CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO - MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS Eliana Weber POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORTALECIMENTO CULTURAL DO TRADICIONALISMO GAÚCHO FRENTE À FRAGMENTAÇÃO DO SUJEITO NA GLOBALIZAÇÃO Santa Cruz do Sul, março de 2010 1 Eliana Weber POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORTALECIMENTO CULTURAL DO TRADICIONALISMO GAÚCHO FRENTE À FRAGMENTAÇÃO DO SUJEITO NA GLOBALIZAÇÃO Dissertação apresentada ao Curso de Pós Graduação em Direito – Mestrado – Área de Concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas, da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Linha de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Orientadora: Prof. Pós-Dra. Marli Marlene Moraes da Costa Santa cruz do Sul, março de 2010 2 Eliana Weber POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORTALECIMENTO CULTURAL DO TRADICIONALISMO GAÚCHO FRENTE À FRAGMENTAÇÃO DO SUJEITO NA GLOBALIZAÇÃO Esta dissertação foi submetida à avaliação do Programa de Pós graduação em Direito – Mestrado – Área de Concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas, da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Linha de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Orientadora: Prof. Pós-Dra. Marli Marlene Moraes da Costa Banca Examinadora Prof. Pós-Dra. Marli Marlene Moraes da Costa Orientadora Prof. Pós-Dr. Clóvis Gorczevski Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC Prof. Universidade Santa Cruz do Sul, março de 2010 3 Ao João (in memorian), pela inspiração de qualidades e virtudes, e por me mostrar até o último momento o que significa ser “forte”, vendo as idéias de “beleza”, “completude” e “possibilidade” diante de qualquer dificuldade... 4 AGRADECIMENTOS Agradeço à essência Divina, que nos momentos mais difíceis transmitiu sua força para a superação dos obstáculos. Como frutos dela, agradeço àqueles que cruzaram meu caminho ao longo destes últimos dois anos, e o trilharam ao meu lado sem temer o que vinha à frente - cada um sabe a parcela de sua contribuição, bem como o lugar que ocupa, definitivamente, em minha vida: À minha família e ao Antônio, meu amor, pela consciência da importância desta conquista e pela paciência enquanto eu ia em busca dela. Ao professor João Telmo por ter sido mais que um professor, me incluindo no rol de seus filhos do coração. Tenho certeza de que está comigo neste momento. À professora Marli, principalmente pela força e carinho ao me ajudar a recolher e colar cada “caquinho” deste período de verdadeira mutação, não só intelectual, quanto pessoal – com certeza um dos períodos mais intensos (e bem vividos) de minha existência. Ao professor Clóvis, pelo apoio e incentivo constantes. À Rosana, por ter literalmente me adotado - vou levar você no coração para a vida inteira. Ao programa de Mestrado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul, pelo ensino de altíssima qualidade conferido, e ao Programa Institucional de Bolsas de Pós Graduação Stricto Sensu – BIPSS/UNISC, pelo fomento à pesquisa realizada. Nas pessoas da Lucy, Viviane e Maglyane, agradeço a todos os meus queridos amigos, por não terem deixado que o cansaço e as dificuldades tomassem vulto e me desencorajassem – sem vocês, nada disso seria possível. Aos incontáveis (e inacreditáveis) amigos que esta vivência no mestrado - e, principalmente, desta pesquisa - me proporcionou, mostrando que literalmente a amizade verdadeira não conhece distâncias ou diferenças. 5 “Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a terra” (Hino Rio-Grandense) 6 RESUMO O tempo e as mudanças sociais provocaram significantes alterações no Rio Grande do Sul, em seus aspectos sociais, políticos, econômicos – o Estado deixou de ser agro-pastoril para tornar-se integrado econômica e politicamente com os demais Estados federados e com a comunidade internacional. No mesmo sentido, transformou-se a própria identidade gaúcha, ganhando novas sem nunca deixar, entretanto, de manter suas raízes. O tradicionalismo gaúcho tem assumido espaço cada vez maior no cenário mundial, o que demonstra a importância desta análise no contexto da globalização - a fim de se evitar a fragmentação da sua identidade, pois a unidade cultural possui implicâncias inclusive conceito de nacionalismo e na necessidade humana cada vez mais de “pertencimento”. Em que pese até então a sociedade tenha se organizado praticamente sozinha na tentativa de proteger sua cultura, a complexidade social tem exigido políticas públicas capazes de auxiliar esta demanda, a fim de fortalecer o tradicionalismo gaúcho e assegurar que não haja rupturas capazes de afastar a identidade do sujeito e aumentar a sensação de insegurança hoje estabelecida. É neste ínterim que se desenvolve a presente pesquisa, mediante a análise das necessidades e possibilidades das políticas públicas aplicáveis ao fomento cultural, através de uma ação estatal (administrativo/jurídica) que atenda seu objetivo. Palavras-chave: políticas públicas – cultura – tradicionalismo – globalização – fragmentação 7 ABSTRACT The pass of time and social changes has promoved significant alterations in Rio Grande do Sul, in its social aspects, politicians, economic – the State left of being agrarian and pastoral, to become integrated economically and politically with the others Federative States and with the entire international community. Into the same direction, has changed the properly identity of being gaucho, without leaving, however, to keep it with the same roots from before. The gaucho traditionalism is assuming a bigger and bigger space in the world-wide scene, showing the importance of this analysis in the context of the globalization – specially to prevent the spalling of its identity, therefore the cultural unit also means the nationalism concept, and in the human necessity of “belonging”. Despite the society is self organized to protect its culture, the social and global complexity has demanded public politics capable to assist this demand, in order to fortify the gaucho traditionalism and to assure that it does not have ruptures, capable to move away the person identity and to increase the sensation of insecurity today established. It is in this meantime that the present research is developed, by an analysis of the necessities and possibilities of the applicable public politics at the cultural promotion, through a state action (administrative/legal) that it takes care of its objective. Keywords: public politics - culture - traditionalism – globalization - spalling 8 LISTA DE ABREVIATURAS CTG – Centro de Tradição Gaúcha CBTG – Confederação Brasileira de Tradição Gaúcha DTG – Departamento de Tradição Gaúcha FAMURS – Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul FTG/PC – Federação da Tradição Gaúcha do Planalto Central IPHAE – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Estadual IPHAN – Instituto do Patrimônio histórico e Artístico Nacional IGTF – Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore IPTU – Imposto Predial e Territorial Urbano LDO – Lei de Diretrizes Orçamentárias LIC – Lei de Incentivo à Cultura LOA – Lei Orçamentária Anual MTG – Movimento Tradicionalista Gaúcho MTG/RS - Movimento Tradicionalista Gaúcho do Rio Grande do Sul MTG/SC - Movimento Tradicionalista Gaúcho de Santa Catarina MTG/PR - Movimento Tradicionalista Gaúcho do Paraná MTG/SP - Movimento Tradicionalista Gaúcho de São Paulo MTG/MT - Movimento Tradicionalista Gaúcho de Mato Grosso MTG/MS - Movimento Tradicionalista Gaúcho de Mato Grosso do Sul NICVA – Núcleo de Cultura do Município de Venâncio Aires PCNs - Parâmetros Curriculares Nacionais PRONAC – Programa Nacional de Apoio à Cultura SEDAC – Secretaria da Cultura do Estado SMC – secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre UNESCO – Organização das Nações Unidas pela educação, Ciência e Cultura UTG/RJ – União Tradicionalista gaúcha do Rio de Janeiro UTGN – União Tradicionalista Gaúcha do Nordeste 9 SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS ............................................................ 1 O ORGULHO DA IDENTIDADE GAÚCHA .................................... 1.1 A (trans)formação cultural sul-rio-grandense .............................. 1.2 O orgulho de ser “gaúcho”: a evolução de um conceito ............ 11 14 14 20 1.3 Sentimento nativista: a identificação pelo apego ao território conquistado – dos primórdios à Revolução Farroupilha 1.4 Surge um movimento organizado ................... 30 ............................................... 43 2 CULTURA E IDENTIDADE: A GLOBALIZAÇÃO E A TRADIÇÃO GAÚCHA EM QUESTÃO .................................................................. 60 .................................................................... 61 ...................................................................................... 61 2.1 Cultura e identidade 2.1.1 Cultura 2.1.1.1 Patrimônio cultural 2.1.2 Identidade ................................................................ 66 ................................................................................ 69 2.2 Globalização da cultura e o risco da fragmentação .................... 74 .................................. 78 ................................................... 80 2.2.1 Integração multicultural e fragmentação 2.2.2 Cultura e identidade nacional 2.3 A mundialização da cultura gaúcha ............................................ 2.3.1 A discussão da cultura e da identidade gaúcha ....................... 85 86 2.3.2 O tradicionalismo gaúcho diante do risco da perda da identidade ........................................................................................... 95 2.3.2 A migração do tradicionalismo gaúcho: um mundo de bombachas 3 ........................................................................................ POLÍTICAS PÚBLICAS TRADICIONALISMO GAÚCHO 3.1 O direito à cultura DE FORTALECIMENTO AO ........................................................ 112 ........................................................................ 113 3.2 Tradicionalismo Gaúcho e Estado conturbado 101 - um relacionamento ........................................................................................ 117 10 3.3 Políticas públicas de fortalecimento cultural do tradicionalismo gaúcho .............................................................................................. 3.3.1 Políticas educacionais .............................................................. 3.3.2 Inclusão social e proteção da juventude 3.3.3.2 Desapropriação 131 .................................. 138 ......................................... 