista Gaúcho do Rio Grande do Sul
MTG/SC - Movimento Tradicionalista Gaúcho de Santa Catarina
MTG/PR - Movimento Tradicionalista Gaúcho do Paraná
MTG/SP - Movimento Tradicionalista Gaúcho de São Paulo
MTG/MT - Movimento Tradicionalista Gaúcho de Mato Grosso
MTG/MS - Movimento Tradicionalista Gaúcho de Mato Grosso do Sul
NICVA – Núcleo de Cultura do Município de Venâncio Aires
PCNs - Parâmetros Curriculares Nacionais
PRONAC – Programa Nacional de Apoio à Cultura
SEDAC – Secretaria da Cultura do Estado
SMC – secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre
UNESCO – Organização das Nações Unidas pela educação, Ciência e Cultura
UTG/RJ – União Tradicionalista gaúcha do Rio de Janeiro
UTGN – União Tradicionalista Gaúcha do Nordeste
9
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
............................................................
1 O ORGULHO DA IDENTIDADE GAÚCHA
....................................
1.1 A (trans)formação cultural sul-rio-grandense
..............................
1.2 O orgulho de ser “gaúcho”: a evolução de um conceito
............
11
14
14
20
1.3 Sentimento nativista: a identificação pelo apego ao território
conquistado – dos primórdios à Revolução Farroupilha
1.4 Surge um movimento organizado
...................
30
...............................................
43
2 CULTURA E IDENTIDADE: A GLOBALIZAÇÃO E A TRADIÇÃO
GAÚCHA EM QUESTÃO
..................................................................
60
....................................................................
61
......................................................................................
61
2.1 Cultura e identidade
2.1.1 Cultura
2.1.1.1 Patrimônio cultural
2.1.2 Identidade
................................................................
66
................................................................................
69
2.2 Globalização da cultura e o risco da fragmentação
....................
74
..................................
78
...................................................
80
2.2.1 Integração multicultural e fragmentação
2.2.2 Cultura e identidade nacional
2.3 A mundialização da cultura gaúcha
............................................
2.3.1 A discussão da cultura e da identidade gaúcha
.......................
85
86
2.3.2 O tradicionalismo gaúcho diante do risco da perda da
identidade
...........................................................................................
95
2.3.2 A migração do tradicionalismo gaúcho: um mundo de
bombachas
3
........................................................................................
POLÍTICAS
PÚBLICAS
TRADICIONALISMO GAÚCHO
3.1 O direito à cultura
DE
FORTALECIMENTO
AO
........................................................
112
........................................................................
113
3.2 Tradicionalismo Gaúcho e Estado
conturbado
101
- um relacionamento
........................................................................................
117
10
3.3 Políticas públicas de fortalecimento cultural do tradicionalismo
gaúcho
..............................................................................................
3.3.1 Políticas educacionais
..............................................................
3.3.2 Inclusão social e proteção da juventude
3.3.3.2 Desapropriação
131
..................................
138
.........................................
139
.........................................................................
140
.....................................................................
147
3.3.3 Políticas de proteção ao patrimônio
3.3.3.1 Tombamento
128
3.3.4 Incentivo intelectual para uma mediação simbólica
.................
149
3.3.5 Políticas tributárias: incentivos fiscais na proteção e fomento à
cultura
...............................................................................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
153
..............................................................
162
.................................................................................
168
11
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A
presente
dissertação
tem como título
Políticas públicas de
fortalecimento cultural ao tradicionalismo gaúcho frente à fragmentação do
sujeito na globalização, desenvolvida no Curso de Mestrado em Direito da
Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, área de concentração Direitos
Sociais e Políticas Públicas, estando inserida na Linha de Pesquisa de Políticas
Públicas de Inclusão Social.
O tema central pretende analisar as políticas públicas culturais
existentes e sua eficácia e aplicabilidade ao fortalecimento da cultura gaúcha,
diante do risco de sua iminente fragmentação no contexto da globalização. A
relevância social do estudo se apresenta na medida em que se propõe uma
perspectiva de proteção cultural ao tradicionalismo gaúcho a partir do Estado,
como fomentador da iniciativa social já implementada, de forma a fortalecer
ainda mais a identidade gaúcha e o senso de pertencimento do indivíduo ao
locus social do qual faz parte, capaz de garantir maior segurança diante da
complexidade social que se verifica na globalização.
Sua relevância científica, por outro lado, se justifica à medida em que o
gauchismo tem sido considerado um fenômeno antropológico único no mundo,
pois ao passo em que as demais identidades se fragmentam - diante da cada
vez mais frequente influência multicultural-, parece estar sendo capaz de
fortalecer a própria identidade através de um movimento eficaz de resistência
a essa aculturação – o movimento tradicionalista organizado. O tema tem sido
alvo constante de estudos, principalmente nas áreas de antropologia,
sociologia (o que facilmente se pode notar pela análise das obras exploradas
para a elaboração desta dissertação), não podendo a área jurídica,
especificamente em sede de políticas públicas, deixar de oferecer sua
contribuição científica sobre este fenômeno. Isto porque as políticas públicas
encontram-se perfeitamente inseridas no mundo jurídico, que lhes dá perfil e
susentabilidade prática.
12
O primeiro capítulo, denominado O orgulho da identidade gaúcha, traz
os principais fatores de “identificação” desta cultura. Inicia retratando a
formação sul-rio-grandense, com as principais influências culturais, como a
portuguesa, indígena, negra, alemã, italiana e espanhola. Afinal, o Rio Grande
do Sul é um Estado formado por diferentes grupos étnicos, e a definição da
atual identidade sul-rio-grandense perpassa esta análise inicial das principais
capas culturais que lhe serviram de base.
Da mesma forma, tornou-se necessário tratar mais especificamente do
termo “gaúcho”, suas possíveis origens históricas e as recorrentes alterações
de seu significado, até se chegar ao ponto crucial: o orgulho de ser gaúcho que nominou o capítulo - e está fortemente ligado ao sentimento nativista.
Definido como o forte apego pela terra e pelas origens, reconhecido por um
povo cuja história mostra a luta constante pela proteção de seu próprio território
ante as frequentes invasões.
Assim, esta linha de raciocínio conduz aos
principais aportes históricos envolvidos na construção desta identidade, sem os
quais dificilmente se entenderia o contexto do gauchismo. O último conteúdo
deste capítulo traduz o surgimento e o atual estado do Movimento
Tradicionalista Gaúcho organizado, cuja força cultural não mais reconhece
fronteiras. Os espírito gaúcho, que antes lutava pela manutenção de seu
território, hoje luta pela manutenção de sua cultura.
O segundo capítulo inicia com a discussão conceitual dos termos
envolvidos - como a definição de cultura, identidade, globalização e a própria
fragmentação, iniciando sua introdução juridicizada, que será complementada
no terceiro capítulo. Contudo, por uma questão de inviabilidade teórica, não se
pretendeu apresentar conceitos definitivos, impossíveis diante da complexidade
dos movimentos sociais que dão sentidos a estes termos. Assim, cultura e
identidade, - principalmente quando inseridas na globalização - longe de serem
noções fixas e delimitáveis, tecem entre si intrincado jogo de idéias que
buscam se encaixar na definição da sociedade atual – local, regional, nacional,
global? – e da própria individualidade.
13
A constatação de que a identidade é continuamente transformada pela
intervenção multicultural provoca a noção de deslocamento desta mesma
identidade, que termina por fragmentar-se. Tal questão possui consequências
ainda maiores se aliar-se ao conceito de “identidade nacional”, considerando,
assim, que a fragmentação da identidade pode sugerir rapidamente o
enfraquecimento da própria nação. No sentido oposto desta perda identitária,
este mesmo capítulo retrata a mundialização do gauchismo, ou seja, de
“invasão” da cultura gaúcha em outros Estados federados e também no
exterior, como forma de resistência à aculturação e de busca pela manutenção
da própria identidade, de auto-definição perante a sociedade.
Por fim, o terceiro e último capítulo retrata as políticas públicas culturais
e sua aplicabilidade no fortalecimento do tradicionalismo gaúcho, iniciando pelo
aporte jurídico ao direito à cultura, levando em conta a função promocional do
direito. A construção teórica constante nos dois primeiros capítulos termina por
delinear a forma de apresentação da última parte da pesquisa, onde são
trazidas as justificativas constitucionais do direito à cultura, assim como a
análise da relação estabelecida entre Estado e o Tradicionalismo Gaúcho, ao
longo do tempo. Toda esta rede conceitual, filosófico-jurídica, é necessária
para a análise efetiva das políticas públicas capazes de fomentar a cultura
gaúcha, com a finalidade última de, através do fortalecimento da identidade,
promover o comprometimento e o desenvolvimento social.
14
1 O ORGULHO DA IDENTIDADE GAÚCHA
A cultura pode ser definida, numa concepção ampla, como uma
idiossincrasia social – ou seja, é a forma pela qual um ou mais indivíduos
vêem, interpretam e interagem com o mundo. Pode inda estar associada a
outros conceitos, como nacionalidade, etnicidade ou religiosidade. Este
conceito será melhor explorado no segundo capítulo, assim como a questão da
interferência cultural que se desenvolve a partir do contexto social globalizado,
que parece estabelecer uma interessante dicotomia: o risco de fragmentação
das identidades e, ao mesmo tempo, o surgimento de movimentos de
resistência, estabelecidos a partir da idéia central de fortalecimento de
identidades regionais.
O tempo e as mudanças sociais provocaram significantes alterações no
Rio Grande do Sul, em seus aspectos sociais, políticos, econômicos. O Estado
deixou de ser agro-pastoril para tornar-se um Estado “moderno”, urbano e
globalizado, integrado econômica e politicamente com os demais estados do
país e com a comunidade internacional. No mesmo sentido, transformou-se a
própria identidade gaúcha, ganhando novas nuances com o passar do tempo,
sem nunca deixar, entretanto, de manter suas raízes.
1.1 A (trans)formação cultural sul-rio-grandense
Os povos que não se conhecem a si mesmos,
por ignorância ou desdém de suas origens,
jamais terão definida personalidade.
(Manoelito de Ornellas)
A cultura e a identidade sul-rio-grandense, como hoje se apresentam,
são frutos de um somatório de vertentes culturais – “A identidade de um povo
resulta dos elementos culturais que lhe são inerentes. [...] É fruto da aprovação
15
que uma determinada conduta recebe no cerne do aglomerado societário”1.
Inicialmente, importa apontar o conceito de região cultural utilizado, como
sendo aquele trazido por Bellomo, designado como um “determinado espaço
geográfico em que os padrões culturais, tais como alimentação, produção,
folclore2, formação social, habitação e outros apresentam certa uniformidade”.
Para o autor, a sociedade sul-rio-grandense se apresenta modernizada e com
marcante influência européia - em razão das características de sua
colonização-, com classe média significativa e alta significação eleitoral, o que
sugere um perfil político renovador. Alimentação diversificada, bom nível
educacional e de saúde3.
O Rio Grande do Sul é um estado peculiar, especialmente em se
tratando da forma com que foi colonizado, sua localização e sua história. Sobre
este aspecto, Bellomo tece importante contribuição na análise do que
denomina “capas culturais” sul-rio-grandenses, entendendo-se capa cultural
como os diferentes elementos culturais mais ou menos articulados, resultando
na análise da cultura local feita através não só de uma região geocultural, mas
conforme a herança cultural recebida4. De acordo com o autor, no caso do Rio
Grande do Sul seriam cinco as capas culturais a serem consideradas, a saber:
A primeira é de origem portuguesa, de quem o Rio Grande do Sul
recebeu as heranças culturais das danças, músicas, comidas, lendas e mitos5.
A língua provavelmente seja o principal legado desta capa cultural. Segundo
1
ALMEIDA FILHO, Agassis. Globalização e identidade cultural. São Paulo: Conesul, 1998, p.
27.
2
ORNELLAS, Manuelito de. Folclore. In. Movimento Tradicionalista Gaúcho – MTG. MTG 40
anos: raiz, tradição e futuro – 1966-2006. Porto Alegre: MTG, 2006, p. 30. “O folclore e a
história se entrelaçam e se completam. O folclore não é somente um perfil da história. É,
muitas vezes, um índice orientador sobre a origem dos acontecimentos. A história oficial é a
relação cronológica dos fatos e fundamenta-se na opulência dos arquivos. Mas, coexistente
com as leis, os decretos, as sentenças, os diários de guerra, as proclamações, os tratados, a
biografia e a correspondência, uma outra história se escreve, sem o prestígio da imprensa e
a consagração erudita das cátedras. É a história que o povo, ator e espectador imediato,
alinhava em trovas humildes, em ritmos de danças, em romances e décimas, em frases e
sentenças que se tornam populares. É a obra comum que a todos pertence e cujo autor
ignorado jamais reivindica a paternidade gloriosa”.
3
BELLOMO, Harry Rodrigues. Capas e regiões culturais do Rio Grande do Sul. In. FLORES,
Hilda A. Hubner. Regionalismo sul-rio-grandense. Porto Alegre: Círculo de Pesquisas
Literárias/Nova Dimensão, 1996, p. 31-32.
4
Ibidem, p. 32-36.
5
Ibidem, p. 33.
16
Ornellas, em que pese os legados culturais deixados, a permanência lusitana,
em decorrência de sua “precariedade numérica”, não deixou vincos profundos,
sendo a cultura portuguesa absorvida rapidamente pelos demais hábitos e
costumes que se estabeleceram, pouco a pouco, na região. Não foram apenas
o meio e o clima os agentes da metamorfose açoriana, “mas principalmente o
novo modo de vida”, num caso de inversão de influências. Afinal, o português
“não trouxe a indumentária nem a criou nem tampouco os utensílios peculiares
ao gaúcho. Recebeu-os do gaúcho, que já existia e há muito transitava pelos
pampas da América”6. Cardoso sintetiza a história brasileira dos arquivos
portugueses como sendo a “história da costa” (litorânea), devido à escassa
penetração dos portugueses no território sul-rio-grandense7.
O pesado ilhéu, ao pouco tempo não era mais reconhecível no leste
gaúcho dominando o cavalo com a máxima destreza, trocando os
hábitos sedentários, por um viver entre o arado e as aventuras da
campanha semideserta, a índole refratária ao serviço militar, pelo
entusiasmo guerreiro, o modo de ser pacato e tranquilo, pelo de livre
8
franqueza e espontânea vivacidade .
A segunda capa seria a indígena, incluindo-se aqui os principais grupos
indígenas que já se encontravam nestas paragens antes da chegada dos
europeus, legando à cultura sul-rio-grandense, além dos termos do linguajar, a
base da alimentação, lendas, costumes, vestes, e principalmente o hábito do
chimarrão9. A capa cultural indígena é, talvez, a de que o povo sul-riograndense mais se orgulha, muito embora não tenha sido muito expressivo o
número de índios no Estado. Esta característica estaria relacionada,
provavelmente, com a reação indígena diante da escravização a que foram
submetidos, refletindo sobre eles uma aura de luta e bravura. Para Oliven,
ainda assim foi possível a apropriação de seus símbolos, para considerá-los
como sendo de identidade regional:
[...] numa das vertentes da construção da identidade sul riograndense é motivo de orgulho afirmar que no gaúcho corre sangue
de índio. É corriqueira a expressão “índio velho” utilizada de forma
6
ORNELLAS, Manoelito de. Gaúchos e beduínos: a origem étnica e a formação social do Rio
grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro, 1956, p. 27-28.
7
CARDOSO, Vicente Licínio, apud Ornellas, 1956, p. 38.
8
VARELA, Alfredo. Revoluções Cisplatinas. Porto: De Lello & Irmão Editores, 1915.
9
Bellomo, 1996, p. 33-34.
17
carinhosa em relação à figura do gaúcho. Contribui para isso, o fato
de o índio ter sido reduzido a um número mínimo e portanto ter
pouco contato com os brancos, de ele não ter sido escravizado na
mesma proporção que o negro, de ele estar associado a uma
imagem de bravura e altivez e o fato de os charruas e minuanos,
grupos que não existem mais e que habitavam a região da
Campanha no sudoeste do Rio Grande do Sul quando os ibéricos
chegaram, terem sido guerreiros e a partir da introdução do cavalo
hábeis cavaleiros, o que permite associá-los a figura valente e
altaneira do gaúcho, em permanente contato e luta com a natureza.
O recorte nesse caso se faz via cavalo, elemento emblemático do
10
gaúcho .
A capa cultural negra também foi responsável por parte do linguajar,
costumes e lendas, destacando-se entre elas a principal lenda sul-riograndense: o Negrinho do Pastoreio11. Entretanto, a identificação cultural do
povo sul-rio-grandense com os negros é basicamente insignificante, se
comparada com o que ocorre em outros Estados, como a Bahia, onde o negro
é considerado um dos formadores da identidade. No Rio Grande do Sul sua
imagem permanece em segundo plano. À mesma medida em que a luta
indígena pela liberdade provocou um realce positivo de sua imagem, a atitude
do negro no período escravista parece ter afastado seu perfil do ideal
construído pela cultura regional, que vai de encontro à aparente aceitação do
status de escravo e imediata subordinação negra ao homem branco.
Comparando com os massacres indígenas ocorridos nos embates pela
liberdade, o negro, em território brasileiro, nem sempre mostrou a mesma
irresignação, aceitando de forma muito mais pacífica esta condição 12. Neste
sentido, merece destaque, dentro das palavras de Lima, o reconhecimento da
influência negra na formação da identidade sul-rio-grandense – mas do negro
dotado de “cultura e a consciência de liberdade, distintas dos que aportaram no
Nordeste”, referindo-se claramente ao espírito de liberdade antes descrito.
De acordo com Ornellas, o baixo nível econômico das capitanias
meridionais foi o principal responsável pelo pouco afluxo de negros, que nos
primórdios da capitania foi insignificante. Quando da organização das primeiras
fazendas, diante da necessidade de cuidado mais regular das lavouras, o
10
OLIVEN, Ruben George. Cadernos de Antropologia nº 4: A polêmica identidade gaúcha.
Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1992, p. 12.
11
Bellomo, 1996, p. 34-35.
12
Oliven, op. cit., p. 08 et seq.
18
tráfico de africanos foi visto de forma um pouco mais significativa. Ornellas traz,
neste aspecto, a contribuição de Ave-Lallemant, que reconheceu este fato
como “um dos mais felizes fatôres (sic) do desenvolvimento da província”, já
que o “veneno da escravidão negra nela não penetra tão profundamente como
no Brasil do centro e mesmo do Norte”13, sendo que, pela natureza do trabalho,
“a escravidão não tomou as côres (sic) dramáticas de outras parcelas
territoriais do Brasil”14.O negro que chegou à região sul, rapidamente se
adaptou aos hábitos e costumes dos cavaleiros, inserindo na história do Rio
Grande do Sul vários negros entre os melhores domadores, laçadores e
campeiros.
Por fim, as capas culturais alemã e italiana. Ambas chegaram ao Rio
Grande do Sul com a finalidade de fugir da pobreza e das guerras que
assolavam a Europa, trazendo consigo seus instrumentos e gêneros musicais
(xote, mazurca, polca, valsa), a doceria, incluíram novos tipos de alimentos e
novas devoções religiosas à formação cultural gaúcha15. Os italianos trouxeram
consigo a força de trabalho e, principalmente, o forte conceito de união familiar,
enquanto os alemães se destacavam pelo associativismo, onde “satisfazia em
grupo as necessidades gregárias. Depois de uma semana de árduo trabalho na
roça ou oficina, nada melhor do que o encontro com um círculo mais amplo que
o
familiar”16.
Grande
parte
da
responsabilidade
da
organização
do
tradicionalismo gaúcho é decorrente desta contribuição germânica, pois o
gaúcho primário, “originário dos pampas”, era nômade, dificilmente tinha
paradeiro certo e não podia ser considerado associativista.
Nas palavras de Flores, “os diferentes grupos étnicos que entraram na
formação demográfica do Rio Grande do Sul constituem hoje um variado painel
antropológico, digno de ser conhecido para ser respeitado”17, sendo necessário
lembrar que vários outros povos se fizeram presentes na formação da
13
Ornellas, 1956, p. 25.
Ibidem, p. 26.
15
Bellomo, 1996, p. 35-36.
16
Ibidem, p. 45.
17
FLORES, Hilda Agnes Hubner. Regionalismo teuto. In. _____. Regionalismo sul-riograndense. Porto Alegre: Círculo de Pesquisas Literárias/Nova Dimensão, 1996, p. 39.
14
19
identidade sul-rio-grandense, com maior ou menor parcela de contribuição.
Conforme bem assevera Lima, este povo é
[...] a herança dos portugueses, a rudeza dos bandeirantes a
determinação dos tropeiros paulistas, a constância dos açorianos,
tudo transplantado para uma região agreste, fundido com o fatalismo
do índio e a estirpe do negro, este com a cultura e a consciência de
18
liberdade, distintas dos que aportaram no Nordeste .
Muito embora não se apresente como uma das capas culturais
aventadas por Bellomo, a cultura espanhola é influência sui generis para a
formação da identidade e da cultura sul-rio-grandense.
Para Ornellas, a
infuência espanhola, em razão da “localização dos elementos castelhanos,
fazendeiros e colonizadores, padres e fidalgos, a serviço real nas faixas da
Cisplatina e na fecunda bacia hidrográfica do Uruguai”, foi a principal
responsável pela orientação e estímulo às bandeiras paulistas na conquista do
Sul ao longo do vale do Paraná e Uruguai19. Para embasar suas alegações,
traz as palavras de Assis Brasil, que destaca que “os espanhóis dominaram por
largos espaços de tempo, em grande parte, o território da província do Rio
Grande” e de Saint-Hilaire, que registrou ter sido “depois da insurreição das
colônias espanholas que a vila do Rio Grande começou a florescer e que nela
foram construídas a maior parte das casas um tanto consideráveis que por ali
se viam em 1820” 20. O autor ainda tece interessante paralelo sobre o vestuário
de cavaleiros espanhóis e o gaúcho rio-grandense, “para descobrir, sem
esforços, o parentesco do homem ibérico com o homem de nossas fronteiras”.
Relata suas impressões afirmando ter encontrado, na Espanha, semelhanças
impressionantes entre os cavaleiros dos dois continentes:
Em Múrcia, os huertanos vestem palas listrados idênticos aos palas
gaúchos e alentejanos. Em Salamanca, vi os mozos de la Allberca
vestidos de bombachas, enfeitadas de moedas de prata nas costuras
laterais, idênticas em tudo ao modêlo (sic) das bombachas
americanas do Sul. Os cavaleiros usam ainda tiradores de duas
bandas, também feitos de couro.
18
LIMA, Jarbas. Tradicionalismo... responsabilidade social – reflexões. Porto Alegre:
Movimento Tradicionalista Gaúcho, 2004, p. 144.
19
Ornellas, 1956, p. 37.
20
Ibidem, p. 42.
20
Os garrochistas de Sevilha, encilham seus cavalos com serigotes de
duas cabeças e costumam forrá-los com pelegos. Usam também
21
tiradores de duas bandas...
A formação cultural do Rio Grande do Sul resulta de um somatório de
perfis, contribuições culturais, momentos históricos e criações - que buscaram
preencher as lacunas de uma tradição. A influência trazida pela Europa ao
Brasil – e consequentemente ao Rio Grande do Sul – se reflete em
contribuições culturais inegáveis, através dos portugueses, alemães, italianos,
espanhóis. Estes povos passaram a ocupar um território praticamente
despovoado, com pouco ou nenhum auxílio do Império sequer para sua
subsistência. A ascendência castelhana, conforme Ornellas, “emprestou uma
fisionomia inconfundível ao tipo humano das Missões e das zonas da
Campanha”; a influência paulista se voltado ao Planalto Médio e ao nordeste
do Estado; e “as lembranças profundas dos açorianos teimam e permanecem,
evocativas, na vida e feição” das cidades fluviais e marítimas”22.
Em objetivo, demonstrava-se necessário ao menos o apontamento das
principais capas culturais sul-rio-grandenses para somente depois se analisar a
formação – ou criação - da figura do gaúcho e, consequentemente, do
tradicionalismo gaúcho, reconhecido como um “case único no mundo”23, onde a
organização da sociedade, com pouca ou nenhuma influência governamental,
criou vínculos identitários que perpassam as questões territoriais e se opõe
categoricamente, em visível resistência, às demais interferências culturais. Esta
associação entre diferentes culturas e fatores históricos propícios, acabaram
por criar um tipo social específico: o gaúcho.
1.2 O orgulho de ser “gaúcho”: a evolução de um conceito
Concordam os principais autores tradicionalistas que o termo “gaúcho”
evoluiu, conforme também evoluiu a sociedade. Muitas são as possíveis
21
Ornellas, 1956, p. 270.
Ibidem, p. 24.
23
Entrevista com Manuelito Savaris, realizada em 13.10.2009, na Sede do Instituto Gaúcho de
Tradição e Folclore – IGTF - localizado à Avenida Borges de Medeiros, 1501, no Centro
Administrativo, Porto Alegre-RS.
22
21
origens do termo, como advindo de el gauchos, nominação atribuída aos
camponeses uruguaios e argentinos que significa um povo sem-fronteira - já
que vivia na região litorânea dos três países: “raça que brotou das entranhas
do pampa, na figura primitiva do peão”. O termo, assim, nasceu provavelmente
“no seio dos grupos de gaudérios errantes, mestiços, charruas, minuanos,
guaranis, jaros; mesclados com as chinas dos ranchos”.24
De acordo com Lamberty, a origem do termo não é fidedigna – entre
outros, cita Porto, para quem o termo deriva de “guahú”, de origem guaranítica,
que significa canto triste ou uivo do cão, somado à “che”, do quichua25, que
significa gente. A definição, para o historiador, seria: homem que canta triste, e
provavelmente
tenha
nascido
do
ritual
bárbaro
dos
índios,
quando
preconizavam a morte do primeiro tropeiro do Rio Grande do Sul, Padre
Cristóvão Mendonça Orelhano26.
Já para Boaventura Cavaglio, professor uruguaio também citado por
Lamberty, a origem do termo provém de “garrocha” – “uma espécie de foice
que os minuanos e charruas usavam para cortar o jarrete ou perna dos bois e
mesmo dos potros, para fazer botas garrão-de-potro”. Em razão da
nacionalidade do termo (espanhol), considerando que o indígena não
pronunciava “rr”, passou a denominar-se “gahucho”, sendo também utilizado o
termo
garrucha
para
denominar
uma
primitiva
lança
indígena,
e,
posteriormente, para determinada arma de fogo de cano bastante curto,
semelhante a um revólver.27
24
LAMBERTY, Salvador Fernando. ABC do tradicionalismo gaúcho. 4. ed. Porto Alegre;
Martins Editor, 1996, p. 12.
25
Os quíchuas são povos indígenas da América do Sul, principalmente Argentina, Chile, Peru e
Equador.
26
Lamberty, op. cit., p. 12-13. Sobre a tese do “homem que canta triste, conforme Lamberty,
op. cit., p. 12-13, O padre Cristóvão Mendonça de orelhando ao conduzir uma tropa bovina
próximo a Sant Lúcia do Piai (hoje Caxias do Sul), foi preso com seus companheiros, ferido
letalmente e arrastado pelas pedras, na cincha de um cavalo, ao som de tambores e do
canto triste dos bugres nativos. Concordamos com o autor, entretanto, ao considerar que
esta tese não é suficientemente convincente, porquanto “os primeiros camponeses a serem
chamados de gaúchos foram os gaudérios, mestiços, índios, peões, contrabandistas,
caçadores de gado, entre outros (p. 15).
27
Ibidem, p. 13.
22
Para Assunção, a origem da palavra está embasada na palavra francesa
“gauche”, pronunciada “goche”, significando coisas erradas, não direitas.
Nunes e Nunes associam o termo a palavras de ordem campeira, trazendo a
idéia de rebanhos e pastagens, decorrentes do termo persa gauchi (bonzinho),
formado por “gau” (gado) mais “chi” (sufixo diminutivo). Neste sentido, o
equivalente, em castelhano antigo, seria proveniente do termo árabe chaoúch,
que significaria tropeiro, considerando esta como a primeira transição na forma
genitiva, tendo então prevalecido o termo “gaúcho” . Neste mesmo sentido
segue o parecer de Daniel Granada, tanto pela origem árabe (chaouch) quanto
espanhola (chaucho), “igualmente significando ‘homem do campo, cavaleiro,
vaqueano, guardião das tropas’” 28.
O termo gaúcho nem sempre foi aceito pelos cidadãos sul-riograndenses, pois era considerado pejorativo, ultrajante. Fundamenta este
repúdio inicial ao termo, a tese de Leguizamon, de que a palavra derivaria de
“guacho”, a pessoa criada sem pai ou mãe, ou de “cachu”, significando
vagabundo, esperto, arteiro, astucioso. Foi neste sentido que o termo foi
utilizado em 1777, pelo Dr. José de Saldanha, para designar os ladrões que
caçavam gado chimarrão29, como era conhecido o gado livre nos campos.
Lessa traz passagem significativa deste texto de José Saldanha: “Gauches –
palavra espanhola usada neste país para designar os vagabundos ou ladrões
do campo que matam os touros-chimarrões, tiram-lhes o couro e vão vender
ocultamente nas povoações”30.
A existência deste gado selvagem atrelou-se inegavelmente ao perfil
tecido do homem do sul. O gado, segundo Pesavento, começou a abundar nos
campos após os embates entre jesuítas e bandeirantes, que perdurou até
meados de 1640, ocasião em que Portugal conseguiu expulsar os holandeses
da África e normalizar o comércio negreiro, razão pela qual os paulistas se
desinteressaram pela escravatura indígena. Os jesuítas, então, mudaram-se
para a outra margem do Rio Uruguai, deixando para trás o gado que criavam
28
Lamberty, 1996, p.13-14.
Ibidem, p. 14.
30
Lessa, 1985, p. 24.
29
23
nas reduções indígenas – os animais abandonados passaram a reproduzir-se
livremente, formando uma imensa reserva de gado, conhecida como “Vacaria
del Mar”: “Estava lançado o fundamento econômico básico de apropriação da
terra gaucha: a preia do gado xucro”31.
Somente em 1820 é que o gaúcho foi definido, por Auguste de SaintHilaire32, como “homem que vivia da carne, morava em ranchos, tinha hábitos
do chimarrão e do fumo e andava a cavalo”:
Eis um homem que apenas se nutre de carne, mora em mísero
rancho, não tem outro prazer além do fumo e do mate, e é oficial de
milícia. Mostra-se muito satisfeito; mas é de esperar-se que uma tal
existência deva reconduzir necessariamente à barbárie um povo tão
resignado. Limitar suas habilidades a saber montar cavalo, e seus
costumes a comer carne, é reduzi-los à condição de indígenas e
distanciá-los da civilização, que, nos fazendo conhecer uma multidão
de prazeres, nos força a trabalhar, a exercer nossa inteligência para
conquistá-los e por isso aperfeiçoar-nos, pois é unicamente pelo
exercício de nossa inteligência que nos aperfeiçoamos. Sou tentado
a acreditar que este homem, apesar de branco, pertence aos
habitantes desta região que tem costumes semelhantes aos
garuchos, homens de maus costumes que perambulam pelas
33
fronteiras.
Saint-Hilaire era francês e sua definição foi meramente empírica, através
de uma viagem percorrendo os pampas. De acordo com Lessa, Saint-Hilaire
ficou cerca de nove meses nas terras do sul, até meados de 1821, tendo
reconhecido a capitania como “uma das mais ricas do Brasil e uma das mais
bem aquinhoadas por natureza”:
[...] os habitantes passam a vida, por assim dizer, a cavalo, e
frequentemente locomovem-se a grandes distâncias com rapidez
suposta além das possibilidades humanas. [...]
Nesta Capitania acresce uma outra modalidade da dureza de
coração. Vivem, por assim dizer, no meio de matadouros; o sangue
31
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do Sul. 8. ed. Porto Alegre: mercado
Aberto, 1997, p. 09.
32
Cfe. ALVES, Francisco da Neves; TORRES, Luiz Henrique. Visões do Rio Grande. Rio
Grande: URG, 1995, p. 25. O francês Auguste François César Provensal de Saint-Hilaire
(1779 - 1853) foi o responsável pela primeira expedição botânica ao Rio Grande do Sul. Seu
itinerário compreendeu várias cidades sul-rio-grandenses, como Torres, Tramandaí, Viamão,
Porto Alegre, Rio Grande, Pelotas, Taim, Chuí, Quarai, Tupã Ciretã, Santa Maria, Cachoeira,
Rio Pardo. Das viagens pelo Brasil, surgiu sua mais bem organizada obra, sob o título
francês de Voyage à Rio-Grande do Sul – Brasil). O conjunto de sua obra no Brasil o tornou
membro da Academia de Ciências de Paris.
33
Lamberty, 1996, p. 14.
24
dos animais corre sem cessar ao redor deles e desde a infância se
34
acostumam ao espetáculo da morte e dos sofrimentos. [...]
No ano de 1839, Nicolau Dreys35 publicou sua Notícia descritiva sobre o
Rio Grande do Sul, ocasião em que mais uma vez se pode verificar o caráter
depreciativo do termo:
Os gaúchos estão em todas as partes onde há estâncias ou
charqueadas em que servem de peões. Parecem pertencer a uma
sociedade agine, isto é, em mulheres, tal como a dos antigos
tártaros. Pelo menos, aparecem geralmente sem mulheres e
manifestam mesmo pouca atração por elas (felizmente para seus
vizinhos). Formaram-se originalmente do contato da raça branca
com os indígenas. Sem chefes, sem leis, sem polícia, não tem da
moral social senão as idéias vulgares, e sobretudo uma espécie de
probidade condicional que os leva a respeitar a propriedade de quem
lhes faz benefício ou quem os emprega ou neles deposita confiança.
Convencido de que não lhes faltará mantimentos enquanto o laço
não faltar, o gaúcho veste-se com o estritamente necessário. Ele
parece apreciar o dinheiro menos para suprir suas decisões, que são
poucas, do que para satisfazer suas paixões ou alguns gostos
instantâneos que, como nas crianças, excitem sua cobiça
passageira. Ele quer dinheiro principalmente para jogar, tocar ou
escutar uma guitarra nalguma pulperia e, às vezes, porém com
raridade, dançar uma espécie de chula grave, que vimos praticar por
alguns. Pouca propensão parecem ter para os licores espirituosos e
a embriaguez é coisa quase nunca aparecida entre esses homens
cujas disposições taciturnas e práticas pouco se conciliam com a
36
loquacidade e movimentos desordenados da bebedice .
Em que pese as incontáveis afirmações sobre a origem terminológica da
palavra “gaúcho”, Lamberty suavisa o termo, ao referir que em essência
“gaúcho é o vaqueiro do sul – um tropeiro que canta sua terra e sua gente”. A
conotação pejorativa fora inegavelmente legada por exploradores estrangeiros,
por não compreenderem o modo de viver de um povo que vagava livremente
em busca de serviços, que caçava gado selvagem para garantir a própria
sobrevivência e não costumava fixar residência: “a origem da palavra gaúcho
nunca denegriu essa raça tão destemida. Seu sentido pejorativo foi apenas
propagandista de uma ação negativa que, revestida de poder, conquistou seus
34
Lessa, 2002,p. 132.
Cfe. Alves e Torres, 1995, p. 35. Nicolau Dreys, francês (1781-1843) permaneceu 10 anos
no Rio Grande do Sul (1818-1828). O fato de ter sido militar em seu país, facilitou sua
entrada ás forças sul-rio-grandenses, auxiliando no combate às tropas Artigas, na fronteira
com o Uruguai. Sua obra, Notícia descritiva sobre o Rio Grande do Sul, voltou-se ao traço de
um quadro descritivo, rico em informações da época da formação do estado nacional
brasileiro e da “fermentação revolucionária” que resultaria na Guerra Civil de 1835.
36
DREYS, Nicolau, apud Lessa, op. cit., p. 25-26.
35
25
domínios”. Prossegue o autor: “o cunho pejorativo da denominação serviu de
bandeira para que a raça gaúcha, nascida de uma miscigenação de nativos,
portugueses, e espanhóis, impulsionasse o sangue mestiço”, de forma que o
sangue “corcoveasse nas veias”, sempre que houvesse invasão de seus
domínios37.
Aos poucos, a história do Estado fez com que a conotação pejorativa do
termo “gaúcho” se transformasse. O ápice, provavelmente, se deu com a
Revolução Farroupilha, ocasião em que a luta versou sobre a discussão do
território e de direitos regionais, frente às armadas imperiais. Longe de possuir
cunho separatista, o objetivo da luta foi o direito de barganhar com o Império, o
que o exército farroupilha o fez até quando “vencido” 38. A Revolução
Farroupilha foi, nas exatas palavras de Coelho Souza, “brasileira nos seus
motivos”, brasileira nos seus objetivos, gaúcha só no “ímpeto e no sacrifício”,
pois visava o bem-estar da região sul, o respeito à sua dignidade e grandeza,
que deveriam estar aliados à dignidade e à grandeza do Brasil39.
Na Revolução Farroupilha, o povo “gaúcho” passou a travar embate com
as armas imperiais, chefiados por homens da mais fina educação e
intelectualidade40, verdadeiros diplomatas que em nada se assemelhavam ao
homem rude e brutal como antes era definido o termo. A República teve
duração de nove anos - proclamada em 11 de setembro de 1836 e dissolvida
em 1 de março de 1845, com o Tratado do Poncho Verde.
37
Lamberty, 1996, p. 15- 16 passim.
O termo “vencido” vem aqui disposto entre aspas, pois foge ao rigorismo da expressão: para
muitos tradicionalistas e historiadores, não pode se falar em derrota dos exércitos
farroupilhas, pois travou-se uma Convenção de Paz entre o Brasil e os Republicanos – nome
original da Paz do Poncho Verde; desta forma, tem-se que os farroupilhas foram derrotados
fisicamente, mas não moralmente, diferente do que ocorreu em similares movimentos, como
a Sabinada (1837-1838) na Bahia ou a Balaiada (1838-1841), no Maranhão.
39
LIMA, Jarbas. Tradicionalismo... responsabilidade social – reflexões. Porto Alegre:
Movimento Tradicionalista Gaúcho, 2004, p. 93-94.
40
Dentre os quais não se pode deixar de citar Bento Gonçalves, político e chefe militar;
Domingos José de Almeida, nascido em Minas Gerais, charqueador, político e administrador;
José Gomes de Vasconcelos Jardim, fazendeiro e político; Antônio de Souza Neto, também
militar e político; João Manuel de Lima e Silva, natural do Rio de janeiro, membro da Corte
Imperial e tio de Duque de Caxias; Antônio Vicente da Fontoura, comerciante, político e
diplomata; José Mariano de Mattos, político nascido no Rio de Janeiro. Dentre os
estrangeiros, merecem destaque o conde da Casa de Bologna, Lívio Zambeccari, o redatorchefe da imprensa farroupilha, Luigi Rossetti e, sobretudo, Giuseppe Maria Garibaldi, todos
os três italianos.
38
26
A Revolução marcou a consciência coletiva sul-rio-grandense, sendo a
principal alavanca da redefinição do termo “gaúcho”. A ligação do “gaúcho”
com a terra, o solo, a propriedade e as lides campeiras – definidores iniciais do
termo – somou-se ao reconhecimento de povo forte, obstinado e lutador,
resultado da Revolução Farroupilha.
Em que pese o desconforto apresentado inicialmente por alguns, é
inegável que a tradição “privilegiou determinada imagem do gaúcho: o machoguerreiro, destemido na luta contra o inimigo ou as forças da natureza, que
percorre a imensidão do campo inseparável de seu cavalo”. É com estas
palavras que Chaves inicia seu raciocínio sobre o novo sentido do vocábulo.
Prossegue afirmando que tal mudança ocorreu em meados do Século XIX, com
a nova estrutura organizacional da estância - passou a ser gerida como uma
empresa que visava o lucro – dando-se paralelamente a alteração do
significado original do termo. O “gaúcho”, assim, tornou-se um ser bifronte: o
peão/homem de estância e das lides pastoris e, ao mesmo tempo um guerreiro
viril e respeitado, sempre que for necessária a defesa da propriedade e do
território41.
Ainda aproveitando os ensinamentos de Chaves, o autor retrata a
formação deste processo dialético, à medida que o termo foi distanciado de
suas origens e passou a ser um título honroso, notabilizando-se a “perspectiva
senhorial dos grandes proprietários rurais a quem interessava diretamente
estabelecer a identidade entre o peão e o soldado, atribuindo-lhe uma aura
heróica”. Logo depois, os historiadores e escritores tomaram para si a tarefa de
transformar o gaúcho em “protagonista duma epopéia brasílica que vai das
Guerras Platinas à Campanha do Paraguai, passando pela Revolução
Farroupilha de 1835”. Nota-se, assim, o peso ideológico lançado sobre a figura
do gaúcho. Sua identidade foi construída como o campeador guerreiro,
“inserindo-o num espaço histórico no qual os tributos de coragem, virilidade,
argúcia e mobilidade são exigidos a todo momento, transportando-o ao plano
do mito”42.
41
42
CHAVES, Flávio Loureiro. História e literatura. Porto Alegre: UFRGS, 1999, p. 68-69.
Ibidem, p. 69.
27
Com o passar do tempo, o termo virou uma denominação gentílica43 dos
nascidos no Rio Grande do Sul, incluindo-se, conforme Lima, os aqui
“aquerenciados”, pessoas que fizeram deste Estado o “centro de suas
afeições”. A crítica do autor é que a abrangência gentílica não reflete,
necessariamente, a história do gaúcho, uma jornada “longa e sangrenta, uma
carga quase explosiva de paixão e luta por esta terra”. Para o autor, para se
definir o gaúcho é necessário resgatar “as marcas e os estigmas de grandeza e
bravura do gaúcho histórico, pois constituem a herança mais preciosa de
quantos a si mesmos se designam como gaúchos autênticos” 44. Lessa aponta
os primórdios da conotação gentílica do termo, ao trazer os registros do Dr.
Severino de Sá Britto, integrante da colônia gaúcha na Capital Federal, datada
do inicio do Século XX:
De alguns tempos a esta parte os nossos amáveis patrícios do Rio
de Janeiro e outros Estados, nas suas habituais gentilezas nos
alcunham de gaúchos, exatamente por darem a esta palavra uma
45
expressão de galhardia e elevação.
Este fato, entretanto, causou certo furor no próprio Rio Grande do Sul,
como pode se notar das palavras de Toscano, inseridas nas páginas do
Almanak do Rio Grande do Sul, datado de 1912 e intitulado Gaúcho, por quê?:
Por que carga d’água chamam ao nosso Estado terra gaúcha, e os
rio-grandenses , gaúchos? Gaúcho, no sentido étnico, histórico, ou
peculiar da palavra, é um tipo extinto.
Os rio-grandenses do sul não são, nunca foram gaúchos, não
descendem de gaúchos, salvo se se pode chamar gaúcho um
indivíduo só porque enverga poncho, bombachas, botas, chinelas
chapéu de aba larga e lenço ao pescoço. Salvo se se pode chamar
de gaúcho um homem só porque que doma potros, sabe lançar uma
rês, preparar a sua carne e dedilhar, enquanto espera a viola,
corando canções amorosas. Mas nesse caso é gaúcho também o
mineiro, o paulista, o cearense, que em trabalhos de idêntica
natureza envergam por comodidade os mesmos trajos e, com
46
pequenas modificações, têm os mesmos hábitos.
43
Gentílico, também chamado etnônimo, é o termo que define um indivíduo conforme o local
de seu nascimento; trata-se de um adjetivo pátrio, que ambém pode designar territórios mais
específicos, como estado, cidade ou mesmo uma localidade determinada.
44
Lima, 2004, p. 87.
45
Lessa, 1985, p. 46.
46
TOSKANO, Arthur. Gaúcho, por quê?. In. Lessa, 1985, p. 46.
28
Tamanha indignação busca embasamento na análise de que os
integrantes dos clubes gaúchos, na verdade, são citadinos de fino trato, e não
homens rudes, habituados às lides campeiras:
Os membros dos clubes gaúchos que existem no Estado são todos
homens da cidade, muito bem-educados, vivem de profissões
sedentárias, trajam, como toda a gente, à européia, comem à mesa,
em pratos sobre toalha adamascada, e servem-se para essa
delicada operação de todos os requintes e comodidades em voga.
Não revivem portanto, uma tradição, que nunca existiu, que é falsa,
porque agora, como em todos os tempos e em todos os lugares do
interior, só se dão às canseiras do campo os campeiros, os peões,
homens rudes, que fizeram aprendizagem para tal fim.
As nossas tradições são as de todos os povos colonizados por
portugueses e espanhóis. Não temos gaúchos na árvore genealógica
ou, se os temos, são em tão diminuto número que desapareceram
no conjunto.
E mais. Em nenhuma reunião ou baile familiar ou se sociedade
realizado no povoado mais modesto e perdido, na mais remota
paragem do Rio Grande do Sul – note bem – seria tolerada a
presença ou a participação de um sujeito vestido à moda chamada
gaúcha; e dado que a tolerassem por espírito de hospitalidade, esse
sujeito não se permitiria a liberdade de ir para a sala comer
churrasco à unha e dente, ou de recitar, de botas sujas de lama ou
de barba e cabelo hirsutos, qualquer dos mistifórios denominados
modinhas gaúchas.