139 ......................................................................... 140 ..................................................................... 147 3.3.3 Políticas de proteção ao patrimônio 3.3.3.1 Tombamento 128 3.3.4 Incentivo intelectual para uma mediação simbólica ................. 149 3.3.5 Políticas tributárias: incentivos fiscais na proteção e fomento à cultura ............................................................................................... CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS 153 .............................................................. 162 ................................................................................. 168 11 CONSIDERAÇÕES INICIAIS A presente dissertação tem como título Políticas públicas de fortalecimento cultural ao tradicionalismo gaúcho frente à fragmentação do sujeito na globalização, desenvolvida no Curso de Mestrado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, área de concentração Direitos Sociais e Políticas Públicas, estando inserida na Linha de Pesquisa de Políticas Públicas de Inclusão Social. O tema central pretende analisar as políticas públicas culturais existentes e sua eficácia e aplicabilidade ao fortalecimento da cultura gaúcha, diante do risco de sua iminente fragmentação no contexto da globalização. A relevância social do estudo se apresenta na medida em que se propõe uma perspectiva de proteção cultural ao tradicionalismo gaúcho a partir do Estado, como fomentador da iniciativa social já implementada, de forma a fortalecer ainda mais a identidade gaúcha e o senso de pertencimento do indivíduo ao locus social do qual faz parte, capaz de garantir maior segurança diante da complexidade social que se verifica na globalização. Sua relevância científica, por outro lado, se justifica à medida em que o gauchismo tem sido considerado um fenômeno antropológico único no mundo, pois ao passo em que as demais identidades se fragmentam - diante da cada vez mais frequente influência multicultural-, parece estar sendo capaz de fortalecer a própria identidade através de um movimento eficaz de resistência a essa aculturação – o movimento tradicionalista organizado. O tema tem sido alvo constante de estudos, principalmente nas áreas de antropologia, sociologia (o que facilmente se pode notar pela análise das obras exploradas para a elaboração desta dissertação), não podendo a área jurídica, especificamente em sede de políticas públicas, deixar de oferecer sua contribuição científica sobre este fenômeno. Isto porque as políticas públicas encontram-se perfeitamente inseridas no mundo jurídico, que lhes dá perfil e susentabilidade prática. 12 O primeiro capítulo, denominado O orgulho da identidade gaúcha, traz os principais fatores de “identificação” desta cultura. Inicia retratando a formação sul-rio-grandense, com as principais influências culturais, como a portuguesa, indígena, negra, alemã, italiana e espanhola. Afinal, o Rio Grande do Sul é um Estado formado por diferentes grupos étnicos, e a definição da atual identidade sul-rio-grandense perpassa esta análise inicial das principais capas culturais que lhe serviram de base. Da mesma forma, tornou-se necessário tratar mais especificamente do termo “gaúcho”, suas possíveis origens históricas e as recorrentes alterações de seu significado, até se chegar ao ponto crucial: o orgulho de ser gaúcho que nominou o capítulo - e está fortemente ligado ao sentimento nativista. Definido como o forte apego pela terra e pelas origens, reconhecido por um povo cuja história mostra a luta constante pela proteção de seu próprio território ante as frequentes invasões. Assim, esta linha de raciocínio conduz aos principais aportes históricos envolvidos na construção desta identidade, sem os quais dificilmente se entenderia o contexto do gauchismo. O último conteúdo deste capítulo traduz o surgimento e o atual estado do Movimento Tradicionalista Gaúcho organizado, cuja força cultural não mais reconhece fronteiras. Os espírito gaúcho, que antes lutava pela manutenção de seu território, hoje luta pela manutenção de sua cultura. O segundo capítulo inicia com a discussão conceitual dos termos envolvidos - como a definição de cultura, identidade, globalização e a própria fragmentação, iniciando sua introdução juridicizada, que será complementada no terceiro capítulo. Contudo, por uma questão de inviabilidade teórica, não se pretendeu apresentar conceitos definitivos, impossíveis diante da complexidade dos movimentos sociais que dão sentidos a estes termos. Assim, cultura e identidade, - principalmente quando inseridas na globalização - longe de serem noções fixas e delimitáveis, tecem entre si intrincado jogo de idéias que buscam se encaixar na definição da sociedade atual – local, regional, nacional, global? – e da própria individualidade. 13 A constatação de que a identidade é continuamente transformada pela intervenção multicultural provoca a noção de deslocamento desta mesma identidade, que termina por fragmentar-se. Tal questão possui consequências ainda maiores se aliar-se ao conceito de “identidade nacional”, considerando, assim, que a fragmentação da identidade pode sugerir rapidamente o enfraquecimento da própria nação. No sentido oposto desta perda identitária, este mesmo capítulo retrata a mundialização do gauchismo, ou seja, de “invasão” da cultura gaúcha em outros Estados federados e também no exterior, como forma de resistência à aculturação e de busca pela manutenção da própria identidade, de auto-definição perante a sociedade. Por fim, o terceiro e último capítulo retrata as políticas públicas culturais e sua aplicabilidade no fortalecimento do tradicionalismo gaúcho, iniciando pelo aporte jurídico ao direito à cultura, levando em conta a função promocional do direito. A construção teórica constante nos dois primeiros capítulos termina por delinear a forma de apresentação da última parte da pesquisa, onde são trazidas as justificativas constitucionais do direito à cultura, assim como a análise da relação estabelecida entre Estado e o Tradicionalismo Gaúcho, ao longo do tempo. Toda esta rede conceitual, filosófico-jurídica, é necessária para a análise efetiva das políticas públicas capazes de fomentar a cultura gaúcha, com a finalidade última de, através do fortalecimento da identidade, promover o comprometimento e o desenvolvimento social. 14 1 O ORGULHO DA IDENTIDADE GAÚCHA A cultura pode ser definida, numa concepção ampla, como uma idiossincrasia social – ou seja, é a forma pela qual um ou mais indivíduos vêem, interpretam e interagem com o mundo. Pode inda estar associada a outros conceitos, como nacionalidade, etnicidade ou religiosidade. Este conceito será melhor explorado no segundo capítulo, assim como a questão da interferência cultural que se desenvolve a partir do contexto social globalizado, que parece estabelecer uma interessante dicotomia: o risco de fragmentação das identidades e, ao mesmo tempo, o surgimento de movimentos de resistência, estabelecidos a partir da idéia central de fortalecimento de identidades regionais. O tempo e as mudanças sociais provocaram significantes alterações no Rio Grande do Sul, em seus aspectos sociais, políticos, econômicos. O Estado deixou de ser agro-pastoril para tornar-se um Estado “moderno”, urbano e globalizado, integrado econômica e politicamente com os demais estados do país e com a comunidade internacional. No mesmo sentido, transformou-se a própria identidade gaúcha, ganhando novas nuances com o passar do tempo, sem nunca deixar, entretanto, de manter suas raízes. 1.1 A (trans)formação cultural sul-rio-grandense Os povos que não se conhecem a si mesmos, por ignorância ou desdém de suas origens, jamais terão definida personalidade. (Manoelito de Ornellas) A cultura e a identidade sul-rio-grandense, como hoje se apresentam, são frutos de um somatório de vertentes culturais – “A identidade de um povo resulta dos elementos culturais que lhe são inerentes. [...] É fruto da aprovação 15 que uma determinada conduta recebe no cerne do aglomerado societário”1. Inicialmente, importa apontar o conceito de região cultural utilizado, como sendo aquele trazido por Bellomo, designado como um “determinado espaço geográfico em que os padrões culturais, tais como alimentação, produção, folclore2, formação social, habitação e outros apresentam certa uniformidade”. Para o autor, a sociedade sul-rio-grandense se apresenta modernizada e com marcante influência européia - em razão das características de sua colonização-, com classe média significativa e alta significação eleitoral, o que sugere um perfil político renovador. Alimentação diversificada, bom nível educacional e de saúde3. O Rio Grande do Sul é um estado peculiar, especialmente em se tratando da forma com que foi colonizado, sua localização e sua história. Sobre este aspecto, Bellomo tece importante contribuição na análise do que denomina “capas culturais” sul-rio-grandenses, entendendo-se capa cultural como os diferentes elementos culturais mais ou menos articulados, resultando na análise da cultura local feita através não só de uma região geocultural, mas conforme a herança cultural recebida4. De acordo com o autor, no caso do Rio Grande do Sul seriam cinco as capas culturais a serem consideradas, a saber: A primeira é de origem portuguesa, de quem o Rio Grande do Sul recebeu as heranças culturais das danças, músicas, comidas, lendas e mitos5. A língua provavelmente seja o principal legado desta capa cultural. Segundo 1 ALMEIDA FILHO, Agassis. Globalização e identidade cultural. São Paulo: Conesul, 1998, p. 27. 2 ORNELLAS, Manuelito de. Folclore. In. Movimento Tradicionalista Gaúcho – MTG. MTG 40 anos: raiz, tradição e futuro – 1966-2006. Porto Alegre: MTG, 2006, p. 30. “O folclore e a história se entrelaçam e se completam. O folclore não é somente um perfil da história. É, muitas vezes, um índice orientador sobre a origem dos acontecimentos. A história oficial é a relação cronológica dos fatos e fundamenta-se na opulência dos arquivos. Mas, coexistente com as leis, os decretos, as sentenças, os diários de guerra, as proclamações, os tratados, a biografia e a correspondência, uma outra história se escreve, sem o prestígio da imprensa e a consagração erudita das cátedras. É a história que o povo, ator e espectador imediato, alinhava em trovas humildes, em ritmos de danças, em romances e décimas, em frases e sentenças que se tornam populares. É a obra comum que a todos pertence e cujo autor ignorado jamais reivindica a paternidade gloriosa”. 3 BELLOMO, Harry Rodrigues. Capas e regiões culturais do Rio Grande do Sul. In. FLORES, Hilda A. Hubner. Regionalismo sul-rio-grandense. Porto Alegre: Círculo de Pesquisas Literárias/Nova Dimensão, 1996, p. 31-32. 4 Ibidem, p. 32-36. 5 Ibidem, p. 33. 16 Ornellas, em que pese os legados culturais deixados, a permanência lusitana, em decorrência de sua “precariedade numérica”, não deixou vincos profundos, sendo a cultura portuguesa absorvida rapidamente pelos demais hábitos e costumes que se estabeleceram, pouco a pouco, na região. Não foram apenas o meio e o clima os agentes da metamorfose açoriana, “mas principalmente o novo modo de vida”, num caso de inversão de influências. Afinal, o português “não trouxe a indumentária nem a criou nem tampouco os utensílios peculiares ao gaúcho. Recebeu-os do gaúcho, que já existia e há muito transitava pelos pampas da América”6. Cardoso sintetiza a história brasileira dos arquivos portugueses como sendo a “história da costa” (litorânea), devido à escassa penetração dos portugueses no território sul-rio-grandense7. O pesado ilhéu, ao pouco tempo não era mais reconhecível no leste gaúcho dominando o cavalo com a máxima destreza, trocando os hábitos sedentários, por um viver entre o arado e as aventuras da campanha semideserta, a índole refratária ao serviço militar, pelo entusiasmo guerreiro, o modo de ser pacato e tranquilo, pelo de livre 8 franqueza e espontânea vivacidade . A segunda capa seria a indígena, incluindo-se aqui os principais grupos indígenas que já se encontravam nestas paragens antes da chegada dos europeus, legando à cultura sul-rio-grandense, além dos termos do linguajar, a base da alimentação, lendas, costumes, vestes, e principalmente o hábito do chimarrão9. A capa cultural indígena é, talvez, a de que o povo sul-riograndense mais se orgulha, muito embora não tenha sido muito expressivo o número de índios no Estado. Esta característica estaria relacionada, provavelmente, com a reação indígena diante da escravização a que foram submetidos, refletindo sobre eles uma aura de luta e bravura. Para Oliven, ainda assim foi possível a apropriação de seus símbolos, para considerá-los como sendo de identidade regional: [...] numa das vertentes da construção da identidade sul riograndense é motivo de orgulho afirmar que no gaúcho corre sangue de índio. É corriqueira a expressão “índio velho” utilizada de forma 6 ORNELLAS, Manoelito de. Gaúchos e beduínos: a origem étnica e a formação social do Rio grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro, 1956, p. 27-28. 7 CARDOSO, Vicente Licínio, apud Ornellas, 1956, p. 38. 8 VARELA, Alfredo. Revoluções Cisplatinas. Porto: De Lello & Irmão Editores, 1915. 9 Bellomo, 1996, p. 33-34. 17 carinhosa em relação à figura do gaúcho. Contribui para isso, o fato de o índio ter sido reduzido a um número mínimo e portanto ter pouco contato com os brancos, de ele não ter sido escravizado na mesma proporção que o negro, de ele estar associado a uma imagem de bravura e altivez e o fato de os charruas e minuanos, grupos que não existem mais e que habitavam a região da Campanha no sudoeste do Rio Grande do Sul quando os ibéricos chegaram, terem sido guerreiros e a partir da introdução do cavalo hábeis cavaleiros, o que permite associá-los a figura valente e altaneira do gaúcho, em permanente contato e luta com a natureza. O recorte nesse caso se faz via cavalo, elemento emblemático do 10 gaúcho . A capa cultural negra também foi responsável por parte do linguajar, costumes e lendas, destacando-se entre elas a principal lenda sul-riograndense: o Negrinho do Pastoreio11. Entretanto, a identificação cultural do povo sul-rio-grandense com os negros é basicamente insignificante, se comparada com o que ocorre em outros Estados, como a Bahia, onde o negro é considerado um dos formadores da identidade. No Rio Grande do Sul sua imagem permanece em segundo plano. À mesma medida em que a luta indígena pela liberdade provocou um realce positivo de sua imagem, a atitude do negro no período escravista parece ter afastado seu perfil do ideal construído pela cultura regional, que vai de encontro à aparente aceitação do status de escravo e imediata subordinação negra ao homem branco. Comparando com os massacres indígenas ocorridos nos embates pela liberdade, o negro, em território brasileiro, nem sempre mostrou a mesma irresignação, aceitando de forma muito mais pacífica esta condição 12. Neste sentido, merece destaque, dentro das palavras de Lima, o reconhecimento da influência negra na formação da identidade sul-rio-grandense – mas do negro dotado de “cultura e a consciência de liberdade, distintas dos que aportaram no Nordeste”, referindo-se claramente ao espírito de liberdade antes descrito. De acordo com Ornellas, o baixo nível econômico das capitanias meridionais foi o principal responsável pelo pouco afluxo de negros, que nos primórdios da capitania foi insignificante. Quando da organização das primeiras fazendas, diante da necessidade de cuidado mais regular das lavouras, o 10 OLIVEN, Ruben George. Cadernos de Antropologia nº 4: A polêmica identidade gaúcha. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1992, p. 12. 11 Bellomo, 1996, p. 34-35. 12 Oliven, op. cit., p. 08 et seq. 18 tráfico de africanos foi visto de forma um pouco mais significativa. Ornellas traz, neste aspecto, a contribuição de Ave-Lallemant, que reconheceu este fato como “um dos mais felizes fatôres (sic) do desenvolvimento da província”, já que o “veneno da escravidão negra nela não penetra tão profundamente como no Brasil do centro e mesmo do Norte”13, sendo que, pela natureza do trabalho, “a escravidão não tomou as côres (sic) dramáticas de outras parcelas territoriais do Brasil”14.O negro que chegou à região sul, rapidamente se adaptou aos hábitos e costumes dos cavaleiros, inserindo na história do Rio Grande do Sul vários negros entre os melhores domadores, laçadores e campeiros. Por fim, as capas culturais alemã e italiana. Ambas chegaram ao Rio Grande do Sul com a finalidade de fugir da pobreza e das guerras que assolavam a Europa, trazendo consigo seus instrumentos e gêneros musicais (xote, mazurca, polca, valsa), a doceria, incluíram novos tipos de alimentos e novas devoções religiosas à formação cultural gaúcha15. Os italianos trouxeram consigo a força de trabalho e, principalmente, o forte conceito de união familiar, enquanto os alemães se destacavam pelo associativismo, onde “satisfazia em grupo as necessidades gregárias. Depois de uma semana de árduo trabalho na roça ou oficina, nada melhor do que o encontro com um círculo mais amplo que o familiar”16. Grande parte da responsabilidade da organização do tradicionalismo gaúcho é decorrente desta contribuição germânica, pois o gaúcho primário, “originário dos pampas”, era nômade, dificilmente tinha paradeiro certo e não podia ser considerado associativista. Nas palavras de Flores, “os diferentes grupos étnicos que entraram na formação demográfica do Rio Grande do Sul constituem hoje um variado painel antropológico, digno de ser conhecido para ser respeitado”17, sendo necessário lembrar que vários outros povos se fizeram presentes na formação da 13 Ornellas, 1956, p. 25. Ibidem, p. 26. 15 Bellomo, 1996, p. 35-36. 16 Ibidem, p. 45. 17 FLORES, Hilda Agnes Hubner. Regionalismo teuto. In. _____. Regionalismo sul-riograndense. Porto Alegre: Círculo de Pesquisas Literárias/Nova Dimensão, 1996, p. 39. 14 19 identidade sul-rio-grandense, com maior ou menor parcela de contribuição. Conforme bem assevera Lima, este povo é [...] a herança dos portugueses, a rudeza dos bandeirantes a determinação dos tropeiros paulistas, a constância dos açorianos, tudo transplantado para uma região agreste, fundido com o fatalismo do índio e a estirpe do negro, este com a cultura e a consciência de 18 liberdade, distintas dos que aportaram no Nordeste . Muito embora não se apresente como uma das capas culturais aventadas por Bellomo, a cultura espanhola é influência sui generis para a formação da identidade e da cultura sul-rio-grandense. Para Ornellas, a infuência espanhola, em razão da “localização dos elementos castelhanos, fazendeiros e colonizadores, padres e fidalgos, a serviço real nas faixas da Cisplatina e na fecunda bacia hidrográfica do Uruguai”, foi a principal responsável pela orientação e estímulo às bandeiras paulistas na conquista do Sul ao longo do vale do Paraná e Uruguai19. Para embasar suas alegações, traz as palavras de Assis Brasil, que destaca que “os espanhóis dominaram por largos espaços de tempo, em grande parte, o território da província do Rio Grande” e de Saint-Hilaire, que registrou ter sido “depois da insurreição das colônias espanholas que a vila do Rio Grande começou a florescer e que nela foram construídas a maior parte das casas um tanto consideráveis que por ali se viam em 1820” 20. O autor ainda tece interessante paralelo sobre o vestuário de cavaleiros espanhóis e o gaúcho rio-grandense, “para descobrir, sem esforços, o parentesco do homem ibérico com o homem de nossas fronteiras”. Relata suas impressões afirmando ter encontrado, na Espanha, semelhanças impressionantes entre os cavaleiros dos dois continentes: Em Múrcia, os huertanos vestem palas listrados idênticos aos palas gaúchos e alentejanos. Em Salamanca, vi os mozos de la Allberca vestidos de bombachas, enfeitadas de moedas de prata nas costuras laterais, idênticas em tudo ao modêlo (sic) das bombachas americanas do Sul. Os cavaleiros usam ainda tiradores de duas bandas, também feitos de couro. 18 LIMA, Jarbas. Tradicionalismo... responsabilidade social – reflexões. Porto Alegre: Movimento Tradicionalista Gaúcho, 2004, p. 144. 19 Ornellas, 1956, p. 37. 20 Ibidem, p. 42. 20 Os garrochistas de Sevilha, encilham seus cavalos com serigotes de duas cabeças e costumam forrá-los com pelegos. Usam também 21 tiradores de duas bandas... A formação cultural do Rio Grande do Sul resulta de um somatório de perfis, contribuições culturais, momentos históricos e criações - que buscaram preencher as lacunas de uma tradição. A influência trazida pela Europa ao Brasil – e consequentemente ao Rio Grande do Sul – se reflete em contribuições culturais inegáveis, através dos portugueses, alemães, italianos, espanhóis. Estes povos passaram a ocupar um território praticamente despovoado, com pouco ou nenhum auxílio do Império sequer para sua subsistência. A ascendência castelhana, conforme Ornellas, “emprestou uma fisionomia inconfundível ao tipo humano das Missões e das zonas da Campanha”; a influência paulista se voltado ao Planalto Médio e ao nordeste do Estado; e “as lembranças profundas dos açorianos teimam e permanecem, evocativas, na vida e feição” das cidades fluviais e marítimas”22. Em objetivo, demonstrava-se necessário ao menos o apontamento das principais capas culturais sul-rio-grandenses para somente depois se analisar a formação – ou criação - da figura do gaúcho e, consequentemente, do tradicionalismo gaúcho, reconhecido como um “case único no mundo”23, onde a organização da sociedade, com pouca ou nenhuma influência governamental, criou vínculos identitários que perpassam as questões territoriais e se opõe categoricamente, em visível resistência, às demais interferências culturais. Esta associação entre diferentes culturas e fatores históricos propícios, acabaram por criar um tipo social específico: o gaúcho. 