Admitindo, entretanto, como genuinamente rio-grandense, as trovas
atoleimadas, a linguagem, os hábitos arcaicos e abalandronados,
que por aí nos atribuem, não seria caso de fazermos tudo para
esquecê-los, ou para melhorá-los, na proporção do progresso e do
desenvolvimento intelectual que porto da parte se observa, em vez
47
de formarmos associações para revivê-los e perpetuá-los?
Pela descrição de Lamberty, pode se notar que a denominação de
“gaúcho” foi, ao menos inicialmente, mais bem aceita em outros Estados do
que no próprio Rio Grande do Sul, que permanecia desconfortável com esta
denominação, em razão dos aportes históricos e conotações pejorativas que
acompanhavam o termo:
O reconhecimento do gauchismo já vinha de fora do Rio Grande do
Sul, pelos co-irmãos de outros estados, coroados do sentido de
homem de valor. Era a superação das características pejorativas do
teatino, contrabandista, vagabundo, andarilho, coureador, ladrão de
gado, etc., mas o gauchismo não era bem recebido pela elite urbana
48
do próprio Rio Grande do Sul .
47
48
Lessa, 1985, p. 46-47.
Lamberty, 1989, p. 24.
29
Hoje, permanece principalmente sua denominação gentílica, atribuída
àqueles nascidos no Rio Grande do Sul, à semelhança do “carioca” nascido no
Rio de Janeiro, do “capixaba”, original do Espírito Santo ou do “barriga-verde”,
do Estado de Santa Catarina. Mesmo que nunca tenha pisado no campo,
tocado em um cavalo, mesmo que deteste o chimarrão e nunca tenha vestido
bombachas, é muito pouco provável que um cidadão nascido no Rio Grande do
Sul, ao ser interpelado sobre sua origem, responda ser “sul-rio-grandense” ao
invés de dizer simplesmente: sou gaúcho.
Conforme Oliven, o modelo identitário que é construído quando se fala
nas coisas gaúchas está baseado num passado que terá existido na região
sudoeste do Estado do Rio Grande do Sul e na figura real ou idealizada do
gaúcho”, girando em torno deste eixo a polêmica sobre sua identidade49.
Entretanto, o que ocorre com o gauchismo é, sem duvida, intrigante, pois o
orgulho de ser gaúcho perpassa questões territoriais ou mesmo discussões
antropológicas sobre a formação/criação identitária. Se trata de verdadeiro
amor a esta identidade, seja ela herdada ou escolhida, formando-se, nas
palavras de Simon, “quase uma etnia”, sobre o que o autor conclui:
Estejam onde estiverem, os nossos irmãos do sul dizem que
continuam a se sentir gaúchos. Mesmo os que moram ali há anos,
décadas, de (sic) declaram de alma gaúcha. Eles amam o seu novo
estado, amam a terra que os recebeu, nunca querem voltar ao Sul.
Mas continuam amando profundamente o Rio Grande do Sul. Seus
filhos se sentem gaúchos, embora tenham nascido na Amazônia ou
no Nordeste. [...]
O curioso é que filhos de gaúchos, crianças e jovens nascidos em
outros estados, até mesmo aqueles que nunca viajaram ao Rio
Grande do Sul, dizem que se sentem inteiramente gaúchos. E é por
isso que eles cultivam as tradições gaúchas com uma dedicação que
supera a de muitos que vivem no sul. Sim, porque o gaúcho que
mora no Rio Grande se sente em casa. Já o que emigrou sente
saudade, uma profunda saudade que não vai jamais superar. Como
disse o jornalista Carlos Wagner, os gaúchos “formam quase uma
50
etnia .
Não se pode negar que existe o aspecto de origem geográfica ligada ao
termo, mas este fato é substancialmente refutado pelos tradicionalistas, que se
apoderam da terminologia e a elevam a uma espécie de título honroso. Para
49
50
Oliven, 1992, p. 97 et. seq.
SIMON, Pedro. A diáspora do povo gaúcho. Brasília: Senado Federal, 2009, p. 34-35
30
eles, o termo foge o significado de origem territorial, passando a designar uma
estirpe que retrata “um ser humano que existiu em vários locais, não limitados
por fronteiras políticas, nem idiomas”51. Para Savaris, “o gaúcho não é uma
etnia genética, mas se tornou uma etnia cultural”, só podendo ser denominado
gaúcho quem cultua as tradições, independentemente de sua origem territorial
ou de sua descendência. O gaúcho passou a ser não o homem campeiro, ou o
nascido no Rio Grande do Sul, mas aquele que “adota o tradicionalismo sul-riograndense
de
coração,
cultiva
suas
tradições
e
crenças,
convive
harmoniosamente em seu meio e propaga os sentimentos de patriotimo
consciente, independente de sua naturalidade". Este processo marca a última
das alterações do conceito do termo gaúcho, que “deixa de ser pejorativo ou
gentílico e passa a determinar a pessoa que segue uma tradição”52.
A discussão sobre a “criação” da identidade gaúcha será retomada no
segundo capítulo, muito embora caiba aqui iniciar seu questionamento, afinal,
considerando que não há identidades pré-concebidas (senão quando criadas
por personagens fictícios dos contos), por que razão se exige que a identidade
gaúcha o seja? As identidades européias também não sofreram mutações com
o tempo? Se a identidade do indivíduo muda conforme sua própria evolução, o
que dizer da identidade de um povo?
1.3 Sentimento nativista: a identificação pelo apego ao território
conquistado - dos primórdios à Revolução Farroupilha
Diz-se não chora o gaúcho,
Mas eu lhes garanto agora:
Falem dos pagos distantes
Vamos ver se ele não chora
(Vargas Netto)
51
52
Lima, 2004, p. 100.
Entrevista com Manuelito Savaris, realizada em 13.10.2009, na Sede do IGTF, no Centro
administrativo em Porto Alegre.
31
Conforme Savaris, o nativismo53 e a saudade são os dois sentimentos
que mantém a maioria dos CTGs, principalmente fora do Rio Grande do Sul.
Estes sentimentos, associados ao “espírito militarista sul-rio-grandense, na
conquista da terra, do espaço, mesmo antes de ser fundado o Estado” 54, estão
entre as características mais marcantes dos tradicionalistas, sendo necessário
compreender esta questão para melhor visualisar o caminho traçado pelo
tradicionalismo no mundo e a grande paixão que desperta aos que dele se
aproximam. A importância de se retratar o apego gaúcho às questões nativas,
associado à saudade de suas origens, se justifica à medida que se confunde
com a própria formação de sua identidade, bem como serve de base para a
maior parte das justificativas da mundialização do gauchismo. Sobre a
saudade, colacionamos as palavras de Oliven, no sentido de ser este
sentimento inseparável do tradicionalismo:
Há, queiramos ou não, uma aura de saudade envolvendo o
Tradicionalismo e ninguém sente saudade de quem está perto. A
saudade – e o tradicionalismo – exigem distanciamento, tanto que
este é um fenômeno tipicamente citadino, não do campo, urbano e
55
não rural”.
Como fonte desta conexão entre o gaúcho e sua terra, Lessa atribui
qualidades telúrgicas, enquanto “capacidade de sentir a presença do solo, do
chão, da gleba, amando-a amais não poder”. Retrocedendo ao tempo, vale
recordar que o próprio povo guarani (Missões, por volta de 1680), concordava
em ajudar os padres jesuítas, desde que fossem respeitadas algumas
solicitações: deveria ser-lhes dada a ração diária e a erva-mate, e que não
precisassem obedecer as ordens para usar sapatos, já que não viam nenhum
sentido em não se sentir o chão debaixo dos pés; também não compreendiam
de todo o que significava a propriedade privada em se tratando de bens
naturais56. Este perfil de associação com a natureza, tão peculiar das
53
SAVARIS, Manuelito Carlos. Rio Grande do Sul: história e identidade. Porto Alegre: MTG,
2008, p. 17. O nativismo não é um culto, como a Tradição, mas um dos valores desse culto.
Nativismo é o amor que a pessoa tem pelo chão onde nasceu, onde é nato.
54
Entrevista com Manuelito Savaris, realizada em 13.10.2009, na Sede do IGTF, no Centro
administrativo em Porto Alegre.
55
FAGUNDES, Antonio Augusto. A verdadeira história do tradicionalismo. In. FERREIRA, Cyro
Dutra. 35 CTG - o pioneiro do movimento Tradicionalista Gaúcho – MTG. Porto Alegre:
Martins, 1987, p. 13.
56
Lessa, 1985, p. 15. “Também no tocante a idéias tinham lá suas manias, mui difíceis de
dobrar. Por exemplo, não aceitavam que o céu, a terra, os rios, o avestruz, a anta, a onça, a
32
populações indígenas, permaneceu na formação da sociedade sul-riograndense, fazendo perpetuar o amor pelo solo ao qual se pertence e do qual
se tira o sustento. Na sequência deste raciocínio cultural, a história da
formação do Estado provavelmente contribuiu, em muito, para o ímpeto
nativista - o apego à terra -, tão peculiar ao povo gaúcho. Afinal, o zelo
extremado pelo próprio chão se mostra desde o início da formação do Estado.
Os problemas fronteiriços sul-brasileiros sempre foram motivos de apreensão
ao povo que aqui vivia.
O solo sul-rio-grandense era inicialmente habitado pelos índios sulinos,
especialmente Charruas, Minuanos e Guaranis, cujas características os
diferenciavam de outras tribos, principalmente quanto à duas qualidades
morais: a independência e a irreligiosidade. Sobre a primeira qualidade moral,
assenta Lima que a ação das tribos possuía “espírito desempedido (sic) de
embaraços de qualquer dependência voluntária ou forçada”, cuja ação
dependia unicamente de sua própria vontade, sem haver ligações autoritárias
entre eles – os laços niveladores de igualdade eram quebrados somente em
épocas de guerras, quando um líder era designado para a luta, retornando este
à sua posição original quando a situação se definia; já a irreligiosidade,
significava ausência de temor religioso, ao contrário do que prega o
catolicismo, ao atribuir este sentimento de existência de um ser supremo como
inerente à toda a humanidade. Sua forte compleição física correspondia
características
morais
também
significativas:
eram
“bravos,
ferozes,
indomáveis, corajosos, amigos da liberdade e essencialmente guerreiros”,
especialmente o povo Charrua, preferindo sempre “morrer a deixarem-se
dominar pelas forças dos espanhóis e pela astúcia dos missionários”57.
A trajetória de constituição territorial da região sul se retrata em um local
de constantes batalhas e conquistas territoriais, ao contrário das demais
províncias brasileiras, que viviam principalmente a saga da ocupação tranquila.
capivara, o tatu, o boi, o cavalo, pudessem ser propriedade individual de alguém. Tudo o que
havia na Terra, Deus fizera para todos. Me desculpe, seu padre, mas senti fome e comi, com
minha rica mulher, o boi manso do meu vizinho. Então você roubou o boi?! Não, que
esperança: ele, o boi, é que fugiu...”
57
Lima, 1983, p. 27-29.
33
O Rio Grande do Sul, entretanto, “realizava simultaneamente a conquista e a
ocupação”, uma vez que, quando os primeiros europeus pisaram em solo sulrio-grandense para aqui permanecer, as colonizações em outras partes do país
já eram demasiadamente antigas. Lima afirma ser uma “idiossincrasia de nossa
personalidade”, a pressa com que o Rio Grande do Sul se fez e ainda se faz,
pois este “atraso” serviu de estímulo ao rápido desenvolvimento e à busca por
condições de igualdade: “gostamos de fazer as coisas por nossa iniciativa e o
fazemos com pressa”58.
Com o Tratado de Tordesilhas - acordo estabelecido entre Portugal e
Espanha quando da “descoberta” do Novo Mundo-, a região foi legada
inicialmente ao governo espanhol, que não demonstrou interesse em
desbravar, muito menos em povoar estas terras. Assim, a integração tardia do
Rio Grande do Sul ao restante do Brasil-colonial se justifica historicamente,
uma vez que fora descoberto somente no início do século XVI, a partir de
expedições voltadas ao comércio do pau-brasil. Toda a área passou a ser
denominada “Rio Grande de São Pedro, permanecendo inexplorada por mais
de um século. O restante da América portuguesa se desenvolvia em um
contexto de acumulação primitiva de capitais, típico do antigo sistema
colonial59. A história do da Província de São Pedro foi literalmente firmada a
ferro e fogo, sendo cenário de indefinição territorial desde a destruição do
experimento jesuíta pelos bandeirantes, em meados do Século XVIII 60.
Os alicerces fundamentais do povoamento local foram estabelecidos
primeiramente com a ocupação jesuítica espanhola e seus frequentes
enfrentamentos com as bandeiras paulistas, que vinham à província na busca
de nativos para servir de escravos na produção cafeeira e açucareira. Somente
após duzentos anos do descobrimento é que chegaram os primeiros casais
açorianos61, acelerando o já gradual desaparecimento e/ou aculturamento dos
58
Lima, 2004, p. 14.
Pesavento, 1997, p. 8-9.
60
Lima, op. cit., p. 89.
61
Cfe. NUNES, Claudio Omar Iahnke. Esboço para uma terminologia da história pré-colonial do
Rio Grande do Sul. In. Alves e Torres, 2005, p. 69-70. “Pessoas originárias das Ilhas dos
Açores, que pertenciam a Portugal, de onde vieram grande número de colonizadores,
especialmente para as regiões de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, além do Uruguai.
59
34
nativos62. Sobre este período, Pesavento rememora a entrada dos jesuítas em
solo sul-rio-grandense, ocasionadas pelas constantes fugas dos bandeirantes,
que intencionavam o aprisionamento dos índios para trabalhar como escravos
na zona açucareira. Assim, em 1626, para fugirem dos paulistas, os primeiros
padres entraram neste território, estabelecendo-se na zona do “Tape”63,
significando uma dilação das missões paraguaias para o Rio Grande do Sul.
Antes disso, por volta de 1605, houve algumas tentativas de instalação de
missões jesuíticas portuguesas na região entre Mampituba e a zona de
Gravataí, muito embora não tenham deixado marcas duradouras em face da
hostilidade bandeirante e pela falta de apoio das autoridades jesuítas da
província do Brasil, com sede em Salvador64.
Lima não vê as missões jesuíticas com bons olhos, afirmando
categoricamente que elas significaram uma escravidão disfarçada dos índios,
não se podendo legar princípios de sinceridade ou vislumbrar intuito de
duração de suas atividades. “É possível que os primeiros fossem convictos e
tratassem dos selvagens com o vivo desejo de salvar-lhes as almas e os
corpos do fogo eterno”, mas que este sentimento logo foi superado pela clara
demonstração de interesse no enriquecimento da ordem à custa do sofrimento
e do maltrato indígena65. Além da questão da ocupação missionária, já
estabeleciam confrontos pela ocupação destas terras entre as próprias tribos
indígenas, seguidos de inúmeros embates entre seus pretensos ocupantes espanhóis e portugueses. Na tentativa da coroa lusitana em tomar oficialmente
as terras compreendidas entre Laguna e o Prata, a fim de consolidar seu
domínio e preservar seu comércio, foi enviada a expedição de José da Silva
Paes que, em 1737, fundou a fortaleza-presídio Jesus-Maria-José, em Rio
Grande. No ano seguinte, promoveu-se a vinda de um “regimento de Dragões
que contribuíssem para a defesa da área”, continuando, a partir de Rio Grande,
Vários autores utilizam a expressão ‘casais açorianos’ para referir-se aos colonizadores
oriundos daquelas ilhas, devido a que, em geral, migravam já com núcleo familiar definido
(homem/mulher)”.
62
Lima, 2004, p. 89-90.
63
Cfe. Pesavento, 1997, p. 8. A zona do “tape” era como se denominava a área que se
estendia pela bacia do jacuí, limitando-se, por um lado com os contrafortes das Serras do
Maré e Geral e com o Rio Uruguai, de outro.
64
Ibidem, p. 08-09.
65
Lima, 1983, p. 62-65.
35
o processo de distribuição de sesmarias, para que fosse incrementado o
povoamento. Seguiram-se as instalações de guardas avançadas em Taim e
Chuí, de forma que impedissem a aproximação castelhana66.
Pode se dizer que a província do Rio Grande teve origem nesse
presídio militar composto de duzentos soldados, porque dele foi que
mais tarde partiram os diversos núcleos que povoaram o seu interior.
[...] Não era portanto o fundamento de uma colônia, o alicerce de
uma cidade que se começava no Rio Grande; era sim a base de uma
caserna que estava fundando o brigadeiro Paes. Não havia
engajamento oficial de colonos, nem regular distribuição de terras,
de instrumentos ou de sementes para o cultivo do solo. O primeiro
cuidado do brigadeiro Paes foi fortificar a nascente povoação
espalhando os seus habitantes em guardas avançadas pela
campanha. [...] á favorável qualidade de ser o presídio composto de
homens nascidos no Brasil e já adaptados às influências do seu
meio, opunham-se à cega intervenção autoritária imprimindo nesse
67
primitivo grupo de povoadores a exclusiva qualidade militar.
Os desentendimentos entre as monarquias não cessava. Em 1750
firmou-se o Tratado de Madrid68, quando Portugal se comprometeu a entregar
à Espanha a região de Sacramento, em troca das Missões, que passariam ao
seu domínio. O objetivo era garantir a Portugal o domínio de terras contínuas
que permitissem o comércio do gado69. De acordo com Lima, este Tratado foi
pautado “com a mais louvável intenção”, onde ambas as partes procuraram
“desprender-se de pequenas ambições e de ocultos rancores tradicionais”, de
modo a honrar as práticas diplomáticas70. Esta demarcação foi interrompida
pela rebelião dos índios missioneiros que se recusavam à entrega de suas
terras, dando origem à Guerra Guaranítica (1754-1756), chefiados por Sepé
Tiarajú71. De acordo com Bento, “no Rio Grande do Sul, de 1952 a 1932, foi
desenvolvida uma doutrina militar genuína, imposta pelas características
regionais”, apontando como pioneira a resistência liderada por Sepé Tiaraju na
tentativa de evacuação do território que seria entregue a Portugal72.
66
Pesavento, 1997, p. 21.
LIMA, Alcides. A história popular do Rio Grande do Sul. 3. ed. Porto Alegre: Martins Livreiro
Editor, 1983, p. 19-20.
68
Cfe. Savaris, 2008, p. 54-55. O Tratado de Madrid é considerado o primeiro capítulo da
história diplomática brasileira, e serviu de estímulo para o envio, pela Coroa Portuguesa, de
casais açorianos com a finalidade de acelerar o povoamento.
69
Pesavento, op. cit., p. 21
70
Lima, op. cit., p. 36.
71
Pesavento, op.cit., p. 21.
72
BENTO, Claudio Moreira. Guerra à gaúcha. In. FLORES, Hilda A. Hubner. Regionalismo sulrio-grandense. Porto Alegre: Círculo de Pesquisas Literárias/Nova Dimensão, 1996, p. 127.
67
36
O tratado de 1750 não foi só um atentado à liberdade dessas
miseráveis tribos, foi também uma extorsão a todos os seus direitos.
O artigo dezesseis desse tratado mandava que dos povos da
margem oriental do Uruguai saíssem os missionários com seus
móveis e efeitos, levando consigo os índios para aldear em outras
terras de Espanha, e que os referidos índios poderiam levar também
os seus bens móveis e semoventes, e as armas, pólvora e munições
que tivessem, em cuja forma de entregariam os povos à coroa de
Portugal, com todas as suas casas, igrejas, edifícios, e a propriedade
e posse do terreno, etc., etc.
[...] os índios sentiram a enormidade da injustiça deque iam ser
vitimas. Sublevou-se naqueles espíritos rudes e incultos um tropel de
afeições fortes, que ligam o homem ao solo que o viu nascer, à terra
que o nutre, aos campos que se desdobram ao redor da choupana, e
que avivam o silêncio do crepúsculo as saudades melancólicas dos
felizes tempos de infância. Ateou-se naqueles corações de uma
sensibilidade primitiva a labareda ingênita do antigo valor indomável.
[...] Os próprios padres da Companhia foram envolvidos na fatídica
sorte dos índios. Eles mesmos colocaram-se finalmente á rente das
guerrilhas selvagens decididos a morrer diante do poder que
73
pretendia expoliá-los.
Os constantes conflitos necessitavam aumento do reforço militar na
área. Para isso, “precisava a coroa portuguesa do concurso de estancieiros
com seus homens para a defesa da terra”, sendo outorgado, aos senhores
estancieiros, poder e autoridade para tanto. Por certo, os estancieiros agiam
também no interesse privado, o que em instantes acarretou embates com os
interesses da própria Coroa74. Nesta época o gaúcho era considerado um
“soldado pronto”, pois dispunha de seu cavalo, era hábil no manuseio de facas
e outros utensílios de subsistência, destreza esta que copiara dos nativos e/ou
aperfeiçoara com o tempo e a vida campeira: “de changador, transformou-se
fácil num soldado regional”75. A força militar dos estancieiros, entretanto, era
necessária à Portugal, que se viu obrigada a não influir em seus poderes.
Tamanho
era
a
importância
militar
da
região
que
conduziu-se,
administrativamente, à elevação da Província de São Pedro à Capitania de São
Pedro:
A crescente importância militar da zona levou a que,
administrativamente, a região fosse elevada, em 1760, à condição de
Capitania – a Capitania do Rio Grande de São Pedro” –
desvinculada de Santa Catarina, com sede em Rio Grande e
76
subordinada ao Rio de Janeiro.
73
Lima, 1983., p. 38-39.
Pesavento, 1997, p. 21.
75
Bento, 1996, p. 130.
76
Pesavento, op. cit., p. 22.
74
37
A segunda tentativa de acordo entre Portugal e Espanha se deu em
1761, uma vez que a primeira fora de todo infrutífera, substituindo-se o Tratado
de Madrid pelo tratado de El Prado. Nesta época, os sete povos haviam sido
abandonados pelos jesuítas, ficando sob administração leiga espanhola,
acarretando o início da decadência das missões e a migração dos índios para o
trabalho nas estâncias gaúchas, como peões. Enquanto isto, as disputas lusohispânicas prosseguiram, com um novo ataque dos castelhanos em 1763, com
a invasão da Capitania de São Pedro pelo governador de Buenos Aires, D.
Pedro de Cevallos (ou Ceballos), que conquistou Rio Grande e estendeu o
domínio espanhol até 177677. No ano seguinte, teve lugar novo acordo entre as
duas coroas, com imposição à Portugal, por parte da Espanha, da perda da
colônia de Sacramento e das Missões, importando o tratado de Santo
Idelfonso, conforme Lima, em apenas mais uma redefinição das fronteiras78.
Surgiu,então, um período de paz que perdurou até 1801, “marcado pelo grande
desenvolvimento da economia sulina, baseada agora no charque e com o
fortalecimento dos clãs patriarcais”79.
Afastados do Império por razões topográficas, os povos do sul sempre
precisaram participar do resguardo de suas fronteiras, “vivendo com armas à
mão desde os tempos da colonização, em estado de guerra, quase
permanentemente”, o que ocasionou o desenvolvimento de costumes militares,
“demonstrando coragem fria e perseverança”80 e, sobretudo, uma noção de
pertencimento ímpar a estas terras, sobre o qual valeria a pena lutar e morrer.
Em 1801 as autoridades portuguesas conquistaram a fronteira oeste do
Rio Grande do Sul – as missões, já em visível decadência, foram conquistadas
por Manuel dos Santos Pedroso (estancieiro e soldado) e por José Borges do
Canto (desertor dos Dragões e contrabandista). Em 1807 o Rio Grande
recebeu nova promoção, tamanho era o reconhecimento de sua importância:
77
Lima, 1983, p. 41.
Lima, 2004, p. 89-90.
79
Pesavento, 1997., p. 23.
80
Lima, 2004, p. 91.
78
38
passou a ser uma Capitania Geral, independente do Rio de Janeiro,
subordinada tão somente ao vice-rei do Brasil81.
Ainda antes da independência do Brasil e da Revolução Farroupilha,
vale relembrar trecho da obra de Saint-Hilaire (1820), trazido por Lamberty, que
reconhece que os traços fortes de respeito à terra e à propriedade já se
vislumbravam de forma significativa no perfil gaúcho.
Há muita suscetibilidade no aspecto de defesa do território
doméstico. Nas Missões fui muito mal recebido pelo estancieiro
Padre Alexandre porque não cumpri certas formalidades à chegada.
Quase sempre eu mandava à frente meu criado Matias para pedir
pousada, mas também entre Cachoeira e Rio pardo me apresentei
sozinho e meu hospedeiro censurou-me acremente por ter eu, á
chegada, atravessado a cerca que separava o campo e o pátio. ‘nem
um homem mal-educado procederia assim – disse-me -; deveríeis ter
ficado fora, chamando-me e esperando que eu respondesse’.
‘respondi que não tinha intenção de ofendê-lo e consegui abrandá-lo
82
um pouco, apesar de continuar muito frio.
Lessa aponta o natural respeito gaúcho pelo solo e pela propriedade
própria e alheia, relatando que a casa grande (como era chamada a casa-sede
da estância) era destinada ao patrão, seus familiares e amigos próximos, não
devendo ninguém mais se aproximar: “Um dia o tal de Saint-Hilaire ultrapassou
o terreiro sem dar sequer “oh de casa e foi corrido a facão”83. Em contrapartida, o galpão de estância era como se denominava o local onde os peões e
demais trabalhadores se reuniam - quase exclusivamente os homens-, era o
local onde não se conhecia hierarquia: “mesmo o patrão, se ali chega, espera
sua vez na roda”84. O momento do chimarrão era (e ainda é), uma ocasião em
que todos compartilhavam a mesma bebida e se reconheciam como iguais,
acocorados ou sentados em cepos bem próximos ao chão. Saint-Hilaire ainda
relatou, em uma espécie de estudo comparado, que outros povos não
possuíam um amor por sua terra de origem tão ardoroso quanto o gaúcho:
Tenho já observado que os mineiros não são arraigados à terra
natal: nenhum hábito particular os retém, e eles não tem pesar em
sair de Minas gerais à procura de melhores situações. Mas os
81
Pesavento, 1997, p. 23-24.
LESSA, Barbosa. Rio Grande do Sul, prazer em conhecê-lo. 4. Ed. Porto Alegre: AGE
Editora, 2002, p. 130-133.
83
Lessa, 1985, p. 17.
84
Ibidem, p. 17.
82
39
habitantes desta Capitania, ao contrário, nunca emigraram. Sabem
que, fora dela, serão obrigados a renunciar o hábito de estar sempre
à cavalo e em parte alguma encontrarão tamanha abundância de
85
carne. [...]
O processo de independência do Brasil, culminado em 07 de setembro
de 1822, deu-se no período de quebra do antigo sistema colonial – acumulação
primitiva de capitais -, e, “tudo aquilo que fora mecanismo de sustentação do
colonialismo – escravismo, monopólio – tornou-se um entrave à constituição
plena do capitalismo nas economias centrais”. Surgia a fábrica moderna, a
aplicação científica e tecnológica à produção em série, e uma nova classe
burguesa de significante importância – os barões do café, considerados quase
uma segunda aristocracia brasileira:
À independência, seguiu-se o primeiro reinado, marcado pela crise
econômico-financeira herdada do período colonial (perda de
mercado dos principais produtos brasileiros) e pela instabilidade
política, quando a própria autonomia do país foi ameaçada pela
presença dos grupos burgueses favoráveis à recolonização. [...]
Este momento coincide com a ascensão do café como primeiro
produto de exportação do Brasil, reintegrando a economia nacional
nos quadros do mercado internacional. [...] No Rio Grande do Sul, o
período pós-independência foi marcado pelo desenvolvimento da
pecuária orientada para o charque, consagrando a produção
periférica e subsidiária da economia sulina, fornecedora do mercado
86
internacional brasileiro.
Os
efeitos
do
centralismo,
já
presentes
no
primeiro
reinado,
permaneceram inalterados, pois se passou a governar em função da
aristocracia cafeeira e seus interesses. Conforme Pesavento, os grandes
estancieiros sulinos sentiram-se prejudicados, pois exigiam a participação na
vida governamental e política do país. Na Guerra Cisplatina (1825-1828), pela
posse da banda oriental, o Rio Grande do Sul mobilizou-se novamente,
formando o “Exército do Sul”. A campanha militar gaúcha foi imprescindível
neste período, mas a assinatura da paz, com mediação inglesa, e, tornando-se
o Uruguai uma nação independente, o gado daquelas pastagens não mais foi
dirigido às charqueadas sul-rio-grandenses, acumulando-se ainda mais as
85
86
Saint-Hilaire, apud Lessa, 1985, p. 28.
Pesavento, 1997, p. 36.
40
tensões entre as autoridades locais e as designadas pelo centro87, eclodindo,
em 1935, a Revolução Farroupilha.
No período de dez anos, a Revolução Farroupilha fortaleceu a sensação
já histórica de defesa do território e dos interesses regionais, de forma a alterar
definitivamente o perfil do povo gaúcho perante o restante do país e o mundo.
Sem adentrar nos pormenores históricos, cabem aqui algumas ressalvas a este
respeito. A eclosão da Revolução, bem como a Proclamação da Republica Riograndense só se deram após esgotadas as tentativas de trato com o Império,
contra o centralismo que se firmava cada vez mais, em uma busca de solução
às principais demandas regionais. Neste sentido, Pesavento:
No Rio Grande do Sul, em 1835, eclodiu a Revolução Farroupilha,
que durante dez anos enfrentou o governo central. Em manifesto
lançado às “nações civilizadas” por ocasião da proclamação da
República Rio Grandense em 1938, o líder bento Gonçalves
justificou a posição assumida, enfatizando que a proclamação da
república fora o último recurso tentado ante o esgotamento das
possibilidades de entendimento com o Império. Dentro da percepção
que os “farrapos” tinham dos acontecimentos, o centro era acusado
de “má gestão dos dinheiros públicos”, de realizar gastos supérfluos
sem aparelhagem material do país (abertura de estradas, construção
de portos) e de onerar o Rio Grande do Sul com impostos, sem
indenizá-lo por danos sofridos. [...]
No tocante aos impostos, enquanto que o charque sulino era
onerado pelas altas taxas de importação sobre o sal, os pecuaristas
eram obrigados a pagar pesadas taxas sobre a légua de terra. Por
outro lado, o charque platino, concorrente do gaúcho, pagava baixos
impostos nas alfândegas brasileiras. Por trás deste tratamento
preferencial ao produto estrangeiro, que forçava a baixa d preço do
artigo rio-grandense, manifestavam-se os interesses do centro e
norte do país, que queriam comprar o alimento para seus escravos a
baixo custo. [...]
Da mesma forma, os altos comandos das tropas só eram dados a
elementos do centro, enquanto que, na realidade, era o Rio Grande
88
que sustentava a guerra.
A Revolução Farroupilha se manteve em ascensão até meados de 1939,
época que representa a mescla de amor pela terra e o espírito bélico do povo
gaúcho, apresentado por Nicolau Dreys (1839), à medida em que reconhece,
entre os naturais do Rio Grande, “um espírito de nacionalidade sumariamente
melindroso”, refletido principalmente no período de separação de Portugal,
87
88
Pesavento, 1997, 37.
Ibidem, p. 38.
41
ocasião em que, “tão ufanos do glorioso nome de brasileiros” 89, os sul-riograndenses despertavam receio aos estrangeiros que se achavam no país, os
quais evitavam, prudentemente, qualquer conflito90. Ou, como refere Oliven, “os
sul-rio-grandenses consideram-se brasileiros por opção”91, afirmando não
reconhecer o cunho separatista atribuído à Revolução.
Após um breve período de estagnação (1840-1842), iniciou-se o declínio
farroupilha. Em 1845, em nome do Império, Duque de Caxias propôs aos
farrapos a anistia, em nome de uma “paz honrosa”, onde os gaúchos obtiveram
a elevação de 25% da taxa alfandegária sobre o charque importado, o direito
de os estancieiros escolherem o próprio presidente da província (foi escolhido o
próprio Duque de Caxias), o ingresso dos farrapos ao exército brasileiro (com a
manutenção de seus postos), ficando acertado que as dívidas contraídas
seriam pagas pelo governo central92. Para Lima, a Paz do Poncho Verde foi o
principal fator de consolidação do que ele denomina de “convicção que
constitui hoje a essência do espírito tradicionalista”, traduzido no sentimento de
pertencer a duas pátrias:
O Brasil, a pátria maior, comunidade das províncias, á qual o Rio
Grande se reintegrava depois de 10 anos de luta, com a consciência
de que o fazia voluntariamente, cumprindo seu destino histórico: e o
Rio Grande, a pátria local, a comunidade regional, construída palmo
a palmo com sacrifício e o sangue dos antepassados, que
conquistaram estes campos neutrais expandindo para muito além do
Meridiano de Tordesilhas (laguna, Santa Catarina), a fronteira do
93
antigo Império Português nas Américas.
89
POZENATO, José Clemente. O regional e o universal na literatura gaúcha. In. Bertussi,
2009, p. 77. Longe de se considerar apartado do restante do Brasil, o orgulho nacionalista foi
retratado na própria literatura gaúcha, a autora transcreve parte do posicionamento de
Pozenato, que reconhece a “tradição de autonomia” da cultura regional sul-rio-grandense, em
seu elevado grau de consciência nacionalista: “A vontade de autonomia se tornara patrimônio
nacional. Rio Grande a ela se incorpora, com sua própria tradição de autonomia, feita no diaa-dia das lutas, sem as indecisões que assinalaram o período de independência brasileira.
Em outras palavras, a tradição local, feita de uma pertinaz defesa da integridade territorial e
política, havia já adquirido um grau de consciência de nacionalismo, que tornaria
desnecessária a fundamentação ideológica que se verificou no centro do país. No Rio
Grande, o espírito nacionalista era uma conquista na prática, sem necessidade de
teorização”.
90
Lima, 2004, p. 90.
91
OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo: a diversidade cultural do Brasil-nação. 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 10.
92
Pesavento, 1997, p. 39-40.
93
Lima, op. cit., p. 13.
42
O telurismo, conforme Almeida Filho, “nada mais é senão decorrência da
identidade cultural – plena ou embrionária – de um determinado povo”94. Para
Lessa, alguns fatos, analisados isoladamente, demonstram que isto se reflete
na
[...] admiração do homem por sua província, o amor consciente por
aquele pedacinho de mundo, a espontânea convocação do dia 20 de
setembro como o natalício de uma vigorosa comunidade. Na Corte
do Rio de Janeiro, em 1851 o ex-prisioneiro farroupilha prof. Pereira
95
Coruja funda a Sociedade Sul-Riograndense , para reunir a
“gauchada” saudosa da querência... E Garibaldi, vitorioso na
prolongada guerra da unificação, aguarda dois dias às portas de
Roma para que sua entrada triunfal coincida com o 20 de Setembro
96
dos farrapos e se torne, também, a data nacional da Itália!
Conta-se que Cezimbra Jacques97, um dos precursores do movimento
tradicionalista, ao pedir asilo no Rio de Janeiro, levava consigo um saquinho
com terras sul-rio-grandenses, para servir-lhe de travesseiro junto ao caixão
mortuário, solicitando a três de seus amigos, que conduzissem suas cinzas de
volta ao solo gaúcho, o que nunca chegou a ser efetivado98.
Muito embora Cezimbra Jacques, defensor de uma cultura crioula, não
tivesse forças suficientes para “entricheirar sua causa”, a atitude de levar
consigo o símbolo do apego ao solo sul-rio-grandense legou-lhe, mais tarde,
pelo próprio Movimento Tradicionalista Gaúcho - MTG, o cognome de “O
Patrono do tradicionalismo”99.
Simon também destaca o apego à terra, principalmente à terra natal,
como um dos mais fortes sentimentos que reflete o perfil do gaúcho. Em que
pese a ligação com a terra natal seja um “fenômeno mundial”, Para Simon esta
ligação é ainda mais forte quando relacionada ao povo gaúcho, forte ao ponto
deste sentimento acompanhar migrantes em suas travessias, explicando-se
94
Almeida Filho, 1998, p. 61.
A Sociedade Sul-Riograndense, hoje, leva o nome de CTG Desgarrados do Pago, mantendo
suas atividades de forma ininterrupta desde sua fundação.
96
Lessa, 1985, p. 30.
97
Cfe. Lamberty. 1989, p. 37. João Cezimbra Jacques (1848-1922), militar e ensaísta, natural
de Santa Maria, é o pioneiro da afirmação gaúcha, tendo buscado a valorização do
gauchismo, assumindo seus usos e costumes.
98
RIGÃO, Maria Helena. João Cezimbra Jacques. In. Página do Gaúcho. [S.l.; s.d.]. Disponível
em: <http://www.paginadogaucho.com.br/pers/jcj.htm>. Acesso em: 11 dez. 2009.
99
Lamberty, op. cit., p. 25.
95
43
através das palavras de Caminoto: “é como se levassem o Rio Grande nas
costas”100.
O reflexo direto deste sentimento nativista e a vontade de manutenção
da identidade, foi o surgimento de um movimento, inicialmente tímido, mas que
em seguida tomou proporções inacreditáveis. Surgiu, então, o Tradicionalismo
Gaúcho Organizado, principal forma de demonstração de signos e significados
que permearam a história da formação do Estado, uma espécie de aliança não
só entre passado e futuro, mas que tem agregado o “presente” de regiões e
sociedades totalmente distintas, unidas por uma causa, por uma crença, por
uma mesma tradição.
1.4 Surge um movimento organizado
Tradição. Nas palavras de Lamberty, tradição significa “transmitir fatos
culturais de um povo, através de suas gerações”, sejam suas lendas,
narrativas, valores espirituais ou históricos, costumes e hábitos: “É a memória
cultural de um povo. É um conjunto de idéias, usos e costumes, recordações e
símbolos, conservados pelos tempos, pelas gerações”. Seguindo este
raciocínio, atribui à tradição gaúcha o sentido de ser o “culto à memória dos
feitos de seu povo”101. É com base nesta idéia que surge o tradicionalismo
gaúcho, elevado por grande parte do povo sul-rio-grandense acima do folclore,
da tradição ou mesmo do sentimento nativista.
Neste exato sentido se expressa Louzada, para quem o tradicionalismo
gaúcho “não é folclore, mas uma coisa viva. Em qualquer lugar do Brasil as
festas são folclóricas, mas no Rio Grande do Sul são partes da vida de muitas
pessoas. O tradicionalismo é mais do que tradição, é um estilo de vida”102.
100
Simon, 2009, p 35.
Lamberty, 1989, p. 20-21.
102
LOUZADA, Hélio Damaceno. Presidente do Conselho Diretor da Confederação Brasileira de
Tradicionalismo Gaúcho – CBTG. Entrevista realizada em 17 de novembro de 2009.
101
44
O ano de 1947 foi um marco inicial do tradicionalismo gaúcho
organizado,
mas
este
período
foi
impulsionado
por
uma
série
de
acontecimentos importantes anteriores, que merecem destaque.
Os primeiros aportes mais significativos à tradição gaúcha permearam o
meio literário, destacando-se a criação da Sociedade Sul-riograndese, em
1858, que reuniu um grupo de intelectuais que se preocupava basicamente
com o folclore gaúcho. É importante destacar que este grupo pioneiro, liderado
por Antônio Álvares Pereira Coruja, foi criado no Rio de Janeiro, justamente
fora dos limites territoriais do Estado do Rio Grande do Sul, demonstrando que
desde sua origem o culto ao tradicionalismo perpassou as próprias fronteiras
geográficas.
No Rio Grande do Sul, as primeiras tentativas de organização não
fugiram da conotação intelectual, com a criação do Partenon Literário, em
1868, liderado pelo escritor José Antônio do Vale Caldre e Fião e Apolinário
José Gomes Porto-Alegre. Seus integrantes passaram a organizar bibliotecas,
tecer palestras, levantar as lendas gaúchas e incentivar as comemorações de
datas importantes. De acordo com Gonzaga, citado por Oliven,
[...] caberia aos integrantes da Sociedade Partenon o esforço para a
louvação dos tipos representativos mais caros à classe dirigente.
Sedimenta-se ali o início da apologia de figuras heróicas, alçadas à
condição de símbolos da grandeza do povo rio-grandense. Encontrase na sedição farroupilha os paradigmas de honra, liberdade e
igualdade que se tornariam inerentes ao futuro mito do gaúcho,
dissolvendo-se os motivos econômicos e as diferença entre as
classes, existentes no conflito. A configuração dos heróis não era
ainda a do gaúcho estilizado e “glamourizado”, mas o vetor
encomiástico já se fazia presente. Compreende-se a apologia em
função do surgimento nas cidades, em especial Porto Alegre, de
jovens “ilustrados” – oriundos dos setores intermediários – que
103
queriam usar as “belas letras” como alavanca para sua escalada .
Ambas as iniciativas possuíam perfil elitista, atingindo pouco ou nada a
maior parcela da população. Somente no ano de 1898 é que uma iniciativa se
afastou do cunho literário, e tomou forma semelhante ao que hoje se encontra
no movimento organizado. Tratava-se do Grêmio Gaúcho de Porto Alegre, que
103
Oliven, 2006, p. 99.
45
trazia como bandeira a “defesa das Tradições Gaúchas, em sua arte, lutas,
usos e costumes”, destacando-se, entre seus fundadores, o santa-mariense
João Cezimbra Jacques. Conforme Lamberty, o Grêmio Gaúcho foi o
responsável pela realização do primeiro desfile de cavalarianos em Porto
Alegre, realizar ciclos de palestras e promoções, “visando um calendário de
comemorações, ordenamento dos usos e costumes e a redescoberta das
danças gaúchas”104.
Cabe esclarecer que a iniciativa de Jacques não foi, entretanto, original
no sentido de prestigiar as lides campeiras, pois já havia no Uruguai uma
associação para este fim, denominada Sociedade Crioula105. De acordo com
Oliven, esta formação foi marcada por um desfile de aproximadamente 250
cavalarianos, “vestidos como gaúchos”, que rumaram ao centro de Montevidéu
e concluíram o encontro com um churrasco, oportunidade em que fora
anunciado publicamente que no mês anterior havia sido criada a Sociedad
Criolla, pronunciando-se juramento solene e discurso sobre a proposta do
movimento106.
De acordo com Jacques, diferente da Sociedade Crioula, o Grêmio
possuía outro foco, à medida que era
[...] uma associação destinada a manter o cunho de nosso glorioso
estado e consequentemente as nossas grandiosas tradições
integralmente por meio de comemorações regulares, dos
acontecimentos que tornaram o sul-riograndense um povo célebre
diante, não só da nossa nacionalidade, como do estrangeiro; por
meio das solenidades ou festas que não excluem os usos e
costumes, os jogos e diversões do tempo presente; porém, figurando
nelas, tanto quanto possível, os bons usos e costumes, os jogos ou
diversões do passado; por meio de solenidades que não só
relembrem e elogiem acontecimento notável a comemorar, pelo
verbo ou pelo discurso, como por meio da representação de atos,
tais como canções populares, danças, exercícios e mais práticas
dignas, em que os executores se apresentem como traje e utensílios
107
portáteis, tais como os de usos gauchescos .
104
Lamberty, 1989, p. 24.
JACQUES, João Cezimbra. Assuntos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Erus, 1979, p. 66.
106
Oliven, op. cit., p. 103
107
Jacques, op. cit., p. 58.
105
46
Em que pese o Partenon Literário ter exaltado a temática gaúcha através
da literatura e o Grêmio Gaúcho ser uma agremiação tradicionalista voltada às
tradições através da promoção de festas, desfiles e palestradas, dois aspectos
lhes foram comuns: o primeiro diz respeito às origens dos participantes de
ambas as associações, compostas por pessoas de origens modestas, “não
detentoras de terras ou de capital, e que encontram na atividade intelectual
uma forma de ascensão e inserção no quadro de poder”; o segundo aspecto
similar, é que ambas as associações estavam “preocupadas com a questão da
tradição e da modernidade” 108. Oliven complementa:
O Partenon ao mesmo tempo em que tem como modelo literário a
Europa culta e aquilo que se imaginava que ela oferecia de mais
avançado, evoca a figura tradicional do gaúcho e louva seus valores
que estavam sendo abalados. O Grêmio Gaúcho, nas palavras de
seu fundador, procura manter as tradições sem excluir os costumes
do presente. Nas duas associações encontramos como pano de
fundo um estado da federação que começa a transformar-se, na qual
109
a tensão entre o passado e o presente começa a se fazer sentir .
De acordo com o MTG, depois do Grêmio Gaúcho de Porto Alegre
surgiram, no Estado, várias outras entidades – grêmios, clubes, sociedades-,
voltadas ao culto do gauchismo. Entretanto, “essas entidades não resistiam ao
tempo e ao avanço das culturas de outros povos, vindo a perecer ou a desviar
seus objetivos originais”110.
Em 1910, João Simões Lopes Neto111 somou-se aos quadros
tradicionalistas, auxiliando Jacques na valorização do “gauchismo”112. Foi
Lopes Neto quem primeiro se preocupou em levar o gauchismo às escolas,
através da publicação de Cancioneiro guasca, que compilava as quadrinhas
comuns nas campanhas113.
108
Oliven, 2006, p. 101.
Ibidem, p. 101.
110
Movimento Tradicionalista Gaúcho, 2006, p. 09.