1.2 O orgulho de ser “gaúcho”: a evolução de um conceito Concordam os principais autores tradicionalistas que o termo “gaúcho” evoluiu, conforme também evoluiu a sociedade. Muitas são as possíveis 21 Ornellas, 1956, p. 270. Ibidem, p. 24. 23 Entrevista com Manuelito Savaris, realizada em 13.10.2009, na Sede do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore – IGTF - localizado à Avenida Borges de Medeiros, 1501, no Centro Administrativo, Porto Alegre-RS. 22 21 origens do termo, como advindo de el gauchos, nominação atribuída aos camponeses uruguaios e argentinos que significa um povo sem-fronteira - já que vivia na região litorânea dos três países: “raça que brotou das entranhas do pampa, na figura primitiva do peão”. O termo, assim, nasceu provavelmente “no seio dos grupos de gaudérios errantes, mestiços, charruas, minuanos, guaranis, jaros; mesclados com as chinas dos ranchos”.24 De acordo com Lamberty, a origem do termo não é fidedigna – entre outros, cita Porto, para quem o termo deriva de “guahú”, de origem guaranítica, que significa canto triste ou uivo do cão, somado à “che”, do quichua25, que significa gente. A definição, para o historiador, seria: homem que canta triste, e provavelmente tenha nascido do ritual bárbaro dos índios, quando preconizavam a morte do primeiro tropeiro do Rio Grande do Sul, Padre Cristóvão Mendonça Orelhano26. Já para Boaventura Cavaglio, professor uruguaio também citado por Lamberty, a origem do termo provém de “garrocha” – “uma espécie de foice que os minuanos e charruas usavam para cortar o jarrete ou perna dos bois e mesmo dos potros, para fazer botas garrão-de-potro”. Em razão da nacionalidade do termo (espanhol), considerando que o indígena não pronunciava “rr”, passou a denominar-se “gahucho”, sendo também utilizado o termo garrucha para denominar uma primitiva lança indígena, e, posteriormente, para determinada arma de fogo de cano bastante curto, semelhante a um revólver.27 24 LAMBERTY, Salvador Fernando. ABC do tradicionalismo gaúcho. 4. ed. Porto Alegre; Martins Editor, 1996, p. 12. 25 Os quíchuas são povos indígenas da América do Sul, principalmente Argentina, Chile, Peru e Equador. 26 Lamberty, op. cit., p. 12-13. Sobre a tese do “homem que canta triste, conforme Lamberty, op. cit., p. 12-13, O padre Cristóvão Mendonça de orelhando ao conduzir uma tropa bovina próximo a Sant Lúcia do Piai (hoje Caxias do Sul), foi preso com seus companheiros, ferido letalmente e arrastado pelas pedras, na cincha de um cavalo, ao som de tambores e do canto triste dos bugres nativos. Concordamos com o autor, entretanto, ao considerar que esta tese não é suficientemente convincente, porquanto “os primeiros camponeses a serem chamados de gaúchos foram os gaudérios, mestiços, índios, peões, contrabandistas, caçadores de gado, entre outros (p. 15). 27 Ibidem, p. 13. 22 Para Assunção, a origem da palavra está embasada na palavra francesa “gauche”, pronunciada “goche”, significando coisas erradas, não direitas. Nunes e Nunes associam o termo a palavras de ordem campeira, trazendo a idéia de rebanhos e pastagens, decorrentes do termo persa gauchi (bonzinho), formado por “gau” (gado) mais “chi” (sufixo diminutivo). Neste sentido, o equivalente, em castelhano antigo, seria proveniente do termo árabe chaoúch, que significaria tropeiro, considerando esta como a primeira transição na forma genitiva, tendo então prevalecido o termo “gaúcho” . Neste mesmo sentido segue o parecer de Daniel Granada, tanto pela origem árabe (chaouch) quanto espanhola (chaucho), “igualmente significando ‘homem do campo, cavaleiro, vaqueano, guardião das tropas’” 28. O termo gaúcho nem sempre foi aceito pelos cidadãos sul-riograndenses, pois era considerado pejorativo, ultrajante. Fundamenta este repúdio inicial ao termo, a tese de Leguizamon, de que a palavra derivaria de “guacho”, a pessoa criada sem pai ou mãe, ou de “cachu”, significando vagabundo, esperto, arteiro, astucioso. Foi neste sentido que o termo foi utilizado em 1777, pelo Dr. José de Saldanha, para designar os ladrões que caçavam gado chimarrão29, como era conhecido o gado livre nos campos. Lessa traz passagem significativa deste texto de José Saldanha: “Gauches – palavra espanhola usada neste país para designar os vagabundos ou ladrões do campo que matam os touros-chimarrões, tiram-lhes o couro e vão vender ocultamente nas povoações”30. A existência deste gado selvagem atrelou-se inegavelmente ao perfil tecido do homem do sul. O gado, segundo Pesavento, começou a abundar nos campos após os embates entre jesuítas e bandeirantes, que perdurou até meados de 1640, ocasião em que Portugal conseguiu expulsar os holandeses da África e normalizar o comércio negreiro, razão pela qual os paulistas se desinteressaram pela escravatura indígena. Os jesuítas, então, mudaram-se para a outra margem do Rio Uruguai, deixando para trás o gado que criavam 28 Lamberty, 1996, p.13-14. Ibidem, p. 14. 30 Lessa, 1985, p. 24. 29 23 nas reduções indígenas – os animais abandonados passaram a reproduzir-se livremente, formando uma imensa reserva de gado, conhecida como “Vacaria del Mar”: “Estava lançado o fundamento econômico básico de apropriação da terra gaucha: a preia do gado xucro”31. Somente em 1820 é que o gaúcho foi definido, por Auguste de SaintHilaire32, como “homem que vivia da carne, morava em ranchos, tinha hábitos do chimarrão e do fumo e andava a cavalo”: Eis um homem que apenas se nutre de carne, mora em mísero rancho, não tem outro prazer além do fumo e do mate, e é oficial de milícia. Mostra-se muito satisfeito; mas é de esperar-se que uma tal existência deva reconduzir necessariamente à barbárie um povo tão resignado. Limitar suas habilidades a saber montar cavalo, e seus costumes a comer carne, é reduzi-los à condição de indígenas e distanciá-los da civilização, que, nos fazendo conhecer uma multidão de prazeres, nos força a trabalhar, a exercer nossa inteligência para conquistá-los e por isso aperfeiçoar-nos, pois é unicamente pelo exercício de nossa inteligência que nos aperfeiçoamos. Sou tentado a acreditar que este homem, apesar de branco, pertence aos habitantes desta região que tem costumes semelhantes aos garuchos, homens de maus costumes que perambulam pelas 33 fronteiras. Saint-Hilaire era francês e sua definição foi meramente empírica, através de uma viagem percorrendo os pampas. De acordo com Lessa, Saint-Hilaire ficou cerca de nove meses nas terras do sul, até meados de 1821, tendo reconhecido a capitania como “uma das mais ricas do Brasil e uma das mais bem aquinhoadas por natureza”: [...] os habitantes passam a vida, por assim dizer, a cavalo, e frequentemente locomovem-se a grandes distâncias com rapidez suposta além das possibilidades humanas. [...] Nesta Capitania acresce uma outra modalidade da dureza de coração. Vivem, por assim dizer, no meio de matadouros; o sangue 31 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do Sul. 8. ed. Porto Alegre: mercado Aberto, 1997, p. 09. 32 Cfe. ALVES, Francisco da Neves; TORRES, Luiz Henrique. Visões do Rio Grande. Rio Grande: URG, 1995, p. 25. O francês Auguste François César Provensal de Saint-Hilaire (1779 - 1853) foi o responsável pela primeira expedição botânica ao Rio Grande do Sul. Seu itinerário compreendeu várias cidades sul-rio-grandenses, como Torres, Tramandaí, Viamão, Porto Alegre, Rio Grande, Pelotas, Taim, Chuí, Quarai, Tupã Ciretã, Santa Maria, Cachoeira, Rio Pardo. Das viagens pelo Brasil, surgiu sua mais bem organizada obra, sob o título francês de Voyage à Rio-Grande do Sul – Brasil). O conjunto de sua obra no Brasil o tornou membro da Academia de Ciências de Paris. 33 Lamberty, 1996, p. 14. 24 dos animais corre sem cessar ao redor deles e desde a infância se 34 acostumam ao espetáculo da morte e dos sofrimentos. [...] No ano de 1839, Nicolau Dreys35 publicou sua Notícia descritiva sobre o Rio Grande do Sul, ocasião em que mais uma vez se pode verificar o caráter depreciativo do termo: Os gaúchos estão em todas as partes onde há estâncias ou charqueadas em que servem de peões. Parecem pertencer a uma sociedade agine, isto é, em mulheres, tal como a dos antigos tártaros. Pelo menos, aparecem geralmente sem mulheres e manifestam mesmo pouca atração por elas (felizmente para seus vizinhos). Formaram-se originalmente do contato da raça branca com os indígenas. Sem chefes, sem leis, sem polícia, não tem da moral social senão as idéias vulgares, e sobretudo uma espécie de probidade condicional que os leva a respeitar a propriedade de quem lhes faz benefício ou quem os emprega ou neles deposita confiança. Convencido de que não lhes faltará mantimentos enquanto o laço não faltar, o gaúcho veste-se com o estritamente necessário. Ele parece apreciar o dinheiro menos para suprir suas decisões, que são poucas, do que para satisfazer suas paixões ou alguns gostos instantâneos que, como nas crianças, excitem sua cobiça passageira. Ele quer dinheiro principalmente para jogar, tocar ou escutar uma guitarra nalguma pulperia e, às vezes, porém com raridade, dançar uma espécie de chula grave, que vimos praticar por alguns. Pouca propensão parecem ter para os licores espirituosos e a embriaguez é coisa quase nunca aparecida entre esses homens cujas disposições taciturnas e práticas pouco se conciliam com a 36 loquacidade e movimentos desordenados da bebedice . Em que pese as incontáveis afirmações sobre a origem terminológica da palavra “gaúcho”, Lamberty suavisa o termo, ao referir que em essência “gaúcho é o vaqueiro do sul – um tropeiro que canta sua terra e sua gente”. A conotação pejorativa fora inegavelmente legada por exploradores estrangeiros, por não compreenderem o modo de viver de um povo que vagava livremente em busca de serviços, que caçava gado selvagem para garantir a própria sobrevivência e não costumava fixar residência: “a origem da palavra gaúcho nunca denegriu essa raça tão destemida. Seu sentido pejorativo foi apenas propagandista de uma ação negativa que, revestida de poder, conquistou seus 34 Lessa, 2002,p. 132. Cfe. Alves e Torres, 1995, p. 35. Nicolau Dreys, francês (1781-1843) permaneceu 10 anos no Rio Grande do Sul (1818-1828). O fato de ter sido militar em seu país, facilitou sua entrada ás forças sul-rio-grandenses, auxiliando no combate às tropas Artigas, na fronteira com o Uruguai. Sua obra, Notícia descritiva sobre o Rio Grande do Sul, voltou-se ao traço de um quadro descritivo, rico em informações da época da formação do estado nacional brasileiro e da “fermentação revolucionária” que resultaria na Guerra Civil de 1835. 36 DREYS, Nicolau, apud Lessa, op. cit., p. 25-26. 35 25 domínios”. Prossegue o autor: “o cunho pejorativo da denominação serviu de bandeira para que a raça gaúcha, nascida de uma miscigenação de nativos, portugueses, e espanhóis, impulsionasse o sangue mestiço”, de forma que o sangue “corcoveasse nas veias”, sempre que houvesse invasão de seus domínios37. Aos poucos, a história do Estado fez com que a conotação pejorativa do termo “gaúcho” se transformasse. O ápice, provavelmente, se deu com a Revolução Farroupilha, ocasião em que a luta versou sobre a discussão do território e de direitos regionais, frente às armadas imperiais. Longe de possuir cunho separatista, o objetivo da luta foi o direito de barganhar com o Império, o que o exército farroupilha o fez até quando “vencido” 38. A Revolução Farroupilha foi, nas exatas palavras de Coelho Souza, “brasileira nos seus motivos”, brasileira nos seus objetivos, gaúcha só no “ímpeto e no sacrifício”, pois visava o bem-estar da região sul, o respeito à sua dignidade e grandeza, que deveriam estar aliados à dignidade e à grandeza do Brasil39. Na Revolução Farroupilha, o povo “gaúcho” passou a travar embate com as armas imperiais, chefiados por homens da mais fina educação e intelectualidade40, verdadeiros diplomatas que em nada se assemelhavam ao homem rude e brutal como antes era definido o termo. A República teve duração de nove anos - proclamada em 11 de setembro de 1836 e dissolvida em 1 de março de 1845, com o Tratado do Poncho Verde. 37 Lamberty, 1996, p. 15- 16 passim. O termo “vencido” vem aqui disposto entre aspas, pois foge ao rigorismo da expressão: para muitos tradicionalistas e historiadores, não pode se falar em derrota dos exércitos farroupilhas, pois travou-se uma Convenção de Paz entre o Brasil e os Republicanos – nome original da Paz do Poncho Verde; desta forma, tem-se que os farroupilhas foram derrotados fisicamente, mas não moralmente, diferente do que ocorreu em similares movimentos, como a Sabinada (1837-1838) na Bahia ou a Balaiada (1838-1841), no Maranhão. 39 LIMA, Jarbas. Tradicionalismo... responsabilidade social – reflexões. Porto Alegre: Movimento Tradicionalista Gaúcho, 2004, p. 93-94. 40 Dentre os quais não se pode deixar de citar Bento Gonçalves, político e chefe militar; Domingos José de Almeida, nascido em Minas Gerais, charqueador, político e administrador; José Gomes de Vasconcelos Jardim, fazendeiro e político; Antônio de Souza Neto, também militar e político; João Manuel de Lima e Silva, natural do Rio de janeiro, membro da Corte Imperial e tio de Duque de Caxias; Antônio Vicente da Fontoura, comerciante, político e diplomata; José Mariano de Mattos, político nascido no Rio de Janeiro. Dentre os estrangeiros, merecem destaque o conde da Casa de Bologna, Lívio Zambeccari, o redatorchefe da imprensa farroupilha, Luigi Rossetti e, sobretudo, Giuseppe Maria Garibaldi, todos os três italianos. 38 26 A Revolução marcou a consciência coletiva sul-rio-grandense, sendo a principal alavanca da redefinição do termo “gaúcho”. A ligação do “gaúcho” com a terra, o solo, a propriedade e as lides campeiras – definidores iniciais do termo – somou-se ao reconhecimento de povo forte, obstinado e lutador, resultado da Revolução Farroupilha. Em que pese o desconforto apresentado inicialmente por alguns, é inegável que a tradição “privilegiou determinada imagem do gaúcho: o machoguerreiro, destemido na luta contra o inimigo ou as forças da natureza, que percorre a imensidão do campo inseparável de seu cavalo”. É com estas palavras que Chaves inicia seu raciocínio sobre o novo sentido do vocábulo. Prossegue afirmando que tal mudança ocorreu em meados do Século XIX, com a nova estrutura organizacional da estância - passou a ser gerida como uma empresa que visava o lucro – dando-se paralelamente a alteração do significado original do termo. O “gaúcho”, assim, tornou-se um ser bifronte: o peão/homem de estância e das lides pastoris e, ao mesmo tempo um guerreiro viril e respeitado, sempre que for necessária a defesa da propriedade e do território41. Ainda aproveitando os ensinamentos de Chaves, o autor retrata a formação deste processo dialético, à medida que o termo foi distanciado de suas origens e passou a ser um título honroso, notabilizando-se a “perspectiva senhorial dos grandes proprietários rurais a quem interessava diretamente estabelecer a identidade entre o peão e o soldado, atribuindo-lhe uma aura heróica”. Logo depois, os historiadores e escritores tomaram para si a tarefa de transformar o gaúcho em “protagonista duma epopéia brasílica que vai das Guerras Platinas à Campanha do Paraguai, passando pela Revolução Farroupilha de 1835”. Nota-se, assim, o peso ideológico lançado sobre a figura do gaúcho. Sua identidade foi construída como o campeador guerreiro, “inserindo-o num espaço histórico no qual os tributos de coragem, virilidade, argúcia e mobilidade são exigidos a todo momento, transportando-o ao plano do mito”42. 41 42 CHAVES, Flávio Loureiro. História e literatura. Porto Alegre: UFRGS, 1999, p. 68-69. Ibidem, p. 69. 27 Com o passar do tempo, o termo virou uma denominação gentílica43 dos nascidos no Rio Grande do Sul, incluindo-se, conforme Lima, os aqui “aquerenciados”, pessoas que fizeram deste Estado o “centro de suas afeições”. A crítica do autor é que a abrangência gentílica não reflete, necessariamente, a história do gaúcho, uma jornada “longa e sangrenta, uma carga quase explosiva de paixão e luta por esta terra”. Para o autor, para se definir o gaúcho é necessário resgatar “as marcas e os estigmas de grandeza e bravura do gaúcho histórico, pois constituem a herança mais preciosa de quantos a si mesmos se designam como gaúchos autênticos” 44. Lessa aponta os primórdios da conotação gentílica do termo, ao trazer os registros do Dr. Severino de Sá Britto, integrante da colônia gaúcha na Capital Federal, datada do inicio do Século XX: De alguns tempos a esta parte os nossos amáveis patrícios do Rio de Janeiro e outros Estados, nas suas habituais gentilezas nos alcunham de gaúchos, exatamente por darem a esta palavra uma 45 expressão de galhardia e elevação. Este fato, entretanto, causou certo furor no próprio Rio Grande do Sul, como pode se notar das palavras de Toscano, inseridas nas páginas do Almanak do Rio Grande do Sul, datado de 1912 e intitulado Gaúcho, por quê?: Por que carga d’água chamam ao nosso Estado terra gaúcha, e os rio-grandenses , gaúchos? Gaúcho, no sentido étnico, histórico, ou peculiar da palavra, é um tipo extinto. Os rio-grandenses do sul não são, nunca foram gaúchos, não descendem de gaúchos, salvo se se pode chamar gaúcho um indivíduo só porque enverga poncho, bombachas, botas, chinelas chapéu de aba larga e lenço ao pescoço. Salvo se se pode chamar de gaúcho um homem só porque que doma potros, sabe lançar uma rês, preparar a sua carne e dedilhar, enquanto espera a viola, corando canções amorosas. Mas nesse caso é gaúcho também o mineiro, o paulista, o cearense, que em trabalhos de idêntica natureza envergam por comodidade os mesmos trajos e, com 46 pequenas modificações, têm os mesmos hábitos. 43 Gentílico, também chamado etnônimo, é o termo que define um indivíduo conforme o local de seu nascimento; trata-se de um adjetivo pátrio, que ambém pode designar territórios mais específicos, como estado, cidade ou mesmo uma localidade determinada. 44 Lima, 2004, p. 87. 45 Lessa, 1985, p. 46. 46 TOSKANO, Arthur. Gaúcho, por quê?. In. Lessa, 1985, p. 46. 28 Tamanha indignação busca embasamento na análise de que os integrantes dos clubes gaúchos, na verdade, são citadinos de fino trato, e não homens rudes, habituados às lides campeiras: Os membros dos clubes gaúchos que existem no Estado são todos homens da cidade, muito bem-educados, vivem de profissões sedentárias, trajam, como toda a gente, à européia, comem à mesa, em pratos sobre toalha adamascada, e servem-se para essa delicada operação de todos os requintes e comodidades em voga. Não revivem portanto, uma tradição, que nunca existiu, que é falsa, porque agora, como em todos os tempos e em todos os lugares do interior, só se dão às canseiras do campo os campeiros, os peões, homens rudes, que fizeram aprendizagem para tal fim. As nossas tradições são as de todos os povos colonizados por portugueses e espanhóis. Não temos gaúchos na árvore genealógica ou, se os temos, são em tão diminuto número que desapareceram no conjunto. E mais. Em nenhuma reunião ou baile familiar ou se sociedade realizado no povoado mais modesto e perdido, na mais remota paragem do Rio Grande do Sul – note bem – seria tolerada a presença ou a participação de um sujeito vestido à moda chamada gaúcha; e dado que a tolerassem por espírito de hospitalidade, esse sujeito não se permitiria a liberdade de ir para a sala comer churrasco à unha e dente, ou de recitar, de botas sujas de lama ou de barba e cabelo hirsutos, qualquer dos mistifórios denominados modinhas gaúchas. Admitindo, entretanto, como genuinamente rio-grandense, as trovas atoleimadas, a linguagem, os hábitos arcaicos e abalandronados, que por aí nos atribuem, não seria caso de fazermos tudo para esquecê-los, ou para melhorá-los, na proporção do progresso e do desenvolvimento intelectual que porto da parte se observa, em vez 47 de formarmos associações para revivê-los e perpetuá-los? Pela descrição de Lamberty, pode se notar que a denominação de “gaúcho” foi, ao menos inicialmente, mais bem aceita em outros Estados do que no próprio Rio Grande do Sul, que permanecia desconfortável com esta denominação, em razão dos aportes históricos e conotações pejorativas que acompanhavam o termo: O reconhecimento do gauchismo já vinha de fora do Rio Grande do Sul, pelos co-irmãos de outros estados, coroados do sentido de homem de valor. Era a superação das características pejorativas do teatino, contrabandista, vagabundo, andarilho, coureador, ladrão de gado, etc., mas o gauchismo não era bem recebido pela elite urbana 48 do próprio Rio Grande do Sul . 47 48 Lessa, 1985, p. 46-47. Lamberty, 1989, p. 24. 