111
Cfe. Lamberty, 1989, p. 37. João Simões Lopes Neto, jornalista, teatrólogo, contista e
folclorista, natural de Pelotas, proferiu fervorosos pronunciamentos nas principais cidades do
Rio Grande do Sul, pregando a valorização do gauchismo, seus usos e costumes, em
socorro dos ideais de João Cezimbra Jacques.
112
Cfe. Savaris, 2008, p. 21. O gauchismo foi uma espécie de Liga de Defesa Nacional em
âmbito sul-rio-grandense e pretendia, fundamentalmente, a comemoração das datas cívicas.
Chegou a ter uma meia dúzia de agremiações, que, ou tiveram vidas efêmeras ou, ao cabo,
descambaram para a vala comum dos clubes recreativos.
113
LOPES NETO, João Simões. Cancioneiro guasca. Porto Alegre: Sulina, 1999.
109
47
Mais especificamente em 1947, um grupo de estudantes, liderados por
João Carlos Paixão Cortes114 e Luiz Carlos Barbosa Lessa115, fundou o
Departamento de Tradições Gaúchas junto ao Grêmio Estudantil Júlio de
Castilhos, em porto Alegre, instituindo a Chama Crioula e as comemorações
farroupilhas como forma de manifestar sua própria tradição e aproximar a
imagem de galpão do interior à realidade citadina.
O Departamento destinava-se a estimular o desenvolvimento
cultural, por meio de reuniões sociais e recreativas. Era um
movimento estudantil com alunos de diversas camadas sociais e
segmentos étnicos, que levantava-se e favor das traições. O objetivo
era achar uma trilha diante da perda da fisionomia regional;
combater a descaracterização; reagauchar o Rio Grande. Em suma:
116
procuravam a identidade da terra gaúcha .
O perfil do movimento tradicionalista ainda permanecia voltado aos
integrantes dos segmentos escolarizados, conforme sustenta Lessa, ao retratar
a ocasião em que Paixão Cortes “encilhou os primeiros ‘pingos’ na capital. E
acendeu a primeira Chama Crioula. E realizou a primeira ronda crioula. A
primeira Semana Farroupilha” 117. Estas passagens citadas por Lessa merecem
melhor destaque. No ano de 1947, Paixão Cortes, que dirigia o Grêmio
Estudantil, procurou o Presidente da Liga de Defesa Nacional, major Darcy
Vignoli, e manifestou sua vontade de retirar uma centelha do Fogo Simbólico
da Pátria. Assim, antes de o fogo extinguir-se no dia 07 de setembro, a chama
foi transportada até o Colégio Júlio de Castilhos, oportunidade em que foi
aceso o primeiro candeeiro típico. O candeeiro foi depositado em um altar
cívico, construído para a comemoração da Ronda Gaúcha, precursora esta da
Semana Farroupilha118.
Desta forma, a primeira fase literária iniciou a ser suplantada por uma
fase de vivência da tradição, havendo uma convocação aos gaúchos
114
Cfe. Lambery, op. cit., p. 38. João Carlos Paixão Cortes (1927 -), pesquisador, folclorista,
cantor, ensaísta, natural de Santana do Livramento, foi o responsável pela redescoberta de
grande parte das danças gaúchas e suas coreografias, contribuindo significantemente com o
engrandecimento da tradição e do folclore gaúchos.
115
Cfe. Lambery, 1989, p. 39. Luiz Carlos Barbosa Lessa (1929-2002), advogado, jornalista,
historiador, compositor, contista e romancista. Natural de Piratini, dedicou sua vida ao
tradicionalismo, sendo considerado sua maior autoridade.
116
Movimento Tradicionalista Gaúcho, 2006, p. 10.
117
Lessa, 1985, p. 57.
118
Movimento Tradicionalista Gaúcho, 2006, p. 12.
48
residentes na capital, que, mesmo tendo hábitos citadinos, “guardam ainda nas
veias o sangue forte da terra rio-grandense”119. No mesmo ano, a Liga da
defesa Nacional incluiu, na programação comemorativa da Semana da Pátria,
o traslado dos restos mortais do segundo homem da revolução Farroupilha,
General David Canabarro, de Santana do Livramento para Porto Alegre.
Formou-se,
para
tanto,
uma
guarda
de
honra
composta
por
uma
“representação de gaúchos tipicamente trajados, que traduzisse a alma da
terra e o espírito farroupilha”. Paixão Cortes, somado a dois alunos da Escola
Julio de Castilhos e mais cinco participantes (conseguidos com muito custo,
pois “ninguém queria passar o ‘vexame’ de aparecer de a cavalo na cidade”)
acompanharam os restos mortais do herói farroupilha.120 O ato simbólico do
“Grupo dos Oito” - como ficaram conhecidos-, significou “um ritual de
passagem fundamental e como mito de criação do Movimento Tradicionalista
Gaúcho”121.
Lessa, citado por Oliven, relatou que “ver oito rapazes, no centro de
Porto Alegre, vestidos à gaúcha criava tanto impacto quanto descerem, hoje na
Praça da Alfândega, marcianos num disco voador”; foi nesta “aparição” que
Lessa conheceu Cortes, passando a também fazer parte do Grêmio Estudantil
do “Julinho”122.
Neste mesmo tempo, outro movimento tomava vulto – a formação de
uma entidade, com 35 membros, liderada por Glaucus Saraiva e Hélio José
Moro, que objetivava reverenciar a epopéia de 1835 e fazer brotar “a
consciência de um movimento cívico, social, desportivo e patriótico”, bem como
a “afirmação da defesa de seus valores históricos e sociais” 123.
Segundo Oliven, a formação literária de Barbosa Lessa foi fortemente
influenciada pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde iniciou o
curso de Direito, sob instrução do sociólogo Donald Person e pelo antropólogo
119
Lessa, 1985, p. 57.
Movimento Tradicionalista Gaúcho, op. cit., p. 13
121
Oliven, 2006, p. 106.
122
Ibidem, p. 108-109.
123
Lamberty, 1989, p. 26-28.
120
49
Ralph Linton, sendo que “ambos autores estavam preocupados com os efeitos
do crescimento da população, com as consequências da urbanização e as
modificações que ocorrem na família e no grupo local”. Ao redigir a tese-matriz
do Tradicionalismo, Lessa aplicou as teorias norte-americanas de Person e
Linton, demonstrando na prática que o conhecimento acadêmico pode se
tornar sendo comum: “Nesse sentido, o Movimento Tradicionalista Gaúcho é,
sem sabê-lo, um dos maiores difusores das idéias das ciências sociais norteamericanas da década de quarenta”, pois “inicia enfatizando a importância da
cultura, transmitida pela tradição, para que uma sociedade funcione como uma
unidade”124.
Enquanto isto, no interior do estado outras entidades se formavam. Após
a criação do 35 CTG, em 1948, na capital gaúcha, as associações seguintes se
firmaram no interior do Estado. O segundo CTG foi o Fogão Gaúcho (Taquara,
1948), seguido do CTG Minuano (Iraí, 1949), CTG 35 (Palmeiras das Missões,
1950); Ressurgimento da União Gaúcha (Pelotas, 1950), CTG Bento
Gonçalves (Itaqui, 1951), entre outros. Somente no ano de 1953 é que outro
CTG foi fundado na Capital, a Sociedade Tradicionalista estância da Amizade,
sendo a décima nona entidade tradicionalista a ser concretizada. Ao longo de
apenas seis anos, quase quarenta CTGs foram criados no Rio Grande do Sul,
todos sob o fundamento de cultivar a história e a tradição sul-rio-grandense125.
Este foi um período crítico com relação às tradições gaúchas, pois
coincidiu com o término da Segunda Guerra Mundial e com a nova tendência
de americanização mundial de hábitos, produtos e ideologias, em meio à
“geração coca-cola” ao jazz, ao rock e ao jeans”126.
Neste período, a
sociedade gaúcha negava as próprias tradições e costumes enquanto tentava
“modernizar-se” à americana.
Recorda Golin que neste momento houve uma certa divergência entre
os dois movimentos, Enquanto Barbosa Lessa e Paixão Cortes procuravam
124
Oliven, op. cit., p. 115-116.
Movimento Tradicionalista Gaúcho, 2006, p. 24.
126
Ibidem, p. 09.
125
50
popularizar o tradicionalismo, Hélio José Moro e Glaucus Saraiva mantinham
concepções mais míticas, pregando uma organização integrada tão somente
por 35 pessoas, materializando a data máxima do Rio Grande 127. Explicitando
este primeiro embate, Lessa e Cortes assim dispuseram o ocorrido:
Defrontam-se então duas correntes: a do Colégio Julio de Castilhos,
que pretendia um movimento aberto, de proselitismo e de expansão
popular, e a de Hélio José Moro e Glaucus Saraiva [...] que
propugnavam por uma associação relativamente esotérica, fechada,
de alto valor cívico-mítico, limitada aos trinta e cinco sócios iniciais e
128
seus futuros e eventuais substitutos .
Após encontros mediadores, prevaleceu a idéia de que o movimento não
poderia permanecer fechado a pequeno grupo de seguidores. A fusão dos dois
movimentos culminou na criação do primeiro Centro de Tradições Gaúchas,
doravante denominado CTG, de forma organizada:
A finalidade do 35 CTG foi assim expressa: a) zelar pelas tradições
do Rio Grande do Sul, sua história, suas lendas, canções, costumes,
etc. e consequente divulgação pelos Estados irmãos e países
vizinhos; b) pugnar por uma sempre maior elevação moral e cultural
do Rio Grande do Sul; c) fomentar a criação de núcleos
tradicionalistas no estado, dando-lhes todo o apoio possível. O
centro não desenvolverá qualquer atividade político-partidária, racial
129
ou religiosa.
A vestimenta gaúcha como hoje é conhecida foi uma espécie de
“supressão de lacunas” do passado. Fragmentos, usos e noções dos
vestuários, passados tão somente de pai para filho, era o que os
tradicionalistas tinham em mãos. O termo pilcha (dinheiro ou objeto de uso
pessoal dotado de valor pecuniário) foi utilizado pela primeira vez em 1948, em
uma reunião de tradicionalistas, opinião do Secretario Antonio Cândido:
“Vamos oferecer ao patrão de honra paixão um churrasco, ao qual a indiada
deverá vir toda pilchada. E esse invento colou”130.
127
Golin, 1983, p. 53.
LESSA, Luiz Carlos Barbosa; CORTES, João Carlos D’Ávila Paixão. Danças e andanças da
tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975, p. 88.
129
Laberty, 1989, p. 27.
130
Lessa, 1985, p. 64.
128
51
Em 1949, Paixão Cortes e Barbosa Lessa, representando o 35 CTG,
junto com representantes do Clube Farrapos - da Brigada Militar-, trataram de
organizar uma representação brasileira à comemoração do Dia da Tradição,
que seria realizada em Montevidéu, Uruguai. Esta visita estabelece significante
marco na tradição gaúcha, com o surgimento das danças tradicionalistas, que
até então eram praticamente inexistentes, como se pode notar do relato
pessoal de Lessa:
Paixão Cortes e eu voltamos de Montevidéu decepcionados com a
pobreza de nossos temas musicais e coreográficos de cunho
tradicional. Aqui chegados, fizemos um levantamento preliminar e
nos certificamos que – em contraste com o vivo folclore nordestino,
por exemplo – pouco ou nada nos fora legado, para dançar. Neste
pouco, mal-e-mal o xote e a vanera dos bailes do rancheiro. [...]
Às pressas encomendamos vestidos de chita para nossas irmãs ou
primas, tentamos reconstruir uma media-canha assistida em
Montevidéu e, na noite da festa, apresentamos ao público, por
primeira vez, pedaços de coreografia que havíamos farejado aqui e
ali: o “Caranguejo” e o “Pezinho”.
O pezinho era novidade absoluta.. Nem sequer seu nome surgia nas
anteriores pesquisas de Apolinário, Cezimbra, Simões, etc. dele
havíamos tomado conhecimento, como uma espécie de brinquedo
de roda, através de duas meninas na estância de nosso amigo Nei
Azevedo, em Palmares do Sul. [...]
O público porém, aceitou. Mais do que isso: aplaudiu, muitíssimo.
Confirmado o que trinta anos depois leríamos em Eric Hobsbawn: a
dança do Pezinho estava respondendo a uma necessidade sentida
131
não só por nosso grupo de jovens como pelo público espectador .
A partir daí, o movimento descobriu a força comunicativa da dança,
optando Barbosa Lessa e Paixão Cortes por “revirar o Rio Grande do Sul na
tentativa de descobrir cacos melódicos e coreográficos que, convenientemente
reunidos e colados, se aproximassem de nossa herança luso-brasileira. Esta
pesquisa durou cerca de dois anos, passando seu resultado a ser difundido
através do mercado musical de São Paulo e da publicação de um livro com as
evoluções coreográficas diagramadas. Lessa afirma categoricamente que não
se tratam de danças folclóricas, mas danças tradicionalistas, classificando-as
como uma “projeção estética da tradição popular”132.
O tradicionalista, assim, passou a ser definido como o militante do
tradicionalismo na defesa de sua tradição. Savariz concorda com Lima, no
131
132
Lessa, 1985. 71-72.
Ibidem, p. 72-73.
52
sentido que ser imprescindível ao tradicionalista valores básicos que devem
estar presentes em sua personalidade, como o espírito associativo, o
nativismo, o respeito à palavra dada, a defesa da honra, a coragem, o
cavalheirismo, a conduta ética, o amor à liberdade, o sentimento de igualdade,
a politização e o senso de modernidade133.
O tradicionalismo cultua valores e os afirma em meio a um momento
histórico desprovido de convicções axiológicas.
Cultuamos o associativismo, o nativismo (o solo nos pertence não
por sermos donatários, mas conquistadores), o respeito à palavra, a
defesa da honra, a coragem moral, o espírito empreendedor, a
conduta ética, o amor à liberdade e ao trabalho, o sentimento de
igualdade, a politização, o senso de modernidade.[...]
Nossa música, nossa arte, nosso folclore têm incontestável
134
importância. Maior importância ainda têm nossos valores.
A
importância
da
convivência
para
o
tradicionalista,
recebida
provavelmente por herança germânica, é inegável. Os tradicionalistas “criaram
um ambiente de convivência social onde se atende uma das principais
necessidades sociais do homem: relacionar-se bem com o avô e o neto ao
mesmo tempo”135, sendo isto, para Savaris, talvez o maior dos segredos do
movimento organizado. A exemplo do primeiro CTG fundado, nasceram outras
entidades associativas similares136, todas com finalidade sócio-cultural, cuja
personalidade jurídica dotada de estatutos e diretoria, responsável judicial e
extrajudicialmente sobre seus atos. Já em 1954 eram trinta CTGs espalhados
pelo Estado, surgindo novas discordâncias sobre o rumo do tradicionalismo137.
133
Savaris, 2008, p. 20.
Lima, 2004, p. 58-59.
135
Entrevista com Manuelito Carlos Savaris, realizada em 13.10.2009, na Sede do IGTF, no
Centro administrativo em Porto Alegre. Savaris é o atual Presidente do Instituto Gaúcho de
Tradição e Folclore – IGTF, e Vice-presidente da Confederação Brasileira da Tradição
Gaúcha.
136
A nomenclatura destas entidades traduz a linguagem campeira, substituindo a convencional.
O presidente é denominado “patrão”, e seu vice, “capataz”; o secretário é o “sota-capataz”, o
tesoureiro é chamado de “agregado-fiel”, ou “agregado das pilchas”; o assessor de
comunicação passou a ser denominado “agregado das falas”, ou “chiru das falas”, enquanto
o encarregado dos serviços gerais ocupa a vez de “capataz geral”. O presidente de honra e o
conselho deliberativo ou fiscal denominam-se respectivamente “patrão de honra” e “conselho
de vaqueanos”; até mesmo o responsável pela limpeza e conservação dos CTGs possui um
nome próprio: “peão caseiro”. Outras formações são permitidas, compondo as diretorias de
acordo com o tamanho de cada associação, como diretores de artes, diretores culturais ou
de esportes. É tradicional a eleição de suas primeiras prendas, responsáveis pela
representação dos CTGs dentro e fora de sua sede.
137
Cfe. Lessa, 1985, p. 79-80. De um lado, alguns companheiros acreditavam que os CTGs
deveria ter uma preocupação “cultural”, no sentido de uma cultura escolarizada ou cultivada
(história, literatura, folclore), enquanto outros julgavam esta ser uma posição preconceituosa,
134
53
Neste ano foi instalado o I Congresso, em Santa Maria, presidido por Manuelito
de Ornellas, cuja conclusão foi a de que o tradicionalismo deveria ser um
movimento popular, não apenas intelectual. Se antecipa Lessa, ao reconhecerse sabedor de que na verdade “ele será compreendido em sua finalidade
última, apenas por uma minoria intelectual”, muito embora seja imprescindível
que, “para vencer, ele seja sentido e desenvolvido no próprio seio das camadas
populares”138. Surgia, então, o conceito oficial do Tradicionalismo:
Tradicionalismo é o movimento popular que visa auxiliar o Estado na
consecução do bem coletivo, através de ações que o povo pratica –
mesmo que não se aperceba de tal finalidade – com o fim de reforçar
o núcleo de sua cultura; graças ao que a sociedade adquire maior
solidez e o indivíduo adquire maior tranquilidade na vida em
139
comum .
A partir da década de quarenta, a expansão dos CTGs foi muito
expressiva, dentro e fora do Rio Grande do Sul. Lembra Simon que “em
apenas sessenta anos, os Centros de Tradição Gaúcha transformaram-se
naquilo que alguns não hesitam em considerar o maior movimento de cultura
popular do mundo”140.
É comum os CTGs possuírem sedes festivas urbanas e sedes
campeiras. O mais usual é que cada entidade possua uma sede em estilo
rústico, similar ao galpão campeiro, onde são realizados fandangos, saraus de
prendas e inúmeros cursos típicos – bordados, culinária, danças. É comum
também a realização de rodeios e de festivais nativistas, com concursos de
músicas e declamações. Nos rodeios são promovidas competições de tiro de
laço, doma, prova de rédeas, carreiras de cancha reta entre outras práticas,
sempre ligadas às lides do campo, demonstrando as habilidades de seus
participantes.
ao passo em que negava valor cultural ás expressões populares não-institucionalizadas (lida
campeira, medicina caseira, etc); alguns temiam que os CTGs descambassem apenas para o
entretenimento, enquanto outros argumentavam que o lazer era importantíssimo; alguns, de
perfil mais aristocrata, temiam que os CTGs se popularizassem demais e que as camadas
mais baixas acabassem fundando os próprios centros de tradição, enquanto para outros isso
era justamente o mais lógico a acontecer, visto que a elite já contava com as próprias
agremiações e não seria justo negar acesso ao peão de estância, personagem
homenageado no próprio perfil gaúcho.
138
Lessa, 1985, p. 83.
139
Ibidem, p. 83.
140
Simon, 2009, p. 135.
54
Sendo o tradicionalismo a “arte de colocar em movimento uma
tradição”141, o tradicionalismo gaúcho organizou o movimento que cultua a
tradição de seu povo, e é por esta razão que se denomina tradicionalismo
organizado.
A ninguém, aqui, será lícito esquecer o papel que a convivência
continuada, nos centros de tradições e nas atividades regionalistas
exerce sobre a formação daqueles que se compenetram de seus
valores. Que o tradicionalismo é uma das forças mais importantes da
cultura rio-grandense não é novidade: basta que se divise, dentro e
além fronteiras, a extraordinária força que o movimento mantém e
incrementa na direção do prestigiamento das nossas coisas,
mostrando para os “de dentro” e os “de fora” que não esquecemos
nossas raízes, que não renegamos nosso passado, que estamos,
continuamente, a criar novas maneiras de irmos às nossas fontes,
142
delas retirando o estímulo para o nosso modo de pensar e agir.
O primeiro congresso tradicionalista foi realizado em 1954, oportunidade
em que foi defendida a tese O sentido e valor do tradicionalismo, de Luiz
Carlos Barbosa Lessa, sugerindo que o movimento fosse popularizado de
forma ampla, de forma que abrangesse todas as camadas sociais e não mais
ficasse restrita aos estudiosos de cunho literário.
Somente em 1961 é que foi aprovada a Carta de Princípios do
movimento tradicionalista, de autoria de Glaucus Saraiva, onde se pode notar
de pronto a inegável associação entre o movimento e o Estado, porquanto sua
primeira indicação seria “auxiliar o Estado na solução dos seus problemas
fundamentais e na conquista do bem coletivo”143. O movimento não contou com
e ajuda oficial da sociedade ou do estado, muito menor reconhecimento como
“cultura” nos currículos escolares. Mesmo assim, sua propagação foi
“incontível”, nas exatas palavras de Lessa:
Apesar do silêncio dos currículos oficiais, apesar dos preconceitos
da cultura “superior”, apesar de Porto Alegre ter continuado proibindo
que homens do interior entrassem vestidos de bombacha e botas em
seus cinemas, nos anos subsequentes ao 1º Congresso o culto à
tradições gaúchas foi experimentando incontível expansão. [...]
141
Lamberty, 1989, p. 22.
Lima, 2004, p. 139.
143
SARAIVA, Glauco. Carta de Princípios do movimento tradicionalista. In. CIRNE, PAULO
Roberto de Fraga (org.). Coletânea de leis, decretos e normas do interesse do
tradicionalismo gaúcho. Porto Alegre: MTG, 2008, p. 08.
142
55
A verdade é que o movimento, com tenacidade e dinamismo, foi
conquistando espaços, e alargando espaços, em todas as áreas da
144
comunicação popular .
O Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) foi criado no dia 28 de
outubro de 1966, sendo hoje, “o órgão catalisador, disciplinador, orientador das
atividades dos seus filiados, especialmente no que diz respeito ao preconizado
em sua Carta de Princípios”145, com sede física permanente em Porto Alegre.
Foi apenas a partir da década de oitenta que as manifestações culturais
no Rio Grande do Sul tomaram maior vulto. Azevedo, em carta enviada a
Oliven, tece a seguinte reflexão no sentido de que o renascimento do
gauchismo:
[...] parece evidenciar um desejo de afirmação de gauchidade e de
nacionalismo, porém, ao mesmo tempo, talvez um desejo de
afirmação de diferenciação – bem nítida em vários aspectos – dos
brasileiros de outras partes [...] os gaúchos que se voltam à
bombacha, ao chimarrão, à chimarrita, parecem identificar-se mais
“brancos” e até melhor ligados aos vizinhos platenses do que os
brasileiros mulatos e pretos do norte do país e aos caboclos da
146
Amazônia e do Nordeste.
Tratava-se de uma tradição vivida pelos jovens citadinos, e não mais
apenas entre os habitantes do campo. O movimento tradicionalista tomou vulto
e o chimarrão, as bombachas e os hábitos gaúchos foram aos poucos
perdendo o estigma de grossura. Oliven lembra que no Rio Grande do Sul,
cerca de 75% da população vive em meio urbano e a grande maioria não
possui contato com as lides campeiras147.
Hoje, a estrutura organizacional do Movimento Tradicionalista Gaúcho
do Rio Grande do Sul – MTG/RS, o subdivide em 30 regiões, geograficamente
distribuídas, cada uma com cerca de 10 municípios. São milhares de entidades
inscritas que recebem apoio do Movimento em suas atividades culturais 148. De
144
Lessa, 1985, p. 88.
Movimento Tradicionalista Gaúcho do Rio Grande do Sul. MTG: o que é? Porto Alegre, [s.d].
Disponível em: < http://www.mtg.org.br/oquee.html >. Acesso em: 14 nov. 2009.
146
AZEVEDO, Thales de. Carta para Ruben George Oliven. In. Oliven, 1992, p. 18.
147
Oliven, 1992, p. 05.
148
Movimento Tradicionalista Gaúcho do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, [s.d]. Disponível em:
< http://www.mtg.org.br/>. Acesso em: 14 nov 2009.
145
56
acordo com Helio Ferreira, Secretário do MTG/RS, o crescimento do
movimento e a descentralização dos CTGs, Departamentos de Tradição
Gaúcha149 (DTGs) e Piquetes demandou uma estrutura maior”150. Afinal, “em
qualquer região na qual se instalam, os sul-rio-grandenses criam logo um
centro de tradições gaúchas. Passam a dançar e cantar as músicas do Sul e
logo recebem a adesão de pessoas da comunidade local”151, situação esta que
necessitava de uma estrutura organizacional maior. Assim, no ano de 1987, foi
fundada a Confederação Brasileira de Tradição Gaúcha – CBTG, em reunião
realizada por tradicionalistas do Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo. Na
ocasião, os manifestos surgiram no seguinte sentido:
Os tradicionalistas gaúchos do Brasil reunidos na histórica cidade de
Ponta Grossa, Estado do Paraná, conscientes da gravidade do
momento por que atravessa a humanidade e em especial o laborioso
e sacrificado povo brasileiro, que além da espoliação cultural da
nossa gente por interesses alienígena que não nos dizem respeito e
ferem danosamente os nossos princípios, nossos usos e costumes e
a própria filosofia da vida de novo povo, principalmente, expõem:
1 – Considerando que os gaúchos, não só no Rio Grande do Sul,
mas em diversos Estados de nossa Pátria, fundaram Centros de
Tradições Gaúchas com os objetivos óbvios da Carta de Princípios
do Tradicionalismo;
2 – Considerando o crescimento global dos Centro de Tradições
Gaúchas de todo o Brasil preocupados com a realidade brasileira, e
sentindo a necessidade de pôr em prática os objetivos da Carta de
Seival;
3 – Considerando que, a exemplo do Rio Grande do Sul, com o
MTG, as entidades tradicionalistas de Santa Catarina, Paraná e São
Paulo organizaram-se em Federações;
4 – Considerando a já existência do Conselho Internacional da
Tradição Gaúcha que reúne Brasil, Argentina e Uruguai com os
objetivos propostos na Proclamação de Montevidéu, e a realização já
de dois Congressos;
5 – Considerando que os tradicionalistas gaúchos do Brasil não
podem continuar com as suas Federações individualizadas, tendo a
necessidade de reunirem-se a formar um bloco uníssono,
152
respeitadas as peculiaridades de cada Estado .
Assim, a CBTG dividiu o país da seguinte forma: Movimento
Tradicionalista Gaúcho do Rio Grande do Sul – MTG/RS; Movimento
Tradicionalista
149
Gaúcho
de
Santa
Catarina
–
MTG/SC;
Movimento
Se diferenciam dos CTGs por possuírem uma entidade mantenedora.
Entrevista com Helio Ferreira, realizada no dia 13 de outubro de 2009, na sede da entidade,
localizada à Rua Guilherme Schell, 60, Porto Alegre-RS.
151
Simon, 2009, p. 35.
152
Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha. Ata de fundação. [S.l.; s.d]. Disponível em:
<http://www.cbtg.com.br/_sitio/diversos/mostra.php?tipo=Atas&cod=151>. Acesso em: 14 nov
2009.
150
57
Tradicionalista Gaúcho do Paraná – MTG/PR; Movimento Tradicionalista
Gaúcho de São Paulo – MTG/SP; Movimento Tradicionalista Gaúcho do Mato
Grosso – MTG/MT; Movimento Tradicionalista Gaúcho do Mato Grosso do Sul
– MTG/MS; Federação da Tradição Gaúcha do Planalto Central – FTG/PC;
União Tradicionalista Gaúcha do Nordeste – UTGN e União tradicionalista
Gaúcha do Rio de Janeiro – UTG/RJ. Sua sede é itinerante, acompanhando o
local de residência do presidente. Atualmente, se encontra em Brasília - Distrito
Federal, onde reside o Sr. Dorvílio José Calderán, Presidente do CBTG. O
MTG/RS se organiza cada vez mais trazer a sede definitiva da CBTG ao Rio
Grande do Sul, berço da tradição gaúcha. Além dos cursos, bailes e jantares,
grande parte dos CTGs possui programas radiofônicos, transmitidos ou não de
suas sedes. Simon reflete, demonstrando grande curiosidade, o fato de que
muitos Estados possuem rádios com programas de música nativista,
acompanhados não só pelos gaúchos exilados, mas pela população em
geral153.
Mas a associação entre avanços tecnológicos e o tradicionalismo
avançou e o amor pelas tradições gaúchas aparenta não ter limites. No ano de
2007 foi criado um CTG virtual, no jogo “Second Life154”, O Centro de Tradições
Gaúchas Estância Celeste Brasil. A iniciativa foi do jornalista Clediney Silva,
gaúcho radicado há muitos anos no Paraná, e conta com um tráfego diário
médio de 5.000 pessoas: ”desde então, o empreendimento vem construindo
uma história de luta, garra e sucesso, retratando com fidelidade no mundo
virtual os passos heróicos do povo gaúcho”. Trata-se da realidade vivenciada
nos CTGs, elevada ao status e simulação virtual, possuindo rádio ao vivo
online, dois locais destinados a realização de bailes, fogo de chão, churrasco e
arena de rodeio. Nas palavras do criador do CTG, a expansão para o culto das
tradições gaúchas no mundo virtual se justifica à medida e que ele não
permanece limitado ao Rio Grande do Sul. Para paixão Cortes, “é uma forma
153
Simon, 2009, p. 34.
Second Life is the leading virtual world development platform for the creation of virtual goods
and immersive, engaging and productive 3D spaces used by individuals, artists, corporations,
governments, academic institutions and non-profits - Segunda Vida é a principal plataforma
de munodo virtual para a aquisição de bens virtuais e de espaços em 3 dimensões usados
por indivíduos, artistas, corporações, governos, instituições acadêmicas e não-lucrativas. In.
Second Life. Disponível em: <http://www.secondlife.com>. Acesso em: 12 dez. 2009.
154
58
atualizada de divulgar a identidade da região. Tradicionalismo não significa
ficar parado no tempo. É preciso acompanhar a modernidade, mas não fazer
modismo”155.
Note-se que a própria Carta de Princípios do Movimento Tradicionalista
assume, como meta, o prestígio e o estímulo de qualquer iniciativa voltada à
proteção do tradicionalismo, não havendo limites impostos a isto. Nesse
contexto, Viale e Brandt analisam o fato de que as pessoas estão se
comunicando, cada vez mais, por meio de veículos virtuais, “buscando facilitar
a sua vida que é sempre corrida, estão resolvendo várias tarefas por meio de
um click”156, e complementam:
[...] a internet desempenha um papel fundamental no momento em
que se apresenta como a possibilidade de acesso rápido à
informação. Além de possibilitar um”encontro” de pessoas ou mesmo
uma fuga á situação de complexidade apresentada pela sociedade
contemporânea. [...]
A proposta, portanto, é possibilitar a criação de um mundo novo, de
uma vida nova, com base nas informações que o participante quiser
fornecer. [...]
Não é à toa que um jogo que reproduza a vida tenha tantos adeptos:
ele representa a possibilidade da pessoa poder viver a vida “real”, a
vida que ela mesma pode escolher, sem que seja condicionada a
157
vivê-la .
A realidade virtual tem transformado a sociedade contemporânea. No
movimento tradicionalista não é diferente. Vários dos CTGs possuem sites,
onde expõe as atividades da entidade e contribuem com a propagação da
tradição e do folclore gaúchos. Nos Estados Unidos da Améric, encontramos
um CTG totalmente virtual, diferente daquele do Second Life, pois nele os
integrantes não criam uma nova realidade, mas utilizam este meio para suprir
uma de suas principais dificuldades: a distância. Trata-se do Núcleo
Tradicionalista Gaúcho de Danbury, em Connecticut, sendo que seus
155
CTG
Estância
Celeste
Brasil.
[S.l.;
s.d.].
Disponível
em:
<http://www.ctgbrasil.com/historia.htm>. Acesso em: 12 dez. 2009.
156
VIAL, Sandra Regina Martini; BRANDT, Daiana. Second life: fuga ou construção da
realidade? In. REIS, Jorge Renato dos; LEAL, Rogério Gesta. Direitos sociais & políticas
públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7, Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007, p. 1967.
157
Ibidem, p. 196-197 passim.
59
integrantes somente se encontram para rodas de chimarrão e durante as
Comemorações da Revolução Farroupilha158.
A análise em um primeiro capítulo dos fatores característicos,
definidores da identidade gaúcha - principalmente o nativismo e saudade -, são
imprescindíveis para a compreensão do surgimento e alastramento do
tradicionalismo gaúcho organizado. Este movimento, hoje, ultrapassa barreiras
de natalidade ou geográficas, demandando por parte do Estado a adoção de
políticas públicas capazes de fortalecer ainda mais o movimento diante do risco
de fragmentação de sua identidade, fenômeno cada vez mais recorrente no
contexto da globalização contemporânea. Estes assuntos serão os principais
focos dos capítulos seguintes.
158
SARMENTO, Joe. Recebido por e-mail em 20 de outubro de 2009, de
[email protected]
60
2 CULTURA E IDENTIDADE: A GLOBALIZAÇÃO E A TRADIÇÃO GAÚCHA
EM QUESTÃO
Para se adentrar na discussão sobre o sentido e o alcance de qualquer
cultura, se torna necessário primeiro analisar, como categoria antropológica, o
sentido do que vem a ser “cultura”, enquanto parte integrante de qualquer
sociedade. Diferente não se dá com o tradicionalismo gaúcho. Como bem
assevera Lima, “para se entender o sentido e o alcance do tradicionalismo
gaúcho é necessário examinar o seu substrato, o conteúdo da tradição, sua
origem e consistência”159.
A questão da identidade também representa importância sumária. No
primeiro capítulo tratou-se das concepções culturais e da identidade gaúcha,
sem adentrar-se na definição de o que consiste a identidade – o que se
pretende analisar neste capítulo.
Ainda, é importante destacar as interferências culturais, sua influência na
identidade e a fragmentação do sujeito frente a esta realidade global – bem
como do risco de fragmentação da identidade gaúcha. Contudo, resta
apresentado também o contra-ponto: a “invasão” da cultura gaúcha no mundo,
ao que foi denominado mundialização do gauchismo.
Antes de adentrar na intrincada análise dos temas aqui propostos, cabe
esclarecer que a nenhum deles é possível atribuir um conceito definitivo,
palpável, pois globalização, identidade e cultura não possuem uma definição
concreta, um conceito amplo o suficiente para abarcar todo o movimento
sociológico que lhes dá sentido. Tratam-se, afinal, de idéias decorrentes de um
mundo em movimento, o que não lhes permite um conceito imutável, a não ser
uma construção de pensamentos que aproxime o pesquisador de seus
significados.
159
Lima, 2004, p. 16.
61
2.1 Cultura e identidade
Tamanha é a complexidade dos conceitos de cultura e identidade, que
se torna inconcebível a presunção de defini-los de forma pétrea, ou mesmo de
apresentar a inesgotável discussão que enseja suas definições entre filósofos,
sociólogos, historiadores e antropólogos. O que se pretende, nas linhas que
seguem, é trazer as principais reflexões que induzam o leitor a exprimir suas
próprias conclusões, eis que são significados que também dependem das
características idiossincráticas individuais.
2.1.1 Cultura
Os conceitos de cultura tem sido sempre analisados com conotação
mais ou menos ampla. Há uma minoria que defende um conceito de cultura
restritivo, considerando que a amplitude conceitual provoca um “deturpamento
do vocábulo, empregado para exprimir as criações mais altas do espírito
humano”. Em extremo oposto, há quem sustente que “todo o fato que não seja
natural será cultural”, em razão do próprio nexo etimológico da palavra, o
“cultivo do intelecto”, que abrangeria todas as criações humanas160.
Laraia define cultura como sendo “uma lente através da qual o homem
vê o mundo”, lente esta em permanente mudança. O autor aponta dois tipos de
transformação cultural: a de ordem interna e aquela provocada por influências
externas: enquanto a primeira é lenta, a segunda espraia seus reflexos em
acelerada velocidade, pois decorre do contato entre os diferentes sistemas
culturais161.
Cada mudança, por menor que seja, representa o desenlace de
numerosos conflitos. Isto porque em cada momento as sociedades
humanas são palco de embate entre tendências conservadoras e as
inovadoras. As primeiras tendem a manter os hábitos inalterados,
muitas vezes atribuindo aos mesmos uma legitimidade de ordem
160
MELO, Osvaldo Ferreira de. Reflexões para uma política de cultura. Florianópilis:
Movimento, 1982, p. 20.
161
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 19. ed. Rio de Janeiro: J.
Zahar, 2006, p. 67 - 96.
62
sobrenatural. As segundas contestam a sua permanência e
162
pretendem substituí-los por novos procedimentos.
Já Pozenato, ao procurar identificar uma determinada cultura popular,
alerta para a preocupação primeira de “saber o que é essa cultura, de que
elementos ela se compõe, como ela se organiza, como ela pode ser descrita”,
buscando encontrar, assim, pontos identificadores de determinada sociedade.
Em contrapartida, assevera que também seria necessário “saber o que não é
elemento desta cultura, se é de alguma forma um elemento estranho e que,
portanto, não deve ser considerado como parte desse sistema”. O autor ainda
se posiciona no sentido de que “o importante, para se compreender um
processo cultural, é ser capaz de vê-lo dentro de um processo de história”,
sendo imprescindível identificar as duas espécies de fatores determinantes das
mudanças culturais: os que não destroem seu significado cultural e os que
interferem na identidade da comunidade163.
Nota-se que o conceito não é assim tão simples de se elaborar.
Utilizamo-nos das palavras de Smith para exemplificar a complexidade do
tema. Partindo de um conceito inicial de cultura, como sendo “o modo coletivo
de vida, ou um conjunto de crenças, estilos, valores e símbolos”, vale dizer que
não se pode falar em cultura, mas em culturas, pois “um modo coletivo de vida
ou um conjunto de crenças, etc., pressupõe diferentes modos e conjuntos
dentro de um universo de modos e conjuntos”164. Não se pode conceituar a
cultura como se faz com uma pedra, pois uma pedra, mesmo em meio a outras
pedras, continuará sendo o mesmo objeto. A cultura é permanenemente
mutável, pois decorre da visão de mundo de um indivíduo, de um conjunto de
indivíduos ou, como já se pretende sugerir, de uma globalidade de
indivíduos165.
162
Laraia, 2006, p. 99.
POZENATO, José Clemente. Processos culturais: reflexões sobre a dinâmica cultural.
Caxias do Sul: EDUCS, 2003, p. 27-30
164
SMITH, Anthony D. Para uma cultura global. In. Featherstone (org.). Cultura global:
nacionalismo, globalização e modernidade. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 183.
165
Ibidem, p. 183. “A idéia de uma ‘cultura global” é praticamente impossível, a não ser em
termos interplanetários. Mesmo se o conceito foi atribuído ao homo sapiens, em oposição a
outras espécies, as diferenças entre os diversos segmentos da humanidade em termos de
estilo de vida e de conjunto de crenças são muito grandes, e os elementos comuns,
163
63
No mesmo sentido, Couceiro adverte para a necessidade de cuidados
ao se falar em “cultura” no singular, pois os historiadores e antropólogos já
consolidaram que o termo correto seria aplicado no plural,
[...] enfatizando a impossibilidade de unir de forma harmônica e
generalizante as manifestações culturais das várias esferas da
sociedade. Cultura deveria, portanto, ser um termo empregado no
plural, já que não se constitui num complexo unificado coerente, mas
sim, num conjunto de “significados, atitudes e valores partilhados e
as formas simbólicas (apresentações, objetos artesanais) em que
eles são expressos ou encarnados”, que são construídos
socialmente, variando, portanto, de grupo para grupo e de uma
época para outra. Mas, apesar de pequenas divergências, essa
166
visão de cultura já se generalizou entre os historiadores .
Ainda pode se apreciar o conceito de cultura a partir do trinômio naçãoetnia-religião, todos os três aplicados de forma conjunta ou em separado, ms
sempre associados à idéia de se tratarem de “comunidades imaginadas”,
dotadas de fatores de identificação que geralmente seguem um dos três termos
antes dispostos. Nas palavras de Moyano,
[...] parece de sentido común creer que hay distintas culturas y que
cada uno de nosotros pertencemos a uma de ellas. Cuando se habla
de uma cultura a la que ponemos adjetivos vinculándola a um
Estado-nación (por ejemplo, la cultura española, la cultura francesa,
la cultura china), a um religión (por ejemplo la cultura musulmana o
la cultura judia) o a uma région (por ejemplo, la cultura vasca o la
cultura andaluza) estamos refiriéndonos a comunidades
167
imaginadas .
As variadas nuances do termo reforçam a idéia de inexistência de
culturas e identidades com limites definidos, a não ser nos discursos políticos e
sociais. Assim, por exemplo, determinada pessoa pode definir sua cultura, ao
mesmo tempo, como sendo latino-americana (continente), brasileira (nação),
católica (religião), alemã (ascendência), gaúcha (regional), etc, sendo possível
que não haja nenhum contra-senso em tal alegação - tal é a amplitude do
conceito. Exemplo bastante elucidativo é trazido por Damatta:
demasiadamente generalizados, para nos possibilitar até mesmo um conceito de uma cultura
globalizada”.
166
COUCEIRO, Sylvia. Os desafios da história cultural. In. BURITY, Cultura e identidade:
perspectivas interdisciplinares. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 15.
167
MOYANO, Rafael Pulido. Sobre el significado y los usos de los conceptos de interculturidad
y multiculturidad. In. GARCÍA, Tomás Fernández; MOLINA, José G. Multiculturidad y
educación. Madrid: Alianza, 2005, p. 30.
64
Num dado nível, as regiões são importantes e o gaúcho pode se
distinguir radicalmente de um catarinense (“barriga verde”); mas se
ambos – o gaúcho e o catarinense – vão para Belém, os dois se
juntam como “sulistas” em oposição aos “nortistas”. Mas se um
gaúcho, um catarinense e um paranaense se encontram em Buenos
Aires, eles imediatamente se definem como “brasileiros!, por
oposição aos argentinos [vistos como “gringos”]. Agora, se um
argentino e esses três brasileiros se encontram em Chicago, eles
invocam sua identidade de latino-americanos” em oposição à cultura
local: ianque, individualista, monoglota, provinciana, etc. Nesse nível,
então, o “nacional brasileiro” e o “nacional argentino” se
168
regionalizam .
Analisando inúmeros conceitos sobre o termo, todos parecem ter em
comum os mesmos elementos norteadores, ou seja, definições geográficas,
ações e reações peculiares, usos, costumes ou valores espirituais. Diferente
não é o conceito trazido pelos tradicionalistas gaúchos, que afirmam ser a
cultura
[...] um sistema de atitudes e modos de agir, costumes e instituições,
valores espirituais e materiais de uma sociedade. Barbosa Lessa
ensina que a cultura de qualquer sociedade se compõe de duas
partes: o núcleo e as alternativas. O núcleo é constituído pelo
Patrimônio Tradicional, onde se concentram os hábitos, princípios
morais, valores, associações e reações emocionais partilhadas por
todos os membros de determinada sociedade, ou por todos os
integrantes de determinada categoria de indivíduos. Este cerne
cultural dá aos indivíduos a unidade psicológica essencial ao
funcionamento da sociedade.
Cercando o núcleo, existe uma zona instável, denominada
Alternativas, constituída por elementos culturais, que atingem
somente alguns membros de uma sociedade. Essa zona de
Alternativas tem a capacidade de fazer a cultura crescer e
aperfeiçoar-se, porém se o núcleo, o Patrimônio Tradicional, for
fraco, haverá uma invasão das alternativas que destruirão o núcleo,
causando confusão social, pois que haverá, fatalmente, a perda das
169
referências e dos indicativos de identidade daquela sociedade .
Conforme Santos, há duas concepções básicas de cultura: a mais usual,
que se ocupa de todos os aspectos de uma determinada realidade social,
dando conta das características específicas que refletem as maneiras de
conceber e organizar a vida em sociedade; a segunda, mais específica, se
refere ao “conhecimento, idéias e crenças, assim como às maneiras como elas
168
DAMATTA, Roberto. Nação e região: em torno do significado cultural de uma permanente
dualidade brasileira. In. SCHULLER, Fernando Luiz; BORDINI, Maria da Glória. Cultura e
identidade regional. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 25.
169
SAVARIS, Manuelito Carlos. Conceitos importantes para a compreensão da identidade do
Gaúcho. In. Fundação Gaúcha de Tradição e Folclore. Disponível em:
<http://www.igtf.rs.gov.br>. Acesso em: 19 jan. 2010.
65
existem na vida social”. O próprio autor confirma que o limiar entre elas é
ínfimo, pois na verdade ambas se referem às características de um
determinado grupo de pessoas170.
A Constituição Federal, regramento normativo máximo brasileiro, não
traz uma definição de cultura, mas enuncia quais são os patrimônios culturais
nacionais. Assim dispõe o referido artigo:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de
natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória
dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais
se incluem:I - as formas de expressão;II - os modos de criar, fazer e
viver;III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as
obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos
urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
171
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico .
Ao tratar da definição constitucional, Cunha Filho adverte que “a cultura
tem sua concretude, que não se estampa somente nas fachadas dos prédios
tombados”, e que é a partir da cultura que se pode “traçar o perfil de
desenvolvimento econômico de um povo”172.
Esta dificuldade conceitual tem consequências diretas na área jurídica, o
que se pode notar, por exemplo, na análise dos tratados internacionais dos
quais o país é signatário. Conforme informações do Ministério da Cultura, o
Brasil reconheceu e assinou quatro atos multilaterais culturais, todos sobre
direitos autorais: a Convenção de Roma (1961), voltada à proteção dos artistas
intérpretes ou executantes, aos produtores de fonogramas e aos organismos
de radiodifusão; a Convenção de Berna (1971), destinada à proteção de obras
literárias e artísticas; a Convenção Universal (1971), também sobre o direito o
170
SANTOS, José Luiz. O que é cultura. In. PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é
cultura; o que é contracultura; o que é política cultural. São Paulo: Círculo do Livro, [S.d], p.
21.
171
Brasil. Constituição (1988). Artigo 216. In. Planalto Central. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 02
dez. 2009.
172
CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Teoria e prática da gestão cultural. Fortaleza:
Universidade de Fortaleza, 2002, p. 100.
66
autor; e o acordo TRIPS/ADPIC (1994), um acordo sobre os aspectos dos
direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio.173
Conforme se verifica imediatamente de seus termos, a maior
preocupação dos tratados é a proteção das próprias obras literárias e artísticas
e de seus autores ou seus legítimos representantes. Isto significa reconhecer
que os tratados internacionais reconhecidos e firmados pelo Brasil não
contemplam o “direito à cultura”, mas apenas tutelam parte da cultura. Em
outras palavras, é como afirmar que tais tratados internacionais dizem respeito
a uma parte, e não ao todo, afinal, a produção literária ou artística é parte da
cultura, mas não significa cultura em sua totalidade, merecendo esta, ainda
maior reconhecimento e proteção.
2.1.1.1 Patrimônio cultural
O conceito de patrimônio cultural é vasto, estando diretamente
relacionado ao direito de diversidade cultural.
Considerando que o objeto
principal desta pesquisa é o estudo das políticas públicas de fortalecimento do
tradicionalismo gaúcho, torna-se necessário ao menos a abordagem da
principal idéia de patrimônio cultural, a fim que se compreenda o porquê da
necessidade de protegê-lo.
Os bens culturais são merecedores de tutela jurídica, a qual começa por
sua individuação, pelo reconhecimento de seu status de bem preservável
diante de suas características de representatividade, seu caráter histórico
evocativo ou demonstrativo de relevante expressão cultural. O bem, então,
passa a adquirir uma nova qualidade jurídica, a qualidade de bem cultural.
Portanto, os bens culturais, independetemente de sua natureza jurídica pública
ou privada, são bens de uso comum do povo, também denominados bens
difusos ou transindividuais.
173
Brasil. Ministério da Cultura. 2010. Disponível em:
<http://www.cultura.gov.br/site/2008/01/30/acordos-e-tratados>. Acesso em: 02 jan. 2010.
67
Para fins didáticos, interessante é a colaboração de Rodrigues, o qual
refere estar o patrimônio cultural subdividido em três categorias, estabelecidas
por Huges de Varie-Bohan, conservador do Museu do Louvre: a primeira, de
origem natural; a segunda, proveniente da ciência e do conhecimento; a
terceira, dos artefatos fabricados pelo homem. De acordo com esta
classificação, há casos em que pode haver confusão entre patrimônio natural e
cultural174. Já o patrimônio cultural que surge a partir da ciência e do
conhecimento é abstrato, de ordem iminentemente intelectual - compreende as
ciências, as artes imateriais (música, dança, crenças), os costumes, as
tradições, enfim, tudo o que se relaciona à cultura intrínseca e intangível do ser
humano. Por fim, a terceira espécie de patrimônio cultural seria aquela de
ordem material, palpável, tangível, e decorrente da própria ação do homem, ao
transformar o meio ambiente na construção de sua história175.
De acordo com Soares e Klamt, ainda se pode mencionar o patrimônio
de ordem emocional, relacionado às manifestações culturais individuais ou
coletivas, como o folclore, os desfiles cívicos, a forma de manifestar a religião e
as artes, como as procissões religiosas ou a própria Semana Farroupilha176.
O conceito constitucional de patrimônio cultural, trazido pelo art. 216, é
bastante amplo, incluindo tanto os bens de natureza material quanto imaterial,
considerados individualmente ou em conjunto, desde que detentores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores
da sociedade brasileira”. São incluídas no conceito as formas de expressão, os
modos de criar, fazer e viver, as criações científicas, artísticas, tecnológicas, as
obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais e, finalmente, os conjuntos urbanos e sítios de
valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e
174
A exemplo das unidades de preservação ecológicas, em decorrência da idéia de que o
ambiente natural também possui valor cultural na medida em que é herança de gerações.
175
RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Tutela do patrimônio ambiental cultural. In: PHILIPPI
JR, Arlindo; ALVES, Alaôr Caffé. Curso interdisciplinar de direito ambiental. São Paulo: USP,
2005, p. 542.
176
SOARES, André Luiz R; KLAMT, Sérgio Célio. Breve manual de patrimônio cultural:
subsídios para uma educação patrimonial. In. Revista do CEPA. Vol. 28. n. especial (2004).
Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004, p. 47.
68
científico177. Note-se que o texto constitucional, “suprimindo expressões
prolixas, imprecisas e incompletas, como patrimônio artístico, histórico,
arquitetônico,
arqueológico
e
paisagístico
que
foram
utilizados
nas
Constituições anteriores”178, adotou o conceito de patrimônio cultural, por ser
completo ao abranger todos os anteriores e não constituir taxatividade, o que é
de extrema importância em uma sociedade complexa e mutável. No entanto,
deve-se ressaltar que o termo “cultural” não foi padronizado ao longo da
Constituição Federal, havendo artigos em que o legislador constou “patrimônio
histórico e cultural” (artigo 5º, LXXIII), ou “artes e outros bens de valor histórico”
(artigo 23), entre outros.
Desta forma, em se tratando de patrimônio cultural, cabe enfatizar que
sua proteção atinge diretamente a questão identitária, ou seja, relação entre o
bem e o sujeito deve estar dotada de identificação, de forma que o sujeito
compreenda a representação cultural do bem e possua o sentimento de
pertencimento à memória por ele retratada. Há inúmeros meios de se proteger
o patrimônio cultural: o primeiro é através do reconhecimento social da
diversidade cultural e da valoração dos bens para a identidade cultural; o
segundo são as políticas de preservação, feita através de leis que regulam sua
identificação, proteção e exploração. Não há como sobrepor um a outro, pois
as políticas preservacionistas somente serão eficazes quando a sociedade de
fato reconhecer e se identificar com o bem a ser protegido. Em contrapartida, a
proteção efetiva do patrimônio cultural, quando feita pelos órgãos estatais,
tende a atingir melhores técnicas de preservação, por questões financeiras,
científicas e tecnológicas, entre outras.
A Organização das Nações Unidas pela Educação, a Ciência e a Cultura
– UNESCO, atribuiu ao patrimônio cultural intangível 179 um conceito ligado à
transferência temporal de identidade, como sendo aquele que compreende “as
expressões de vida e tradições que comunidade, grupos e indivíduos em todas
177
É importante esclarecer que não se considera o rol trazido pelo artigo ora transcrito como
sendo de natureza taxativa, mas antes exemplificativa.
178
Rodrigues, 2005, p. 545.
179
Saliente-se que outra denominação cabível ao patrimônio intangível é patrimônio imaterial,
ou bens imateriais.
69
as partes do mundo recebem de seus ancestrais e passam seus
conhecimentos a seus descendentes”180:
É amplamente reconhecida a importância de promover e proteger a
memória e as manifestações culturais representadas, em todo o
mundo, por monumentos, sítios históricos e paisagens culturais. Mas
não só de aspectos físicos se constitui a cultura de um povo. Há
muito mais, contido nas tradições, no folclore, nos saberes, nas
línguas, nas festas e em diversos outros aspectos e manifestações,
transmitidos oral ou gestualmente, recriados coletivamente e
modificados ao longo do tempo. A essa porção intangível da herança
181
cultural dos povos, dá-se o nome de patrimônio cultural imaterial.
A identidade pode ser tomada pelas peculiaridades de um determinado
grupo de pessoas, por sua memória e pelos elementos caracterizadores de
seus membros perante outras identidades. O patrimônio cultural dotado de
significação para esta sociedade recebe estas mesmas características
identitárias e, portanto, passa a ser merecedor das tutelas protetivas, a fim de
que esta mesma identidade não se perca.
2.1.2 Identidade
Perpassando estes apontamentos iniciais sobre cultura e patrimônio
cultural, nota-se neles a reiteração do termo “identidade”, de forma que se
torna possível afirmar que não há como analisar separadamente uma da outra
– afinal, as idéias de cultura e identidade estão invariavelmente conectadas.
Stuart Hall182 adota inicialmente três conceitos de identidade, mais ou
menos cronologicamente consecutivos: o sujeito do iluminismo, o sujeito
sociológico e o sujeito pós-moderno. O primeiro conceito estava centrado em
uma pessoa unificada, dotada das “capacidades da razão, consciência e ação”,
cujo centro essencial era a própria existência individual.
180
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura - UNESCO.
Disponível em:
<http://www.brasilia.unesco.org/areas/cultura/areastematicas/patrimonioimaterial/
patrmimaterial>. Acesso em: 02 jul. 2008.
181
Ibidem.
182
HALL, Stuart. A questão da identidade cultural. 2. ed. Campinas: IFCH/UNICAMP, 1998, p.
10-12.
70
O conceito de identidade do sujeito sociológico, por sua vez, afasta o
núcleo do sujeito do próprio self, eis que o homem já não era considerado
autônomo e auto-suficiente, mas “formado em relação a ‘outros significativos’,
que mediavam o sujeito de valores, significados e símbolos – a cultura – dos
mundos que ele/ela habitavam”. Assim, a concepção de identidade evoluiu do
conceito do self para a interação do próprio self com a sociedade183, onde o “eu
real” é moldado em conformidade com o tempo e com o permanente diálogo
entre os mundos culturais externos e com as outras identidades que o compõe.
O sujeito sociológico estabelece uma ponte entre os mundos público e privado:
O fato de projetarmos “nós mesmos” nestas identidades culturais, ao
mesmo tempo internalizando seus significados e valores, fazendo-os
“parte de nós mesmos”, auxilia-nos a alinhar nossos sentimentos
subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social
e cultural. A identidade desta forma costura (ou, para usar uma
metáfora médica, “sutura”) o sujeito na estrutura. Ela estabiliza tanto
os sujeitos quando os mundos que eles habitam, tornando os dois
184
reciprocamente mais unificados e previsíveis.
Para Hall, trata-se de uma evolução conceitual, onde antes o sujeito era
estático, fundado em si mesmo, passando a mutar para uma composição de
muitas outras identidades: “o próprio processo de identificação, através do qual
nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais aberto,
variável e problemático”, pois as identidades externas que auxiliam a moldar
este novo “eu” podem ser, inclusive, contraditórias185.
Sobre o sujeito sociológico, Barreto refere que
[...] em épocas pretéritas, antes da constituição de estados nacionais
ou mesmo em sociedades do presente ainda não incorporadas ao
processo da (chamada) civilização ocidental, a questão da
identidade está bastante clara. As pessoas pertencem a um clã, a
uma tribo, à classe dos servos ou à uma casta. A pessoa nasce, vive
e morre tendo a certeza de qual é o seu grupo de pertença.
Corresponde a essa situação a visão de identidade como algo
essencial e fixo, uma característica humana imutável.
Na modernidade, a identidade passa a ser mais flexível, sujeita a
mudanças e inovações e depende em grande parte da relação com
os outros. A identidade manifesta-se na pertença a determinados
183
Concepção sociológica clássica apresentada por Mead e Cooley, citados por Hall, 1998, p.
10.
184
Hall, 1998, p. 11.
185
Ibidem, p. 11.
71
grupos (religiosos, políticos) ou a papéis (ser mãe, ser professor). As
pessoas passam a perceber que a identidade é uma construção
186
social e que pode ser mudada.
É neste ínterim que, para Hall, o conceito evolui para um terceiro nível,
ou seja, o de sujeito pós-moderno, “isento de identidade fixa, permanente ou
essencial”, ou seja, a identidade passou a ser “formada e transformada
continuamente em relação às maneiras pelas quais somos representados e
tratados nos sistemas culturais que nos circundam”187. Se diferencia do
segundo conceito (sujeito social), por reconhecer que o sujeito pode assumir
diversas identidades, de acordo com o local e o momento.
Dentro de nós coexistem identidades contraditórias, pressionando
em direções diversas, de modo que nossas identificações estão
sendo continuamente mudadas. Se sentimos que temos uma
identidade unificada do nascimento à morte, é somente porque
construímos uma história confortante ou uma “narrativa do self”
sobre nós mesmos. A identidade totalmente segura, completa,
unificada e coerente é uma fantasia. Ao contrário, à medida que os
sistemas de significado e de representação cultural multiplicam-se,
confrontamo-nos com uma multiplicidade confusa e fluida de
identidade possíveis, podendo nos identificar com cada uma delas –
188
ao menos temporariamente.
Nota-se, portanto, que o conceito de identidade acompanha a evolução
da própria sociedade, uma vez reconhecida a mutabilidade da formação do self
por sua integração com o meio. Neste compasso, adentra-se na delicada
análise do mundo contemporâneo, cada vez mais composto de antagonismos
sociais em meio à influência de identidades externas, diante da rapidez de
informação (e formação) de novas identidades, sendo que se assiste a visível
risco de fragmentação.
As mudanças desta nova estrutura social globalizada têm acarretado
nova introspecção na forma que o homem externaliza sua própria identidade.
Em contra-partida a esta crescente introspecção, o mesmo movimento
globalizante tem provocado uma necessidade intrínseca de re-localização do
indivíduo, de auto-afirmação identitária, de necessidade de pertencimento a
186
Barreto, 2004, p. 45.
Hall, 1998, p. 11.
188
Ibidem, p. 12.
187
72
uma estrutura que possui tradição, história, e que ajudou a moldar até então,
de forma mais ou menos direta, seus costumes, crenças e atitudes.
Estas novas disposições sociopolíticas tem provocado uma preocupação
crescente com a reafirmação das identidades e, em decorrência disto, do
renascimento do espaço local, cuja particularidade cultural não é algo que
possa ser facilmente transcendida e substituída por uma nova cultura global.
Bauman lembra que esta crise se estabelece porque, ao mesmo tempo,
aumenta a consciência de que “o ‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não tem a
solidez de uma rocha, não são garantidos por toda uma vida, são bastante
negociáveis e renegociáveis”189. Afinal, “a globalização está, na verdade,
também associada a novas dinâmicas de re-localização”
190
e a invariáveis
redefinições culturais.
Hall argumenta que hoje não há como se analisar a identidade apenas
por seu aspecto local, pois ela está em constante contato e remodelação com
as demais identidades mundiais. No entanto, o que ele propõe é uma releitura
do que chama de “nexo global-local”, o que não significa apenas o
“renascimento das culturas locais”, mas um “processo de descentralização
cultural e por um ressurgimento de tradições, linguagem e modos de vida
limitados localmente”191.
O conceito de identidade acompanha a evolução da própria sociedade,
uma vez reconhecida a mutabilidade da formação do self (imutável no
iluminismo) por sua integração com o meio. Neste compasso, adentra-se na
delicada análise da sociedade contemporânea, cada vez mais complexa. O
sujeito passa a ter
[...] múltiplas identidades, que coexistem e se manifestam em razão
de fatores diversos, externos ou internos a ela; é parte integrante de
uma sociedade, em grande medida determinado e moldado por sua
história e por seu inconsciente; não tem um comportamento nem
uma postura sempre iguais perante a vida e em todas as
circunstâncias. A matriz contemporânea é a de um sujeito que reage
189
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2005, p. 17.
190
Hall, 1998, p. 82-83.
191
Ibidem, p. 84.
73
e se comporta de formas diferentes em circunstâncias e grupos
diferentes. Para alguns teóricos, a identidade está desaparecendo,
dissolvendo-se numa sociedade de massas mediatizada,
192
racionalizada e burocratizada .
A discussão sobre a identidade ainda flui sob duas principais vertentes:
a essencialista e a não essencialista. A primeira, define a identidade como
“algo inerte a um grupo, a uma comunidade. Algo pronto, ancestral, atávico.
Uma condição pura, cristalina”193. A segunda vertente, o não essencialismo,
pode ser explicada pelas lições de Silva, para quem a identidade não é uma
essência, um dado ou um fato natural ou cultural e também não pode ser fixa
ou homogênea, mas sim uma construção social, um “ato performativo”194.
As idéias de Bauman sobre a identidade seguem o fluxo não
essencialista, ao afirmar que a identidade somente pode ser revelada como
“algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, ‘um
objetivo’; uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher
entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais”. Sua
preocupação com as questões identitárias está fortemente atrelada à análise
sociológica da globalização e de suas consequências.
Ambas as vertentes são imprescindíveis para a construção da presente
pesquisa, pois as principais discussões sobre a identidade gaúcha se baseiam
especificamente nesta divergência. Como poderá se verificar ao longo do texto,
como corrente majoritária aplicada ao tradicionalismo gaúcho tem-se a não
essencialista (salvo alegações antitradicionalistas), culminando pela atribuição,
à identidade gaúcha, de um perfil constantemente mutável de acordo com a
própria sociedade que nele se enquadra, literalmente se “identifica”, como se
verá a seguir.
192
Barreto, 2004, p. 47.
NECCHI, Vitor. Dissonância no pampa – a construção identitária do gaúcho no filme Anahy
de las Missiones. In. FELLIPI, Ângela; NECCHI, Vitor (org.). Mídia e identidade gaúcha. S
Cruz do Sul: Edunisc, 1009, p. 14.
194
SILVA. Tomaz Tadeu da. A reprodução social da identidade e da diferença. In _____ (org.).
Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 96.
193
74
2.2 A Globalização da cultura e o risco de fragmentação
Apropriamo-nos do conceito de Bauman, para definir a sociedade
contemporânea como uma “sociedade líquida”195, diante de sua característica
de formação e reformação constante, de acordo com as alterações de cada
período. Bauman compara o contexto contemporâneo à questão do
movimento, que ocorre aleatoriamente às vontades individuais:
Todos nós estamos, a contragosto, por desígnio ou à revelia, em
movimento. Estamos em movimento mesmo que fisicamente
estejamos imóveis: a imobilidade não é uma opção realista num
mundo em permanente mudança. E no entanto os efeitos dessa nova
condição são radicalmente desiguais. Alguns de nós tornam-se
verdadeiramente “globais”; alguns se fixam na sua “localidade” –
transe que não é nem agradável nem suportável num mundo em que
196
os “globais” dão o tom e fazem as regras do jogo da vida .
O processo de globalização pode ser compreendido através da
percepção de que um mundo sob inquestionável aumento de contato e diálogo
entre diferentes nações, culturas e civilizações. A globalização é um novo
processo dialógico, capaz de alterar a idiossincrasia humana, uma vez coloca
diferentes perspectivas em confronto. Ao contrário do que supor uma
conformação social com este advento - e o estabelecimento de uma cultura
homogeneizante-, a principal perspectiva que se forma é a do conflito, e não do
consenso.
Featherstone se preocupa com o contexto da globalização e da
fragmentação cultural várias de seus escritos, mas principalmente em O
desmanche da cultura e em Cultura global.
A primeira obra citada apresenta, de início, um reflexão inquietante
sobre a citação de Yeats, de que “as coisas se desintegram; o centro não
consegue manter-se”, para ressaltar a idéia de fragmentação e deslocamento
cultural, no sentido de que “a cultura já não pode mais proporcionar uma
explicação adequada do mundo que nos permita construir ou ordenar nossas
195
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro : J. Zahar, 2001.
Idem. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p.
08.
196
75
vidas”. O autor levanta o questionamento sobre a forma pela qual o processo
de globalização “vem ajudando a solapar as pretensas integridade e unidade
das sociedades” 197.
O processo de globalização sugere simultaneamente duas imagens
de cultura. A primeira imagem pressupõe a extensão de uma
determinada cultura até seu limite, o globo. As culturas heterogêneas
tornam-se incorporadas e integradas a uma cultura dominante, que
acaba por cobrir o mundo inteiro. A segunda imagem aponta para a
compreensão das culturas.. Coisas que eram mantidas separadas
são, agora, colocadas em contato e justaposição. As culturas se
Acumulam umas sobre as outras, se empilham, sem princípios
óbvios de organização. Existe cultura demais com que se lidar e para
organizar através de sistemas coerentes de crença, meios de
orientação e conhecimento prático. A primeira imagem sugere um
processo de conquista e unificação do espaço global. O mundo
transforma-se num espaço singular, domesticado um lugar onde
todos tornam-se assimilados a uma cultura comum. [...]
Talvez seja preferível considerar uma cultura global no primeiro
sentido, como uma forma, espaço ou campo, tornando possível
através de meios aperfeiçoados de comunicação, no qual diferentes
culturas se encontram e colidem. Isso aponta diretamente para o
segundo aspecto da globalização da cultura e, ao mesmo tempo,
198
sugere maior movimento e complexidade cultural .
A
globalização,
para
Featherstone,
assim
como
os
demais
pesquisadores do tema, iniciou-se através da expansão da atividade
econômica, “a ponto de as formas comuns de produção industrial, bens,
comportamentos de mercado, comércio e consumo terem se tornado
generalizadas no mundo inteiro”. A consequência natural foi o entrelaçamento
entre as diversas culturas mundiais, transcendendo de uma consciência de que
“a identidade era vista como algo fixo”, para um “maior reconhecimento de que
as pessoas podem viver felizes com múltiplas identidades”199. Ao mesmo
tempo em que emerge uma cultura global unificada,
[...] existe uma vigorosa tendência a que esse processo de
globalização propicie um estágio para as diferenças globais”, não só
para abrir uma “vitrina mundial das culturas”, na qual os exemplos do
exótico distante sejam trazidos diretamente para o lar, mas para
197
FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura: globalização, pós-modernismo e
identidade. São Paulo: Nobel, 1997, p. 15-16. Nesta obra, o autor define pós modernismo
como sendo tão somente uma “modificação que se liga a uma época ou um novo estágio do
capitalismo” (p. 16.)
198
Ibidem, p. 21-22.
199
Featherstone, 1997, p. 23- 26 passim.
76
proporcionar um campo para um entrechoque mais discordante das
200
culturas .
Assim, ao passo em que a globalização sai da esfera econômica e se
infiltra na questão cultural, a sensação de insegurança e não pertencimento
provoca um efeito inverso, uma vontade de ruptura com este contexto social
com tendências à homogeneização.
Em todos os lugares, cada vez mais, as pessoas sentem a
necessidade de crer e de se inserir em locais de pertencimento.
Assim, à medida que cresce o global, também amplia-se o
sentimento local. As razões desse paradoxo são múltiplas, entre as
quais mencionaremos a seguinte: a globalização, sinônimo de
mercantilização do mundo, introduz localmente um tipo de incerteza
e de vertigem na mente humana. Uma das maneiras de reagir a isso
consiste na busca da certeza de que somente a proximidade poderá
201
garantir, até certo ponto, o sentimento de pertencer .
O que Zaoual pretende dizer com as linhas acima, é que inúmeros
movimentos de resistência que se vêem ultimamente são reflexos desta
incerteza provocada pela globalização, estando entre eles a retomada da
espiritualidade, a difusão ecológica, a adesão a movimentos culturais ou
religiosos, o que significaria um início de “falência do economicismo”. Desta
forma, o processo que hoje aparenta se instaurar, de homogeneidade e
fragmentação, pode dar espaço a um futuro com epistemologia não uniforme,
mas multiforme, que se inicia em meio à “tensão entre a ascensão da
mundialização das economias, de um lado, e a volta às identidades e aos
territórios, de outro”202.
Sobre a cultura global, Featherstone lembra ser um equívoco concebê-la
como um “enfraquecimento comprometedor da soberania dos estados
nacionais” culminando “num estado mundial que produz homogeneidade e
integração cultural”203.“De algum modo, é preordenado que “o processo de
globalização leva a uma sensibilidade cada vez maior às diferenças”, mas
processo de homogeneização da
cultura deve
ser
entendido como
“a necessidade de ignorar ou na melhor das hipóteses, de refinar, sintetizar e
200
Featherstone, 1997, p. 30.
ZAOUAL, Hassan. Globalização e diversidade cultural. São Paulo: Cortez, 2003, p. 21.
202
Ibidem, 21-27 passim.
203
Featherstone, 1998, p. 07-08.
201
77
misturar as diferenças locais”, num “modelo integrado, nada problemático, de
valores comuns”. Featherstone reconhece a possibilidade de que “os
resultados da disputa pela eliminação das lutas de poder entre as nações
desembocaria no predomínio de uma única nação, a qual estaria na posição de
procurar desenvolver uma cultura global comum”, mas considera que isso não
importaria necessariamente no êxito de uma homogeneização cultural 204.
Já sobre a cultura local, esta se apresenta como oposto ao global205:
Emprega-se frequentemente esse conceito para se fazer referência à
cultura de um espaço relativamente pequeno, limitado, no qual os
indivíduos que ali vivem tem relacionamentos diários, cara a cara.
[...] O estoque comum de conhecimentos à disposição no que se
refere ao grupo de pessoas que são os habitantes e o entorno físico
(organização do espaço, construções, natureza, etc.), é
relativamente fixo, segundo se pressupõe, isto é, trata-se de algo
que persistiu ao logo do tempo e pode incorporar rituais, símbolos e
cerimônias que ligam as pessoas a um lugar a um sentido comum do
passado. Tal senso de pertença, as experiências comuns
sedimentadas e as formas culturais que são associadas a um lugar,
206
são fundamentais para o conceito de uma cultura local .
De acordo com Benincá, “o conhecimento construído no cotidiano
cultural é fruto da relação experiencial entre a consciência e o meio ambiente
cultural”. Isso importa dizer que o sentido deste conhecimento só pode ser
analisado se confrontado com o cotidiano no qual ele foi construído, que passa
a ser aceito como natural; em contrapartida, as ações e situações que fugirem
deste cotidiano serão
estranhas ao
senso
comum
de
uma
cultura
determinada207. Aplicando este conceito ao sentido amplo da cultura global, ela
surge como uma “terceira cultura”, ou seja, um “conjunto de práticas,
conhecimentos, convenções e estilos de vida” que se desenvolveram
independentemente da idéia territorial, principalmente não ligados aos EstadosNação, nem em um espaço finito delimitado pelo globo terrestre, “no qual todos
os Estados-Nação e coletividades serão necessariamente atraídos”208.
204
Featherstone, 1997, p. 124-128 passim.
O conceito de cultura global deve ser analisado com relativização, se considerado o planeta
como uma localidade, o que sugeriria a confusão dos conceitos. Ibidem, p. 131.
206
Ibidem, p. 131.
207
BENINCÁ, Elli. O senso comum e suas articulações de resistência aos processos de
transformação. In. ANDREOLA, B.A. et al. Educação, cultura e resistência. Santa Maria:
Pallotti/ITEPA/EST, 2002, p68-69.
208
Feratherstone, op. cit. p. 158.
205
78
Desta forma, conceitos como identidade, cultura e mesmo senso comum
são necessariamente variáveis, nunca absolutos. A resistência à dissolução da
identidade do sujeito somente pode se concretizar à medida em que a
concepção do mundo que a caracteriza seja forte o suficiente para que se evite
a fragmentação, para que haja interesse suficiente neste sentido, o que se
inicia quando o cotidiano cultural percebe a aproximação de uma ação
transformadora.
2.2.1 Integração multicultural e fragmentação
De acordo com Featherstone, podem ser analisadas primeiramente mas não exaustivamente-, seis processos de integração multicultural, a seguir:
a) imersão em uma cultura local há muito tempo estabelecida, com visível
resistência aos fluxos culturais; b) as comunidades que lidam com refugiados
da globalização atraídos pelo ideal de uma vida mais simples “e para um
sentimento de ‘lar’”209; c) as comunidades que buscam redescobrir a etnicidade
e as culturas regionais, mas que procuram “conceder maior reconhecimento à
diversidade regional e local e ao muticulturalismo”, usualmente se mostrando
como uma “máscara” da identidade local - ou voltada ao turismo ou às lutas
com os rivais locais210 d) os viajantes ou expatriados, que levam consigo as
suas culturas locais, limitando “os perigos dos encontros interculturais a
experiências nas quais o estilo adotado é o da ‘reserva’; e) pessoas de
orientação cosmopolita, sobre as quais a afiliação local é limitada – em geral,
pessoas que “travam e desenvolvem um conceito prático, operacional” com
diversas culturas locais; f) os intelectuais cosmopolitas e intermediários
culturais211, pessoas que se integram em terceiras culturas com a finalidade de
209
Featherstone, 1997, p. 137. Como por exemplo os havaianos que retornam às origens e
passam a ser considerados pela comunidade local, como “pardos por fora e brancos por
dentro”.
210
Ibidem, p. 137. Como os escoceses em confronto com os ingleses. O resultado são
“reencenações rituais” da cultura imaginada.
211
Ibidem, p. 138. A exemplo dos estudiosos que passam a conviver com determinada cultura
a fim de analisa-las do ponto de vista do nativo, a fim de repassar estas informações à
platéias cada vez maiores, em geral formadas pela classe média, ansiosa por experiências
similares, ou pela classe acadêmica
79
reapresentar seu “exotismo”, seus “lugares surpreendentes” e as diferentes
tradições a platéias que se recusam a ter o contato direto com tais culturas212.
Estas ações transformadoras podem se dar de forma prejudicial ou ao à
identidade, pois, conforme Benincá, “o senso comum encontra vários recursos
para resistir à pressão que vem dos contextos sociais e que requerem sua
transformação”. Para o autor, o indivíduo que possui uma concepção do mundo
não-consciente se permite conviver com habilidade, em cotidianos culturais
diferenciados e contraditórios. Assim, quando as influências externas,
principalmente as prazerosas, o inconsciente incorpora as novas práticas,
exemplificando com a rápida adesão às facilidades tecnológicas, por sua
significação no cotidiano cultural. Em contraponto, há possibilidade de que os
novos sentidos sejam contraditórios entre si e com os sentidos já existentes,
criando conflitos de identidade213.
Tentar trabalhar com todos estes conceitos, até se chegar no risco da
fragmentação do sujeito é tarefa extremamente delicada, devendo ter-se em
mente que o presente trabalho longe está de esgotar a matéria – se é que
algum trabalho, diante da complexidade do assunto, se atreve a tanto. Uma
forma de simplificar os argumentos é a adoção da perspectiva adotada por Hall
– que o próprio autor define como simplista - , de que “as identidades eram
completamente unificadas e coerentes, e agora tornaram-se totalmente
deslocadas”214.
Considerando que neste conceito a cultura existe apenas no plural,
poder-se-ia dizer que a idéia de uma cultura global significaria total
fragmentação do sujeito, através da perda de sua identidade, de sua própria
definição enquanto ser social. Tais conflitos, dúvidas e ansiedades são os
geradores dos “motivos pelos quais o ‘localismo’ ou o desejo de permanecer
em uma localidade delimitada ou retornar a um sentimento de ‘lar’ tornam-se
212
Featherstone, 1997, p. 137-139 passim.
Benincá, 2002, p. 73-74.
214
Hall, 1998, p. 19.
213
80
um tema importante”215. É a dificuldade em lidar com níveis ascendentes de
complexidade cultural que desperta este desejo que “volta ao lar”,
independentemente deste lar “ser imaginário ou real, ou de ser temporário e
sincretizado ou simulado, ou de manifestar-se no fascínio da sensação de
pertencer, de afiliação e comunidade atribuída aos lares dos outros” 216. É onde
se apresenta a vontade de se preservar a identidade, como forma de evitar as
transformações estruturais decorrentes da influência das culturas externas.
2.2.2 Cultura e identidade nacional
Embora não seja o objeto principal deste estudo, considerando a
recorrente conexão entre os conceitos de cultura e o de nacionalidade, cabe
fazer alguns apontamentos sobre identidade nacional. O “nacional” sempre se
relacionou com os aspectos culturais de um determinado povo: “Seus
elementos étnicos, costumes, sentimentos de comunidade, quando comuns,
constituem
requisitos
necessários
à
consubstanciação
dos
contornos
determinativos da nacionalidade”, o que não significa necessariamente, um
estado de estagnação diante do intercâmbio cultural. Isto significa dizer que um
“Estado sem personalidade cultural própria, sem identidade nacional, é
organismo institucional carente de identificação social, inapropriado, portanto,
às necessidades e clamores da nação que o legitima” 217. Afinal, a criação e a
manutenção da cultura e a busca da autonomia política são características
consubstanciais da nação, uma vez que “a asserção de que o estado como
unidade política deveria coincidir com a nação como unidade cultural é a
expressão mais óbvia e mais universal de nacionalismo”218.
O homem possui uma necessidade intrínseca de “primeiramente
identificar-se a si próprio como algo maior”, seja um grupo, classe ou nação,
215
Featherstone, 1997, p. 144.
FEATHERSTONE, Mike. Localismo, globalismo e identidade cultural. In. DEPARTAMENTO
DE SOCIOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Sociedade e Estado. N. 1, (jan. jun).
Brasília: O Departamento, 1996, p.10 .
217
Almeida Filho, 1998, p. 23-24.
218
ARNASON, Johann P. Nacionalismo, globalização e modernidade. In. Featherstone, 1998,
p. 226.
216
81
“de algum arranjo ao qual ele pode não associar nenhum nome, mas que ele
instintivamente reconhece como um lar”219. Esta necessidade de associação
indica uma espécie de construção e valorização de identidades coerentes, de
mutação do movimento individualista para o de coletividade e de pertencimento
a esta coletividade. O cada vez mais fluente intercâmbio entre as identidades
provoca
desconfortos,
mesmo
que inconscientes, desenvolvendo
esta
necessidade de reaproximação do homem ao convívio em uma sociedade
cujas características reconhece como suas. A questão é assim definida por
Featherstone:
O problema de tentar viver com múltiplas identidades ajuda a gerar
infindas discussões sobre o processo de encontrar ou construir uma
identidade coerente [...]. No entanto, em contraste com aqueles
argumentos que presumem que a lógica da modernidade é produzir
um individualismo estreito crescente, preocupação narcisista com a
identidade individual, comum na década de 1970, hoje deparamos
com argumentos que enfatizam a busca de uma forte identidade
coletiva, alguma nova forma de comunidade, nas sociedades
220
modernas .
De acordo com Almeida Filho, a humanidade tornou-se individualista por
exigência de sua evolução, quando o progresso virou sinônimo de
aprimoramento, provocando a organização da sociedade e de sua hierarquia
societária. Assim, a “tendência do engrandecimento individual incorporou-se à
personalidade humana, […] tornou-se desmedida e atingiu o equilíbrio da
sociedade” e, como consequência, as nações passaram a incorporar uma
ideologia de dominação. Neste ínterim, a identidade cultural pode contribuir de
duas formas: ou como redutor das proporções do individualismo, ou como
fomentadora deste – a identidade cultural “tem o condão de unir os homens em
torno de uma nação, ou deixá-los obcecados pela própria individualidade”221.
A definição do termo “nação” também é passível de algumas
considerações; de um lado Williams, citado por Featherstone, afirma que o
termo “nação” está radicalmente ligado a “nativo”, à origem em uma
comunidade local, e associá-lo à idéia de Estado-nação é algo “totalmente
219
Hall, 1998, p. 37.
Featherstone, 1997, p. 165.
221
Almeida Filho, 1998, p. 34-35 passim.
220
82
artificial”. Em contraponto, Anderson associa ambos os termos e afirma que
uma nação necessariamente deve ser considerada como uma “comunidade
imaginada”, o que sugere o sentido de pertencimento a um espaço
geograficamente delimitado, “sedimentado com sentimentos simbólicos”,
capazes de representar um laço também simbólico “que supera e incorpora as
várias aflições locais que as pessoas tem”222.
Ortiz segue a linha de Andreson, associando ambos os termos, porém,
questionando mais profundamente a resignifcação do “espaço”. Define nação
como “formação social singular, estrutura capaz de soldar os indivíduos e os
seus destinos, no contexto de um território específico”, e no contexto
globalizado as discussões sobre o declínio do Estado-nação tem implicações
que ultrapassam o terreno político, pois “esse processo de integração
corresponde
a
uma
profunda
transformação
da
idéia
de
espaço”,
sobressaltando-se daí a importância da cultura como geradora do vínculo entre
os homens, “o elo que organicamente articula a ‘solidariedade’”, podendo-se
afirmar que a identidade nacional precede a própria a consolidação na
nação223.
[...] o movimento de globalização não se caracteriza por ser
simplesmente uma dimensão metanacional, ele nada tem de “supra”
ou de “inter” relacional. Trata-se de um processo social que
atravessa o Estado-nação redefinindo-o inteiramente. Lembro que
mundialização da cultura (e tenho insistido nesse ponto) implica a
224
transformação da própria categoria de espaço
Para Ortiz, “uma das características do Estado-nação é que ele constitui
um arcabouço para a organização e a administração da política”, um
verdadeiro “lugar de poder” que acaba sendo colocado em risco diante da
globalização, uma vez que “parte substantiva deste poder deixa de ser
articulado no interior do Estado-nação”, a exemplo da incapacidade de os
Estados-nação poder controlar o fluxo de capital financeiro diante do
funcionamento do mercado internacional.
222
Featherstone. 1996, p. 16-17 passim.
ORTIZ, Renato. Anotações sobre a mundialização e a questão nacional. In.
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Sociedade e
Estado. N. 1, (jan. jun). Brasília: O Departamento, 1996, p. 44-48 passim.
224
ORTIZ, Renato. Mundialização: saberes e crenças. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 82.
223
83
Bertussi utiliza as alegações de Oliven, para traduzir que as identidades
locais, especificamente no Brasil, devem ser encaradas como reação a uma
homogeneização cultural, salientando as diferenças culturais225, no sentido de
que retratam um espírito nacionalista na luta contra a massificação cultural. Ao
analisar a obra de Oliven, seus apontamentos sugerem que a questão do
renascimento da tradição e do sentimento nacional surgem justamente em uma
época em que o mundo é visto, cada vez mais como uma “aldeia global”,
marcado-se aí o que o autor denomina de tensão entre autonomia e
integração, dedicando um capítulo inteiro da obra a este fim:
Uma das razões pelas quais a problemática da nação e da tradição
permanece sendo extremamente atual num mundo que tende a se
tornar uma “aldeia global” se deve ao fato de as pessoas
continuarem a nascer num determinado país e região, a falar a sua
língua, a adquirir seus costumes, a se identificar com seus símbolos
e valores, a torcer por sua seleção nacional de desporte, a respeitar
226
sua bandeira e a morrer pela honra nacional.
Mais uma vez reitera-se a importância da identidade pessoal e social,
capaz de fortalecer o próprio sentimento nacionalista. Se a sociedade souber
gerir os influxos culturais recorrentes de forma crítica e coerente, incorre em
menor risco de fragmentação de sua unidade cultural. Nas palavras de
Benincá, o sendo comum
[…] para preservar a identidade de cada indivíduo e do grupo
cultural, articula-se em concepção do mundo para resistir às
tentativas de transformação de sua estrutura. Opõe-se à reflexão
procurando reduzi-la a um mero discurso, principalmente quando
este não vem acompanhado de novos sentidos, aceita passivamente
a introdução desses sentidos, aceitando submissamente a sua
transformação. Como isso é feito de forma não consciente, portanto,
de forma não crítica, sua ação continuará sendo espontânea,
227
propenso à ingenuidade e à fragmentação .
Oliven recorda a preocupação de Machado de Assis, já no século XIX,
sobre a questão da nacionalidade, ao retratar que um escritor, para ser
considerado nacional, não deveria restringir-se a assuntos de cunho local, mas
seria necessário pertencer-lhe certo “sentimento íntimo, que o torne homem de
225
BERTUSSI, Lisana. Tradição, modernidade, regionalidade. Caxias do Sul: EDUCS, 2009, p.
77.
226
Oliven, 2006, p. 35.
227
Benincá, 2002, p. 78.
84
seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e
no espaço”228. O movimento modernista de 1922, que em muito contribuiu para
a projeção cultural do Brasil no cenário internacional, se apresenta como
“divisor de águas” na ressignificação cultural brasileira em contexto mundial,
mas principalmente se destaca como fomentador das discussões sobre a
formação da identidade nacional, com Mário de Andrade, Drummond, Oswald
de Andrade, todos preocupados, já no início do século XX, com o contato da
cultura brasileira com os estrangeirismos229.
A evolução deste embrião, preocupado com a cultura nacional, é o
aumento de significação das culturas regionais - que dão aporte a à cultura
nacional-, sendo que tal conceito evolui de uma visão negativa para uma visão
positiva, ou seja,
[...] antes era preciso demonstrar que o regionalismo não consistia
em uma visão estreita do processo social, em qualquer de suas
dimensões; hoje, a percepção das relações regionais é vista como
um modo adequado de se entender como funciona, ou pode
funcionar, o processo de mundialização de todas as relações
230
humanas” .
Assim como o conceito de nacionalidade, o de regionalismo é uma
construção, porquanto se trata de algo voltado à construção de uma identidade
regional. Ambos os conceitos, que antes eram ligados basicamente ao espaço
geográfico, sofrem crescentes descontinuidades, principalmente ao se conectar
a outros espaços. O que ainda separa a todos são elementos comuns e
socialmente determinados que os diferenciam e mantém a sensação de
“interno e externo”, independente de fronteiras. Psicologicamente retrata uma
unidade necessária ao ser humano, ao que se denomina de necessidade de
“pertencimento”, de reconhecimento, de identificação com uma estrutura maior,
para que seja possível uma definição do próprio sujeito, na modalidade “quem
sou”.
228
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Instinto de nacionalidade. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1999, p. 18.
229
Oliven, 2006,, p. 41-42.
230
Pozenato, 2003, p. 149.
85
Através de uma cultura e uma identidade sólidas, o sujeito se identifica
como “brasileiro” (identidade nacionalista), “gaúcho” (identidade regionalista),
indepentementente do lugar em que se encontra, porque carrega estes aportes
culturais consigo, para onde quer que vá. É o “ponto de referência”, citado por
Lévi-Strauss, em que pese ser a identidade abstrata e sem existência real231.
Desta forma, note-se que a análise da globalização e da cultura não se
faz senão pela criação mental de uma rede de conceitos e idéias, todos
interdependentes e mutáveis, de forma a se “tentar” compreender os
fenômenos sociais decorrentes deste novo processo dialógico mundial.
2.3 A mundialização da cultura gaúcha
A cultura gaúcha se manifesta através de sua tradição. O conceito de
tradição, aqui, pode ser encarado como “a continuidade de um povo no tempo
e no espaço”, como o “espírito de uma raça, uma força poderosa que empresta
coesão e firmeza ao caráter de um povo”, referência esta de Moya, citado por
Ornellas232.
A identidade gaúcha se trata inicialmente de uma identidade local, e o
enfraquecimento dos grupos locais e, consequentemente, de sua vida grupal, é
uma das características contemporâneas. Conforme o MTG, cada centro de
tradições, em si, constitui um grupo local e o espraiamento de novos centros
provoca a confusão entre localismo e regionalismo, pois os indivíduos acabam
por deter interesses e características comuns, formando uma “unidade
psicológica de sociedade regional”233. Afinal, a preservação do regionalismo
“antes de representar apego apaixonado às tradições da terra natal, constitui
meio por intermédio do qual a integridade da identidade cultural pode ser
mantida em relação às nocivas consequências da aculturação”234.
231
Lévi-Strauus, citado por ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 3. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1985, p. 137.
232
Movimento Tradicionalista Gaúcho, 2006, p. 30-31.
233
Ibidem, p. 41.
234
Almeida Filho, 1998, p. 63.
86
Sob o mesmo prisma, à medida em que o tradicionalismo gaúcho
avança fronteiras, tem-se o fenômeno que aqui se denomina “mundialização da
cultura gaúcha”, dotando os tradicionalistas, dos quatro cantos do mundo, de
uma unidade identitária detentora dos mesmos afetos, usos e costumes. A
partir deste fenômeno, a idéia de “local”, “regional” ou “global’ se tornam ainda
mais solúveis.
2.3.1 A discussão da cultura e da identidade gaúcha
O tradicionalismo gaúcho sempre teve inimigos. Aliás, como afirma
Lima, “se o MTG não tivesse adversários, deixaria de existir enquanto
movimento, para se transformar numa instituição estabelecida, perdendo sua
característica fundamental de movimento que é o de atingir adeptos”, citando
Tourraine, ao referir que “os movimentos são o ‘lugar’ estratégico onde se
renovam e explicitam os valores da sociedade”235.
A principal afirmação dos antitradicionalistas é a de que o gauchismo é
uma cultura inventada e que a realidade das classes privilegiadas e
dominantes, principalmente da latifundiária, trazendo em seu bojo uma
identidade irreal, “criada” pelos tradicionalistas. Um dos principais combatentes
do gauchismo é o radialista catarinense, radicado em Santa Maria, Tau Golin.
Golin sustenta que o movimento tradicionalista “articula-se através de
uma ideologia necessariamente unificadora. Exploradores e explorados
defendem os mesmos princípios na compreensão do mundo”236. Uma das
autoras que dão suporte às alegações de Golin é Pesavento, para quem o
tradicionalismo se trata de uma cultura à serviço da classe dominante:
O Tradicionalismo é apenas um elemento na superestrutura. Porém,
está correlacionado com todos os outros organismos de sustentação
da classe dominante. [...] Nesse sentido, o trabalho intelectual e
artístico “aprofunda” a coerência do mundo tradicionalista. No Rio
Grande do Sul, no transcorrer de sua história, apreciou-se
235
236
Lima, 2004, p. 23-24.