29 Hoje, permanece principalmente sua denominação gentílica, atribuída àqueles nascidos no Rio Grande do Sul, à semelhança do “carioca” nascido no Rio de Janeiro, do “capixaba”, original do Espírito Santo ou do “barriga-verde”, do Estado de Santa Catarina. Mesmo que nunca tenha pisado no campo, tocado em um cavalo, mesmo que deteste o chimarrão e nunca tenha vestido bombachas, é muito pouco provável que um cidadão nascido no Rio Grande do Sul, ao ser interpelado sobre sua origem, responda ser “sul-rio-grandense” ao invés de dizer simplesmente: sou gaúcho. Conforme Oliven, o modelo identitário que é construído quando se fala nas coisas gaúchas está baseado num passado que terá existido na região sudoeste do Estado do Rio Grande do Sul e na figura real ou idealizada do gaúcho”, girando em torno deste eixo a polêmica sobre sua identidade49. Entretanto, o que ocorre com o gauchismo é, sem duvida, intrigante, pois o orgulho de ser gaúcho perpassa questões territoriais ou mesmo discussões antropológicas sobre a formação/criação identitária. Se trata de verdadeiro amor a esta identidade, seja ela herdada ou escolhida, formando-se, nas palavras de Simon, “quase uma etnia”, sobre o que o autor conclui: Estejam onde estiverem, os nossos irmãos do sul dizem que continuam a se sentir gaúchos. Mesmo os que moram ali há anos, décadas, de (sic) declaram de alma gaúcha. Eles amam o seu novo estado, amam a terra que os recebeu, nunca querem voltar ao Sul. Mas continuam amando profundamente o Rio Grande do Sul. Seus filhos se sentem gaúchos, embora tenham nascido na Amazônia ou no Nordeste. [...] O curioso é que filhos de gaúchos, crianças e jovens nascidos em outros estados, até mesmo aqueles que nunca viajaram ao Rio Grande do Sul, dizem que se sentem inteiramente gaúchos. E é por isso que eles cultivam as tradições gaúchas com uma dedicação que supera a de muitos que vivem no sul. Sim, porque o gaúcho que mora no Rio Grande se sente em casa. Já o que emigrou sente saudade, uma profunda saudade que não vai jamais superar. Como disse o jornalista Carlos Wagner, os gaúchos “formam quase uma 50 etnia . Não se pode negar que existe o aspecto de origem geográfica ligada ao termo, mas este fato é substancialmente refutado pelos tradicionalistas, que se apoderam da terminologia e a elevam a uma espécie de título honroso. Para 49 50 Oliven, 1992, p. 97 et. seq. SIMON, Pedro. A diáspora do povo gaúcho. Brasília: Senado Federal, 2009, p. 34-35 30 eles, o termo foge o significado de origem territorial, passando a designar uma estirpe que retrata “um ser humano que existiu em vários locais, não limitados por fronteiras políticas, nem idiomas”51. Para Savaris, “o gaúcho não é uma etnia genética, mas se tornou uma etnia cultural”, só podendo ser denominado gaúcho quem cultua as tradições, independentemente de sua origem territorial ou de sua descendência. O gaúcho passou a ser não o homem campeiro, ou o nascido no Rio Grande do Sul, mas aquele que “adota o tradicionalismo sul-riograndense de coração, cultiva suas tradições e crenças, convive harmoniosamente em seu meio e propaga os sentimentos de patriotimo consciente, independente de sua naturalidade". Este processo marca a última das alterações do conceito do termo gaúcho, que “deixa de ser pejorativo ou gentílico e passa a determinar a pessoa que segue uma tradição”52. A discussão sobre a “criação” da identidade gaúcha será retomada no segundo capítulo, muito embora caiba aqui iniciar seu questionamento, afinal, considerando que não há identidades pré-concebidas (senão quando criadas por personagens fictícios dos contos), por que razão se exige que a identidade gaúcha o seja? As identidades européias também não sofreram mutações com o tempo? Se a identidade do indivíduo muda conforme sua própria evolução, o que dizer da identidade de um povo? 1.3 Sentimento nativista: a identificação pelo apego ao território conquistado - dos primórdios à Revolução Farroupilha Diz-se não chora o gaúcho, Mas eu lhes garanto agora: Falem dos pagos distantes Vamos ver se ele não chora (Vargas Netto) 51 52 Lima, 2004, p. 100. Entrevista com Manuelito Savaris, realizada em 13.10.2009, na Sede do IGTF, no Centro administrativo em Porto Alegre. 31 Conforme Savaris, o nativismo53 e a saudade são os dois sentimentos que mantém a maioria dos CTGs, principalmente fora do Rio Grande do Sul. Estes sentimentos, associados ao “espírito militarista sul-rio-grandense, na conquista da terra, do espaço, mesmo antes de ser fundado o Estado” 54, estão entre as características mais marcantes dos tradicionalistas, sendo necessário compreender esta questão para melhor visualisar o caminho traçado pelo tradicionalismo no mundo e a grande paixão que desperta aos que dele se aproximam. A importância de se retratar o apego gaúcho às questões nativas, associado à saudade de suas origens, se justifica à medida que se confunde com a própria formação de sua identidade, bem como serve de base para a maior parte das justificativas da mundialização do gauchismo. Sobre a saudade, colacionamos as palavras de Oliven, no sentido de ser este sentimento inseparável do tradicionalismo: Há, queiramos ou não, uma aura de saudade envolvendo o Tradicionalismo e ninguém sente saudade de quem está perto. A saudade – e o tradicionalismo – exigem distanciamento, tanto que este é um fenômeno tipicamente citadino, não do campo, urbano e 55 não rural”. Como fonte desta conexão entre o gaúcho e sua terra, Lessa atribui qualidades telúrgicas, enquanto “capacidade de sentir a presença do solo, do chão, da gleba, amando-a amais não poder”. Retrocedendo ao tempo, vale recordar que o próprio povo guarani (Missões, por volta de 1680), concordava em ajudar os padres jesuítas, desde que fossem respeitadas algumas solicitações: deveria ser-lhes dada a ração diária e a erva-mate, e que não precisassem obedecer as ordens para usar sapatos, já que não viam nenhum sentido em não se sentir o chão debaixo dos pés; também não compreendiam de todo o que significava a propriedade privada em se tratando de bens naturais56. Este perfil de associação com a natureza, tão peculiar das 53 SAVARIS, Manuelito Carlos. Rio Grande do Sul: história e identidade. Porto Alegre: MTG, 2008, p. 17. O nativismo não é um culto, como a Tradição, mas um dos valores desse culto. Nativismo é o amor que a pessoa tem pelo chão onde nasceu, onde é nato. 54 Entrevista com Manuelito Savaris, realizada em 13.10.2009, na Sede do IGTF, no Centro administrativo em Porto Alegre. 55 FAGUNDES, Antonio Augusto. A verdadeira história do tradicionalismo. In. FERREIRA, Cyro Dutra. 35 CTG - o pioneiro do movimento Tradicionalista Gaúcho – MTG. Porto Alegre: Martins, 1987, p. 13. 56 Lessa, 1985, p. 15. “Também no tocante a idéias tinham lá suas manias, mui difíceis de dobrar. Por exemplo, não aceitavam que o céu, a terra, os rios, o avestruz, a anta, a onça, a 32 populações indígenas, permaneceu na formação da sociedade sul-riograndense, fazendo perpetuar o amor pelo solo ao qual se pertence e do qual se tira o sustento. Na sequência deste raciocínio cultural, a história da formação do Estado provavelmente contribuiu, em muito, para o ímpeto nativista - o apego à terra -, tão peculiar ao povo gaúcho. Afinal, o zelo extremado pelo próprio chão se mostra desde o início da formação do Estado. Os problemas fronteiriços sul-brasileiros sempre foram motivos de apreensão ao povo que aqui vivia. O solo sul-rio-grandense era inicialmente habitado pelos índios sulinos, especialmente Charruas, Minuanos e Guaranis, cujas características os diferenciavam de outras tribos, principalmente quanto à duas qualidades morais: a independência e a irreligiosidade. Sobre a primeira qualidade moral, assenta Lima que a ação das tribos possuía “espírito desempedido (sic) de embaraços de qualquer dependência voluntária ou forçada”, cuja ação dependia unicamente de sua própria vontade, sem haver ligações autoritárias entre eles – os laços niveladores de igualdade eram quebrados somente em épocas de guerras, quando um líder era designado para a luta, retornando este à sua posição original quando a situação se definia; já a irreligiosidade, significava ausência de temor religioso, ao contrário do que prega o catolicismo, ao atribuir este sentimento de existência de um ser supremo como inerente à toda a humanidade. Sua forte compleição física correspondia características morais também significativas: eram “bravos, ferozes, indomáveis, corajosos, amigos da liberdade e essencialmente guerreiros”, especialmente o povo Charrua, preferindo sempre “morrer a deixarem-se dominar pelas forças dos espanhóis e pela astúcia dos missionários”57. A trajetória de constituição territorial da região sul se retrata em um local de constantes batalhas e conquistas territoriais, ao contrário das demais províncias brasileiras, que viviam principalmente a saga da ocupação tranquila. capivara, o tatu, o boi, o cavalo, pudessem ser propriedade individual de alguém. Tudo o que havia na Terra, Deus fizera para todos. Me desculpe, seu padre, mas senti fome e comi, com minha rica mulher, o boi manso do meu vizinho. Então você roubou o boi?! Não, que esperança: ele, o boi, é que fugiu...” 57 Lima, 1983, p. 27-29. 33 O Rio Grande do Sul, entretanto, “realizava simultaneamente a conquista e a ocupação”, uma vez que, quando os primeiros europeus pisaram em solo sulrio-grandense para aqui permanecer, as colonizações em outras partes do país já eram demasiadamente antigas. Lima afirma ser uma “idiossincrasia de nossa personalidade”, a pressa com que o Rio Grande do Sul se fez e ainda se faz, pois este “atraso” serviu de estímulo ao rápido desenvolvimento e à busca por condições de igualdade: “gostamos de fazer as coisas por nossa iniciativa e o fazemos com pressa”58. Com o Tratado de Tordesilhas - acordo estabelecido entre Portugal e Espanha quando da “descoberta” do Novo Mundo-, a região foi legada inicialmente ao governo espanhol, que não demonstrou interesse em desbravar, muito menos em povoar estas terras. Assim, a integração tardia do Rio Grande do Sul ao restante do Brasil-colonial se justifica historicamente, uma vez que fora descoberto somente no início do século XVI, a partir de expedições voltadas ao comércio do pau-brasil. Toda a área passou a ser denominada “Rio Grande de São Pedro, permanecendo inexplorada por mais de um século. O restante da América portuguesa se desenvolvia em um contexto de acumulação primitiva de capitais, típico do antigo sistema colonial59. A história do da Província de São Pedro foi literalmente firmada a ferro e fogo, sendo cenário de indefinição territorial desde a destruição do experimento jesuíta pelos bandeirantes, em meados do Século XVIII 60. Os alicerces fundamentais do povoamento local foram estabelecidos primeiramente com a ocupação jesuítica espanhola e seus frequentes enfrentamentos com as bandeiras paulistas, que vinham à província na busca de nativos para servir de escravos na produção cafeeira e açucareira. Somente após duzentos anos do descobrimento é que chegaram os primeiros casais açorianos61, acelerando o já gradual desaparecimento e/ou aculturamento dos 58 Lima, 2004, p. 14. Pesavento, 1997, p. 8-9. 