GOLIN, Tau. A ideologia do gauchismo.Porto Alegre: Tchê, 1983, p. 12.
87
profundamente a ascensão de intelectuais das classes inferiores,
que, a serviço da elite, orientaram “justificativas” à sua visão de
mundo. Mantendo essa tradição, os atuais expoentes do
tradicionalismo, somam-se as tarefas conjugadas para sua
dominação e hegemonia. “criadores da ideologia da classe
dominante, os intelectuais atuam no seio da sociedade civil (partidos,
igrejas, sindicatos, educação, atividades culturais), bem como no da
sociedade política, como administradores, funcionários, militares,
237
políticos .
À semelhantes alegações, defende Lamberty ser inegável que “todas as
classes sociais atuam nos seios dos partidos, igrejas, sindicatos, atividades
culturais, etc.”, o que é muito diferente de possuir uma ideologia políticopartidária238. Afinal, não há razão para supor que os tradicionalistas fossem
somente os homens do campo, desfiliados totalmente da vida em sociedade e
sem participação alguma nos rumos econômicos ou mesmo políticos do meio
em que vivem.
Sustenta Golin, a exemplo do que expressou Sérgius Gonzaga, que a
massa camponesa “preencheu seu vácuo moral ‘com a moralidade dos
poderosos: crença na honra, no direito à propriedade privada, etc’”, pesando
sobre esta construção a capacidade de incorporação, pela oligarquia, das
noções atinentes ao código moral dos gaúchos, como a valentia, a
camaradagem, o respeito à palavra dada239. Desta forma, e a luta pela
conquista do aparelho do Estado ocorreu tão somente pela classe dominante, o
que pode ser facilmente demonstrado pelo nível cultural dos agentes
envolvidos, os heróis republicanos240, sendo inegável que o tradicionalismo
nasceu da elite:
O que nos interessa perceber é que os tradicionalistas, sem
exceção, na primeira fase, eram todos homens da classe dominante,
ou seus subalternos comissários. [...] É exatamente nesse sentido
que as atividades culturais, etc, dos clubes passam a ser um
importante trabalho ideológico. Esse fetichismo do passado implicou,
em tese, na supervalorização das coisas representativas dessa
classe, notadamente de sua parte latifundiária, que era hegemônica.
Vem daí que todas as coisas da estância eram acessórios
fundamentais para a sociedade rio-grandense. Essa apologia inclui o
237
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Historiografia e ideologia. RS: cultura e ideologia. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1980, p. 61.
238
Lamberty, 1989, p. 43.
239
Golin, 1983, p. 19-20 passim.
240
Ibidem, p. 29.
88
cavalo, o homem da estância, o laço, a boleadeira, o arreio, etc, a
“raça forte e galharda”, capaz de “inúmeras epopéias de civismo e de
241
valor” .
Nenhum tradicionalista parece se importar em negar as origens
“elitizadas” do movimento. Contudo, reconhecem que da forma que se
desenvolveu, e que pelos idéias que agrega, o movimento se traduziu
verdadeira confraternização de classes sociais no interior dos CTGs,
embasados em um pedestal principal: a família. Afinal, “a própria literatura
gaúcha aborda uma temática realista, de dominantes e dominados,
considerando a pessoa como pessoa, numa convivência social hospitaleira” 242.
Neste sentido, Lamberty expõe que o tradicionalismo
[...] é um movimento sadio, imparcial, alicerçado na moral, que
conserva seus valores. Nele, a sociedade vive dentro de um espírito
de liberdade, hospitalidade e respeito á propriedade. Num galpão de
estância, verdadeiro clube campeiro, peões e patrões comungam de
uma mesma festança. O patrão espera sua vez numa roda de
243
chimarrão .
Em crítica a Golin, Lamberty o acusa de “desconhecer a força e a
imparcialidade do Tradicionalismo”, e que é provável que deva ter encontrado
dificuldades para abrir espaços no movimento, optando pela crítica. Lamberty
diz não entender o combate ao ruralismo, indagando se é somente no meio
rural que existem desajustes sociais, e se nas demais atividades também não
existem dominados ou dominadores. Argumenta: “debitar ao Tradicionalismo
os desajustes sociais não me parece correto. O Tradicionalismo quer o povo
construindo seu próprio destino”244.
Outra
base
das
críticas
de
Golin
é
o
constante
desejo
de
aperfeiçoamento do movimento sem a identificação profunda de sua essência,
o que só é possível por estar o tradicionalismo “solidificado em uma ontologia
que estabelece cristalinamente sua natureza”. Para ele, o tradicionalismo é um
evento “complexo” e “hegemônico alienante”, cuja tese unifica os homens,
levando a crer a inexistência das classes sociais, integração esta que deve ser
241
Ibidem, p. 35-36 passim.
Lamberty, 1989, p. 41.
243
Lamberty, 1989, p. 41-42.
244
Ibidem, p. 42-44.
242
89
compreendida como “dominação”. Afirma de forma significativa que o
tradicionalismo “tem a função precípua de convencer a massa de mais de dois
milhões de soldados que, na sociedade, onde cada um está aí é,
inalteradamente, o seu lugar”245.
Conforme
Oliven,
os
debates
sobre
a
identidade
gaúcha
se
desenvolvem sobre um eixo “baseado num passado que teria existido na
região pastoril da campanha no sudoeste do Rio Grande do Sul e na figura real
ou idealizada do gaúcho”. O autor é claro na demonstração de que a figura
idealizada do gaúcho exclui parte do território e parte da população,
principalmente em relação à metade norte do Estado, região esta de notável
desenvolvimento econômico e político, graças aos descendentes de alemães e
italianos, e afirma que situação ainda pior seria a exclusão relacionada à pálida
participação negra e indígena na formação da identidade gaúcha246.
Assim, a discussão recai sobre a alegação de que a cultura gaúcha se
compõe, na verdade, de idéias e de uma tradição inventada, porquanto se
estabelece sobre a figura de mitos e reflete a realidade (histórica e econômica)
de uma minoria social – como se somente a cultura gaúcha assim o fizesse. Os
“questionadores” parecem esquecer-se de indagar a cultura norte-americana
totalmente
embasada
em
ícones
históricos
(de
realidade
altamente
questionável), onde seus personagens ilustres são exemplos unicamente de
virtude, beleza e coragem; ou ainda, sobre os costumes culturais do “Velho
Continente”, totalmente moldada pela minoria abastada, como o famoso “Chá
das Cinco” inglês ou o uso dos kilts escoceses. Também não se veem
questionamentos na literatura sobre o uso do kipá pelos judeus, sempre sob a
mesma alegação – de que se deve respeitar seus usos e costumes por
fazerem parte de suas culturas.
Novamente se pergunta: tais mitos, usos e costumes também não foram
inventados?
Também
não
se
tornam
“inadequados”
aos
olhos
da
“modernidade”? Afinal, que diferença (e que mal) há no chimarrão ou na
245
246
Golin, 1983, p. 51-56 passim.
Oliven, 1992, p. 06.
90
bombacha, que também são reconhecidos mundialmente como parte da cultura
de mais de 2 milhões de pessoas, que, independentemente da origem do
termo, sentem-se orgulhosos da denominação de gaúchos?
Morello retoma a discussão sobre a construção da “cultura” através da
convalidação de seus sentidos, ou seja, de que não se pode falar em uma
significação de cultura sem dizer o que não lhe convém. Isto significa dizer que
a identificação dos padrões culturais é importante à medida que se pretende
proteger a cultura da fragmentação, decorrente da influência do exótico, do
desconhecido, do migrante. Assim, “no desdobramento das relações de sentido
que entretecem o espaço de significação do cultural”, na atualidade, o espaço
comum se apresenta como “ponto de conexão entre um conjunto de práticas
político-sociais que sintomatiza limites para se discriminar o um e o outro”,
criando definições que se convergem a um único desfecho, apontado pela
autora como sendo a “restauração das identidades”247.
Sobre a alegação de que a tradição gaúcha é uma “tradição inventada”,
vale contemplar os argumentos de Hobsbawn sobre este fenômeno, uma vez
que o autor reconhece que, não raras vezes, “’tradições’ que parecem ou são
consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas”,
termo este utilizado em sentido amplo que inclui as tradições “realmente
inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas”, quando as que
surgem de forma imperceptível, sem ser possível designar-lhes um ponto
inicial, e se espalham com extrema rapidez248.
Hobsbawn ainda diferencia tradição de costume, pois enquanto este é
mutável, as características daquele são essencialmente a invariabilidade de
seu passado (real ou forjado), que se reflete em práticas fixas, exemplificadas
pela repetição:
247
MORELLO, Rosângela. Casas e centros de cultura e o movimento de sentido na cidade. In.
ORLANDI, Eni Puccinelli. (org.). Cidade atravessada: os sentidos públicos no espaço urbano.
Campinas: Pontes, 2001, p. 36.
248
HOBSBAWN, Eric. Introdução: a invenção das tradições. In. _____; RANGER, Terence. A
invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 09.
91
Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas,
normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas;
tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos
valores e normas de comportamento através da repetição, o que
implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.
Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com
um passado historicamente apropriado. [...] Contudo, na medida em
que há referência a um passado histórico, as tradições “inventadas”
caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante
artificial. Em poucas palavras, elas são reações a situações novas
que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou
estabelecem seu próprio passado através da repetição quase
obrigatória. É o contraste entre as constantes mudanças e inovações
do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira imutável e
invariável ao menos alguns aspectos da vida social que torna a
“invenção da tradição” um assunto tão interessante para os
estudiosos da história contemporânea.
A “tradição”, neste sentido deve ser nitidamente diferenciada do
“costume” vigente nas sociedades ditas “tradicionais”. O objetivo e a
característica das tradições, inclusive as inventadas, é a
invariabilidade. O passado real ou forjado a que elas se referem
impõe práticas fixas (normalmente formalizadas), tais como a
repetição. O “costume”, nas sociedades tradicionais, tem a dupla
função de motor e volante. Não impede as inovações e pode mudar
até certo ponto, embora evidentemente seja tolhido pela exigência
de que deve parecer compatível ou idêntico ao precedente.[...] O
“costume” não pode se dar ao luxo de ser invariável, porque a vida
não é assim nem mesmo nas sociedades tradicionais. O direito
comum ou consuetudinário ainda exibe esta combinação de
flexibilidade implícita e comprometimento formal com o passado.
Nesse aspecto, aliás, a diferença entre “tradição” e “costume” fica
bem clara. “Costume” é o que fazem os juízes; “tradição” (no caso,
tradição inventada) é a peruca, a toga e outros acessórios e rituais
formais que cercam a substância, que é a ação do magistrado. [...]
Provavelmente, não há lugar nem tempo investigados pelos
historiadores onde não haja ocorrido a “invenção” de tradições neste
249
sentido.
O autor complementa, afirmando esperar que a invenção das tradições
ocorra com maior frequência, pois ocorre quando “uma transformação rápida
da sociedade debilita ou destrói os padrões sociais para os quais as ‘velhas’
tradições foram feitas”, ou seja, “inventam-se as tradições quando ocorrem
transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da demanda
quanto da oferta”, e o estudo destas tradições “esclarece bastante as relações
humanas com o passado e, por conseguinte, o próprio assunto e ofício do
historiador”, já que “toda a tradição inventada, na medida do possível, utiliza a
história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal” 250.
249
250
Hobsbawn e Ranger, 1984, p. 09-10.
Ibidem, p. 12-20, passim.
92
Suas palavras vão ao exato encontro das de Morello, para quem esta
relação dos sujeitos acaba demandando uma “emergência dos espaços de
práticas identitárias”, destacando-se o uso da mesma língua, “que se desloca
de seu uso corriqueiro enquanto instrumento de comunicação ou de realização
de atos pragmáticos”, bem como o uso de elementos históricos e simbólicos
“que engendram o sujeito em seu modo de estar no mundo e habitar o
espaço“251,
o
que
acaba
sendo
deslocado
para
um
lugar
próprio,
particularizado, mesmo que seja idealizado.
Trazendo esta perspectiva à análise da sociedade contemporânea, a
identificação do sujeito com uma determinada cultura, e o convívio neste
espaço - não necessariamente os centros de tradições, mas a ligação à própria
circunscrição territorial do Rio Grande do Sul, parece estar legando aporte
suficiente ao enfrentamento da multiplicidade cultura. Divide-se o sujeito em
meio à realidade globalizada e ao sentimento de pertencimento a uma cultura
bem estruturada, ao “porto seguro” capaz de identificar seu lugar no mundo e
sua própria identidade.
A luta contra o gauchismo persevera desde seus primórdios. À mesma
medida em que as camadas sociais tomavam gosto pelo movimento, a mídia
que a ele se opunha não raras vezes passou a denegrir a imagem do gaúcho e
as atividades tradicionalistas, atribuindo-lhes a idéia de grosseria, violência,
falta de credibilidade e arrogância. Ou seja, nas exatas palavras de Lessa, a
imprensa
contrária
ao
gauchismo
passou
o
agir
“sub-repticiamente,
aproveitando qualquer oportunidade para confirmar a barbárie, o banditismo ou
a deseducação de um CTG” 252, suplantando-se principalmente nas páginas e
noticiários policiais.
Em outra de suas obras, Golin sustenta que, em se tratando de folclore,
ou mesmo de tradição, não poderia o detalhe passar à regra, pretendendo
referir-se ao movimento tradicionalista. “Ao folclore se deve reservar o lugar de
elemento cultural, além de seu valor intrínseco”, argumenta, afirmando em
251
252
Morello, 2001, p. 36 – 37 passim.
Lessa, 1985, p. 99.
93
seguida que “por mais que o empirismo das invernadas artísticas dos CTGs se
esforcem, não passarão do resultado da imitação”. Exemplifica, desafiando a
quem quer que seja, que leve um professor de dança para uma rua da praia, e
tentar “encenar” uma coreografia com as cem primeiras pessoas que encontrar.
“Espontaneamente (para ser folclore), quantas saberão?”, indaga. “Seria
possível considerar folclore a exceção”?253.
Note-se que o próprio Golin se contradiz. Busca desenfreadamente
justificar que a tradição gaúcha está longe de ser a regra cultural sul-riograndense, por traduzir uma cultura de elite e perfis latifundiários originária da
metade sul do Estado. Entretanto, relata, em palestra proferida em Erechim254,
região noroeste rio-grandense, praticamente divisa com Santa Catarina:
Exatamente no dia 20 de setembro, data máxima do gauchismo,
estivemos em Erexim debatendo com os alunos do Centro de Ensino
Superior. Era época envolta pelo ufanismo rio-grandense.
Repartições públicas, bancos, etc., e até o mais humilde cidadão
ostentava com orgulho sua pilcha. [...] Discutir o tradicionalismo e
gauchismo em Erexim tem outra dimensão do que fazê-lo na
fronteira, onde o cotidiano possui uma “coerência” nesse aspecto.
Certamente suscita inquietude a questão: por que Erexim hoje
comemora com tanta ênfase, como qualquer região de fronteira, a
revolução Farroupilha quando sequer existia na época do decênio
glorioso e poloneses e italianos ainda não sonhavam com estas
paragens?
Sabemos perfeitamente que o que podemos caracterizar como
gaúcho típico não existe em Erexim. [...]
A ideologia predominante produziu estragos que à primeira vista não
255
se percebe. [...] .
Em outras partes de sua obra podem se verificar situações semelhantes.
Apenas
para
exemplificar,
colacionam-se
seus
comentários
sobre
o
Acampamento Farroupilha, onde o próprio autor afirma a diversidade social e
sua abrangência, mais uma vez não podendo dizer se tratar da exceção o
tradicionalismo gaúcho.
253
GOLIN, Tau. Por baixo do poncho. Porto Alegre: Tchê, 1987, p. 26-29 passim.
O autor preferiu escrever o nome da cidade como “Erexim”, palavra indígena que significa
campo pequeno, e por sua origem, deveria ser escrito com “x”. O nome da cidade,
entretanto, na obedece às regras da Comissão Ortográfica Brasileira, sendo corretamente
escrito com “ch” desde a fundação da cidade.
255
Golin, op. cit., 41-42.
254
94
Para o Parque da Semana Crioula, acorre a população do centro
urbano e das vilas, e se misturam pelos acampamentos, observando
prosas e concursos. Há o assalariado, o biscateiro, o vendedor de
bilhetes e pastéis, bolinhos, roscas e rapaduras. Há o “magrinho”
curtindo o gauchismo. Há os sorriso, uns com dentes alvos, outros
256
com tocos e gengivas .
Ao tecer estas questões, referindo-se à predominância do gauchismo às
culturas decorrentes das origens genéticas dos sul-rio-grandenses, bem como
com relação à abrangência geográfica e social do movimento, Golin fere as
próprias alegações - de se tratar de “exceção” a tradição gaúcha, de afastar as
questões folclóricas e tradicionalistas. O autor demonstra, por si só, por mais
que não lhe agrade - ou que fuja à sua compreensão-, se tratar o
tradicionalismo de uma realidade cultural, presente em todas as fronteiras do
Estado e cada vez mais presente nos diversos recantos do Brasil e do mundo.
A Uma vez afastada esta tentativa de afirmar se tratar o tradicionalismo
de mera “exceção”, a análise retorna às primeiras discussões, que afirmam que
a identidade gaúcha fora criada, não retratando o verdadeiro “gaúcho” dos
pampas. Neste sentido, cabe retomar a discussão sobre a identidade, e
relembrar que a matriz majoritária dos pesquisadores entende ser a identidade
justamente um processo de construção social. Woodward, citado por Necchi,
questiona a possibilidade de existir qualquer identidade, seja étnica, seja
nacional, sem que seja reivindicada uma história que sirva de fase a uma
identidade fixa257. Hall afirma, neste sentido, que “não podemos falar por muito
tempo, com exatidão, sobre uma ‘experiência, uma identidade’, sem admitir a
existência de seu outro lado – as rupturas e descontinuidades258”.
Para finalizar, mais uma vez sem pretender esgotar a questão, fica aqui
anotado o “desafio” proposto por Lessa, ao escrever o Sentido e Alcance do
Tradicionalismo, ao escrever que a passagem do tempo mostraria o acerto ou
256
Golin, 1987, p. 69.
Necchi, 2009, p. 15.
258
HALL, Stuart. Identidade cultural e diáspora. Revista ao Patrimônio Histórico Nacional, n 24,
2007, p. 69
257
95
não desta campanha cultural259. Ao menos por ora o tempo parece estar se
traduzindo favorável à disseminação e à vivência do tradicionalismo gaúcho,
não apenas em solo sul-rio-grandense, mas em todos os territórios atingidos
por esta cultura.
2.3.2 O tradicionalismo gaúcho diante do risco da perda da identidade
A preocupação com a fragilização da identidade gaúcha é tema
recorrente entre os tradicionalistas. Lessa reconhece que “o globo terrestre não
é, simplesmente, uma figura astronômica, mas um território onde os países se
encontram atrelados, diferenciados, antagônicos”, sendo que “a globalização,
de um lado, encanta, de outro, atemoriza”260.
Todas as identidades – uma vez que se fundam na cultura e tradições
dos povos-, permeiam riscos permanentes: diluir-se diante da perda de
reconhecimento popular ou sucumbir diante das influências externas. Certo que
as identidades não são estanques, ou seja, são moldadas conforme a evolução
da sociedade, mas quando se fala em identidade tradicional a idéia de pontos
expressivos, definidos como base fundante desta identidade, devem ser
protegidos ante a possibilidade da fragmentação e da perda de seu sentido.
Em contrapartida, quando o patrimônio cultural é coeso, a própria identidade é
fortalecida. É nestes exatos termos que se manifesta Lessa:
Quando a cultura de um determinado povo é invadida por novos
hábitos e novas idéias, duas coisas podem acontecer. Se o
patrimônio tradicional é coerente e forte, a sociedade somente tem a
lucrar com o contato, pois sabe analisar, escolher e integrar em seu
seio aqueles traços novos que realmente sejam benéficos. Se,
porém, a cultura invadida não é predominante e forte, a confusão
social é inevitável: idéias e hábitos incoerentes sufocam o núcleo
central. Desnorteando os indivíduos e fazendo-os titubear entre as
crenças e valores mais antagônicos. Crescendo nessas
circunstâncias, a criança e o adolescente não são capazes de
assumir, em seu espírito, qualquer expectativa clara de
comportamento. E assim se originam, entre outros, os problemas de
261
delinquência juvenil .
259
LESSA, Barbosa. O sentido e o valor do tradicionalismo gaúcho. 1954. In. Página do
gaúcho. [D.l.; s.d.]. Disponível em: <http://www.paginadogaucho.com.br/ctg/valor.htm>.
Acesso em: 14 nov. 2009.
260
Lima, 2004, p. 132.
261
Lessa, 1985, p. 81.
96
As influências exteriores não são um evento contemporâneo. Ao
contrário. Trata-se de uma ordem natural dos fatores sociais, pois conforme as
diferentes identidades se relacionam entre si, sofrem mútuas influências, em
maior ou menor escala. Estas influências também não se restringem a
aspectos isolados, importando no risco desta mescla identitária nos usos,
costumes, crenças, política, economia – todas de forma interligada. No ano de
1917, João Pinto da Silva, teceu importante (e efusivo) grito de alerta, diante do
domínio
norte-americano
quanto
às
operações
bancárias
no
cenário
internacional:
As manoplas gigantescas, de dedos de aço e ferro, dos plutocratas
do Norte, hoje encerram inúmeros títulos de nossas dívidas.
Surdamente, em torno de nós, dia-a-dia cresce uma força estranha
que debilita a nossa economia. O grande perigo, para a manutenção
do espírito latino, não virá sob forma dramática de uma invasão
militar, duma absorção por meio de esquadras e de exércitos: virá,
incruentemente, por nosso próprio intermédio, se nos deixarmos
seduzir pela civilização norte-americana, se a copiarmos em todos
os detalhes. Evitemos o predomínio entre nós do materialismo
absoluto. Bastará que nos esforcemos no sentido de conservar os
nossos traços distintivos, as nossas linhas características, como raça
262
e como Estado .
Entre os riscos “declarados” à cultura gaúcha, destaca-se o período
seguinte ao final de Segunda Guerra Mundial, com a forte influência dos
costumes norte-americanos. Os Estados Unidos haviam virado mania mundial
– Hollywood e rock’n roll tomaram conta das cidades e dos campos. A
sociedade sul-rio-grandense, que já negava as próprias tradições e costumes,
através da noção pré-concebida que ligava a idéia de “tradição” aos costumes
europeus, passou a ligar o conceito de modernidade à América do Norte,
sendo invadida por mais uma ideologia alienígena. É justamente nesta época
que esta mesma sociedade foi surpreendida com a iniciativa dos adolescentes
do Grêmio Estudantil Júlio de Castilhos, em um movimento contrário à
alienação cultural que estava se estabelecendo, os quais, conforme Oliven,
procuravam a própria identidade gaúcha, combatendo de forma declarada a
descaracterização cultural263.
262
263
SILVA, João Pinto da. Vultos do meu caminho. Porto Alegre: Globo, 1918, p. 15.
Movimento Tradicionalista Gaúcho, 2006, p. 10.
97
Sobre a insegurança instaurada com as mudanças sociais e o cada vez
mais comum contato entre as culturas, em 1954, Lessa se manifestou de forma
bastante objetiva, em sua histórica tese O sentido e o valor do tradicionalismo
gaúcho, no sentido de que o enfraquecimento do núcleo cultural é um risco
incipiente:
Pois bem. Devido ao surto surpreendente do maquinismo em nossos
dias, bem como da facilidade de intercâmbio cultural entre os mais
diversos povos, observa-se que o núcleo das culturas locais ou
regionais vai se reduzindo gradativamente, a ponto de se ver
sufocado pela zona das Alternativas. E a fluidez naturalmente se
acentua, à medida que as sociedades mantêm novos contatos com
traços culturais diferentes ou antagônicos, introduzidos por viajantes
ou imigrantes, ou difundidos por livros, imprensa, cinema, etc. Nossa
civilização, antes alicerçada num núcleo sólido e coerente,
transformou-se numa variedade de Alternativas, entre as quais o
indivíduo tem que escolher. Sem ampla comunidade de hábitos e de
idéias, porém, os indivíduos não reagem com unidade a certos
estímulos, nem podem cooperar eficientemente. Daí os conflitos de
ordem moral que afligem o indivíduo, fazendo atarantar-se sem
saber quais as opiniões e os valores que merecem acatamento.[...]
O fundamento científico deste movimento encontra-se na seguinte
afirmação sociológica: "Qualquer sociedade poderá evitar a
dissolução enquanto for capaz de manter a integridade de seu
núcleo cultural. Desajustamentos, nesse núcleo, produzem conflitos
entre indivíduos que compõem a sociedade, pois esses vêm a
preferir valores diferentes, resultando, então, a perda da unidade
psicológica essencial ao funcionamento eficiente de qualquer
264
sociedade” .
No mesmo ano, Ornellas proferiu efusivo discurso, ressaltando a
importância do culto à tradição, principalmente diante das influências externas,
capazes, na opinião dele, não só de desagregar a tradição gaúcha, como
desviar a sociedade de seu caminho de retidão moral:
[...] Senhores Congressistas. [...]
Nossa vida, desde a intimidade dos lares à sociedade comum, vem
sofrendo, alarmantemente, a influencia desagregadora de um
cinema industrial, que foge às excelências da arte, para se entregar
à nefanda vulgarização do homicídio e do roubo tecnicamente
estudados, da luxúria e da licenciosidade.
A velha família rio-grandense, de cunho patriarcal, com figuras
femininas de porte de Ana Terra que Érico Veríssimo desenhou, está
ameaçada na sua estrutura magnífica. [...]
264
LESSA, Barbosa. O sentido e o valor do tradicionalismo gaúcho. 1954. In. Página do
gaúcho. [D.l.; s.d.]. Disponível em: <http://www.paginadogaucho.com.br/ctg/valor.htm>.
Acesso em: 14 nov. 2009.
98
Como pensarmos num movimento tradicionalista no Rio Grande do
Sul, sem começarmos pelo retorno ao culto e proclamação desses
postergados valores morais?[...]
As juventudes da Espanha, da Itália, da Holanda, da França, da
Alemanha, da Suíça, reúnem-se periodicamente em festivais
internacionais, onde a música e a dança de cada país são atrativos
turísticos do mundo.
Se esses povos que têm existência milenária apelam pela lembrança
do seu passado, como motivo imperioso de sobrevivência e fixação
de seus caracteres, que diremos nós, que somos, no Novo
Continente, o mais jovem dos povos e dos mais infiltrados por
múltiplas imigrações?
Para que sejamos uma força assimiladora, é necessário que
ofereçamos ao estrangeiro que vem colaborar com seu trabalho e
seu capital na grandeza econômica do nosso país, aquilo que
representa a razão e o fundamento da nossa vida, nosso patrimônio
moral e o contingente insubstituível de nossos hábitos, de nossos
265
costumes e de nossas tradições .
Conforme Fighera, Presidente do MTG de São Paulo, frente aos novos
tempos a humanidade está
[...] exposta a inúmeros desafios, tais como: desenvolvimento
sustentável, equilíbrio ecológico, globalização, regulação do uso da
informação (internet, msn, orkut), desigualdades e qualidade de
ensino, fuga e volta às igrejas, celibato, ordenação das mulheres,
cura do câncer e da aids, desemprego, corrupção, políticas que
levem ao bem-estar social, distribuição de renda, reforma agrária,
drogas, violência, assaltos, sequestros, pobreza, terrorismo, guerras,
fome e PAZ.
Todas essas mudanças sociais, culturais, econômicas, políticas e
ambientais, afetam direta ou indiretamente homens, mulheres e
crianças de todas as idades (individualmente), modificando as
relações dentro dos “grupos locais”, entre os quais estão incluídos os
266
CTGs, células-mãe do movimento tradicionalista gaúcho .
Diante deste cenário, Fighera apresenta apontamentos a serem
considerados pelo tradicionalismo, como forma de se manter fortalecido e
evitar a fragmentação, a saber: as pequenas concessões do passado, normais
num movimento novo, hoje causam dificuldades e é preciso ter muita
consciência para retomar o caminho de volta; os CTGs ainda tem dificuldades
em entender o que é ser o Grupo Local, ao qual se referia Barbosa Lessa; o
movimento que veio do campo, tornou-se urbano e sofre pressões do público
citadino; a formação e preparação de jovens (líderes), com reconhecimento,
conscientização e comprometimento com a causa tradicionalista são fatores
265
Movimento Tradicionalista Gaúcho, 2006, p. 26-29.
FIGHERA. Francisco Carlos. Recebido por e-mail de [email protected], em 17 de
novembro de 2009.
266
99
indispensáveis para a manutenção da identidade; a identificação das
dificuldades organizacionais, culturais e de captação de recursos e a definição
de prioridades/atividades, com a fixação de objetivos, metas e ações, também
se inserem no mesmo contexto; a família é e deve ser a bandeira fundamental
do tradicionalismo; os novos conceitos ético e morais que a sociedade nos
impõe, aos quais parece ser temos que nos acostumar, sob pena de exclusão,
devem pelo menos obedecer aos princípios do convívio e associabilidade,
dentro dos limites de respeito mútuo, haja vista a responsabilidade pela
transferência da herança social. Para enfrentar a globalização e a interferência
de outras culturas, na busca do fortalecimento (não necessariamente aumento
do número de CTGs e piquetes), salienta ser importante levar-se em conta as
bases permanentes do tradicionalismo267. Complementa:
O estado de consciência que é o tradicionalismo, é sem sombra de
dúvidas, uma idéia vitoriosa, de atitude e corajosa, reconhecida e
aplaudida, que atravessou porteiras e fronteiras e, cuja extensão de
seus efeitos é praticamente impossível de medir. O movimento
tradicionalista gaúcho deve estar sempre posicionado e ter atitude e
coragem para enfrentar modismos, modernismos e mudanças que
venham a comprometer a causa tradicionalista, seus pressupostos
(família, cultura, tradição, folclore), crenças, valores, princípios e
convenções, a exemplo do que fizeram os precursores do
movimento, em 1947. O mundo contemporâneo e seus desafios tem
necessidade de esperança, consciência, conscientização e
liderança.
É preciso compreender e falar mais a língua do “CO” – consciência,
competência, comprometimento, conscientização, cooperação,
cooptação – galhos da árvore da liderança e do relacionamento,
cujas raízes são, entre outros, a amizade, respeito, bondade, amor,
paciência e PAZ.
Aproveitando a citação de Fighera sobre Lessa, ao falar em “grupo
local”, cabe retomá-la para esclarecer alguns de seus apontamentos,
absolutamente pertinentes à questão da fragmentação da identidade. Afinal
Lessa alerta, já em 1954, para esta questão, entitulando este raciocínio de A
desintegração de nossa sociedade, e apontando como dois fatores dessa
desintegração o enfraquecimento da cultura local e o desaparecimento
gradativo dos "grupos locais", que define como comunidades transmissoras de
cultura:
267
FIGHERA. Francisco Carlos. Recebido por e-mail de [email protected], em 17 de
novembro de 2009.
100
A cultura e a sociedade ocidental estão sofrendo um assustador
processo de desintegração. Incluídas nesse panorama geral, a
cultura e a sociedade de quaisquer dos povos ocidentais,
necessariamente, apresentam, com maior ou menor intensidade,
idêntica dissolução. É nos grandes centros urbanos que esse
fenômeno se desenha mais nítido, através das estatísticas sempre
crescentes de crime, divórcio, suicídio, adultério, delinquência juvenil
268
e outros índices de desintegração social .
Para Lessa, o núcleo cultural é composto de duas partes essenciais: a) o
patrimônio tradicional, composto dos hábitos, princípios morais, valores,
associações e reações emocionais comuns aos integrantes de determinada
sociedade; e b) os próprios membros que a integram e os papéis por eles
desenvolvidos, oferecendo um cerne cultural que “dá, aos indivíduos, a unidade
psicológica essencial ao funcionamento da sociedade”. Este cerne cultural é
circundado por “uma zona fluída e instável”, ou seja, por alternativas de
conduta às ações reações já esperadas, o que permite o desenvolvimento da
cultura e sua acomodação ante os avanços da civilização. Por consequência,
“quanto maior for o entrechoque com culturas diversas, maior será a
possibilidade de adoção de novas Alternativas, por parte dos membros de uma
sociedade”. Quanto estas alternativas decorrem de novos padrões culturais,
introduzindo novos padrões comportamentais e novas idéias, duas coisas
podem ocorrer:ou o patrimônio ´tradicional se consubstancia na própria força e
coerência, as influências culturais externas são recebidas como benéficas à
sociedade; em contra-partida, quando a cultura invadida não possui tamanha
coesão, a confusão social é inevitável, e por isso o núcleo cultural original é
sufocado269.
Na relação migratória, o sujeito “é despido das relações nas quais
aprende cotidianamente a se significar”270, e a fundação dos centros de
tradição pode vir ao encontro desta necessidade – de ressignificação do
sujeito, principalmente ao travar embate direto com uma cultura que lhe é
estranha. A necessidade imediata de fortalecimento da identidade de origem se
vislumbra de imediato nos sul-rio-grandenses que desbravam outros territórios.
268
LESSA, Barbosa. O sentido e o valor do tradicionalismo gaúcho. 1954. In. Página do
gaúcho. [D.l.; s.d.]. Disponível em: <http://www.paginadogaucho.com.br/ctg/valor.htm>.
Acesso em: 14 nov. 2009.
269
Ibidem.
270
MORELLO, Rosângela , in Orlandi, 2001, p. 40.
101
2.3.3 A migração do tradicionalismo gaúcho: um mundo de bombachas
Os gaúchos passaram a migrar para outras regiões, levando consigo o
culto de sua tradição. O que mais impressiona é o alto grau de aceitação da
cultura gaúcha, pois muitas vezes, além de bem receber os tradicionalistas,
parte das novas comunidades passama adotar seu estilo de vida. Neste
sentido, colacionam-se as palavras de Lima, ao afirmar que a “presença
dinâmica de gaúchos em todos os Estados da Federação, a forma como se
entrosam às comunidades regionais e a maneira como são acolhidos” é motivo
de “enriquecimento e união”, em que pese as diferenças entre Rio Grande do
Sul e Brasil. Sobre estas diferenças, o autor se refere no sentido de que são
justamente as características culturais que valorizam o patriotismo consciente,
condição esta bastante peculiar aos gaúchos271.
Para Simon, foi a rápida multiplicação dos CTGs a principal responsável
pela coesão dos migrantes sul-rio-grandenses, pela “união de nossa gente
dispersa”272. Segundo estimativas trazidas por Lessa, o MTG chegou aos anos
80 com cerca de 800 CTGs e Piquetes de Laçadores no Rio Grande do Sul e
cerca de 100 CTGs em outros Estados, importando em dois milhões de
pessoas participando diretamente do já maior movimento cultural popular do
mundo ocidental273. Para Savaris,
[...] as alternativas culturais cada vez mais presentes, o avanço
tecnológico, o formidável crescimento das comunicações e a
presença cada vez mais forte do fenômeno da globalização não
foram capazes de alterar a essência da identidade regional,
fortalecida e fortemente defendida pelos Centros de Tradições que
se instalaram no Estado e em qualquer lugar do país onde se
274
estabeleceram os gaúchos .
Conforme os últimos dados da CBTG (dados estes incompletos,
conforme alegação da própria Confederação), hoje o Estado do Rio Grande do
Sul hoje possui 1.731 CTGs, DTGs ou Piquetes afiliados; no Estado de Santa
271
Lima, 2004, p. 20.
Simon, 2009, p. 136.
273
Lessa, 1985, p. 98.
274
Savaris, 2008, p. 171.
272
102
Catarina, somam-se 587; No Paraná, 336; Rondônia, 36; São Paulo, 28; no
Mato Grosso, são 42 entidades, enquanto que no Mato Grosso do Sul são 19;
São 9 em Goiás e 07 localizados no Estado do Rio de Janeiro; São 5 entidades
na Bahia e 4 em Brasília. Minas Gerais e Pernambuco possuem 2 CTGs cada;
Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Tocantins, Acre, Roraima e Maranhão,
apenas 1. Somente os Estados de Sergipe, Alagoas, Pará, ceará, Piauí e
Amapá não possuem CTGs ou Piquetes afiliados à CBTG.
Para Fagundes, no início do Século XX a tradição gaúcha ainda era uma
realidade muito próxima, mesmo dos centros urbanos, não havendo o que
defender se a tradição não estava ameaçada: “ninguém precisava ir a uma
sociedade para ver fandangos e churrascos”, razão pela qual, “sem traumas e
sem
nostalgias
maiores”275,
os
primeiros
movimentos
tradicionalistas
pareceram perder-se no tempo. O que se depreende com tranquilidade, é ser
o sentimento de “saudade” o maior motivador da abertura de centros
tradicionalistas no Brasil e no mundo, e a preservação da tradição é intenção
que se sobrepõe à sua ampliação, num verdadeiro embate qualidade x
quantidade. O que se nota, é que a distância e a ameaça iminente de perda da
identidade tem fortalecido substancialmente o movimento tradicionalista.
Em São Paulo, o CTG União e Tradição, possui uma média de 400
membros, tendo sido fundado em 1997, assumindo como Patrão o Sr. Max
Lindermayer, natural de Santa Catarina. Conforme Pegoraro, que cumula os
cargos de Tesoureiro Geral da CBTG e de Posteiro Cultural do CTG União e
Tradição, a entidade não recebe qualquer auxílio governamental para sua
manutenção, também não possuindo mantenedora. Na opinião de Pegoraro, a
saudade foi o fator que mais impulsionou a criação do CTG, aliada ao interesse
em dar continuidade à cultura herdada e transmitir o que há de bom no folclore
gaúcho. Ao falar da composição dos membros, destaca a diversidade étnica do
Estado, afirmando: “Em São Paulo, o povo é muito heterogêneo, no pensar, no
agir, pois temos muitas colônias e etnias”, e complementa que “os
275
FAGUNDES, Antonio Augusto. Tradicionalismo. In. Memorial do Rio Grande do Sul.
Caderno de História. nº 22. [S.d] Disponível em:
<www.memorial.rs.gov.br/cadernos/tradicionalismo.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2009.
103
Riograndenses do sul são poucos, mas temos bons gaúchos de outros estados
e países, que abraçam as tradições sem ser naturais do RS”276.
As perspectivas de Pergoraro quanto ao futuro do tradicionalismo diante
da globalização, tendem ao pessimismo. Aponta como principais entraves as
“dificuldades financeiras, distâncias e políticas internas do próprio movimento”,
bem como a falta de interesse governamental no apoio à cultura, mas
reconhece ser um fator de inclusão social, na medida em que fomenta a
cultura, a tradição, o folclore, a simplicidade e o respeito com o próximo277.
Outra entidade paulista, o CTG Barbosa Lessa, foi criado com a intenção
de ser uma entidade diferenciada dentro do MTG/SP. A proposta dos sóciosfundadores era de um centro de tradições voltado ao ser humano, “no sentido
da melhoria de sua condição social e inclusão, através da cultura gaúcha”, nos
moldes da proposta de Barbosa Lessa – por isso a opção pelo nome do CTG.
O primeiro Patrão foi Francisco Carlos Fighera, natural de Santa Maria, Rio
Grande do Sul, sendo que hoje o CTG é conduzido por Osório Henrique Furlan
Júnior, catarinense.
Atualmente, dos 35 associados (e seus familiares),
apenas 10 são naturais do Rio Grande do Sul, sendo os demais de Santa
Catarina, Paraná, São Paulo e da Região Noroeste do Brasil278.
Fighera é o atual Presidente do MTG-SP, função esta cumulada com a
de Sota-capataz no CTG Barbosa Lessa. Relata que nem o MTG-SP, nem o
CTG recebem, ou já receberam, qualquer auxílio ou incentivo da administração
pública pelo desenvolvimento das atividades culturais, e a interação do
movimento com os com órgãos públicos se dá somente quando há interesse na
mostra da cultura gaúcha em eventos culturais, principalmente através da
dança. Também as escolas privadas e públicas agem do mesmo modo,
quando os alunos precisam desenvolver trabalhos voltados às diversas culturas
e folclores brasileiros. Para ele, o gaúcho é “um ser diferente”, cuja identidade
276
PEGORARO, José Camilo. Recebido por e-mail em 17 de novembro de 2009, de
[email protected]
277
Ibidem.
278
FIGHERA. Francisco Carlos. Recebido por e-mail em 17 de novembro de 2009, de
[email protected].
104
pode ser compreendida sob dois aspectos: primeiro, por seu costume, através
de sua apresentação pessoal (pilcha), culinária (churrasco), hábitos (chimarrão)
ou práticas (participação de rodeios e atividades afins), através da
“exteriorização de seu sentimento de ser, agir e interagir, transmitindo a
herança social que recebeu de seus ancestrais, através do tempo”; segundo,
por suas crenças princípios e valores, definindo como base da identidade
gaúcha os valores permanentes e os princípios próprios do homem e da mulher
gaúcha, que envolvem o próprio conceito de família tradicional, “no respeito, na
amizade, que define como sendo a base do relacionamento, na palavra
empenhada, na camaradagem, e, principalmente, na ÉTICA” 279.
Questionado sobre a relação entre a cultura e o desenvolvimento do ser
humano, é taxativo ao responder que “qualquer cultura sadia auxilia no
desenvolvimento do ser humano. Não precisa ser necessariamente a cultura
gaúcha. Mas é preciso ‘seriedade’ no que se está transmitindo”, querendo dizer
que as formas de agir dos transmissores da cultura devem ser suficientemente
embasadas em conhecimento e informação histórica, “para não se deturpar a
verdadeira cultura que se quer transmitir”. Já, quanto à cultura gaúcha ser fator
de inclusão ou exclusão social, é cauteloso, afirmando que a fase atual ainda é
“embrionária” e, para seu desenvolvimento, reconhece a importância de um
maior apoio governamental e político, bem como de engajamento dos próprios
tradicionalistas, que poderiam utilizar os eventos para conscientizar e motivar
as pessoas à participação e contribuição de mais causas sociais, não somente
culturais280.
No Rio de Janeiro, um grupo de sul-rio-grandenses, aliado a um
integrante natural do Espírito Santo, fundaram em 1999 o CTG de Niterói. Hoje,
tal proporção inverteu-se: trata-se de 20% de componentes nascidos no Rio
Grande do Sul, e 80% de outras naturalidades. A principal causa de criação da
entidade foi a saudade de suas origens, conforme relata Mattos sobre a
fundação do CTG:
279
FIGHERA. Francisco Carlos. Recebido por e-mail em 17 de novembro de 2009, de
[email protected].
280
Ibidem.
105
Muito vivente já passou por isso: sai de sua querência, no caso o Rio
Grande do Sul e vai viver em outras terras. Um dia esse gaúcho se
depara com o gaúcho se depara com um acampamento crioulo e a
saudade aflora forte. Vê gaiteiros, canto, música e danças gaúchas,
poesia nativa, fogo de chão e baitas costelas assando. Até cavalos
crioulos tem; provas de laço e apartação. Foi no Haras Clube São
Sebastião (Niterói) em 1999. Foi demais, tchê!
Daí veio a idéia: por quê não fundar aqui em Niterói um Centro de
Tradições Gaúchas onde o folclore, a tradição, a cultura e os
281
costumes gauchescos possam ser cultuados?
De acordo com Mattos, um dos principais objetivos do trabalho
desenvolvido no CTG Niterói é a conscientização da importância da
responsabilidade social, através da promoção de hábitos culturais saudáveis,
da noção de valores, princípios morais e emocionais, capazes de “amoldar” o
homem ao meio ambiente e de promover a inclusão social através do
oferecimento de oportunidades, bens e serviços sociais.
A formação de outra entidade carioca, o CTG Gaudérios de São Pedro,em São Pedro da Aldeia-, é bastante diferenciada. Segundo seu Patrão, Fábio
Luis Mattos Goulart (natural do Rio Grande do Sul), a maioria dos membros
não são sul-rio-grandenses, mas de outros locais, como Rio de Janeiro, Ceará,
Maranhão, Espírito Sato e Mato Grosso, salientando que os sul-rio-grandenses
que vivem em São Pedro da Aldeia “não tem conhecimento de causa e quando
vestem pilchas é para simplesmente ganhar dinheiro com a cultura gaúcha,
realizando churrascos, inclusive usando indevidamente o nome de nossa
entidade”. Esta indignação se explica à medida em que Goulart esclarece o
significado que atribui ao gaúcho, como sendo o “tradicionalista até o pescoço”,
e não um conceito aliado à natalidade. Para ele, o tradicionalismo é o meio
pelo qual se mantém a cultura gaúcha através da história, dos costumes e do
folclore, com atividades desenvolvidas em entidades sócio-culturais, sem fins
lucrativos, baseadas no tripé da ética tradicionalista, na carta de princípios e
nos direitos e deveres tradicionalistas”. Destaca estar o objetivo social da
281
MATTOS, Marli Adelaide de. Recebido por e-mail, em 13 de novembro de 2009, de
[email protected].
106
entidade voltado à formação de pessoas livres, dotadas de bons costumes na
formação do caráter, principalmente das crianças envolvidas 282.