60 Lima, op. cit., p. 89. 61 Cfe. NUNES, Claudio Omar Iahnke. Esboço para uma terminologia da história pré-colonial do Rio Grande do Sul. In. Alves e Torres, 2005, p. 69-70. “Pessoas originárias das Ilhas dos Açores, que pertenciam a Portugal, de onde vieram grande número de colonizadores, especialmente para as regiões de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, além do Uruguai. 59 34 nativos62. Sobre este período, Pesavento rememora a entrada dos jesuítas em solo sul-rio-grandense, ocasionadas pelas constantes fugas dos bandeirantes, que intencionavam o aprisionamento dos índios para trabalhar como escravos na zona açucareira. Assim, em 1626, para fugirem dos paulistas, os primeiros padres entraram neste território, estabelecendo-se na zona do “Tape”63, significando uma dilação das missões paraguaias para o Rio Grande do Sul. Antes disso, por volta de 1605, houve algumas tentativas de instalação de missões jesuíticas portuguesas na região entre Mampituba e a zona de Gravataí, muito embora não tenham deixado marcas duradouras em face da hostilidade bandeirante e pela falta de apoio das autoridades jesuítas da província do Brasil, com sede em Salvador64. Lima não vê as missões jesuíticas com bons olhos, afirmando categoricamente que elas significaram uma escravidão disfarçada dos índios, não se podendo legar princípios de sinceridade ou vislumbrar intuito de duração de suas atividades. “É possível que os primeiros fossem convictos e tratassem dos selvagens com o vivo desejo de salvar-lhes as almas e os corpos do fogo eterno”, mas que este sentimento logo foi superado pela clara demonstração de interesse no enriquecimento da ordem à custa do sofrimento e do maltrato indígena65. Além da questão da ocupação missionária, já estabeleciam confrontos pela ocupação destas terras entre as próprias tribos indígenas, seguidos de inúmeros embates entre seus pretensos ocupantes espanhóis e portugueses. Na tentativa da coroa lusitana em tomar oficialmente as terras compreendidas entre Laguna e o Prata, a fim de consolidar seu domínio e preservar seu comércio, foi enviada a expedição de José da Silva Paes que, em 1737, fundou a fortaleza-presídio Jesus-Maria-José, em Rio Grande. No ano seguinte, promoveu-se a vinda de um “regimento de Dragões que contribuíssem para a defesa da área”, continuando, a partir de Rio Grande, Vários autores utilizam a expressão ‘casais açorianos’ para referir-se aos colonizadores oriundos daquelas ilhas, devido a que, em geral, migravam já com núcleo familiar definido (homem/mulher)”. 62 Lima, 2004, p. 89-90. 63 Cfe. Pesavento, 1997, p. 8. A zona do “tape” era como se denominava a área que se estendia pela bacia do jacuí, limitando-se, por um lado com os contrafortes das Serras do Maré e Geral e com o Rio Uruguai, de outro. 64 Ibidem, p. 08-09. 65 Lima, 1983, p. 62-65. 35 o processo de distribuição de sesmarias, para que fosse incrementado o povoamento. Seguiram-se as instalações de guardas avançadas em Taim e Chuí, de forma que impedissem a aproximação castelhana66. Pode se dizer que a província do Rio Grande teve origem nesse presídio militar composto de duzentos soldados, porque dele foi que mais tarde partiram os diversos núcleos que povoaram o seu interior. [...] Não era portanto o fundamento de uma colônia, o alicerce de uma cidade que se começava no Rio Grande; era sim a base de uma caserna que estava fundando o brigadeiro Paes. Não havia engajamento oficial de colonos, nem regular distribuição de terras, de instrumentos ou de sementes para o cultivo do solo. O primeiro cuidado do brigadeiro Paes foi fortificar a nascente povoação espalhando os seus habitantes em guardas avançadas pela campanha. [...] á favorável qualidade de ser o presídio composto de homens nascidos no Brasil e já adaptados às influências do seu meio, opunham-se à cega intervenção autoritária imprimindo nesse 67 primitivo grupo de povoadores a exclusiva qualidade militar. Os desentendimentos entre as monarquias não cessava. Em 1750 firmou-se o Tratado de Madrid68, quando Portugal se comprometeu a entregar à Espanha a região de Sacramento, em troca das Missões, que passariam ao seu domínio. O objetivo era garantir a Portugal o domínio de terras contínuas que permitissem o comércio do gado69. De acordo com Lima, este Tratado foi pautado “com a mais louvável intenção”, onde ambas as partes procuraram “desprender-se de pequenas ambições e de ocultos rancores tradicionais”, de modo a honrar as práticas diplomáticas70. Esta demarcação foi interrompida pela rebelião dos índios missioneiros que se recusavam à entrega de suas terras, dando origem à Guerra Guaranítica (1754-1756), chefiados por Sepé Tiarajú71. De acordo com Bento, “no Rio Grande do Sul, de 1952 a 1932, foi desenvolvida uma doutrina militar genuína, imposta pelas características regionais”, apontando como pioneira a resistência liderada por Sepé Tiaraju na tentativa de evacuação do território que seria entregue a Portugal72. 66 Pesavento, 1997, p. 21. LIMA, Alcides. A história popular do Rio Grande do Sul. 3. ed. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1983, p. 19-20. 68 Cfe. Savaris, 2008, p. 54-55. O Tratado de Madrid é considerado o primeiro capítulo da história diplomática brasileira, e serviu de estímulo para o envio, pela Coroa Portuguesa, de casais açorianos com a finalidade de acelerar o povoamento. 69 Pesavento, op. cit., p. 21 70 Lima, op. cit., p. 36. 71 Pesavento, op.cit., p. 21. 72 BENTO, Claudio Moreira. Guerra à gaúcha. In. FLORES, Hilda A. Hubner. Regionalismo sulrio-grandense. Porto Alegre: Círculo de Pesquisas Literárias/Nova Dimensão, 1996, p. 127. 67 36 O tratado de 1750 não foi só um atentado à liberdade dessas miseráveis tribos, foi também uma extorsão a todos os seus direitos. O artigo dezesseis desse tratado mandava que dos povos da margem oriental do Uruguai saíssem os missionários com seus móveis e efeitos, levando consigo os índios para aldear em outras terras de Espanha, e que os referidos índios poderiam levar também os seus bens móveis e semoventes, e as armas, pólvora e munições que tivessem, em cuja forma de entregariam os povos à coroa de Portugal, com todas as suas casas, igrejas, edifícios, e a propriedade e posse do terreno, etc., etc. [...] os índios sentiram a enormidade da injustiça deque iam ser vitimas. Sublevou-se naqueles espíritos rudes e incultos um tropel de afeições fortes, que ligam o homem ao solo que o viu nascer, à terra que o nutre, aos campos que se desdobram ao redor da choupana, e que avivam o silêncio do crepúsculo as saudades melancólicas dos felizes tempos de infância. Ateou-se naqueles corações de uma sensibilidade primitiva a labareda ingênita do antigo valor indomável. [...] Os próprios padres da Companhia foram envolvidos na fatídica sorte dos índios. Eles mesmos colocaram-se finalmente á rente das guerrilhas selvagens decididos a morrer diante do poder que 73 pretendia expoliá-los. Os constantes conflitos necessitavam aumento do reforço militar na área. Para isso, “precisava a coroa portuguesa do concurso de estancieiros com seus homens para a defesa da terra”, sendo outorgado, aos senhores estancieiros, poder e autoridade para tanto. Por certo, os estancieiros agiam também no interesse privado, o que em instantes acarretou embates com os interesses da própria Coroa74. Nesta época o gaúcho era considerado um “soldado pronto”, pois dispunha de seu cavalo, era hábil no manuseio de facas e outros utensílios de subsistência, destreza esta que copiara dos nativos e/ou aperfeiçoara com o tempo e a vida campeira: “de changador, transformou-se fácil num soldado regional”75. A força militar dos estancieiros, entretanto, era necessária à Portugal, que se viu obrigada a não influir em seus poderes. Tamanho era a importância militar da região que conduziu-se, administrativamente, à elevação da Província de São Pedro à Capitania de São Pedro: A crescente importância militar da zona levou a que, administrativamente, a região fosse elevada, em 1760, à condição de Capitania – a Capitania do Rio Grande de São Pedro” – desvinculada de Santa Catarina, com sede em Rio Grande e 76 subordinada ao Rio de Janeiro. 73 Lima, 1983., p. 38-39. Pesavento, 1997, p. 21. 75 Bento, 1996, p. 130. 76 Pesavento, op. cit., p. 22. 74 37 A segunda tentativa de acordo entre Portugal e Espanha se deu em 1761, uma vez que a primeira fora de todo infrutífera, substituindo-se o Tratado de Madrid pelo tratado de El Prado. Nesta época, os sete povos haviam sido abandonados pelos jesuítas, ficando sob administração leiga espanhola, acarretando o início da decadência das missões e a migração dos índios para o trabalho nas estâncias gaúchas, como peões. Enquanto isto, as disputas lusohispânicas prosseguiram, com um novo ataque dos castelhanos em 1763, com a invasão da Capitania de São Pedro pelo governador de Buenos Aires, D. Pedro de Cevallos (ou Ceballos), que conquistou Rio Grande e estendeu o domínio espanhol até 177677. No ano seguinte, teve lugar novo acordo entre as duas coroas, com imposição à Portugal, por parte da Espanha, da perda da colônia de Sacramento e das Missões, importando o tratado de Santo Idelfonso, conforme Lima, em apenas mais uma redefinição das fronteiras78. Surgiu,então, um período de paz que perdurou até 1801, “marcado pelo grande desenvolvimento da economia sulina, baseada agora no charque e com o fortalecimento dos clãs patriarcais”79. Afastados do Império por razões topográficas, os povos do sul sempre precisaram participar do resguardo de suas fronteiras, “vivendo com armas à mão desde os tempos da colonização, em estado de guerra, quase permanentemente”, o que ocasionou o desenvolvimento de costumes militares, “demonstrando coragem fria e perseverança”80 e, sobretudo, uma noção de pertencimento ímpar a estas terras, sobre o qual valeria a pena lutar e morrer. Em 1801 as autoridades portuguesas conquistaram a fronteira oeste do Rio Grande do Sul – as missões, já em visível decadência, foram conquistadas por Manuel dos Santos Pedroso (estancieiro e soldado) e por José Borges do Canto (desertor dos Dragões e contrabandista). Em 1807 o Rio Grande recebeu nova promoção, tamanho era o reconhecimento de sua importância: 77 Lima, 1983, p. 41. Lima, 2004, p. 89-90. 79 Pesavento, 1997., p. 23. 80 Lima, 2004, p. 91. 