Como exemplo das atividades desenvolvidas, cabe ressaltar que o CTG
Gaudérios de São Pedro desenvolve um Projeto de Inclusão Social
juridicamente distinto das atividades culturais, com inscrição no cadastro
nacional de pessoas jurídicas, estatuto e coordenadores próprios, trazendo
crianças de áreas de risco para dentro do CTG, onde são trabalhados os
conceitos de cidadania, folclore, tradição e responsabilidade social283, como
forma de aplicar os valores do tradicionalismo às mazelas sociais decorrentes
da contemporaneidade.
Goulart
acredita
ser
perfeitamente
possível
aliar-se
tradição
à
globalização e aos avanços culturais e tecnológicos, inclusive na propagação
do tradicionalismo gaúcho, citando como exemplo suas próprias palavras, “que
estão sendo digitadas, e não sendo escritas com pena ou caneta tinteiro, e
estão sendo enviadas pela rede mundial, não por mensageiro ou pombo
correio”, razão pela qual acredita que o movimento tende a se fortalecer
mundialmente, impulsionado pelo espírito patriota e ativista do tradicionalista
gaúcho284.
Com o passar do tempo, os CTGs foram se espalhando pelo mundo.
Conforme os gaúchos migravam, levavam consigo o amor pela tradição. Fato
curioso é que muitos dos fundadores de CTGs nos demais Estados brasileiros
ou em outros países nunca tinham pisado em um centro de tradições quando
residiam no Rio grande do Sul. Retomando os ensinamentos de Savaris,
inseridos no primeiro capítulo, o nativismo, a saudade e o espírito militarista
(tanto no aspecto organizacional quanto no de conquistas) fizeram do
movimento tradicionalista um verdadeiro fenômeno mundial285.
282
GOULART, Fábio Luis Mattos. Recebido por e-mail, em 23 de novembro de 2009, de
[email protected].
283
Ibidem.
284
Ibidem.
285
Entrevista com Manuelito Savaris, realizada em 13.10.2009, na Sede do IGTF, no Centro
administrativo em Porto Alegre
107
Oficialmente, existem 12 CTGs lotados no exterior e inscritos na CBTG.
São eles: nos Estados Unidos da América, o Centro Cultural Gaúcho Bento
Gonçalves (Los Angeles, Califórnia), CTG Brasil Tche (Bernadesville, New
Jersey), CTG Saudade da Minha Terra (Chester, New Jersey), CTG Nova
Querência (Fort Lauderdale, Florida), CTG Rancho Grande (Perris, Califórnia)
e o Núcleo Tradicionalista Gaúcho de Danbury (Brookfield, Connecticut); no
Paraguai, o CTG Índio José (Alto Paraná); em Israel, CTG Deserto da
Saudade; Em Portugal, o CTG Pedro Álvares Cabral (Lisboa); No Canadá, o
CTG Querência do Norte (Mississaoga); na França, o CTG União de Ideais
(Paris) e na Espanha o CTG Recuerdos del Pago (Madrid)286. Entretanto, temse notícia de CTGs no Japão, Itália, Alemanha, entre outros países287.
Oliven ainda relata a existência de um CTG em Amsterdã, Holanda, e
em Osaka, no Japão – o CTG Sol Nascente, fundado em 1992, e do CTG,
reconhecendo não ser descabido
[...] imaginar que no futuro haja mais CTGs fora do que dentro do Rio
Grande do Sul. Embora esse grande número de entidades
tradicionalistas em outros lugares provavelmente já não seja
frequentado por gaúchos natos, mas por seus descendentes, sua
existência denota uma imensa saudade da querência, em busca de
origens rurais perdidas (ou jamais possuídas) à semelhança do que
288
ocorreu com os fundadores do 35 CTG .
Nos dias 23 e 24 de abril de 2005, na cidade de Framingham, Estado de
Massachusetts, Estados Unidos da América, foi realizado o I Encontro Nacional
do Tradicionalismo Gaúcho Brasileiro, promovido pelo CTG Patrão Velho
Internacional, de Framingham, e pelo Centro Cultural Gaúcho Bento
Gonçalves, de Los Angeles. Nesta mesma data foi fundada a Confederação
Norte-americana de tradicionalismo Gaúcho sob a patronagem de Jatir Cosme
Delazzeri, envolvendo, além dos Estados Unidos, os países do Canadá e
México.
Delazeri relata ter chegado aos Estados Unidos em 1984, sendo abatido
por súbita saudade “das coisas boas deixadas lá na Velha Querência, como
286
Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha. CBTG. Disponível em:
<http://www.cbtg.com.br/_sitio/ctgs/exterior.php>. Acesso em 14 nov. 2009.
287
Simon, 2009, p. 139.
288
Oliven 2006, p. 149.
108
amizades, os parentes, a vida social, familiar, o churrasco, o chimarrão”, mas
sentindo principalmente dificuldades com o idioma, a cultura, os costumes e a
“frieza” do povo norte-americano. Relata:
Logo no início senti que deveria fazer alguma coisa, comecei a
pensar em fundar um CTG. Mas não tinha conhecimento nenhum de
como fundar um CTG, porque quando estava no Brasil não
frequentava CTGs e nem sabia para que eles serviam. Mas com a
ajuda dos tradicionalistas do Rio Grande do Sul, a idéia aos poucos
ia se tornando realidade. Depois de longo período de preparação
finalmente chegou o dia marcado, era 20 de setembro de 1992, reuni
15 famílias no parque Verdugo aqui em Los Angeles, com a
finalidade de fundar o primeiro CTG dos Estados Unidos. Foi
pendurado (sic) em uma árvore as Bandeiras dos Estados Unidos,
do Brasil e do Rio Grande do Sul. [...] Ao meio dia foi servido o
churrasco com a carne que eu havia levado. Nesse dia havia
somente 3 casais usando a pilcha gaúcha.
Com o livro de atas assinado por todos os presentes e nomeada a
Diretoria provisória, eu assumi como patrão dessa nova entidade. A
finalidade principal do novo CTG, que levou o nome de Centro
Cultural Gaúcho General Bento Gonçalves.[...]
Das 15 famílias que fundaram o Centro Cultural Gaúcho, a maioria
era de fora do Rio Grande do Sul. Eram de outros estados do Brasil
289
e de outros países, como estados Unidos e Guatemala .
De acordo com Delazeri, aos poucos foram surgindo novos CTGs, a
maioria deles com o apoio do Centro Cultural Gaúcho Bento Gonçalves
(Rancho Gaúcho). Para ele, o trabalho e a organização de CTGs localizados
em cidades menores dos Estados Unidos é mais simples se comparado ao que
ocorre com o Rancho Gaúcho, onde a programação precisa ser feita com, no
mínimo, dois meses de antecedência, em razão da distância residencial entre
os participantes. A Confederação costuma realizar encontros em parques
públicos, em escolas, participam de desfiles cívicos e fizeram documentários
para a televisão local mostrando a cultura e as tradições gaúchas290.
A rigidez com que são conduzidas as atividades tradicionalistas pela
CBTG possui reflexos no exterior. As regas são observadas pelos CTGs de
outros países, como no que diz respeito às pilchas, ao churrasco, ao
chimarrão. Entretanto, as diferenças culturais são ainda mais destacadas em
se tratando das entidades externas, pois é necessária a adequação dos
289
DELAZERI, Jatir Cosme. Recebido por e-mail em 14 de novembro de 2009, de
[email protected]
290
Ibidem.
109
costumes e regramentos que são aplicados aos centros de tradições nacionais.
Um dos exemplos é a dança do facão, que nos Estados Unidos não pode ser
realizada com facões de metal, sendo utilizadas peças similares de material
plástico para a realização da dança291.
Delazeri questiona a falta de interesse das autoridades envolvidas com o
Tradicionalismo e do o próprio Estado do Rio Grande do Sul, que nunca
ofereceram apoio ou orientação aos CTGs no exterior. Até hoje, foram
realizados cinco encontros confederados na América do Norte, para promover
a cultura, a tradição gaúcha e o nome do Rio Grande do Sul e, em que pese os
convites, sequer foram visitados por autoridade oficial do Governo Estadual ou
do MTG/RS292. Para ele, no contexto da globalização, a melhor forma de
fortalecer
o
movimento
tradicionalista
seria
através
de
uma
melhor
comunicação entre o MTG e os CTGs do exterior, com apoio filosófico e envio
de material didático. Acredita fortemente que um dos principais fatores para a
expansão do Movimento Tradicionalista é o fato dele estar embasado nos
princípios familiares, e que, por esta razão, o movimento “poderá ser visto
como um modelo de sociedade para o futuro”293.
A tradição gaúcha é a principal representante da cultura brasileira nos
Estados Unidos, até porque outras formas de manifestação cultural não são
bem aceitas – como é o caso do carnaval, cujas apresentações são proibidas
em escolas públicas e particulares, bibliotecas e outros espaços reservados à
cultura, enquanto o tradicionalismo gaúcho tem acesso livre a estes espaços.
Nos desfiles cívicos e comemorativos, é a própria Embaixada do Brasil que
entra em contato com a Confederação Norte-Americana para representar a
cultura brasileira294. Delazeri ainda menciona que antes de 11 de setembro de
2001, o Centro Cultural recebia com frequência subsídios governamentais
pelas atividades culturais realizadas, mas que após o ataque terrorista que
marcou mundialmente esta data, os incentivos às culturas “alienígenas” foram
291
DELAZERI, Jatir Cosme. Recebido por e-mail em 21 de novembro de 2009, de
[email protected].
292
Ibidem.
293
Ibidem.
294
Ibidem.
110
cortados. Hoje, o CTG e a própria Confederação Norte-americana, sobrevivem
de recursos próprios dos associados295.
O Núcleo Tradicionalista Gaúcho de Danbury, em Connecticut, Estados
Unidos da América, é uma entidade totalmente virtual, onde os integrantes se
encontram durante as comemorações da Revolução Farroupilha, ou para
Rodas de Chimarrão. De acordo com José sarmento, Patrão do Núcleo, toda a
região de Connecticut é formada por poucos sul-rio-grandenses, o que reflete
na formação da entidade, composta principalmente de integrantes naturais de
Minas Gerais296.
Em Madrid, Espanha, se encontra o CTG Recuerdos Del Pago, também
inscrito na Confederação Brasileira, sujo patrão é David Domingues, natural de
Porto Alegre, mas com cidadania européia. De acordo com ele, o que
impulsionou a criação do CTG foi o interesse em divulgar a tradição gaúcha e
promover sua integração com a espanhola, bem como a necessidade de se
manter alguns vínculos com as raízes culturais dos sócios, não havendo
nenhuma interação governamental no desenvolvimento das atividades
culturais, ou órgão mantenedor que dê suporte financeiro à entidade. Para
David, “a identidade gaucha é formada por um conjunto de características
comuns, históricas, étnicas, geográficas, etc., entre indivíduos afins à cultura
pampeana, missioneira e da bacia hidrográfica do prata” 297, sendo o gaúcho
[...] uma cultura transnacional com raízes indígenas e muitas
contribuições étnicas, baseada em uma confluência de regiões no
bioma
pampeano.
As
influências
culinárias
(Churrasco,
Chimarrão...), artísticas (Milonga, Xote...), vestimentas (poncho,
bombacha), linguísticas (Che, Guri...), históricas (guerras
guaraníticas, farrapa, federalista, getulismo, brizolismo...) moldearam
298
(sic) o caráter revolucionário e crítico do povo .
Dominguez justifica a criação do CTG Recuerdos Del Pago pela
“inexistência de uma entidade política soberana relacionada à sociedade Sul295
DELAZERI, Jatir Cosme. Entrevista realizada por telefone em 04 de novembro de 2009.
SARMENTO, Joe. Recebido por e-mail em 20 de outubro de 2009, de
[email protected]
297
DOMINGUEZ, David. Recebido por e-mail em 13 de novembro de 2009, de
[email protected]
298
Ibidem.
296
111
riograndense (sic)”, bem como pelo fato de que as características continentais
do Brasil não possibilitarem a transmissão da cultura gaúcha em um contexto
internacional, “o que obriga os gaúchos a manterem sua identidade, compartida
com outros conterrâneos em uma instituição como o CTG”299.
As preocupações, tanto de Delazeri quanto de Dominguez, são
perceptíveis quanto à necessidade de fortalecimento da própria cultura frente à
aculturação global. Delazeri refere que não pretende voltar a residir no Brasil,
mas demonstra intensa necessidade de manter as origens, especialmente com
o Rio Grande do Sul, como forma de manter sua própria personalidade 300,
diante de uma cultura totalmente diferente e, principalmente, se sentir integrado
à esta nova sociedade através do reconhecimento do valor de sua própria raiz
cultural. Da mesma forma, David manifesta que “a cultura local possibilita o
indivíduo acolher com mais firmeza a cultura globalizada”. Complementa: [...]
penso que quanto mais globalizado seja o mundo, mais necessidade há de
movimentos localistas. Antes de serem excludentes, são absolutamente
complementares” 301. Para ambos, o tradicionalismo gaúcho se resume a fator
de inclusão social, à medida em que agrega pessoas isoladas, detentoras de
sentimentos e problemas comuns.
299
Ibidem.
DELAZERI, Jatir Cosme. Entrevista realizada por telefone em 11 de novembro de 2009.
301
Ibidem.
300
112
3 POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORTALECIMENTO AO TRADICIONALISMO
GAÚCHO
A partir do reconhecimento dos principais elementos da cultura
gaúcha,da importância da preservação da identidade diante da globalização e
do risco iminente à fragmentação, bem como do fenômeno da mundialização
do gauchismo como movimento de resistência, torna-se necessária a
visualização de políticas públicas capazes de lhe conferirem maior aporte.
Até então, a sociedade se organizou de forma singular – e é necessário
reconhecer o êxito desta organização; contudo, a complexidade social e as
interações culturais normais no atual contexto tem exigido, cada vez mais,
organização e suporte às identidades, sob o risco da perda, da fragmentação
iminente. Afinal, os próprios tradicionalistas, que tem mantido praticamente
sozinhos o movimento até então, reconhecem os riscos e apontam a
necessidade de uma maior interação do Estado na proteção do gauchismo – a
cultura sul-rio-grandense.
O direito à cultura possui guarida constitucional, mas na prática tem sido
tratado como uma “liberalidade” do indivíduo – tanto quanto ao seu acesso
quanto à sua “vivência”, como ocorre com inúmeros aspectos da cultura
gaúcha. Não se pretende aqui sugerir que o Estado induza o cidadão a
conviver no interior dos CTGs, a participar de invernadas artísticas ou
acampamentos crioulos. Pretende-se, sim, justificar e encontrar alternativas de
fomento viáveis ao Estado para que o tradicionalismo não se perca, não seja
“engolido” pelas interações culturais ou se distancie de suas origens, como um
filho que se afasta da casa dos pais quando não é compreendido e tratado com
a atenção e o respeito que merece.
113
3.1 O direito à cultura
O direito à cultura está elencado na Constituição Federal no rol dos
direitos fundamentais. Não se pretende adentrar na discussão de o que sejam
tais direitos – até porque se trata de um tema reiterado na doutrina e sua
exploração no contexto deste trabalho é considerada despiscienda. Pretendese, sim, atribuir um enfoque mais prático ao já consolidado Direito à cultura.
Cunha Filho considera que a legislação cultural brasileira oferece um
“espaço privilegiado para a gestão democrática”, estando entre os setores que
oferecem mais recursos jurídicos e sociais para a gestão direta de seus
interesses - esclarecendo que todos os setores, em um Estado que se intitula
democrático, deveriam ter igual potencial de gestão, o que infelizmente não
ocorre. Para o autor, na prática há um certo escalonamento dos princípios
reitores do ordenamento público, sob o seguinte critério: quanto menor a
intermediação entre o povo e a gestão dos interesses públicos, mais
democrática será a gestão302. Seguindo este raciocínio, a conclusão de que o
autor está certo ao afirmar que os direitos culturais são forte aporte à gestão
democrática parece inquestionável.
No campo específico do setor cultural, a ordem constituinte para uma
gestão democrática pode ser vislumbrada em grau superlativo – o
que pode ser constatado, inicialmente, pelo estudo dos princípios
inferidos do texto normativo de mais alta hierarquia: princípios do
pluralismo cultural e da atuação estatal como suporte logístico [...].
Em primeiro lugar, o Princípio do Pluralismo Cultural, consistente em
que todas as manifestações de nossa rica cultura gozam de igual
status perante o Estado, não podendo nenhuma ser considerada
303
superior ou mesmo oficial .
Da exegese constitucional se depreende que não há supremacia ante as
expressões culturais, de forma que todos os bens e manifestações culturais
merecem igual guarida do Estado e da sociedade, independente de sua
autoria. Diante disso, Cunha Filho defende a idéia de que a participação
302
303
Cunha Filho, 2002, p. 21.
Ibidem, p. 22.
114
popular, realizada de forma individual ou organizada, é obedecida quando há
opiniões e participações sobre as políticas culturais a serem utilizadas.
Em que pese esta “amplitude” e “importância” da cultura para a
efetivação da gestão realmente democrática quanto aos bens culturais em sua
totalidade (materiais e imateriais), a Constituição Federal tutela a cultura em
somente dois artigos, aqui dispostos:
Art. 215 - O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e
incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional. § 2º - A lei disporá sobre a fixação de
datas comemorativas de alta significação para os diferentes
segmentos étnicos nacionais. § 3º A lei estabelecerá o Plano
Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao
desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder
público que conduzem à: I - defesa e valorização do patrimônio
cultural brasileiro; II - produção, promoção e difusão de bens
culturais; III - formação de pessoal qualificado para a gestão da
cultura em suas múltiplas dimensões; IV - democratização do acesso
aos bens de cultura; V - valorização da diversidade étnica e regional.
Art. 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de
natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória
dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais
se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e
viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as
obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos
urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. § 1º - O Poder
Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá
o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros,
vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação. 2º - Cabem à administração pública,
na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as
providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.
§ 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o
conhecimento de bens e valores culturais.§ 4º - Os danos e ameaças
ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. § 5º - Ficam
tombados todos os documentos e os sítios detentores de
reminiscências históricas dos antigos quilombos. § 6º É facultado
aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo estadual de
fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua receita
tributária líquida, para o financiamento de programas e projetos
culturais, vedada a aplicação desses recursos no pagamento de: I despesas com pessoal e encargos sociais; II - serviço da dívida; III -
115
qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos
304
investimentos ou ações apoiados .
É a própria Constituição Federal que diz que o Poder Público, através da
colaboração da comunidade, deverá promover e proteger o patrimônio cultural
brasileiro. Em verdade, ocorre uma alteração na prática do Princípio da
Atuação Estatal ao se tratar de cultura, pois a ação do Estado depende de
prévia participação social. Neste sentido, Cunha Filho:
O Princípio da Atuação Estatal (referente à cultura), como suporte
logístico, indica que as iniciativas referentes às políticas culturais
devem ser essencialmente da sociedade e dos indivíduos, cabendo
ao Estado dar suporte a tais iniciativas, através de uma atuação que
possibilite a infra-estrutura necessária ao desabrochar das referidas
iniciativas. Consiste, em palavras claras, em que devem ser
apoiadas a dramaturgia, a literatura, as expressões telúrgicas, e
enfim, todas as manifestações culturais, mas o conteúdo delas não
pode ser ditado pelos que gerem os negócios jurídicos da cultura. O
suporte logístico referido é implementado por tarefas específicas
(como a construção de teatros e centros culturais) e pelo ato de
tornar possível o acesso a recursos públicos, dentro de critérios.
Neste pronto, sublinha-se que tarefas específicas atribuídas ao
305
Estado não o tornam autorizado “a fazer cultura” .
Tal posicionamento estaria embasado na própria Constituição Federal,
porquanto o art. 5ª, que inclui no rol dos direitos à liberdade, que “é livre a
expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença”306, conforme se depreende de seu
inciso IX. Da mesma fora, as leis infraconstitucionais devem obedecer esta
liberalidade cultural, não podendo qualquer das esferas administrativas, ditar as
regras da cultura e de suas manifestações, mas oferecer-lhes o aporte
suficiente para que se perpetuem.
Contudo, o que se percebe na prática administrativa é a reiteração de
práticas ativas despropositadas ou, principalmente, ações omissivas, podendo
ser citado, como exemplo, a inércia ou rejeição administrativa perante o
reconhecimento social de um bem ou manifestação social reconhecidamente
304
Brasil. Constituição (1988). Artigos 215 e 216. In. Planalto Central. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 02
dez. 2009.
305
Cunha Filho, 2002, p. 23.
306
Brasil. Constituição (1988). Artigo 5º. In. Planalto Central. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 02
dez. 2009.
116
dotados de identificação cultural – muitas vezes contrariando pesquisas e
laudos técnicos específicos.
A Constituição do Estado do Rio Grande do Sul tutela a cultura em seus
artigos 220 a 31. A previsão geral é a que atribui ao Estado o dever de
estimular a cultura em suas múltiplas manifestações, assim como o acesso a
suas fontes em nível nacional e regional e de, com a colaboração da
comunidade,
proteger
o
patrimônio
cultural,
pelas
formas legais
de
acautelamento e preservação307. É específica em afirmar que é dever do
Estado proteger e estimular as manifestações culturais dos diferentes grupos
étnicos formadores da sociedade sul-rio-grandense.
O direito à cultura vem intrinsecamente ligado ao direito à memória, o
que importa no exercício da cidadania plena, ou, como pretende Chauí, inserir
um conceito de cidadania cultural, como sendo aquela que
[...] não se reduz ao supérfluo, ao entretenimento, aos padrões de
mercado, à oficialidade doutrinária (que é a ideologia), mas se
realiza como direito de todos os cidadãos, direito a partir do qual a
divisão social das classes ou a luta de classes possa manifestar-se e
ser trabalhada porque, no exercício do direito à cultura, os cidadãos,
como sujeitos sociais e políticos, se diferenciam, entram em conflito,
comunicam e trocam suas experiências, recusam formas de cultura,
308
criam outras e movem todo o processo cultural.
Contudo, a análise desta pesquisa perpassa a abordagem do direito
como um ordenamento meramente protetor ou repressivo. Isto porque, como
sustenta Bobbio309, “ao lado da função da tutela ou da garantia, aparece, cada
vez com maior freqüência, a função de promover” o Direito nas Constituições
contemporâneas. Isto porque não é mais suficiente nenhum dos conceitos
primários do direito, como os que traduzem teorias que visualizam o direito
como um conjunto de normas de um só tipo - positivo/negativo, ou
demasiadamente simplistas e insuficientes para designar a teoria do direito que
307
RIO GRANDE DO SUL. Constituição Estadual. In. Assembléia Legislativa do Estado do Rio
Grande do Sul. https://www.al.rs.gov.br/prop/Legislacao/Constituicao/constituicao.htm
308
CHAUI, Marilena. Cidadania cultural: o direito à cultura. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2006, p. 138.
309
BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri:
Manole, 2007, p. 11.
117
hoje é aplicável. É nesta seara que Bobbio se refere ao caráter promocional do
direito, como alternativa à simplicidade teórica antes instalada.
A própria Constituição brasileira se encontra repleta de previsões
inseridas nesta nova proposta, à medida em que reconhece ser dever do
Estado “apoiar” e “incentivar” a valorização e a difusão das manifestações
culturais, promoverá os bens culturais, ou valorizará a diversidade cultural
existente no país, dentre outros vários termos nucleares como “favorecer”,
“facilitar”, “encorajar”, todos voltados ao caráter promocional do direito. Trata-se
de uma nova proposta de ordenamento jurídico, agindo como impulsionador
dos direitos através das ações do Estado. É importante esclarecer a diferença
entre afirmações de tarefas protetoras e a afirmação de tarefas promocionais,
já que as segundas possuem condão muito mais encorajador, incentivador que
as primeiras, que se contentam em reconhecer e garantir direitos de forma
programáticas e subjetivas.
3.2 Tradicionalismo Gaúcho e Estado – um relacionamento conturbado
A própria história da formação sócio-cultural do Rio Grande do Sul, que
antecedeu e embasou o surgimento de um movimento organizado que
retratasse a cultura gaúcha, demonstra inúmeras conexões (e preocupações)
do gauchismo com a proteção do território e com o próprio Estado, legitimandoo enquanto unidade de governo do território ao qual se pertence. Entretanto,
este é um típico relacionamento onde a recíproca é verdadeira.
De acordo com relatos de Lessa, até meados de 1960 “os órgãos
governamentais acompanhavam com certo sestro - de longe – o desenrolar do
culto às tradições, evitando qualquer comprometimento mais íntimo”
310
.
Somente no ano de 1964 foi assinada a Lei nº 4.850, tornando oficial no Estado
a comemoração da Semana Farroupilha, prevendo que as festividades seriam
organizadas e orientadas pela Divisão de Cultura da Secretaria de Educação e
310
Lessa, 1985, p. 92.
118
Cultura e a Brigada Militar do Estado. Um dos dispositivos legais sugeria a
participação direta da Brigada Militar, Ginásios e Grupos Escolares Estaduais,
Centros de Tradições Gaúchas e entidades particulares desportivas que dela
quisessem participar. Como assevera Lessa, “não tendo havido maior interesse
na área da Secretaria de Educação e Cultura, as entidades escolares
praticamente se omitiram, e mínima foi a participação das entidades
desportivas”
311
. Assim, os CTGs permaneciam autônomos (e solitários) para
organizar as comemorações.
A redação atual, conteúdo da Lei Estadual n.º 12.422, de 27 e dezembro
de 2005, assim estabelece:
Art. 1º - é oficializada a “SEMANA FARROUPILHA” no Rio grande
do Sul, a ser comemorada de 14 a 20 de setembro de cada ano, em
homenagem e memória aos heróis farrapos. Parágrafo Único –
Tomarão parte nas festividades da Semana Farroupilha, escolas de
1º e 2º graus das redes estadual, municipal e particular de ensino,
Unidade ou Contingente da brigada Militar, Centros de Tradição
Gaúcha, Associações de Piquetes e entidades associativas,
particulares, culturais e desportivas que dela queiram participar. Art.
2º A Secretaria da Educação, a Secretaria do Turismo, esporte e
Lazer, a Secretaria da Cultura, a Brigada Militar, a Fundação Instituto
Gaúcho de Tradição e Folclore e o Movimento Tradicionalista
Gaúcho e a Associação dos Piquetes do parque da Estância da
Harmonia e do Estado do Rio Grande do Sul organizarão e
orientarão as festividades da Semana Farroupilha. Art. 3º As
prefeituras municipais, mediante convênio com o Estado,
organizarão e coordenarão, nos seus municípios, as festividades da
312
Semana Farroupilha. [...]
Entretanto, a organização da semana comemorativa parece permanecer
sob coordenação preponderante do Movimento Tradicionalista, muito embora
tenha sido instituída por decreto uma comissão para organizar e orientar sua
programação. Trata-se do Decreto nº 44.448, de 22 de maio de 2006, que
definiu os sete membros participantes desta comissão, a saber: representante
da Secretaria da Educação, Secretaria de Turismo, Esporte e Lazer, Secretaria
da Cultura, Brigada Militar, Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore,
Movimento Tradicionalista Gaúcho e Federação das Associações de
Municípios do Rio Grande do Sul – FAMURS-, como convidada. Conforme o
311
Lessa, 1985, p. 92.
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 4.850, de 11 de dezembro de 1964. Oficializa a
“Semana Farroupilha” e dá outras providências. In. _____. Instituto Gaúcho de Tradição e
Folclore. Disponíve em: < http://www.igtf.rs.gov.br>. Acesso em: 12 jan. 2010.
312
119
Presidente do IGTF, Manuelito Savaris, a organização da Semana Farroupilha,
na prática, é exercida pelo IFGT, pelo setor de nativismo da Prefeitura
Municipal de Porto Alegre (infra-estrutura) e, principalmente, pelo MTG –
CTGs, DTGs e Piquetes313.
No ano de 1979 houve uma reestruturação junto à Administração do
Governo Estadual, sendo criada a Secretaria de Desporto e Turismo,
desvencilhando os assuntos da cultura da área da educação. Luiz Carlos
Barbosa Lessa, um dos precursores do tradicionalismo gaúcho, foi o segundo
titular da pasta, destacando-se sua atuação pela divisão do Estado em 12
polos culturais, na tentativa de interiorizar a cultura incentivando o
regionalismo314.
O Hino Farroupilha foi oficializado como Hino do Rio Grade do Sul em
1966, pela Lei Estadual nº 5.213. O dia 20 de setembro somente foi
reconhecido como dia do gaúcho no ano de 1991, através da Lei nº 9.405,
revogando o dispositivo anterior – Lei 8.019, de 20 de julho de 1985, que
estabelecia a data de 20 de abril para tal comemoração. Quatro anos depois,
através do Decreto nº 36.180, de 1995, o dia 20 de setembro passou a ser a
data magna do Estado, tornando-se feriado em todo o seu território.
No mais, poucas leis de interesse do tradicionalismo foram elaboradas,
podendo ser citadas a lei que institui o Quero-quero como ave-símbolo do
Estado315; a Erva-mate passou a ser a árvore-símbolo316; a flor Brinco de
313
Entrevista com Manuelito Savaris, realizada em 13.10.2009, na Sede do Instituto Gaúcho de
Tradição e Folclore – IGTF - localizado à Avenida Borges de Medeiros, 1501, no Centro
Administrativo, Porto Alegre-RS
314
Oliven 2006, p. 121.
315
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 7.418, de 1º de dezembro de 1980. Institui
como Ave-Simbolo do Rio Grande do Sul o Quero-quero, Belonopterus Cayennensis. In.
Instituto
Gaúcho
de
Tradição
e
Folclore.
Disponível
em:
<http://www.igtf.rs.gov.br/legislacao/not.php?id=10>. Acesso em: 10 jan. 2010.
316
_____. Lei nº 7.439, de 08 de dezembro de 1980. Institui a Erva-Mate “Ilex paraguaiensis”
como Árvore Símbolo do Rio Grande do Sul. In. Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore.
Disponível em: < http://www.igtf.rs.gov.br/legislacao/not.php?id=15>. Acesso em: 10 jan.
2010.
120
Princesa foi reconhecida como flor símbolo em 1980317; a seguir, em 1989, a
pilcha gaúcha foi definida como traje de honra no Estado318; no ano de 2002, o
Cavalo Crioulo, junto com a ave Quero-quero, foram definidos patrimônio
cultural sul-rio-grandense319; o churrasco e o chimarrão foram intitulados
respectivamente prato típico e bebida símbolo do Estado em 2003320.
As danças tradicionais gaúchas foram reconhecidas como patrimônio
cultural imaterial do Estado em 2002321, passando a constituir o rol oficial. Para
os MTG/RS, o reconhecimento, em 2006, do rodeio crioulo como um dos
componentes da
cultura
popular sul-rio-grandense,
teve
repercussões
importantes. Até então os rodeios não eram enquadrados como atividade
cultural, mas esportiva, não se podendo encaminhar projetos de financiamento
junto à Lei de Incentivo à Cultura - LIC. Finalmente no ano de 2007, o
Movimento Tradicionalista Gaúcho passou a ser parte integrante do patrimônio
histórico e cultural do Estado322, nos termos dos artigos 221, 222 e 223 da
Constituição Estadual.
Interessante é a contribuição da Lei nº 11.720, de 07 de janeiro de 2002,
que autorizou o Poder Executivo e o Poder Legislativo Estadual a repassar
317
_____. Decreto nº 38.400, de 16 de abril de 1998. Institui a Flor Símbolo do Estado do Rio
Grande do Sul. In. Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. Disponível em:
<http://www.igtf.rs.gov.br/legislacao/not.php?id=45>. Acesso em: 10 jan. 2010.
318
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 8.813, de 10 de janeiro de 1989. Oficializa
como traje de honra e de uso preferencial no Rio Grande do Sul, para ambos os sexos, a
indumentária denominada “PILCHA GAÚCHA”. In. Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore.
Disponível em: <http://www.igtf.rs.gov.br/legislacao/not.php?id=20>. Acesso em: 10 jan.
2010.
319
_____. Lei nº 11.826, de 26 de agosto de 2002. institui o Cavalo Crioulo como animalsímbolo, reconhecendo-o, juntamente com o Quero-Quero, como patrimônio cultural do
Estado do Rio Grande do Sul. In. Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. Disponível em:
<http://www.igtf.rs.gov.br/legislacao/not.php?id=55>. Acesso em: 10 jan. 2010.
320
_____. Lei nº 11.929, de 20 de junho de 2003. Institui o churrasco como “prato típico” e o
chimarrão como “bebida símbolo” do Estado do Rio Grande do Sul e dá outras providências.
In.
Instituto
Gaúcho
de
Tradição
e
Folclore.
Disponível
em:
<http://www.igtf.rs.gov.br/legislacao/not.php?id=65>. Acesso em: 10 jan. 2010.
321
_____. Lei nº 12.372, de 16 de novembro de 2005. Reconhece como integrantes do
patrimônio cultural imaterial do Estado, as Danças tradicionais gaúchas e respectivas
músicas e letras. In. Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. Disponível em:
<http://www.igtf.rs.gov.br/legislacao/not.php?id=75>. Acesso em: 10 jan. 2010.
322
_____. Lei nº 12.748, de 11 de julho de 2007. Declara integrante do patrimônio histórico e
cultural do Estado do Rio Grande do Sul o Movimento Tradicionalista Gaúcho – MTG. In.
Canto Gaudério Notícias. Disponível em: < http://blogs.universia.com.br/cantogauderio/2009/
03/18/lei-n-12748-e-constituio-estadual-rs-devem-proteger-vaqueanos-da-tradio/>.
Acesso
em: 10 jan. 2010.
121
subvenção social ao Movimento Tradicionalista Gaúcho323. Tal previsão legal
possibilita ao Estado um auxílio financeiro efetivo às entidades tradicionalistas,
instituições de caráter privado e sem fins lucrativos, visando o desenvolvimento
e a preservação das tradições sul-rio-grandenses. O contato com o MTG e com
as entidades estaduais demonstrou que, se houve subsídio financeiro direto
neste sentido, não se tem conhecimento324.
Na capital sul-rio-grandense, à modelo do que ocorreu em anos
anteriores, dentre as metas e diretrizes orçamentárias (Lei de Diretrizes
orçamentárias - LDO) para 2009, chama atenção a total inexistência dos
termos “tradição” (ou “tradicionalismo”), “gaúcho(a)”, ou qualquer outro termo
que ofereça alguma conexão entre “cultura” e o gauchismo; nas metas
previstas para 2009, da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, se encontra a
previsão da realização de atividade cultural voltada à Semana da Consciência
Negra - longe de desmerecer a iniciativa, o que causa a estranheza é que em
nenhuma das previsões de diretrizes orçamentárias destina, sequer menciona
o tradicionalismo gaúcho, ou mesmo a fomenta realização da Semana
Farroupilha de forma alguma325.
Na Lei Orçamentária Anual - LOA de 2009, encontramos a ação
208/PPA,
descrita
como
Nativismo
e
Manifestações
Populares,
que
compreende “realizar cursos, seminários e palestras; apoiar ações da
comunidade em festas e datas relevantes de nossa história e organizar o
Acampamento Farroupilha”, destinando a verba de até R$1.000.000,00 (um
milhão de reais) para este fim. De acordo com Vinícius Brum, os investimentos
diretos da Prefeitua foram apenas de R$200.000,00 (dezentos mil reais), mas
323
_____. Lei nº 11.720, de 07 de janeiro de 2002. Autoriza o Poder Executivo e o Poder
Legislativo Estadual a repassar subvenção social ao Movimento Tradicionalista Gaúcho –
MTG – e aos centros de Tradições gaúchas – CTGs. In. Assembléia Legislativa do Estado do
Rio Grande do Sul. Disponível em: < http://www.al.rs.gov.br/Legis/Arquivos/11.720.pdf>.
Acesso em: 10 jan. 2010.
324
Entrevista com Hélio Ferreira, Secretário do MTG/RS, realizada em 13 de outubro de 2009,
na sede do MTG/RS.
325
PORTO ALEGRE. Lei nº 10.552, de 13 de outubro de 2008. Dispõe sobre as diretrizes
orçamentárias para 2009 e dá outras providências. In. Observa POA: Observatório da cidade
de Porto Alegre. Disponível em:
<http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/observatorio/usu_doc/lei_diretr_orc_2009.
pdf>. Acesso 12 jan. 2010.
122
justifica que necessitariam ser computados a este valor os custos com as
despesas gerais - água, luz, servidores disponibilizados para o trabalho no
evento (limpeza, segurança), entre outros. Note-se que para as atividades
carnavalescas, a mesma lei destina R$4.089.000,00 (quatro milhões e oitenta e
nove mil reais), através da Ação 192/326.
Contudo, nota-se visível disparidade entre os valores (disponibilizados) e
a abrangência de ambos os eventos. Conforme notícia da própria Secretaria da
Cultura, o Acampamento Farroupilha de 2009 atraiu um público de mais de
800.000 visitantes327. Os dados oficiais de participantes do Carnaval 2010 não
se encontram divulgados no site da Secretaria da Cultura, mas pela análise
conjunta das notícias ali existentes, acredita-se que, em todos os dias do
evento, dificilmente tenha se chegado ao número de 100.000 pessoas
envolvidas.
Do valor solicitado pelos organizadores do evento 328, através da LIC foi
concedido ao Acampamento Farroupilha o montante de R$334.333,98,
conforme informação do Sistema Estadual de Financiamento e Incentivo às
Atividades Culturais. Importa salientar que um dos pré-requisitos para se fazer
parte do acampamento é a apresentação de projetos culturais aos visitantes.
Como principal justificativa do projeto (processo n.º 497/1100-09.0), foi
apontada, além da grandeza física do evento, o fato dele “refletir a alma de um
povo, a identidade de uma raça” 329.
Em visita ao site da Secretaria do Estado da Cultura – SEDAC
(dezembro de 2009), facilmente se verificou estreita ligação entre cultura sul-
326
PORTO ALEGRE, Prefeitura municipal de. Projeto de Lei Orçamentária para o exercício de
2009. In. _____. Disponível em: <http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/gpo/usu_
doc/mensagem_orcamento_2009.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2010.
327
PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE. Secretaria Municipal da Cultura. Notícias:
Acampamento Farroupilha atraiu 800 mil visitantes. Disponível em:
<http://www2.portoalegre.rs.gov.br/acampamentofarroupilha>. Porto Alegre, [s.d]. Acesso em:
12 jan. 2010.
328
Valor total de R$ 502.006,73.
329
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Estado da Cultural. Lei de Incentivo à
cultura. Disponível em:
<http://www.lic.rs.gov.br/Consulta-Detalhe-projeto.asp?CodProjeto=8489>. Acesso em: 12 jan.
2010.
123
rio-grandense e o gauchismo, pois seu visual era tipicamente gaúcho: no topo,
aparecia uma Bandeira do Rio Grande do Sul e, em sua frente, a imagem de
um homem à cavalo, com trajes típicos e postura altiva. A nova apresentação
do site (notada em nova visita, em março de 2010), destaca a mesma Bandeira
e, à sua frente dela, o vulto de inúmeros homens, simbolizando os Farrapos
durante a Revolução, trajados de palas e chapéus, todos com lanças às mãos.
Em ambas as representações da SEDAC, sua identificação com a
cultura gaúcha foi facilmente perceptível. Logo abaixo do nome do site,
encontram-se sub-itens de pesquisa, dispostos na forma de links330, na
seguinte ordem: “cultura gaúcha”, “programação cultural”, “eventos RS”,
“Assessoria de Imprensa”. O aparente destaque à cultura gaúcha continua, ao
abrir-se o primeiro link “cultura gaúcha”, onde se encontra a seguinte definição:
O gaúcho é o nome dado aos nascidos no Rio Grande do Sul, ao
tipo característico da campanha, ao homem que vive no campo, na
região dos pampas. Até a metade do século XIX, o termo gaúcho era
usado de forma pejorativa, sendo dirigido aos aventureiros, ladrões
de
gado
e
malfeitores
que
viviam
nos
campos.
Resultado da miscigenação entre o índio, o espanhol e o português,
o gaúcho, por viver no campo cuidando do gado, adquiriu
habilidades de cavaleiro, manejador do laço e da boleadeira,
aspectos que perfazem a tradição gaúcha. Sem patrão e sem lei, o
gaúcho foi, inicialmente, nômade. Com o passar dos tempos, a partir
do estabelecimento das fazendas de gado e com a modificação da
estrutura de trabalho, foram alterados os seus costumes, tanto no
trajar quanto na alimentação. Mais tarde, já integrado à sociedade
rural como trabalhador especializado, passou a ser o peão das
estâncias.
Atuando como instrumento de fixação portuguesa no Brasil
Meridional, o gaúcho contribuiu para a defesa das fronteiras com as
Regiões Platinas, participando ativamente da vida política do país. A
partir disso, o reconhecimento de sua habilidade campeira e de sua
bravura na guerra fizeram com que o termo "gaúcho" perdesse a
conotação pejorativa. Após a Revolução Farroupilha, o gaúcho
passou a ser considerado sinônimo de homem digno, bravo,
destemido e patriota.
O gaúcho é definido pela literatura como um indivíduo altivo,
irreverente e guerreiro. Às suas raízes, somaram-se as culturas
negra, alemã e italiana, e de tantos outros povos que vieram
construir, no Rio Grande do Sul, uma vida melhor.
O povo gaúcho valoriza muito sua história e costuma exaltar a
coragem e a bravura de seus antepassados, expressando, por meio
331
de suas tradições, seu apego à terra e seu amor à liberdade .
330
Links são portais de navegação, formas de atalhos que conduzem o navegador diretamente
a determinados locais (virtuais).
331
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Estado da Cultural. Disponível em:
<http://www.cultura.rs.gov.br>. Acesso em: 02 dez. 2009.
124
Dentro do espaço destinado à cultura gaúcha, o enfoque se dá, além da
definição acima transcrita, à origem do gaúcho, ao chimarrão, à culinária, ao
vestuário, às festas juninas e aos símbolos rio-grandenses – sendo
apresentada a Bandeira, o Hino e Brasão. Mesmo havendo símbolos próprios
do tradicionalismo gaúcho (como a ave quero-quero, a erva-mate, a flor brinco
de princesa, entre outros), a SEDAC opta por trazer, junto da cultura gaúcha,
os símbolos oficiais do Estado, aparentando demonstrar maior reconhecimento
de que esta é a que representa a identidade de seu povo.
Em que pese à representação virtual da SEDAC estar invariavelmente
ligada ao gauchismo, o mesmo parece não se dar em suas atuações na
prática. As atividades da SEDAC se baseiam em cinco programas
estruturantes, "criados com base nas prioridades e necessidades do Rio
Grande do Sul”332: a) Programa Emancipar; b) Programa Saúde Perto de Você,
atuando no Programa de Prevenção à violência; c) Programa Cidadão Seguro,
mais especificamente no Projeto Recomeçar, que objetiva a reinserção social
do preso; d) RS Mulher; e) RS Idoso.
Ao chegar no centro Administrativo, nas instalações da Secretaria da
Cultura, o visitante é recepcionado por um banner intitulado Arte de Incluir pela
Cultura. Ao lado do banner, um cartaz explicativo das propostas da Secretaria,
constando a seguinte descrição:
SECRETARIA DO ESTADO DA CULTURA
SLOGAN: A arte de incluir pela cultura
MISSÃO: levar ao cidadão gaúcho o estímulo ao interesse pela
cultura como exercício de cidadania, inclusão social e
responsabilidade social a partir do resgate de sua identidade.
VISÃO: ser modelo referencial como pólo cultural irradiador e difusor
das manifestações e expressões artístico-culturais e de produção
cultural do Rio Grande do Sul, tendo na cultura a dimensão e um
projeto para a vida, com qualidade, oportunidade e perspectiva de
geração de ocupação e renda.
VALORES:
Inclusão cultural
Sociedade satisfeita
Colaboradores integrados
Qualidade nas ações e políticas culturais
332
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Programas Estruturantes. Porto Alegre, [s.d].
Disponível
em:
<http://www.estruturantes.rs.gov.br/index.php?option=com_programa&
Itemid=2>. Acesso em: 12 jan 2010.
125
Valorização do ser humano e da cultura do no estado
Desenvolvimento e sustentabilidade
Incentivo e fomento à produção cultural
Em oitiva a duas das organizadoras dos projetos de inclusão, ambas
relataram que os últimos projetos desenvolvidos na busca da inclusão social
foram festivais de Funk e HipHop, pelo programa “Arte de Incluir pela Cultura”,
que abrangeram cidades litorâneas e bairros de Porto Alegre. Questionadas
acerca da existência de projetos culturais que envolvessem o tradicionalismo
gaúcho, a surpreendente resposta foi a de que nas reuniões da SEDAC, ao
serem definidos os planos de trabalho, a conclusão foi a de que o
tradicionalismo não podia ser considerado “uma cultura de base” e, portanto,
não atingiria as camadas sociais mais dependentes dos projetos 333. Parece
estranho, no mínimo curioso e altamente questionável, que o plano de
desenvolvimento cultural do Estado esteja voltado a práticas de assimilação da
cultura norte-americana, demonstrando total descuido com os valores e
costumes locais.
Apenas para exemplificar, no ano de 2008, a Secretaria da Cultura
apoiou dois projetos socioculturais, ambos de pequena expressão, voltados ao
tradicionalismo: a) Unidos pela Tradição: visava levar estudantes de escolas
públicas até o Acampamento Farroupilha, durante a semana do evento; b)
Crioulaço da solidariedade: evento realizado em Viamão, no mês de outubro de
2008, com mostras de provas com cavalo crioulo e premiações, cuja renda
seria destinada a uma instituição carente. Enquanto isto, o Projeto de hip-Hop
e Funk, realizado no período de agosto a outubro do mesmo ano, envolveu
mais de 16 cidades da região metropolitana da capital. Além das competições
de Funk e Hip-hop, foram feitas diversas oficinas de dança, rap e grafitagem 334.
tais projetos seguiram em 2009.
333
Entrevista realizada na Secretaria de Cultura do Estado do Rio Grande do sul, com Patrícia
Assis, Assessora de Gabinete da Secretaria, e Lise Ferreira, vice-presidente do Conselho de
Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Rio Grande do Sul, no dia 13 de
outubro de 2009.
334
Em que pesem as discussões sobre a disponibilidade patrimonial, a grafitagem permanece
incursa no art. 65 da Lei de Crimes Ambientais, lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, por
ser o entendimento majoritário o de que o bem jurídico tutelado é o ordenamento público, e
não apenas o patrimônio particular.
126
A alegação de que o tradicionalismo gaúcho não se trata de uma “cultura
de base” foi sobremaneira espantosa. Questionadas sobre o significado deste
termo, não sobreveio nenhuma resposta esclarecedora, restringindo-se a
responderem que as comunidades carentes não se identificam com o
tradicionalismo, mas sim com o funk, grafitismo, hiphop, nas atividades de DJ’s
e MC’s.
Semelhante atitude demonstra a falta de sincronia (e de autenticidade)
entre a representação da SEDAC e suas ações, pois ao contrário de buscar
fortalecer a cultura interna, privilegia os estrangeirismos através de programas
sociais que bem poderiam servir para promover a identidade social e individual,
o auto-conhecimento e o espírito de “pertencimento” a uma cultura dotada de
características próprias.
O Governo do estado possui uma espécie de departamento próprio para
os assuntos tradicionalistas. Trata-se do Instituto Gaúcho de Tradição e
Folclore (IGTF), instituído pelo Decreto n.º 23.613, de 1974, criado para “atuar
na área da pesquisa e divulgar a cultura rio-grandense”. A principio suas
finalidades eram a promoção de pesquisas sobre o folclore, a tradição, a arte e
a história gaúcha”335. Entretanto, o Instituto nunca possuiu auto-gerência ou
rubrica que lhe permitisse, de fato, promover as pesquisas e divulgações da
cultura gaúcha ao qual fora encarregado e hoje, em que pese as constantes
tentativas de relação com as Secretarias do Governo Estadual, este
aparentemente se mostra “desobrigado”, alegando que a própria sociedade
civil se organizou de forma a não necessitar do Estado336.
Conforme relato do próprio MTG, um dos principais auxiliadores do
Movimento Tradicionalista são as Leis de Incentivo à Cultura – Federal e
Estadual. A Lei Federal n° 8.313, de 23 de dezembro de 1991 (Lei Rouanet),
335
INSTITUTO GAÚCHO DE TRADIÇÃO E FOLCLORE. In. ESTADO DO RIO GRANDE DO
SUL. Secretaria de Estado da Cultural. Disponível em: <http://www.cultura.rs.gov.br>. Acesso
em: 12 jan. 2010.
336
Entrevista com Manuelito Savaris, realizada em 13.10.2009, na Sede do IGTF, no Centro
administrativo em Porto Alegre.
127
instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura – PRONAC, com o objetivo de
canalizar recursos culturais para
I - contribuir para facilitar, a todos, os meios para o livre acesso às
fontes da cultura e o pleno exercício dos direitos culturais; II promover e estimular a regionalização da produção cultural e
artística brasileira, com valorização de recursos humanos e
conteúdos locais; III - apoiar, valorizar e difundir o conjunto das
manifestações culturais e seus respectivos criadores; IV - proteger
as expressões culturais dos grupos formadores da sociedade
brasileira e responsáveis pelo pluralismo da cultura nacional; V salvaguardar a sobrevivência e o florescimento dos modos de criar,
fazer e viver da sociedade brasileira;
VI - preservar os bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e
histórico brasileiro; VII - desenvolver a consciência internacional e o
respeito aos valores culturais de outros povos ou nações; VIII estimular a produção e difusão de bens culturais de valor universal,
formadores e informadores de conhecimento, cultura e memória; IX 337
priorizar o produto cultural originário do País .
No Governo Sul-rio-grandense, a principal norma que pode favorecer
diretamente o tradicionalismo é a LIC - Lei Estadual n° 10.846, de 19 de agosto
de 1996, sendo que através dela, as empresas que optarem por financiar
projetos culturais poderão compensar até 75% do valor do Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços – ICMS, desde que
recursos sejam destinados a projetos culturais que se enquadrem em seus
limites338.
Com base em uma Constituição Federal que reconhece a importância da
cultura, bem como das possibilidades infraconstitucionais disponíveis, a análise
de volta às políticas públicas capazes de fomentar o tradicionalismo gaúcho, a
seguir.
337
BRASIL. República Federativa do. Lei n° 8.313, de 23 de dezembro de 1001. Restabelece
princípios da Lei n° 7.505, de 2 de julho de 1986, institui o Programa Nacional de Apoio à
Cultura (Pronac) e dá outras providências. In. _____. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8313cons.htm>. Acesso em: 04 dez. 2009.
338
RIO GRANDE DO SUL, Estado do. Lei nº 10.846, de 19 de agosto de 1996. Institui o
Sistema Estadual de Financiamento e Incentivo às Atividades Culturais, autoriza a cobrança
de taxas de serviços das instituições culturais e dá outras providências. In. Assembléia
Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em:
<http://www.al.rs.gov.br/legis/M010/M0100099.ASP?Hid_Tipo=TEXTO&Hid_
TodasNormas=10503&hTexto=&Hid_IDNorma=10503>. Acesso em: 04 dez. 2009.
128
3.3. Políticas públicas de fortalecimento cultural do tradicionalismo
gaúcho
As políticas públicas de incentivo à cultura começaram a ter expressão
no Brasil tão somente no final do século XX, mais precisamente na década de
1990, destacando-se principalmente os incentivos fiscais em seu fomento.
Neste sentido, Cesnik lembra que em 1820 D. João construiu a Biiblioteca
Nacional, com recursos totalmente públicos. Entretanto, somente na metade do
século XX é que a elite brasileira demonstrou sentir necessidade de
investimentos na área da cultura:
[...] em 1810, D. João VI construiu a Biblioteca Nacional, sem
qualquer participação da iniciativa privada. A elite brasileira, em
meados do século XX, atentou para a necessidade de investimento;
o despertar, no entanto, não foi acompanhado das políticas públicas
para o setor, o que representa um erro estratégico do gestor da
máquina pública federal da época. As políticas públicas de
investimento para o setor surgiram apenas no final de 1990,
perdendo o estímulo natural que havia desde a metade do século XX
e valendo-se do instituto jurídico que existia, ou seja, do incentivo
339
fiscal .
Neste meio tempo houve iniciativas privadas de promoção cultural 340,
destacando-se entre elas a Semana da Arte Moderna (1922), “apoiada” pelo
Governo de São Paulo, com recursos basicamente particulares, cujo destaque
histórico somente se firmou ao longo do tempo. Tarcila do Amaral, Mário e
Oswald de Andrade, Anita Malfati, entre outros artistas, iniciaram com isto a
projeção internacional do país, buscando mostrar a arte essencialmente
brasileira, livre dos conceitos vanguardistas e das influências européias341.
Enquanto isto, o Estado permanecia praticamente letárgico, alienado quanto
aos assuntos culturais.
O Movimento Modernista, formulado na década de 20, tinha entre
seus objetivos uma reformulação sobre o conceito “cultura
brasileira”. Os diversos elementos que faziam parte de nossa cultura
iriam ser redescobertos e demarcados por seuus idealizadores e, a
339
CESNIK, Fábio de Sá. Guia do incentivo à cultura. Barueri: Manole, 2002, p. 02.
Criação do Museu da Arte Moderna em São Paulo (São Paulo, 1948); Teatro Brasileiro de
Comédia (São Paulo, 1948), Museu de Arte Contemporânea (São Paulo, 1951)
341
Contudo, vale salientar que esta “ruptura” que os idealizadores da Semana da Arte Moderna
propunham na época era mais ideológica do que real, pois praticamente todos tinham
formação artística nas escolas européias, ou para lá rumaram após a Semana de 22.
340
129
partir daí, cuidadosamente relatados e utilizados em obras de maior
ou menos expressão [...] os nossos intelectuais passaram,
principalmente a partir de 1924, a ver o Brasil como um vasto campo
de inspiração, de demarcação da própria arte, ainda que tais idéias
342
adviessem muito de raízes importadas .
Apenas para estabelecer um paradoxo, na mesma época, o governo
norte-americano seguia rumo inverso, buscando fomentar a cultura local.
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, exigia das grandes empresas
investimentos em arte e filantropia, fomentando a cultura local e a obtenção de
grandes coleções culturais – verdadeiros “tesouros universais”. Ao mesmo
tempo, a cultura norte-americana passou a ser produto de exportação,
refletindo em rápido espraiamento mundial do american way of life343, que
passou a ser sustentado por inúmeras outras sociedades no mundo344.
Enquanto a sociedade brasileira ainda buscava se “auto-identificar”, o
governo norte-americano investia altas somas no fortalecimento da identidade
nacional. O reflexo social desta iniciativa governamental foi tão significativo que
os Estados Unidos, hoje, são reconhecidos como uma das “identidades
nacionais” mais consolidadas do mundo, o que merece o devido respeito. O
investimento do Estado no fortalecimento cultural importou no fortalecimento do
próprio Estado.
Pode se dizer que o que se pretende com esta análise – fundamentar a
necessidade de ação estatal voltada à elaboração de políticas publicas
capazes de proteger a identidade gaúcha -, reflete uma construção histórica
desta mesma identidade e de seus fatores de ligação (saudade, nativismo,
valores morais e éticos), de identificação, que passam a ser merecedores desta
proteção, com consequências no fortalecimento do Rio Grande do Sul e da
Nação.
Sem duvida, a discussão filosófica sobre a identidade nacional
promovida pela Semana de 22, influenciou (talvez não tanto em sua própria
342
GUEDES, Tarcila. O lado doutro e o gavião do penacho – Movimento e Patrimônio Cultural
no Brasil: o serviço do patrimônio histórico. São Paulo: Anhablume, 2000, p. 27.
343
Estilo americano de vida.
344
Cesnik, 2002, p. 03.
130
época, mas ao longo dos anos e décadas seguintes) uma maior atenção às
tradições
e
múltiplas
faces
da
cultura
nacional,
alertando
para
os
estrangeirismos. Ao mesmo tempo, contribuiu para a eleição de uma faceta
cultural do Brasil que não traduz necessariamente sua riqueza cultural –
passou-se a “exportar” um Brasil-carnaval e um Brasil bossa-nova, até hoje
vendido internacionalmente.
Enquanto isso, em diversos países, quando os governos locais
necessitam da representação cultural brasileira, é o tradicionalismo gaúcho que
se faz presente, pois é única manifestação cultural originalmente brasileira
dotada de vida própria – afinal como definiu Louzada, é a vivência de uma
tradição, um “estilo de vida”345. Não é à toa que antropólogos do mundo inteiro
analisam este “fenômeno”, pois ultrapassa os conceitos usuais de cultura,
tradição e costume.
Para Lima, “a enorme confusão cultural vivida no presente século e a
grande confusão mental que provocou em nossos meios” são as principais
responsáveis pela criação de uma ambiente social propício ao surgimento do
gauchismo, “um movimento voltado para a preservação daquela que deu
consistência e vitalidade à sociedade gaúcha quando de sua formação”346, mas
estas características sócio-culturais se encontram em constante risco de
ruptura, diante da complexidade advinda da globalização.
A preocupação do tradicionalismo com a integridade cultural não é
recente, o que se vislumbra nas palavras de Oliven, ao afirmar que os
tradicionalistas sempre souberam que as ameaças à integridade cultural
[...] viriam de fora, pela massificação e introdução dos costumes
“alienígenas” disseminados pelos meios de comunicação em massa,
e de dentro, através das deturpações de “maus” tradicionalistas, pelo
uso inadequado da indumentária por grupos artísticos, por
aberrações nas coreografias das danças gaúchas, etc. [...] Assim,
todo o cuidado é pouco para frear o que é chamado de atropelo na
347
“descaracterização da cultura e dos costumes” .
345
LOUZADA, Hélio Damaceno. Presidente do Conselho Diretor da Confederação brasileira de
Tradicionalismo gaúcho – CBTG. Entrevista realizada em 17 de novembro de 2009
346
Lima, 2004, p. 23.
347
Oliven, 1992, p. 19-20.
131
À medida em que a cultura gaúcha toma espaço no mundo, cabe ao seu
Estado-mãe adotar medidas necessárias para que ela não se perca no próprio
berço, pois sua contribuição é digna de valorização e respeito, na busca de
uma sociedade justa e igualitária, livre da marginalidade e evocadora dos
princípios de boa conduta social e do resgate da família348.
3.3.1 Políticas educacionais
A educação, cada vez mais, tem sido considerada condição para o
desenvolvimento social, reconhecida pela própria declaração dos Direitos
Humanos como direito fundamental. O direito à educação compreende tanto
seu aspecto formal - sinteticamente, aquela que compreende os métodos
tradicionais de ensino em uma estrutura padronizada e planificada-, quanto não
formal - traduzida pela forma mais flexível de educação, a qual não segue
necessariamente a totalidade das diretrizes e normas governamentais préestabelecidas e pode ser oferecida por instituições sociais governamentais ou
não-governamentais, com orientações filosóficas e/ou laborais voltadas aos
valores sociais, em atenção ao efetivo exercício da cidadania.
Na evolução do trabalho apresentado por Costa e Porto, as autoras
contemplam a educação como sendo uma necessidade humana básica,
questionando qual o tipo de educação que se deve destinar à formação do
sujeito,
o
que
“não
se
refere
exclusivamente
ao
processo
de
desenvolvimento da capacidade intelectual de cada indivíduo”, mas
também com sua capacidade moral e humanização. As autoras evocam
Bordieu, no seu conceito de que a educação é o próprio capital cultural,
devendo-se primar por uma educação transformadora, capaz de contribuir
348
Não se pretende aqui apresentar as discussões jurídicas e doutrinárias sobre o conceito de
família, tão somente traduzir seu significado repleto de sentimentos, onde as pessoas
convivem em harmonia e respeito, na busca do bem comum a todos os seus integrantes.
132
com a compreensão das diferenças e suprir a necessidade de convívio
salutar em sociedade 349.
[...] a satisfação dessas necessidades confere aos membros de
uma sociedade a possibilidade e, ao mesmo tempo, a
responsabilidade de respeitar e desenvolver sua herança
cultural, linguística e espiritual, de promover a educação de
outros, de defender a causa da justiça social, de proteger o
meio-ambiente e de ser tolerante com os sistemas sociais,
políticos e religiosos que difiram dos seus, assegurando o
respeito aos valores humanistas e aos direitos humanos
comumente aceitos, bem como de trabalhar pela paz e pela
350
solidariedade internacionais em um mundo interdependente .
Diante da construção desta idéia, aponta-se a educação não só
como uma “necessidade humana básica”, mas como uma necessidade
básica da coletividade, tendo em vista que dela importa o desenvolvimento
não apenas do particular, mas da própria sociedade, principalmente se
retratarmos a educação voltada à identificação, conhecimento e proteção
cultural.
Nota-se, assim, que o conceito contemporâneo de educação está
intimamente ligado à questão de sua humanização e dos aspectos da
proximidade cultural em um contexto globalizado, ou seja, são recorrentes as
afirmações da educação como um valor social em si, como um quesito prévio
ao desenvolvimento do homem e da sociedade. Sustenta Henz e Rossato que
[...] quando falamos em globalização e em tempos que as relações
se tornam universais e as fronteiras da cultura são superadas,
embora seja inaceitável uma uniformização tanto de pensamento
quanto de comportamentos, a educação deve contribuir para uma
cidadania mundial, humanitária, solidária, justa e intercultural com
351
respeito à pluralidade de pensamento e de organização social .
Para se atingir a humanização pretendida através da educação,
primeiro se faz necessário o conhecimento da própria identidade, para
349
COSTA, Marli Moraes Marlene da.; PORTO, Rosane Carvalho. Educação para a cidadania.
In: GORCZEVSKI, Clovis. Direitos Humanos, educação e cidadania. Porto Alegre: UFRGS,
2007, p. 74-79.
350
REIS, Suzéte da Silva; COSTA, Marli Moraes Marlene da. A educação como vínculo
emancipatório para a construção e para o exercício da cidadania. In: Gorczevski, 2007, p. 97.
351
HENZ, Celso Ilgo; ROSSATO, Ricardo. Educação humanizadora em tempos de
globalização. In. HENZ, Celso Ilgo; ROSSATO, Ricardo; BARCELOS, Valdo (org.). Educação
humanizadora e os desafios da diversidade.Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2009, p.16.
133
depois se trabalhar a idéia de respeito às diferenças. Nos currículos
escolares, nota-se que a cultura local e regional ainda são pouco
exploradas, estando ainda presente a idéia de uma “cultura” extremamente
elitista.
É imperiosa a observação de que a “cultura” se encontra em todas as
classes sociais e que o respeito a esta diferença é capaz de auxiliar na
promoção da tão aventada inclusão social, o que deve iniciar nos assentos
escolares. Desta forma, é necessário que os currículos escolares acompanhem
o desenvolvimento da própria política cultural, que abandonou o conceito
retrógrado que associava (mesmo que de forma mascarada), a idéia de cultura
e patrimônio cultural à representação da minoria abastada da população,
detentora de status social e de riquezas materiais, transfiguradas em seus
castelos, grandes prédios ou obras de arte de estimada valia pecuniária. Uma
educação “culturalmente emancipadora” é capaz de superar este conceito no
íntimo dos educandos, que passam a identificar-se com a própria cultura,
desenvolvendo sentimentos de pertencimento e responsabilidade social.
Esta nova tendência, nas palavras de Barreto, consiste em se
[...] levar em conta tanto os grandes feitos como a chamada petit
historie, a história das minorias, dos relegados, e a relação entre os
diferentes segmentos que compõe as sociedades estudadas,
incluindo as relações econômicas e sociais, a vida doméstica, as
condições de trabalho e lazer, a atitude para com a natureza, a
352
cultura, a religião, a música, a arquitetura, a educação .
A competência legislativa para definir as diretrizes e bases educacoinais
é privativa da União, conforme o art. 22 da Constituição Federal e a Lei
infraconstitucional que merecem maior destaque é a Lei n° 9.394/96, de 20 de
dezembro de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDBEN. Os Estados, Distrito Federal e Municípios podem legislar somente, e
de forma concorrente com a União, sobre os meios de acesso à educação,
bem como sobre normas gerais de funcionamento, mas não podem intervir nos
currículos escolares.
352
Barreto, 2004, p. 11.
134
De acordo com Savaris, esta tem sido a principal desculpa da Secretaria
de Educação até então, para justificar o fato de não se trabalhar o
tradicionalismo gaúcho nas escolas estaduais. No entanto, os Parâmetros
Curriculares Nacionais – PCNs - destacam que a valorização das
diferentes culturas tem se dado de forma desigual, ensejando movimentos
de resistência voltados à preservação da identidade. É visível em sua
redação a preocupação com a fragmentação da identidade, no seguinte
sentido:
A cultura, como código simbólico, apresenta-se como dinâmica
viva. Todas as culturas estão em constante processo de
reelaboração, introduzindo novos símbolos, atualizando valores.
O grupo social transforma e reformula constantemente esses
códigos, adaptando-se seu acervo tradicional às novas
condições historicamente construídas pela sociedade. A cultura
não é algo fixo e cristalizado que o sujeito carrega por toda sua
vida como um peso que o estigmatiza, mas é elemento que o
auxilia a compor sua identidade.
Entretanto, o processo de mudança intrínseco a qualquer cultura
já foi entendido como desfiguração da cultura tradicional, desvio
e perda, o que, do ponto de vista colocado, é uma idéia
incorreta. É preciso compreender esse caráter intrínseco da
mudança, do ponto de vista dos grupos culturais, diferente de
intromissões de elementos externos que sugerem ou impõe
fatores estranhos à cultura, ou até de transplantes culturais.
A cultura pode assumir um sentido de sobrevivência, estímulo e
resistência. Quando valorizada, reconhecida como parte
indispensável das identidades individuais e sociais, apresenta -se
como componente do pluralismo próprio da vida democrática.
Por isso, fortalecer a cultura própria de cada grupo social
cultural e étnico que compõe a sociedade brasileira, prom over
seu reconhecimento, valorização e conhecimento mútuo, é
fortalecer a igualdade, a justiça, a liberdade, o diálogo e,
353
portanto, a democracia .
A proposta dos PCNs é oferecer aos alunos “oportunidades de
conhecimento de suas origens como brasileiros e como participantes de grupos
culturais específicos”, com a finalidade de valorizar a multiplicidade cultural
brasileira, fazendo com que o aluno compreenda seu próprio valor,
“promovendo sua auto-estima como ser humano pleno de dignidade,
cooperando na formação de autodefesas a expectativas indevidas que lhe
353
BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:
pluralidade cultural, orientação sexual. vol. 10. Brasília: MEC/SEF, 1997. p. 43-44.
135
poderiam ser prejudiciais”, na finalidade de que se apure sua percepção sobre
injustiças, preconceitos e discriminações354.
Não se pretende aqui, apresentar às práticas educacionais uma cultura
cuja verdade hegemônica limita, reprime. Ao contrário. Se pretende, através da
apresentação e compreensão consciente da cultura local, seguir os próprios
parâmetros curriculares, aproveitando para instigar os educandos à prática dos
princípios e valores morais, quer dentro, quer fora do tradicionalismo,
propiciando a abertura ao diálogo e à aceitação das diferenças.
Os próprios princípios aventados incansavelmente pelo tradicionalismo
refletem, justamente, o resgate aos valores e à moral, à família, ao respeito e
aos bons costumes. A associação destes princípios, e a apresentação da
cultura gaúcha aos educandos poderia ser alternativa eficiente em sua
formação psicológica, através do engajamento a estes princípios.
O
tradicionalismo
gaúcho
já
realiza,
dentro
de
sua
estrutura
organizacional, uma educação essencialmente humanizadora, se encaixando
perfeitamente na luta de resgate de uma sociedade onde os indivíduos
parecem ter perdido a
[...] “sensibilidade de serem ‘pessoas’, de serem ‘gente’; perderam a
humana capacidade contemplativa, não apenas de ‘ser’, mas
também de perceber o outro como gente, fazendo com que as
relações afetivas, dialógicas e interpessoais se afastem cada vez
mais: ‘ estamos vivendo uma crise global profunda, onde o vazio
existencial e afetivo, provocado pela manipulação e desmandos,
favorece a miséria, a violência, a corrupção, o medo, a insegurança,
355
resultado da fragilidade das relações e dos valores humanos” .
A preocupação do tradicionaismo gaúcho com relação à educação é
dupla: se apresenta tanto pela preocupação com a formação ética e moral de
crianças e jovens quanto à própria proteção do tradicionalismo. Neste sentido,
Lessa:
354
BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:
pluralidade cultural, orientação sexual. vol. 10. Brasília: MEC/SEF, 1997, p. 51.
355
SILVA, Jalair da Costa; TONIOLO, Jose Medianeira dos S. de A. Educação humanizadora e
os desafios da diversidade: alguns pontos para refllexão. In. Henz, Rossato e Barcelos, 2009,
p. 190.
136
Deve, o Tradicionalismo, operar com intensidade no setor infantil ou
educacional, para que o movimento tradicionalista não desapareça
com a nossa geração. Porque nós - os tradicionalistas de primeira
arrancada - entramos para os Centros de Tradições Gaúchas
movidos pela necessidade psicológica de encontrar o "grupo local"
que havíamos perdido ou que temíamos perder. Mas as gerações
novas não chegaram a conhecer o grupo local como unidade social
autêntica, e somente seguirão nossos passos por força de impulsos
que a educação lhes ministrar.
Por isso não temo afirmar que o dia mais glorioso para o movimento
tradicionalista será aquele em que a classe de Professores Primários
do Rio Grande do Sul - consciente do sentido profundo desse gesto,
e não por simples atitude de simpatia - oferecer seu decisivo apoio a
esta campanha cultural.
Aliás, não se concebe que as Escolas Primárias continuem por mais
tempo apartadas do movimento tradicionalista. Pois a maneira mais
segura de garantir à criança o seu ajustamento à sociedade é
precisamente fazer com que ela receba, de modo intensivo, aquela
massa de hábitos, valores, associações e reações emocionais - o
patrimônio tradicional, em suma - imprescindíveis para que o
356
indivíduo se integre eficientemente na cultura comum .
Os precursores do tradicionalismo gaúcho imaginavam que teriam apoio
maciço da comunidade educacional desde os primórdios. Estavam certos de
que “mais cedo ou mais tarde, as instituições de ensino estaria cerrando fileiras
conosco na valorização da cultura brasileira e das tradições regionais. Foi um
fragoroso erro de cálculo!357”. Lessa acrescenta:
Tínhamos fortes razões para acreditar que a Escola e a Universidade
também fariam questão de assumir seu papel histórico, dando uma
guinada de 180 graus nos currículos meramente repetidores de
modelos alienígenas. [...] Confiávamos principalmente na atuação do
ensino primário e secundário, por estarem precisamente na órbita do
governo estadual e da comunidade gaúcha. Aqui residiam nossas
358
grandes esperanças .
Na esfera educacional os antitradicionalistas não deixaram de opinar.
Como o tradicionalismo não faz parte dos currículos disciplinares, esta
discussão se dá na volta do folclore, onde o tradicionalismo gaúcho poderia se
estabelecer. Para Golin, a dubiedade do material entendido como folclore
provocaria a necessidade de cada comunidade procurar as “suas” culturas, o
que fortaleceria o debate sobre o tradicionalismo: “imediatamente surgirá a
pergunta se o tema merece “tempo” destinado a uma “disciplina”. já que para
356
LESSA, Barbosa. O sentido e o valor do tradicionalismo gaúcho. In. Página do gaúcho. [D.l.;
s.d.]. Disponível em: <http://www.paginadogaucho.com.br/ctg/valor.htm>. Acesso em: 14 nov.
2009.
357
Idem, 1985, p. 85.
358
Ibidem.
137
ele o tradicionalismo gaúcho somente é vivenciado em clubes, restaurantes e
palcos, e sobrevive graças ao seu trânsito cultural pela rádio e televisão, sendo
a cidade, “negritude e rock, e seu maior fato genuinamente folclórico é o
carnaval”. Em palavras extremamente pejorativas, complementa:
Caso vigorem as determinações tradicionalistas, teremos centenas
de idiotas decorando as cartilhas do Instituto Gaúcho de Tradição e
Folclore e do MTG para aplicarem lições automáticas (como tem sido
nos CTGs), com patéticos bailados e sapateados, a serem
reproduzidos por milhares de patetas, de uma cultura que
reproduzirá na escola todos os seus valores – o machismo, a
empáfia cívica e fascista, o culto ao militarismo, e a exaltação do
359
latifúndio como mundo ideal .
Sem adentrar na discussão da questão, vale dizer que causa estranheza
o argumento de Golin, ao atribuir ao carnaval a qualidade de folclore genuíno.
Sua origem não é brasileira, muito menos regional. O carnaval brasileiro, hoje,
é considerado a maior festa popular do mundo, mas utilizando as críticas de
Golin sobre a “criação” da identidade gaúcha, elas também não serviriam para
o “criação brasileira” sobre o carnaval? Por certo que sim. Mais uma vez
reitera-se: não há tradição, cultura pré-concebida: são sempre criações de
povos que através delas se identificam, criam linhas de associação capazes de
interferir em sua idiossincrasia, na forma pela qual vêem o mundo e vivenciam
suas experiências.
Seria crível pretender, portanto, que os currículos escolares tratassem
do carnaval, mas não da cultura tradicional gaúcha, preferindo “enterrar” os
currículos “em sua pior tradição”360, como sustenta Golin? Parece-nos absurda
tal alegação por seus próprios fundamentos.
Desta forma, estando incluídos os estudos culturais nos PCNs,
fortemente justificados através da idéia de que podem promover o
fortalecimento da identidade pessoal e coletiva, bem como da inclusão social
através da compreensão das diferenças, não há razão para não se trabalhar,
359
360
Golin, 1987, p. 26.
ibidem, p. 26.
138
de forma interdisciplinar, com o tradicionalismo gaúcho, face identitária sul-riograndense.
3.3.2 Inclusão social e proteção da juventude
O tradicionalismo gaúcho sempre demonstrou preocupação com o
desenvolvimento da infância e da juventude, por sues próprios fundamentos,
ou seja, por se basear em conceitos morais que envolvem todas as faixas
etárias.
Inúmeros CTGs, a exemplo do CTG Gaudérios de São Pedro,
desenvolvem projetos de inclusão social, juridicamente distintos ou não das
atividades culturais, onde são trabalhados os conceitos tradicionalistas,
principalmente voltados ao desenvolvimento do senso de cidadania e
responsabilidade social, acima, inclusive, da preocupação com a transmissão
do folclore e da tradição. Considerando o alto grau de aceitação social do
tradicionalismo gaúcho e, acima disto, o “engajamento” social que se nota com
crianças e jovens envolvidos, não se vislumbra razão para que não haja ações
conjuntas neste sentido.
Um dos exemplos é a Lei Federal nº 9.608, que prevê a possibilidade de
concessão de auxílio financeiro ao prestador de serviço voluntário com idade
de dezesseis a vinte e quatro anos.
A própria lei traz o conceito de
voluntariedade, como sendo a atividade não remunerada, prestada por pessoa
física a entidade pública de qualquer natureza, ou a instituição privada sem fins
lucrativos, que tenha por objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos,
recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade. Esta lei é
plenamente aplicável aos jovens que compõe, por exemplo, os grupos de
danças tradicionalistas, seja na participação direta, seja no acompanhamento
ou orientações. O público-alvo principal da referida lei são jovens egressos de
139
unidades prisionais ou que estejam cumprindo medidas sócio-educativas, ou
ainda grupos específicos de jovens integrantes das taxas de desemprego361.
À exemplo da Lei Federal, o próprio Estado poderia criar políticas
específicas de fomento ao tradicionalismo gaúcho, de forma a fomentar a
inclusão social e permitir um acesso maior dos jovens em risco de disgreção
social ou prevendo seu ingresso no mercado de trabalho.
3.3.3
Proteção
direta
ao
patrimônio
cultural
–
tombamento
e
desapropriação
Dentre a doutrina jurídica nacional é consensual o fato de que “a noção
de patrimônio cultural é muito mais ampla, que inclui não apenas os bens
tangíveis como também os intangíveis, não só as manifestações artísticas, mas
todo o fazer do ser humano”362, transformado o bem cultural em uma fonte de
memória que compõe a identidade do sujeito ao mesmo tempo em que sua
estrutura é composta por ele – e pela integração entre os diversos sujeitos –
em perfeita simbiose. Nota-se, entretanto, que as origens do pensamento
protetivo ainda permeiam as estruturas sociais dissociando os bens imateriais,
ao menos em um primeiro plano, da idéia de patrimônio cultural merecedor de
proteção jurídica.
Para a presente pesquisa, em se tratando a cultura gaúcha de
patrimônio cultural regional - não desmerecendo a atenção do Governo Federal
em sua proteção, posto que também faz parte da cultura nacional-, a análise
das políticas de tombamento e desapropriação se voltam a um caráter mais
definido, por se acreditar que seja melhor desempenhado pelo Estado do Rio
Grande do Sul e seus Municípios.
361
BRASIL, República Federativa do. Lei nº 9. 608, de 18 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre o
serviço voluntário e dá outras providências. In. Cirne, 2008, p. 87-88.
362
Barreto, 2004, p. 10.
140
3.3.3.1 Tombamento
Os primeiros focos de proteção do patrimônio cultural no Brasil datam da
década de 30, caracterizada por uma “escolha prioritária de bens arquitetônicos
excepcionais, ligados ao período barroco e, particularmente, às expressões de
poder dominante”, mais especificamente igrejas, palácios, casas de câmara e
cadeias. O resultado foi o “fortalecimento de uma memória monumental em
detrimento de outras categorias de laços sociais da memória coletiva”363.
Desde a Constituição Federal de 1988, instituiu-se a competência
concorrente entre União, Estados e Municípios na preservação cultural. Apenas
à guisa de esclarecimentos, o termo melhor adotado seria o de competência
compartilhada, ou então competência comum, tendo em vista que o ato de um
ente federado legislar sobre a preservação do patrimônio cultural, por exemplo,
não exclui competência dos demais. A principal razão da existência dessa
competência paralela é a diferença do ponto de vista a partir do qual se protege
o interesse público. Isto porque os critérios estimativos para esta avaliação
variam significantemente de acordo com o ente federado envolvido - União,
Estado ou Município -, pois não se pode exigir que o mesmo bem tenha valor
identitário comum a todo o território nacional.
O tombamento364 é considerado o instrumento mais eficaz na proteção
ao patrimônio cultural no Brasil, ao lado da Constituição Federal, pois vincula o
interesse público a fatos históricos nacionais memoráveis, cuja hermenêutica,
hoje, deve possuir o viés constitucional de referência à identidade nacional e à
memória das mais variadas culturas que compõe a estrutura social brasileira,
afinal,
[...] o Brasil não garantiria a preservação de sua cultura sem valorizar
a profunda diversidade do ser cultural brasileiro. As mais de
duzentas nacionalidades indígenas, os diversos grupos negros e a
variada composição de europeus e asiáticos, não se transformam
363
MEIRA, Ana Lúcia Goelzer. Patrimônio cultural e globalização. In. POSSAMAI, Zita Rosane;
ORTIZ, Vitor. Cidade e memória na globalização. Porto Alegre: Secretaria Municipal da
Cultura, 2002, p. 122.
364
Decreto-lei n.º 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico
e artístico nacional. In. Brasil. República Federativaa do. 2006-2007. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del0025.htm>. Acesso: 31 mar. 2009.
141
em duzentos ou trezentos anos em “valor arqueológico, etnográfico,
bibliográfico ou artístico”, mas formam fortes pressões e
manifestações de cultura própria, miscigenada aqui, transfigurada ali,
mas capaz de formar uma arquitetura, um desenho, uma música
365
singular .
Trata-se de um ato administrativo que pode ser praticado por qualquer
dos poderes públicos federados. Esta figura jurídica, criada no Brasil em 1937,
retrata em seu artigo 1º o conceito de patrimônio cultural, como sendo o
“patrimônio histórico e artístico nacional”, compreendendo bens móveis e
imóveis “cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a
fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”.
Souza Filho lembra que o Decreto 25/37 deve ser considerado como
uma norma procedimental de tombamento, mas não como regramento de
proteção aos bens culturais, pois “é deficiente quanto aos bens culturais locais,
porque não está entre seus objetivos a proteção das manifestações diretas da
cultura brasileira, mas daquilo que, no Brasil, é reconhecido como cultura
universal”, tendo em vista que “lhe falta definição de institutos diferenciados do
tombamento, que possam garantir e preservar bens da cultura material popular,
bens paleontológicos e bens materiais”.366
Na prática, o tombamento pode se dar de forma voluntária, quando o
proprietário o solicita, ou de forma compulsória pelo Estado367, estabelecendose processo administrativo com respeito ao contraditório de todas as partes
interessadas, sem possuir força de coisa julgada, ou seja, a decisão
administrativa poderá ser revista judicialmente. Importa esclarecer que este
instituto não modifica a natureza jurídica do bem, pois “apenas impõe
365
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens culturais e proteção jurídica. 2. ed. Porto
Alegre: Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre, 1999, p. 67.
366
Souza Filho, 1999, p. 67-68
367
Cfe. dados oficiais disponíveis em: BRASIL, República Federativa do. Ministério da Cultura:
Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico Nacional. Brasília, [S.d]. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=308>. Acesso em 13 ago. 2008. Em
nível nacional, o órgão responsável é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
IPHAN, criado em 13 de janeiro de 1937, pela Lei n.º 378. Atualmente, subordinado ao
Ministério da Cultura, está organizado por 21 Superintendências, 6 Sub-regionais e 27
escritórios técnicos dentro do território brasileiro, sendo que no Estado do Rio Grande do Sul
se encontra a 12ª Superintendência Regional.
142
limitações
e
restrições,
e
agrega
um
direito
coletivo
difuso
ou
socioambiental”368. O bem cultural passa a ter idêntico tratamento ao aplicado
aos demais bens difusos, principalmente em relação aos direitos e garantias
fundamentais constitucionalmente previstos, sendo assegurado ao público o
acesso, a observação e a participação de sua preservação.
Quanto à competência protetiva concorrente entre os entes federados,
cumpre esclarecer que é pacífica a importância do papel do Município na
proteção do patrimônio cultural, muito embora a Constituição Federal, em seu
artigo 24, afirme que “compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal
legislar concorrentemente sobre: [...] VII – proteção ao patrimônio histórico,
cultural, artístico, turístico e paisagístico”, omitindo portanto, a esfera municipal;
em contrapartida, no artigo 30, incisos I e II, afirma que compete ao Município
“legislar sobre assuntos de interesse local e de forma suplementar à legislação
estadual e federal, no que lhe couber”, bem como com o que dispõe o artigo
215, no sentido de que o “Estado garantirá a todos os plenos exercícios dos
direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional [...]”, estando
envolvidas aqui todas as esferas estatais.
Sobre
a
competência
municipal,
Souza
Filho
esclarece
ser
inquestionável sua capacidade normativa, respeitando os conceitos de
Autonomia e Auto-governo, mediante um Poder Executivo e Legislativo
próprios, isto é, a organização e o estabelecimento de normas e critérios na
prestação de serviços de interesse local369.
Muito embora a competência
municipal tenha sido definida por fatores espaciais, a idéia de interesse local,
principalmente no que diz respeito à tutela cultural, não significa propriamente
um interesse exclusivo municipal, porque de forma direta ou indireta, os
reflexos terminam por atingir interesses difusos estaduais, nacionais ou mesmo
internacionais, uma vez que o direito à cultura é partilhado por todas as esferas
estatais. Portanto, pelas próprias características espaciais contidas na idéia da
competência municipal, esta se estende aos bens e serviços cuja proteção seja
efetivamente de interesse local, ou seja, aos bens que, nos termos
368
369
Souza Filho, 1999, p. 118.
Ibidem., p. 112.
143
constitucionais, sejam portadores de referência à identidade da população
local.
Outra questão significativa é o fato de que, independente da esfera
legislativa que fizer o reconhecimento do bem como cultural, cabe ao Poder
Público, como um todo, garantir sua proteção. Isto porque o patrimônio definido
como bem cultural pelo Poder Legislativo Federal estará obrigatoriamente
situado em um determinado Estado-membro e, consequentemente, em um
Município – e assim por diante. O mesmo ocorre em sentido inverso: quando o
Município define em lei própria um bem local como sendo constituinte de seu
acervo cultural, sua proteção deve ser garantida inclusive em âmbito federal,
pois a Nação é formada pelo conjunto de seus entes federados e das culturas
nele inseridas.
O que se discute é justamente a diferença do grau de relevância cultural
existente entre as três esferas, nacional, estadual e municipal, o que serve de
fundamento-base para a justificativa de serem as competências municipal e
estadual mais apropriadas do que a nacional em se tratando de bens culturais:
é muito possível ocorrer de um bem, considerado imprescindível para o
resguardo da memória do Município e para garantir a identidade da
comunidade, não tenha a mesma relevância cultural para o Estado-membro
onde se encontra situado, situação esta que se agrava se consideradas as
dimensões continentais do País.
A
identificação
do
patrimônio
cultural
é
realmente
subjetiva,
principalmente considerando que a cidade “é um complexo fenômeno em
contínuo processo de transformação no espaço-tempo”. As “permanências, as
rupturas, as continuidades, as relações do antigo com o novo” se dão no
espaço local (o qual obrigatoriamente estará inserido em um contexto estadual
e federal), pois os valores da sociedade, estabelecidos em um critério de
espaço-tempo, é que contribuirão para a identificação de seu patrimônio
cultural370. O fundamento é simples: em se tratando de cultura, um espaço
370
MEIRA, Ana Lúcia. O passado no futuro da cidade: políticas públicas e participação popular
na preservação do patrimônio cultural de Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2004, p. 13.
144
mais restrito revela uma conexão mais próxima entre o sujeito e o patrimônio,
uma identificação do indivíduo com a representatividade do bem a ser
protegido.
Isto não significa uma tolerância de despreocupação do governo
nacional com a cultura local ou regional. Ao contrário. Apenas pretende-se
demonstrar que há uma maior garantia de especificidade na definição do que é
de fato relevante para a comunidade quando tais decisões surgem do próprio
meio, sob as influências internas de sua história e tradições, responsáveis pela
identificação e sentimento de pertença do indivíduo com o meio cultural 371.
Considerando que as competências nesta área se dividem em
competências administrativas e legislativas, importa ressaltar que o papel do
governamental na proteção do patrimônio cultural vai além de legislar sobre o
tema. Cabe a ele adotar medidas que assegurem a proteção de todos os bens
culturais, tenham sido eles elevados a este status por decisão federal,
estadual, ou mesmo municipal. É inegável a necessidade de se proteger o
patrimônio cultural, com o fim principal de preservar a própria identidade
gaúcha. Cabe ressaltar, assim, que o risco de violência e destruição não atinge
somente as construções e obras de arte tangíveis, mas também o cultural
imaterial, para o que são necessárias políticas de preservação. A lei de
tombamento
se
reflete
em
importante
instrumento
de
proteção
ao
tradicionalismo gaúcho, de forma a fortalecer não só o movimento
tradicionalista, mas a identidade do seu povo.
No Estado do Rio Grande do Sul, o órgão responsável pelos bens
tombados é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado –
371
Ainda, deve ser observado que as consequências das políticas de preservação do
patrimônio cultural tangível, principalmente em se tratando de edificações, sítios protegidos
ou obras de arte, possuem efeitos imediatos sempre sentidos no espaço local. Será no
município que surgirão questões urbanísticas a serem resolvidas, as quais ultrapassam a
obrigação constitucional de zelar pela manutenção deste patrimônio, como por exemplo a
questão da poluição visual, das alterações nos regramentos de trânsito ou as próprias
limitações quanto às edificações civis.
145
IPHAE372, hoje vinculado à Secretaria da Cultura. Em se tratando de bens
imateriais, em pesquisa junto ao site do IPHAE, nenhum bem cultural imaterial
voltado à tradição gaúcha, até hoje, recebeu tal reconhecimento e proteção –
nem mesmo o churrasco ou o chimarrão.
Note-se, junto ao órgão nacional responsável, o instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, que estão protegidos nacionalmente 15
bens culturais imateriais, a saber: o Ofício das Paneleiras de Goiabeira; a Arte
Kusiwa – Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi; o Círio de Nossa Senhora de
Nazaré; o Samba de Roda do Recôncavo Baiano; o Modo de Fazer Viola-deCocho; o Ofício das baianas de Acarajé; o Jongo no Sudeste; a Cachoeira de
Iauaretê – lugar sagrado dos povos indígenas dos Rios Uapés e de Papuri; a
Feira de Caruaru; o Frevo; o Tambor de Crioula; as Matrizes do Samba no Rio
de janeiro (Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo); o modo
artesanal de fazer Queijo de Minas, nas regiões do Serro e das serras da
Canastra e do Salitre; a Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres de Capoeira;
o modo de fazer renda Irlandesa, produzida em Divina Pastora (SE); e o toque
dos Sinos, em Minas Gerais373. Note-se que dentre eles, nenhum bem reflete a
cultura sul-rio-grandense.
O Núcleo de Cultura do Município de Venâncio Aires (NUCVA) vem
desenvolvendo desde 2007 um Projeto intitulado “Chá da Amizade”, aprovado
pelo Ministério da Cultura e patrocinado pela Petrobrás Cultural, com auxílio da
Lei Rouanet, que será encaminhado ao IPHAN com a finalidade de reconhecer
o chimarrão como patrimônio imaterial nacional. De acordo com a Petrobrás, o
projeto envolve duas etapas – uma de pesquisa, através do contato direto com
produtores e empresas, “com o objetivo de ‘descobrir as origens do chimarrão
372
RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Cultura. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do
Estado. Porto Alegre, [s.d.]. Disponível em:
<http://www.iphae.rs.gov.br/Main.php?do=paginaInicialAc&Clr=1>. Acesso em: 21 ago. 2009.
373
Brasil. Instituto de Proteção ao Patrimônio Histórico e Artístico nacional – IPHAN. Patrimônio
imaterial: bens registrados. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=12456&retorno=paginaIphan>.
Acesso em 02 nov. 2009.
146
e desbravar todo o universo que o envolve como patrimônio imaterial’”, e outra
que se constitui no próprio processo de tombamento374.
O estudo e as análises sobre a temática do Patrimônio imaterial têm
propiciado aprofundamentos culturais significativos no Brasil. A
questão que circunda a prática cultural do CHIMARRÃO não seria
diferente, pois a palavra em si é bastante representativa em todo o
país, uma vez que remete diretamente a uma imagem já presente
no inconsciente coletivo, da região sul, em especial ao arquétipo do
375
gaúcho .
O material de pesquisa realizado pelo NUCVA está concluído,
consistindo em um livro, dois DVDs, um CD, que retratam a história do
chimarrão e sua identificação social, sendo que o processo de tombamento
ainda levará cerca de dois anos. No material elaborado, consideram o costume
do chimarrão
[...] um “Patrimônio Histórico Imaterial” transmitido de geração em
geração através da oralidade e da memória dos grupos, sendo
constantemente recriados pelas comunidades em função de seus
ambientes, suas interações, das lembranças e histórias, gerando um
sentimento de identidade regional que está inserido em suas
376
manifestações .
A iniciativa do NUCVA é inédita, pois nem mesmo a Capital do Estado,
Porto Alegre, possui qualquer bem cultural de natureza imaterial tombado,
mesmo na esfera municipal. Dentre os bens materiais, dentre os fatores de sua
identificação se destacam critérios religiosos, econômicos ou arquitetônicos377,
à exceção à Estátua do Laçador, único bem material diretamente. O
monumento foi elaborado em 1954, por Antônio Caringi, por ocasião da
comemoração do sesquicentenário da cidade de São Paulo:
374
PETROBRÁS. Disponível em: http://www.hotsitespetrobras.com.br/cultura/projetos/51/361.
Acesso em: 12 fev. 2010.
375
ROSA, Angelita da (org.). O patrimônio imaterial do chimarrão: o chá da amizade. Venâncio
Aires: NUCVA, 2008, p. 03.
376
MULHEN, Leonel Renato Von. Contextualização histórica do patrimônio imaterial brasileiro,
suas representatividades, através da cultura (da erva-mate ou do chimarrão) na Cidade de
Venâncio Aires. In. Rosa, 2010. CD-ROM.
377
Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Secretaria da Cultura. Listagem de bens tombados.
Disponível em:
<http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/smc/usu_doc/imoveis_tombados_planilha_re
visada_site.xls>. Acesso em 04 dez. 2009.
147
Suas principais características são a ênfase nos aspectos externos
de masculinidade, através da postura e da musculatura; o
sentimentalismo, onde os sentimentos e as emoções estão
expressos nos movimentos, nos gestos amplos e teatrais e nos
retratos intimistas mas plenos de emoção e a capacidade de
expressar a ideologia em obras discursivas e panfletárias, de porte
grandioso e que serviram ao discurso formativo de uma simbólica do
Estado Novo.
O tradicionalista Paixão Cortes, então com 26 anos, pousou para
Caringi, o qual fez vários estudos em desenho antes de executar
modelos tridimensionais. A figura deveria representar o homem forte
do nosso campo e não um guerreiro.
Como não havia em Porto Alegre nenhum monumento que
homenageasse o homem do campo, a idéia inicial de doá-la aos
paulistas deu lugar a reivindicação de que ficasse a escultura na
capital gaúcha, em local de destaque para o viajante que chegasse à
capital. O monumento, então, foi adquirido pela Prefeitura de Porto
Alegre e instalado na Praça do Bombeiro, por ocasião do 123º
378
Aniversário Farroupilha, em 1958 .
O Laçador foi eleito, na década de 90, como símbolo da cidade de Porto
Alegre, através da Lei Complementar nº 279, de 1992, tendo sido tombada
somente no ano de 2001.
A necessidade de medidas de proteção dos bens culturais é
inquestionável. Chega a ser inconcebível que bens como o chimarrão e o
churrasco, as danças, as músicas, ainda não estejam protegidos pelo instituto
do tombamento, ao contrário do que ocorre com bens semelhantes das regiões
Norte e Nordeste do país.
3.3.3.2 Desapropriação
Outra alternativa que pode ser adotada na proteção direta dos bens
culturais materiais é a desapropriação, regulada pelo decreto-lei n° 3.365, de
21 de julho de 1941, com inúmeras alterações posteriores, que considera como
caso de utilidade pública a preservação e conservação dos monumentos
históricos e artísticos, isolados ou integrados em conjuntos urbanos ou rurais,
378
Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Secretaria da Cultura. Listagem de bens tombados.
Disponível em:
<http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/smc/usu_doc/imoveis_tombados_planilha_re
visada_site.xls>. Acesso em 04 dez. 2009.
148
bem como as medidas necessárias a manter-lhes e realçar-lhes os aspectos
mais valiosos ou característicos, bem com a proteção de paisagens naturais, à
inteligência do seu art. 5º, alínea “k”379.
A desapropriação não serve apenas para alterar a propriedade de bens
particulares, mas, principalmente, para garantir que tais bens sejam mantidos,
preservados de acordo com o interesse público. Lembra Souza Filho que não
apenas os bens imóveis, mas também os bens móveis de valor histórico e
artístico são passíveis de desapropriação,
[...] porque a lei considera sua preservação e conservação adequada
em casos de utilidade pública. É de se notar que a lei se refere a
conservação adequada porque não basta que o proprietário
particular guarde bens móveis. A maior parte dos bens móveis de
valor cultural – as obras de arte, documentos em papel, fotografias,
filmes, etc. – se deterioram pela ação do tempo, sendo necessário
que os locais de preservação tenham condições técnicas especiais,
como temperatura e umidade controladas, prevenção contra
380
incêndio, insetos e luz .
O procedimento de desapropriação se inicia mediante publicação
de um decreto específico, pelo ente público interessado (de qualquer das
esferas administrativas), com objeto de declarar a utilidade pública do
bem. Tal decreto possui a duração de cinco anos, tempo no qual deve
ser levada à cabo a devida desapropriação, mediante pagamento do
preço e definitiva imissão na posse pelo órgão público. Não havendo a
desapropriação, decreto semelhante só poderá ser proposto novamente
no prazo de um ano.
Tanto o tombamento quanto a desapropriação são métodos de
proteção direta aos bens culturais, principalmente diante do risco de
danos decorrentes de cuidados indevidos – ou total falta de zelo por
parte dos proprietários. Contudo, ambos os institutos tem sido usados
principalmente para resguardo de imóveis sob justificativas religiosas ou
379
Brasil, República Federativa do. Decreto-lei n° 3.365, de 21 de junho de 1941. Dispõe sobre
desapropriações por utilidade pública.. In. Planalto Central. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3365.htm>. Acesso em 03 abr. 2009.
380
Souza Filho, 1999, p. 73.
149
arquitetônicas, pouco ou nada sendo considerado com respeito dos bens
pertencentes à cultura tradicionalista gaúcha, o que certamente demanda
maiores estudos e pesquisas por parte dos órgãos governamentais.
3.3.4 Políticas de incentivo intelectual para uma mediação simbólica
Outra das formas de fortalecer o gauchismo é através do incentivo à sua
memória, principalmente através da produção científica e cultural. Destacando
os apontamentos de Strohschoen, a memória necessita do grupo social para
existir, pois “sua dinâmica social é inquestionável”. A autora tece breve
raciocínio sobre as formas de transmissão da memória, ressaltando que a
oralidade foi se perdendo, principalmente na sociedade urbana, sendo
substituída pela escrita e pela mídia381. A importância de políticas que
promovam a produção científica na área cultural se justificam à medida que a
identidade é uma construção, e de que esta construção deve ser mediada entre
o particular e o universal – o que se dá através dos intelectuais, que não
encaram a memória coletiva, mas elaboram um conhecimento de caráter
realmente globalizante.
Oliven trabalha com este tema em As metamorfoses da cultura
brasileira382, no mesmo sentido que Ortiz expõe em Cultura brasileira e
identidade nacional, onde exemplifica esta mediação dizendo que os
intelectuais são os principais responsáveis por definir quais aspectos da
memória coletiva merecerão ser politicamente orientados. Para Ortiz, é a
produção intelectual que deve descolar as manifestações culturais de sua
esfera particular para articulá-las “a uma totalidade que as transcende”. Em
outras palavras, o intelectual como mediador simbólico, é o responsável por
reinterpretar o folclore e adequá-lo à filosofia – a exemplo do que ocorreu com
381
STROHSCHOEN, Ana Maria. Mídia e memórias coletivas. Santa Cruz do Sul: EDUNISC,
2004, p. 29.
382
OLIVEN, Ruben. Violência e cultura no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1982.
150
o carnaval, tomado por “expressão da cultura nacional”, ou então um “exemplo
de brasilidade” a partir do discurso dos intelectuais e da produção científica383.
Desta forma também pode se dizer que a própria denominação e
imagem do gaúcho sejam, na verdade, criações intelectualizadas, pois “para
que haja a quebra do exotismo é preciso que alguém, um escritor, faça esse
trabalho nominador”384, situação que não foi diferente com a cultura gaúcha.
Foi isto o que inúmeros escritores fizeram, podendo citar-se, entre eles, Érico
Veríssimo e sua trilogia histórico-literária O tempo e o vento, onde as figuras de
Capitão Rodrigo e Ana Terra, na saga das famílias Terra e Cambará, se
consolidaram na memória sul-rio-grandense como arquétipos gaúchos.
Esta idéia pode ser mais facilmente compreendida através do exemplo
da expressão cultural negra, que de uma prática particularizada passou a servir
de fundamento às ações políticas do Estado através de sua intelectualização:
As manifestações de cultura negra sempre existiram enquanto
expressões culturais, elas estão particularizadas nas ações dos
africanos (por exemplo, uma dança, um ritual religioso) ou dos
negros americanos (por exemplo, um gesto, uma fala, um canto);
porém, o movimento da negritude só pode surgir no momento em
que um grupo de intelectuais toma como objeto de reflexão a
condição do negro diante do homem branco. [...] Os movimentos
negros atuais operam de maneira análoga. Eles buscam formas
concretas de expressões culturais para integrá-las e reinterpretá-las
dentro de uma perspectiva mais ampla. [...] A identidade é neste
sentido elemento de unificação das partes, assim como fundamento
385
para uma ação política .
Tratada a questão da importância da intelectualidade nas manifestações
culturais, a visão se volta especificamente à ações estatais de incentivos
financeiros a serem destinados à pesquisa e à promoção cultural. Afinal, mais
uma vez é a Constituição Federal a primeira a afirmar que “a lei estabelecerá
incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais”, em
seu art. 216, §3º.
383
Ortiz, 1985, p. 139-141 passim.
BRASIL, Luiz Antonio de Assis. Entre a universalidade e o particular: a literatura antes as
identidades regionais. In. Schuller e Bordini, 2004, p. 34.
385
Ortiz, 1985, 141.
384
151
A Constituição Estadual também prevê o apoio direto às formas de
manifestação cultural, inclusive através da pesquisa intelectual, com o objetivo
de criar condições que viabilizem sua continuidade. Especificamente quanto à
produção cultural “gaúcha”, define que mesma será preservada através e de
livro, imagem e som, observados os direitos autorais pertinentes. É o que
dispõe os artigos 227 e 229, colacionados a seguir:
Art. 227 - O Estado promoverá, apoiando diretamente ou através das
instituições oficiais de desenvolvimento econômico, [...] outras
formas de manifestação cultural, criando condições que viabilizem a
continuidade destas no Estado, na forma da lei.
Art. 229 - O Estado preservará a produção cultural gaúcha em livro,
imagem e som, através do depósito legal de tais produções em suas
instituições culturais, na forma da lei, resguardados os direitos
autorais, conexos e de imagem.
O IGTF, órgão vinculado a Secretária de Estado da Cultura para atuar
na área da pesquisa e divulgar a cultura Rio-Grandense, deveria receber
subsídios do governamentais para promover estudos, pesquisas e a
divulgações dos quais fora encarregado, visando a compreensão e o
fortalecimento da identidade gaúcha. Conforme seu Presidente, verifica-se que
a prática desta atribuição do Instituto foge à realidade. Para ele, a criação do
IGTF pode ser definida como uma “marca negativa de influência forçada do
Estado”, num período em que o movimento estava em franca expansão, com o
objetivo de “controle” estatal, o que, felizmente, não ocorreu. Entretanto, o
IGTF permanece sendo um “fantasma” na administração, sem relacionar-se
satisfatoriamente com as diversas Secretarias, sem abertura ou incentivo
governamental, sequer para a produção intelectual da cultura gaúcha.
Tampouco possui rubrica própria para a publicação de obras, manutenção do
site ou da rádio virtual, o que se realiza às expensas dos próprios
tradicionalistas, principalmente do Presidente. Savaris recorda que o último
Governo Estadual a oferecer incentivo direto ao Instituto - por diminuto que
fosse -, foi na gestão do Governador Jair Soares (1983-1987) 386.
386
Entrevista com Manuelito Savaris, realizada em 13.10.2009, na Sede do IGTF, no Centro
administrativo em Porto Alegre.
152
Quanto às leis infraconstitucionais específicas, elas devem geralmente
ser estruturadas “de forma a conceber um fundo para a cultura”, e “constituemse, potencialmente, em uma boa mecânica entre liberdade que devem ter as
expressões culturais e o necessário apoio do Estado”387, dentro dos limites
constitucionais. Entretanto, como bem aponta Salvo, um dos maiores
problemas da produção cultural no Brasil se volta às questões financeiras:
“os produtores culturais, os artistas e mesmo os cidadãos interessados no
assunto tem em seus discursos a mesma mensagem, ou seja, o Estado deve
direcionar mais verbas para a área cultural”, apelo este que parece não
encontrar resistência em nenhuma camada social, mesmo se considerando o
fato de não haver abundância de recursos.388
Talvez a força do movimento tradicionalista se justifique justamente na
forte base intelectual que o consolidou. Os principais ícones da Revolução
Farroupilha eram pessoas de alta influência e extremamente cultos,
destacando-se entre eles Bento Gonçalves (político e chefe militar), Domingos
José de Almeida (político e administrador), José Gomes de Vasconcelos
Jardim (político), Antônio de Souza Neto (militar e político), João Manuel de
Lima e Silva (membro da Corte Imperial), Antônio Vicente da Fontoura (político
e diplomata), entre tantos outros. O primeiro movimento de ressurgimento do
gauchismo foi exclusivamente voltado ao meio intelectual, através do Partenon
Literário (1868), liderado por José Antonio do Vale Caldre e Fião (jornalista,
médico, político e professor) e Apolinário Porto-Alegre (historiador, filósofo,
poeta e jornalista), entre outros. O mesmo perfil se deu entre os integrantes do
Grêmio Gaúcho, a exemplo de seu presidente João Cezimbra Jacques (militar,
político e escritor); ou ainda junto ao Departamento de Tradições Gaúchas do
Grêmio Estudantil Colégio Júlio de Castilhos, de Porto Alegre, idealizado por
João Carlos Paixão Cortes (pesquisador, folclorista, cantor, ensaísta) e Luiz
Carlos Barbosa Lessa (advogado, jornalista, historiador, compositor, contista e
romancista).
387
Cunha Filho, 2002, p. 40-41.
SALVO, Mauro. Políticas públicas para a produção cultural: uma abordagem econômica. In.
Revista do CEPE. n. 18 (jul/dez. 2003). Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003, p. 64-65.
388
153
Desde estes elementos históricos, a literatura e a filosofia do gauchismo
continuou a ser retratada por intelectuais, sendo bastante vasto o contingente
de obras a respeito da história e da cultura gaúcha. Poucas, porém, são de
iniciativa ou possuem auxílio governamental – o que pode se depreender das
próprias alegações do Presidente do IGTF, que também retrata não haver
fomento às pesquisas culturais locais, imprescindíveis à manutenção destas
prerrogativas culturais, principalmente em um contexto social onde a fragilidade
da identidade é a regra.
Vale dizer que o Estado pode atuar, sob esta perspectiva, nos mesmos
moldes do setor privado, tanto no incentivo da produção cultural em si quanto
com relação à sua demanda, viabilizando economicamente tais investimentos.
Um exemplo são os investimentos na produção intelectual sobre determinado
patrimônio, dotado de identidade, o que pode ser facilmente convertido em
atrativos turísticos, tendo como uma das consequências imediatas o aumento
no recolhimento de impostos, decorrentes desta exposição (e exploração) do
bem cultural. Ou, ainda, investimentos diretos na área de pesquisa e
publicações voltadas à cultura sul-rio-grandense, como forma de propagar a
informação e fortalecer a identidade social, o que permite a relocalização do
Estado em seu próprio espaço, não só enquanto ente federado, mas como um
“povo” de individualidade cultural própria.
3.3.5 Políticas tributárias: incentivos fiscais na proteção e no fomento à
cultura
Perpassando a discussão da importância da preservação do patrimônio
cultural, verifica-se que uma boa intervenção estatal, pode transformar em
realidade os instintos preservacionistas da história humana e da identidade
cultural dos povos.
Os incentivos fiscais são medidas governamentais estratégicas criadas
para estimular determinados setores sociais ou da economia - uma simples
154
definição que se encaixa perfeitamente ao objeto ora analisado: as políticas de
fortalecimento cultural ao tradicionalismo gaúcho. A Constituição Federal
apresenta o incentivo fiscal em seu art. 174, prevendo que o Estado, na
qualidade de agente normativo e regulador da atividade econômica, deverá
exercer as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, de forma
determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. Desta feita,
são
os
aspectos
extrafiscais
da
intervenção
estatal
tributária,
constitucionalmente permitidos, que entram em foco.
A história dos incentivos fiscais à cultura datam da Roma Antiga, ocasião
em que filosofia e arte se tornaram pensamento oficial do Império Romano
graças à Caius Cilnius Mecenas, ministro do Imperador Julio Augusto. Em
razão de sua origem histórica, “mecenas” e “mecenato” são hoje utilizados pelo
Ministério da Cultura, para designar projetos a que se concede incentivos
fiscais, associando diretamente as idéias de poder e cultura389.
O fomento e a administração da cultura e dos bens culturais interferem
significantemente na ordem econômica, retratada por Eros Roberto Grau como
um conjunto normativo capaz de definir, de forma institucional, os modos de
produção econômica: “Assim, a ordem econômica, parcela da ordem jurídica
(mundo do dever ser), não é senão o conjunto de normas que institucionaliza
uma determinada ordem econômica (mundo do ser)”390.
A atuação do Estado na ordem econômica é plenamente legítima
quando voltada à proteção dos princípios constitucionais, nas funções de
fiscalização, incentivo e planejamento, incluídos aí a proteção e o fomento da
cultura, pois o Estado não pode permanecer alheio às questões importantes
para a mantença da estrutura social. Assim, de acordo com Cesnik, sendo os
incentivos fiscais uma espécie de solução governamental voltada ao estímulo
389
Cesnik, 2002, p. 01. “Caius Mecenas como estrategista de talentos múltiplos, é o
responsável, entre 74 a.C. e 8. d. C, por uma política inédita de relacionamento entre
governo e sociedade dentro do Império. Para Mecenas, as questões de poder e cultura são
indissociáveis e cabe ao governo a proteção às diversas manifestações de arte. Na equação
de trocas, cabe à arte um papel no âmbito desse poder”.
390
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 12. ed. São Paulo:
Malheiros, 2007, p. 60.
155
de determinados setores, a cultura se apresenta como um destes setores que
tem necessitado do estímulo governamental, pois a partir dele “a sociedade
adquire
consciência
de
sua
importância
e
passa
a
contribuir
voluntariamente”391.
Para Ricardo Lobo Torres, a extrafiscalidade seria a forma de
intervenção do Estado na esfera privada, cuja configuração se apresenta
praticamente de duas formas: “de um lado, a extrafiscalidade se deixa absorver
pela fiscalidade, constituindo a dimensão finalista do tributo; de outro,
permanece como categoria autônoma de ingressos públicos, a gerar
prestações não-tributáveis”392. Ainda no tocante aos aspectos extrafiscais,
importa dizer que o que interessa ao Estado não é a simples arrecadação de
valores, mas sim a promoção do desenvolvimento, através da criação de
empregos, na garantia de saúde pública, na preservação e recuperação
ambiental e cultural, entre outras, quer seja na redução dos efeitos da
fiscalidade sobre determinadas pessoas, de acordo com suas peculiaridades,
como nos casos de extrema pobreza ou deficiência física ou mental. 393 Nas
palavras de Berti,
[...] ao deixar de lado o fim meramente fiscalista-arrecadatório, o
Estado se preocupará com outras metas, podendo para tanto mexer
no aspecto quantitativo das hipóteses de incidência dos diversos
impostos enumerados ao longo deste trabalho, seja para mais seja
394
para menos.
Importa esclarecer que nem toda a isenção significa incentivo fiscal, a
exemplo das isenções diplomáticas. Nelas, o Estado não pretende “incentivar”
ou interferir na ordem econômica ou social, como ocorre nos comandos
extrafiscais voltados à cultura.
391
Cesnik, 2002, p. 01.
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro, Renovar,
1993, p. 149.
393
RODRIGUES, Hugo Thamir. Políticas Tributárias de desenvolvimento e de inclusão social:
fundamentação e diretrizes, no Brasil, frente ao Princípio Republicano. In. Reis e Leal, 2007,
p. 1906.
394
BERTI, Flávio de Azambuja. Impostos: extrafiscalidade e não-confisco. Curitiba: Juruá,
2003, p. 128
392
156
As leis de incentivo à cultura possibilitam principalmente a captação de
recursos junto às empresas privadas, o que não significa a total desobrigação
financeira do Estado, mas o fomento do pluralismo cultural frente à participação
e comprometimento de todas as parcelas sociais. Afinal os investimentos do
setor privado nos projetos culturais importam em renúncia fiscal por parte do
Estado, que deixará de receber a totalidade dos tributos que lhe eram devidos.
A primeira lei de incentivos fiscais com foco cultural data do Governo
Sarney – Lei 7.505395, de 02 de julho de 1968-, e previa abatimento no imposto
de renda nos índices de 100% para doadores, 80% para patrocinadores e até
50% para investidores. De acordo com Cesnik, esta lei, em que pese ter sido a
primeira, foi a principal fomentadora das discussões sobre a concessão de
incentivo fiscal à cultura, pois os destinos dos recursos não eram claros,
ensejando constantes dúvidas sobre mau emprego e desvio de verbas 396. Em
1990, o Governo Collor aboliu semelhantes incentivos, retomados em 1991
pelo então Secretário da Cultura, Sérgio Paulo Rouanet. Surgiu, então, a Lei
que leva até hoje seu nome – Lei Rouanet – Lei n° 8.313397, de 23 de
dezembro de 1991, que nos primeiros anos teve pouca procura pelo setor
privado. Somente no Governo de Fernando Henrique Cardoso é que houve um
aparelhamento e regulamentação da norma legal, inaugurando-se uma
verdadeira política de incentivo ao setor.
A Lei Rouanet instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura PRONAC – cujo objetivo principal é o fomento e a promoção do produto
cultural nacional dentro e fora do país398, sendo exigência que o uso, a exibição
e a circulação dos bens culturais privilegiados seja pública, jamais circunscrita
a circuitos particulares ou coleções privadas, à inteligência do art. 2º, Parágrafo
395
BRASIL. República Federativa do. Lei 7.505, de 02 de julho de 1996. Dispõe sobre
benefícios fiscais na área do imposto de renda concedidos a operações de caráter cultural e
artístico.
In.
Planalto
Central.
Disponível
em:
<http://200.181.15.9/CCIVIL_03/LEIS/L7505.htm>. Acesso: 04 dez. 2009.
396
Cesnik, 2002, p. 04.
397
BRASIL. República Federativa do. Lei 8.303, de 23 de dezembro de 1991. Restabelece
princípios da Lei n° 7.505, de 2 de julho de 1986, institui o Programa Nacional de Apoio à
Cultura (Pronac) e dá outras providências. In. Presidência da Republica. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8313compilada.htm>. Acesso: 04 dez. 2009.
398
Apesar de estar voltada principalmente à produção cultural brasileira, o PRONAC também
se estende à cultura estrangeira que venha a ser apresentada em solo nacional.
157
Único). Os projetos especiais, previstos no art. 18 envolvem artes cênicas
(teatro, dança, circo, ópera e mímica), livros e valor artístico, literário ou
humanístico (biblioteca e livros); música erudita ou instrumental; circulação de
exposições de artes plásticas (pintura, escultura, gravura, exposições
itinerantes); doações de acervos para bibliotecas púbicas ou museus e a
preservação do patrimônio cultural (arquitetônico, museu, acervo, folclore,
artesanato – conservações e restaurações de ordem geral). Os valores
aplicados em cultura, desde que se encaixem na Lei Rouanet, podem ser
deduzidos até 100% dos impostos de renda de pessoas físicas e jurídicas, nos
imites estabelecidos pela lei: até 6% para pessoas físicas e 4% para pessoas
jurídica – empresas que apuram seu imposto pelo Lucro Real.
Interessante esclarecer que tanto entidades públicas quanto privadas
podem buscar incentivos fiscais à cultura junto ao setor empresarial.
Reiteradamente, o próprio Estado tem feito uso desta alternativa para fomentar
obras e atingir metas de proteção e produção cultural. Entretanto, ao receber
recursos do setor privado para este fim, na prática é o próprio Estado o autor
do subsídio, uma vez que os cofres públicos deixam de receber tributos das
empresas fomentadoras. Esta falta de lógica tem suscitado constantes críticas
doutrinárias, diante da possibilidade de mascarar a realização de despesas
sem previsão orçamentária, ferindo princípios básicos da Administração.
Fica a moralidade pública, por sua vez, comprometida, porque o
Governo, para realizar a obra de conservação de um bem público de
uso especial, vai precisar dos favores de iniciativa privada, algo que
399
torna suspeitas as relações entre o incentivador e o beneficiário .
Desta feita, pode facilmente se depreender que os projetos culturais
originários do Estado, que buscarem incentivo fiscal junto ao setor privado,
serão sempre admitidos, concorrendo de forma no mínimo desleal com
pessoas ou entidades promotoras da cultura, que não estejam diretamente
ligadas ao Governo.
399
Cunha Filho, 2001, p. 43.
158
Como no exemplo das isenções ficais, já não se discute que as
interferências estatais são necessárias, principalmente diante do conceito
transindividual dos bens a serem protegidos. Assim, outra possibilidade de
atuação extrafiscal do Estado é a isenção de impostos diretos, a exemplo do
IPTU.
As razões que levam à isenção de IPTU aos imóveis de cunho cultural
(promotores da cultura ou dotados de identidade cultural) se justificam pelo
tempo. O processo de proteção possibilitado pelo tombamento no núcleo
urbano iniciou-se sem considerar que os bens faziam parte de um organismo
vivo e altamente complexo – a cidade. Com isto, os proprietários viam seus
direitos restritos sem compreender qual a “vantagem” que lhes advinha deste
procedimento, e a falta de interesse público na recuperação e conservação dos
bens provocou a ruína de muitos.
Isto acarretou inicialmente a estagnação dos núcleos urbanos tombados,
principalmente diante da falta de interesse do proprietário na manutenção de
um bem que poderia não lhe ser útil em vista das restrições que eram impostas
pelo processo de tombamento. Como bem lembra Souza filho, estas limitações
decorrentes do tombamento “são muito mais profundas porque modificam a
coisa mesma, passando o poder público a controlar o uso, transferência,
modificabilidade e a conservação da coisa”400.
Os incentivos fiscais tem sido usados principalmente desde a década de
oitenta, como fomento à proteção cultural – e, implicitamente, como forma de
diminuir o “desconforto” do particular, que muitas vezes não concorda com as
restrições de uso de seu bem, que fora tombado pelo interesse da coletividade.
Ou seja, foi a inexistência de uma consciência cultural forte que demandou
ações do Estado para tutelar estes bens transindividuais. Concordamos, neste
sentido, com Souza Filho, que aponta o IPTU como sendo “o mais eficaz para
ajudar na proteção cultural de bens imóveis”, já que “incide sobre o bem que se
deseja preservar e, com uma adequada política de incentivo, é possível ajudar
400
Souza Filho, 1999, p. 29.
159
na sua preservação”.401 Tratando especificamente do IPTU, Geraldo Ataliba
salienta consistir a extrafiscalidade na adoção de instrumentos tributários “para
a obtenção de finalidades não arrecadatórias, mas estimulantes, indutoras ou
coibidoras de comportamentos, tendo em vista outros fins, a realização de
outros valores constitucionalmente consagrados”402.
Grande parte dos Municípios possuem previsões extrafiscais aplicáveis
ao patrimônio cultural, como a Prefeitura de Porto Alegre, que proporciona aos
proprietários de bens tombados a opção de pleitear isenção IPTU sobre bens
tombados e por sua redução no caso dos bens inventariados. O benefício,
entretanto, é concedido sob a condição de conservação dos referidos bens,
com direito à vistoria pela administração403.
Art. 111. Ficam isentos do pagamento do IPTU as seguintes pessoas
e bens: [...] XVIII – o imóvel, ou parte dele, reconhecido como
Reserva Particular do Patrimônio Natural de acordo com a Lei
Federal nº 9.985, de 18 de julho de 2000; as áreas de Preservação
Permanente conforme a Lei Federal nº 4.771, de 15 de setembro de
1965 ou a Lei Estadual nº 11.520, de 3 de agosto de 2000; as Áreas
de Proteção do Ambiente Natural definidas na Lei Complementar nº
434, de 1999; e outras áreas de interesse ambiental, desde que se
mantenham preservadas de acordo com critérios estabelecidos nos
arts. 115 a 123; XIX – o imóvel, ou parte dele, tombado pelos órgãos
de preservação histórico-cultural do Município, do Estado ou da
União, que não tenha sido doado ao Patrimônio Público e que esteja
preservado, segundo os critérios estabelecidos pelos órgãos
404
responsáveis pelo tombamento; [...]
Além da isenção fiscal já reiteradamente utilizada a bens tombados e
catalogados – dependente do funcionamento da política de tombamento-,
outras alternativas extrafiscais podem ser adotadas, como isenção dos centros
de tradições do pagamento de impostos, ou de contribuições de melhoria,
401
Souza Filho, 1999, p. 101.
ATALIBA, Geraldo. IPTU: Progressividade. Revista de Direito Público.v. 23 nº 93, p. 233238, jan./mar., 1990, p. 233.
403
Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Secretaria Municipal da Cultura. Incentivos à
preservação. Disponível em <
http://www2.portoalegre.rs.gov.br/smc/default.php?reg=11&p_secao=87>. Acesso em 04 dez.
2009.
404
PORTO ALEGRE, Prefeitura Municipal de. Decreto nº 16.500, de 10 de novembro de 2009.
Regulamenta as Leis Complementares n. 7, de 7 de dezembro de 1973, no que diz respeito
ao Imposto Sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU); e 113, de 21 de
dezembro de 1984, que institui a Taxa de Coleta de Lixo (TCL); e revoga os Decretos nos
5.815, de 30 de dezembro de 1976; e 14.265, de 11 de agosto de 2003. Recebida por e-mail
de [email protected], em 16 fev. 2010.
402
160
considerando as atividades culturais e educativas prestadas em suas
dependências. De acordo com a análise da legislação tributária de Porto
Alegre, há a previsão expressa de isenção do pagamento do imposto predial
territorial urbano as entidades culturais ou recreativas, sem fins lucrativos,
quadro em que se enquadram perfeitamente os CTGs:
Art. 70 - Ficam isentos do pagamento do imposto sobre a propriedade
predial e territorial urbana as seguintes pessoas físicas e jurídicas: [...]
II - entidade cultural, recreativa, sem fins lucrativos e a entidade
esportiva, observada a exigência anterior, e, quando for o caso,
405
registrada na respectiva federação ;
Desta forma, os CTGs localizados no território da cidade de Porto Alegre
gozam do referido benefício, mas considerando que a legislação referente ao
IPTU é de competência Municipal, o mesmo não ocorre em outros locais. No
Município de Santa Maria, por exemplo: conforme se denota de simples
consulta ao site do Tribunal de Justiça, inúmeros CTGs são alvo de execuções
fiscais por parte da administração. Decisão recente do Tribunal de Justiça
manteve a sentença proferida em primeira instância em favor da imunidade
tributária concedida ao CTG Sentinela da Querência406, que tramitou na
Primeira Vara Cível da Comarca. Na sentença, foi expressamente reconhecida
a imunidade tributária versada no art. 150, VI, alínea “c”, da Constituição
Federal407, que define os limites à tributação.
A principal alegação do CTG é de se tratar o Centro de Tradições de
uma instituição educacional sem fins lucrativos, por não ser possível dissociar
cultura de educação, bem como pela necessidade de se dar interpretação
ampla às previsões de imunidade. Conforme um dos patronos do caso,
inúmeros CTGs de outras cidades e outros estados estão mantendo contato
405
Recebida por e-mail de [email protected], em 16 fev. 2010.
Execução Fiscal n° 027/1.05.0007663-7, que tramitou na 1ª Vara Cível da Comarca de
Santa Maria; Apelação n° 70023719511, da 21ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul.
407
Brasil. Constituição (1988). In. Planalto Central. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso: 02 fev.
2010. Constituição Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é
vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:[...] VI - instituir impostos
sobre: [...] c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações,
das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência
social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei.
406
161
constante, solicitando cópias das decisões para pleitear idêntica garantia
constitucional408.
Ao se procurar o Governo para investimentos da área da cultura,
principalmente em relação às tradições gaúchas, as alegações de insuficiência
de recursos são recorrentes por parte dos tradicionalistas. Hoje, o incentivo
financeiro que os CTGs recebem são referentes à realização de eventos em
parceria com Prefeituras ou Governo do Estado, ou então através de
encaminhamento de projetos que possam ser incluídos na LIC, cujas
demandas nem sempre são aceitas.
As desculpas de que não se pode investir em cultura por esta ou aquela
razão, são injustificáveis, no que concorda Cunha Filho, ao referir que nem
“seca, crise, miséria” podem obstar investimentos na cultura, pois a solução
das demandas coletivas somente se dará a partir do momento em que se
“conhecer a alma do povo, respeitar seus desígnios e deixá-lo decidir, dentro
dos mais elevados princípios humanitários, a sua própria sorte”409, ou seja, o
investimento na cultura, além de ser capaz de fortalecer a identidade e o
comprometimento cidadão, é capaz de fomentar o desenvolvimento social e
econômico em pouco tempo.
408
Entrevista com Ricardo Vollbrecht, advogado responsável pelos processos relativos às
partes, realizada por telefone no dia 09 de março de 2010, por telefone.
409
Cunha filho, 2002, p. 100.
162
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente dissertação teve como objetivo principal a análise das
políticas públicas culturais e sua aplicabilidade na proteção do tradicionalismo
gaúcho. Conforme pode se depreender do primeiro capítulo, a identidade
gaúcha foi “forjada a ferro e fogo”, e com a mesma vontade de defesa do
território, uma das características pela qual mais se destaca o “gaúcho”,
aqueles que se apoderam desta identidade o fazem de forma a protegê-la
diante das novas invasões: a aculturação. Para tanto, utilizou-se de pesquisa
bibliográfica e entrevistas com inúmeros tradicionalistas, a fim de que se
pudesse estabelecer uma melhor compreensão sobre o que é a cultura
gaúcha, também denominada como gauchismo, e sua importância como
movimento de resistência à fragmentação do sujeito, a ponto de demandar
ações estatais para seu fortalecimento.
A idéia de que a cultura, em um sentido amplo, é uma idiossincrasia
social – ou seja, é a forma pela qual determinada sociedade vê o mundo e com
ele interage -, analisada no contexto da globalização, sugere que as
identidades são constantemente deslocadas, dificultando a definição do próprio
sujeito e gerando um desconforto íntimo que demanda urgente ressignificação.
A pesquisa iniciou pelas influências culturais que serviram de base para
a
atual
cultura
gaúcha,
reconhecida
pelo
amor
às
origens,
pelo
empreendedorismo, e pelo perfil político renovador. Esta “construção” da
identidade encontrou resistências em seu próprio meio, principalmente quanto
à sua denominação. O termo “gaúcho” evoluiu de um extremo a outro: da idéia
de “ladrão”, “bárbaro” e “vagabundo”, passando pelo “vaqueano” e “lutador” - aí
já revestido de uma aura mítica de herói farrapo – seguida da conotação
gentílica do termo, inicialmente rechaçada por boa parte dos sul-riograndenses, para culminar no sentimento que hoje parece ser comum entre
estes, o de “orgulho gaúcho”, extremado no conceito dos tradicionalistas, que
assim definem aquele que segue, que cultua a tradição.
163
Verificou-se que o tradicionalismo gaúcho é impulsionado principalmente
por dois sentimentos: o nativismo e a saudade, sendo que ambos não podem
ser analisados separadamente, porque justificam-se entre si. Afinal só se sente
saudade sobre o que se tem apego, e, neste caso, trata-se do apego ao pago,
ao sentimento de “lar”, pertencimento e segurança, trazidos como base
fundamente da identidade gaúcha. Ao mesmo tempo, se tem ainda maior
apego das coisas pelas quais se sente saudade, ou risco de perder.
A trajetória da formação sul-rio-grandense se embasou em lutas pelo
território e pelo reconhecimento, legando a população de um espírito
questionador e inconformado com o que lhes é estranho. Através da análise da
história do Rio Grande do Sul, fica ainda mais fácil compreender a vontade com
que este povo resguarda sua identidade, a necessidade íntima de autodefinição, de saber-se “gaúcho” onde quer que se encontre. Isto se reflete na
proliferação dos CTGs em outros Estados Federados, bem como em outros
países, como Estados Unidos, Espanha, França e mesmo no Japão.
Quanto às principais críticas, estas se fundam basicamente no fato de se
tratar de uma cultura inventada e à serviço das classes dominantes, desde sua
origem. Em contrapartida, justificam os tradicionalistas não ser justo debitar ao
gauchismo os desajustes sociais, e de que, longe de ser uma cultura
hegemônica e alienante, pretende tão somente resgatar conceitos de
humanidade e respeito, principalmente de boas condutas diante do convívio
social. Afinal, todas as culturas e tradições são, de alguma forma, inventadas,
pois não é possível conceber a idéia de uma cultura preexistente, fixa,
imutável. Ao que parece, o desafio proposto por Lessa, que conferiu ao “tempo”
a tarefa de definir o acerto ou não do tradicionalismo gaúcho parece estar se
traduzindo de forma favorável ao seu fortalecimento, na exata medida em que
o tradicionalismo avança fronteiras e luta contra a fragmentação de sua
identidade.
A questão da identidade gaúcha tem sido alvo de estudos reiterados,
sob varias óticas de pesquisa, notadamente na antropologia e sociologia, e
agora também no mundo jurídico, pois tudo o que reflete da sociedade possui
164
consequências no Direito. Em sede de direitos culturais, verifica-se com certo
ânimo que a Constituição Federal possui um viés promocional, fomentador,
várias vezes utilizando verbos nucleares encorajadores das ações estatais,
saindo da confortável área das normas programáticas que se apresentam tão
somente como um ideal a ser atingido. Ao contrário destas, as normas
promocionais conferem obrigações reais, objetivos palpáveis e aplicáveis ao
que se destinam.
É desta forma que a cultura é tratada em nosso ordenamento jurídico,
principalmente na Constituição Federal, ao afirmar que o Estado “garantirá” os
direitos culturais e o acesso ás fontes da cultura nacional, “apoiará” e
“incentivará” a valorização e a difusão das manifestações culturais,
principalmente as manifestações populares, indígenas e afro-brasileiras,
estabelecerá, dentro do Plano Nacional de Cultura, a “promoção” e “difusão”
dos bens culturais, “valorizará” a diversidade étnica e regional, “incentivará” a
produção e o conhecimento dos bens e valores culturais, entre outras
previsões.
Diante deste caráter promocional e encorajador, a análise do tema
passa a outras responsabilidades: a de verificar quais as formas de ação
estatal que, respeitando as previsões legais, são capazes de fortalecer a
cultura de se povo, traduzindo-se em políticas públicas voltadas a este fim.
Ressalte-se que a linha de pesquisa foi desenvolvida especificamente na área
de políticas públicas, na busca de condições viáveis de gestão dos interesses
públicos voltados à cultura.
O relacionamento do Estado para com a cultura gaúcha nunca teve
aportes muito significativos, o que facilmente se nota ao verificar quão recentes
são as leis específicas que reconhecem ou protegem o patrimônio cultural
gaúcho e seus simbolismos (patrimônio imaterial), bem como a quase ausência
de políticas públicas diretas aplicáveis ao tradicionalismo gaúcho.
A “desobrigação” mostrada pelo Estado no fomento à cultura regional,
justificando que a sociedade o faz por si, não merece prosperar, porquanto
165
frequentes ações estatais deixam de reconhecer e promover a própria cultura
para valorizar (e muitas vezes impor) culturas externas, a exemplo das ações
da SEDAC que, sob a bandeira da “arte de incluir pela cultura”, o fazem através
do hiphop, funk e grafitismo, alegando que o tradicionalismo gaúcho “não é
cultura de base”, ao mesmo tempo em que veste a máscara do gauchismo
para apresentar-se em meio virtual, como se nota no site oficial da Secretaria.
Nota-se que o embasamento conceitual deste trabalho foi feito de forma
despretensiosa, já que nenhum dos temas nele inseridos são pacíficos de
esgotamento. Contudo, pretendeu-se analisar as políticas públicas culturais
realizadas pelos governos, principalmente nacional e estadual, algumas das
quais poderiam ser melhor utilizadas para o fortalecimento da cultura gaúcha,
auxiliando sobremaneira a luta cada vez maior do homem por seu
reconhecimento íntimo, sua identificação e pertencimento, estabelecida diante
da interpelação do inesgotável número de sistemas culturais que rodeiam o
sujeito.
Ao tratar das políticas educacionais, foi-se taxativo ao afirmar que são
necessidades humanas básicas. A educação para a cultura e, mais, a
educação para a própria cultura é crucial para o desenvolvimento da
consciência, do senso de responsabilidade e de pertencimento do indivíduo, de
sua relocalização enquanto homem e cidadão. Uma educação cultural é capaz
de imprimir novos conceitos sociais e banir preconceitos, pois, a partir do
conhecimento e da valorização da própria cultura se desenvolve a idéia de que
existe uma universalidade de culturas tão dignas de respeito quando àquela a
qual se pertence. Tratam-se, assim, de políticas públicas de inclusão social
através do reconhecimento das diferenças. Neste contexto, não se vislumbra
nenhuma razão pela qual não se dê maior guarida à cultura local sul-riograndense, até porque ela se encontra repleta de condutas e valores que
resgatam a moral, a família, ao respeito e aos bons costumes, desenvolve os
amores pela terra e pela nação e estimula a cidadania através o estímulo à
participação política e à não apatia diante das desconformidades sociais,
administrativas e políticas.
166
O insignificante índice de tombamentos relativos à epopéia farroupilha,
por exemplo, ou às lendas e mitos originários do sul reflete esta realidade. A lei
de Tombamento é reconhecida como um dos melhores instrumentos para a
proteção do patrimônio cultural, instrumento este pouquíssimo explorado pelo
poder público. O Rio Grande do Sul é um dos Estados federados de maior
importância econômica e representatividade política mas, mesmo assim, não
possui nenhuma representatividade cultural dentre os bens tombados pelo
IPHAN. O mundo inteiro reconhece a importância do tradicionalismo gaúcho,
sendo que o movimento frequentemente representa o Brasil no exterior (a
exemplo dos Estados Unidos), mas isso parece nada importar para o Governo
Federal e Estadual.
Ainda mais alarmante são as políticas públicas de inclusão social
aplicadas pela SEDAC que, mascarada sob o slogan de “arte de incluir pela
cultura”, não possui nenhum projeto que trate da cultura gaúcha, mas prioriza
sobremaneira o funk e o hiphop, o grafitismo e outras culturas alienígenas,
demonstrando
total
desconsideração
com
os
valores
e
costumes
tradicionalistas.
A Constituição federal também prevê políticas de incentivo intelectual
para que haja uma mediação simbólica, compreendida no apoio à pesquisa
cultural e na produção de ferramentas que garantam sua continuidade – livros,
mídia, documentários, entre outros. Sem a mediação não há que falar em
cultura, pois é necessário que se transporte a cultura do particular para o
universal. Em que pese a previsão legal e a reconhecida importância da
mediação simbólica, a administração pública (neste caso estadual) deixa seus
órgãos destinados a promover a cultura regional às traças. Todas as obras e
pesquisas realizadas pelo IGTF foram feitos com recursos próprios angariados
dentre os tradicionalistas.
Se a cultura, na Constituição Federal, foi inserida através de normas
programáticas
e
promocionais,
as
leis
infraconstitucionais
específicas
necessitam ser elaboradas com maior praticidade, criando fundos específicos
para a cultura regional e formas de perpetuação destes bens culturais.
167
O que se viu nesta pesquisa é que existem meios pelos legais quais se
pode fomentar a cultura local, e, principalmente, que tamanha tarefa é
preconizada
pela
própria
Constituição
Federal.
Contudo,
a
inércia
governamental demonstra o total desinteresse pela proteção do tradicionalismo
gaúcho, uma vez que inúmeros são os exemplos em que, utilizando-se das
previsões legais e de projetos administrativos culturais, incentiva e estimula
culturas alienígenas sem ao menos reconhecer a importância de se conhecer a
própria identidade,mesmo diante do risco de fragmentação do sujeito através
da desintegração de sua própria cultura, processo este ao qual já sucumbiram
a maior parte das identidades no mundo globalizado.
168
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