78 38 passou a ser uma Capitania Geral, independente do Rio de Janeiro, subordinada tão somente ao vice-rei do Brasil81. Ainda antes da independência do Brasil e da Revolução Farroupilha, vale relembrar trecho da obra de Saint-Hilaire (1820), trazido por Lamberty, que reconhece que os traços fortes de respeito à terra e à propriedade já se vislumbravam de forma significativa no perfil gaúcho. Há muita suscetibilidade no aspecto de defesa do território doméstico. Nas Missões fui muito mal recebido pelo estancieiro Padre Alexandre porque não cumpri certas formalidades à chegada. Quase sempre eu mandava à frente meu criado Matias para pedir pousada, mas também entre Cachoeira e Rio pardo me apresentei sozinho e meu hospedeiro censurou-me acremente por ter eu, á chegada, atravessado a cerca que separava o campo e o pátio. ‘nem um homem mal-educado procederia assim – disse-me -; deveríeis ter ficado fora, chamando-me e esperando que eu respondesse’. ‘respondi que não tinha intenção de ofendê-lo e consegui abrandá-lo 82 um pouco, apesar de continuar muito frio. Lessa aponta o natural respeito gaúcho pelo solo e pela propriedade própria e alheia, relatando que a casa grande (como era chamada a casa-sede da estância) era destinada ao patrão, seus familiares e amigos próximos, não devendo ninguém mais se aproximar: “Um dia o tal de Saint-Hilaire ultrapassou o terreiro sem dar sequer “oh de casa e foi corrido a facão”83. Em contrapartida, o galpão de estância era como se denominava o local onde os peões e demais trabalhadores se reuniam - quase exclusivamente os homens-, era o local onde não se conhecia hierarquia: “mesmo o patrão, se ali chega, espera sua vez na roda”84. O momento do chimarrão era (e ainda é), uma ocasião em que todos compartilhavam a mesma bebida e se reconheciam como iguais, acocorados ou sentados em cepos bem próximos ao chão. Saint-Hilaire ainda relatou, em uma espécie de estudo comparado, que outros povos não possuíam um amor por sua terra de origem tão ardoroso quanto o gaúcho: Tenho já observado que os mineiros não são arraigados à terra natal: nenhum hábito particular os retém, e eles não tem pesar em sair de Minas gerais à procura de melhores situações. Mas os 81 Pesavento, 1997, p. 23-24. LESSA, Barbosa. Rio Grande do Sul, prazer em conhecê-lo. 4. Ed. Porto Alegre: AGE Editora, 2002, p. 130-133. 83 Lessa, 1985, p. 17. 84 Ibidem, p. 17. 82 39 habitantes desta Capitania, ao contrário, nunca emigraram. Sabem que, fora dela, serão obrigados a renunciar o hábito de estar sempre à cavalo e em parte alguma encontrarão tamanha abundância de 85 carne. [...] O processo de independência do Brasil, culminado em 07 de setembro de 1822, deu-se no período de quebra do antigo sistema colonial – acumulação primitiva de capitais -, e, “tudo aquilo que fora mecanismo de sustentação do colonialismo – escravismo, monopólio – tornou-se um entrave à constituição plena do capitalismo nas economias centrais”. Surgia a fábrica moderna, a aplicação científica e tecnológica à produção em série, e uma nova classe burguesa de significante importância – os barões do café, considerados quase uma segunda aristocracia brasileira: À independência, seguiu-se o primeiro reinado, marcado pela crise econômico-financeira herdada do período colonial (perda de mercado dos principais produtos brasileiros) e pela instabilidade política, quando a própria autonomia do país foi ameaçada pela presença dos grupos burgueses favoráveis à recolonização. [...] Este momento coincide com a ascensão do café como primeiro produto de exportação do Brasil, reintegrando a economia nacional nos quadros do mercado internacional. [...] No Rio Grande do Sul, o período pós-independência foi marcado pelo desenvolvimento da pecuária orientada para o charque, consagrando a produção periférica e subsidiária da economia sulina, fornecedora do mercado 86 internacional brasileiro. Os efeitos do centralismo, já presentes no primeiro reinado, permaneceram inalterados, pois se passou a governar em função da aristocracia cafeeira e seus interesses. Conforme Pesavento, os grandes estancieiros sulinos sentiram-se prejudicados, pois exigiam a participação na vida governamental e política do país. Na Guerra Cisplatina (1825-1828), pela posse da banda oriental, o Rio Grande do Sul mobilizou-se novamente, formando o “Exército do Sul”. A campanha militar gaúcha foi imprescindível neste período, mas a assinatura da paz, com mediação inglesa, e, tornando-se o Uruguai uma nação independente, o gado daquelas pastagens não mais foi dirigido às charqueadas sul-rio-grandenses, acumulando-se ainda mais as 85 86 Saint-Hilaire, apud Lessa, 1985, p. 28. Pesavento, 1997, p. 36. 40 tensões entre as autoridades locais e as designadas pelo centro87, eclodindo, em 1935, a Revolução Farroupilha. No período de dez anos, a Revolução Farroupilha fortaleceu a sensação já histórica de defesa do território e dos interesses regionais, de forma a alterar definitivamente o perfil do povo gaúcho perante o restante do país e o mundo. Sem adentrar nos pormenores históricos, cabem aqui algumas ressalvas a este respeito. A eclosão da Revolução, bem como a Proclamação da Republica Riograndense só se deram após esgotadas as tentativas de trato com o Império, contra o centralismo que se firmava cada vez mais, em uma busca de solução às principais demandas regionais. Neste sentido, Pesavento: No Rio Grande do Sul, em 1835, eclodiu a Revolução Farroupilha, que durante dez anos enfrentou o governo central. Em manifesto lançado às “nações civilizadas” por ocasião da proclamação da República Rio Grandense em 1938, o líder bento Gonçalves justificou a posição assumida, enfatizando que a proclamação da república fora o último recurso tentado ante o esgotamento das possibilidades de entendimento com o Império. Dentro da percepção que os “farrapos” tinham dos acontecimentos, o centro era acusado de “má gestão dos dinheiros públicos”, de realizar gastos supérfluos sem aparelhagem material do país (abertura de estradas, construção de portos) e de onerar o Rio Grande do Sul com impostos, sem indenizá-lo por danos sofridos. [...] No tocante aos impostos, enquanto que o charque sulino era onerado pelas altas taxas de importação sobre o sal, os pecuaristas eram obrigados a pagar pesadas taxas sobre a légua de terra. Por outro lado, o charque platino, concorrente do gaúcho, pagava baixos impostos nas alfândegas brasileiras. Por trás deste tratamento preferencial ao produto estrangeiro, que forçava a baixa d preço do artigo rio-grandense, manifestavam-se os interesses do centro e norte do país, que queriam comprar o alimento para seus escravos a baixo custo. [...] Da mesma forma, os altos comandos das tropas só eram dados a elementos do centro, enquanto que, na realidade, era o Rio Grande 88 que sustentava a guerra. A Revolução Farroupilha se manteve em ascensão até meados de 1939, época que representa a mescla de amor pela terra e o espírito bélico do povo gaúcho, apresentado por Nicolau Dreys (1839), à medida em que reconhece, entre os naturais do Rio Grande, “um espírito de nacionalidade sumariamente melindroso”, refletido principalmente no período de separação de Portugal, 87 88 Pesavento, 1997, 37. Ibidem, p. 38. 41 ocasião em que, “tão ufanos do glorioso nome de brasileiros” 89, os sul-riograndenses despertavam receio aos estrangeiros que se achavam no país, os quais evitavam, prudentemente, qualquer conflito90. Ou, como refere Oliven, “os sul-rio-grandenses consideram-se brasileiros por opção”91, afirmando não reconhecer o cunho separatista atribuído à Revolução. Após um breve período de estagnação (1840-1842), iniciou-se o declínio farroupilha. Em 1845, em nome do Império, Duque de Caxias propôs aos farrapos a anistia, em nome de uma “paz honrosa”, onde os gaúchos obtiveram a elevação de 25% da taxa alfandegária sobre o charque importado, o direito de os estancieiros escolherem o próprio presidente da província (foi escolhido o próprio Duque de Caxias), o ingresso dos farrapos ao exército brasileiro (com a manutenção de seus postos), ficando acertado que as dívidas contraídas seriam pagas pelo governo central92. Para Lima, a Paz do Poncho Verde foi o principal fator de consolidação do que ele denomina de “convicção que constitui hoje a essência do espírito tradicionalista”, traduzido no sentimento de pertencer a duas pátrias: O Brasil, a pátria maior, comunidade das províncias, á qual o Rio Grande se reintegrava depois de 10 anos de luta, com a consciência de que o fazia voluntariamente, cumprindo seu destino histórico: e o Rio Grande, a pátria local, a comunidade regional, construída palmo a palmo com sacrifício e o sangue dos antepassados, que conquistaram estes campos neutrais expandindo para muito além do Meridiano de Tordesilhas (laguna, Santa Catarina), a fronteira do 93 antigo Império Português nas Américas. 89 POZENATO, José Clemente. O regional e o universal na literatura gaúcha. In. Bertussi, 2009, p. 77. Longe de se considerar apartado do restante do Brasil, o orgulho nacionalista foi retratado na própria literatura gaúcha, a autora transcreve parte do posicionamento de Pozenato, que reconhece a “tradição de autonomia” da cultura regional sul-rio-grandense, em seu elevado grau de consciência nacionalista: “A vontade de autonomia se tornara patrimônio nacional. Rio Grande a ela se incorpora, com sua própria tradição de autonomia, feita no diaa-dia das lutas, sem as indecisões que assinalaram o período de independência brasileira. Em outras palavras, a tradição local, feita de uma pertinaz defesa da integridade territorial e política, havia já adquirido um grau de consciência de nacionalismo, que tornaria desnecessária a fundamentação ideológica que se verificou no centro do país. No Rio Grande, o espírito nacionalista era uma conquista na prática, sem necessidade de teorização”. 90 Lima, 2004, p. 90. 91 OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo: a diversidade cultural do Brasil-nação. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 10. 92 Pesavento, 1997, p. 39-40. 93 Lima, op. cit., p. 13. 42 O telurismo, conforme Almeida Filho, “nada mais é senão decorrência da identidade cultural – plena ou embrionária – de um determinado povo”94. Para Lessa, alguns fatos, analisados isoladamente, demonstram que isto se reflete na [...] admiração do homem por sua província, o amor consciente por aquele pedacinho de mundo, a espontânea convocação do dia 20 de setembro como o natalício de uma vigorosa comunidade. Na Corte do Rio de Janeiro, em 1851 o ex-prisioneiro farroupilha prof. Pereira 95 Coruja funda a Sociedade Sul-Riograndense , para reunir a “gauchada” saudosa da querência... E Garibaldi, vitorioso na prolongada guerra da unificação, aguarda dois dias às portas de Roma para que sua entrada triunfal coincida com o 20 de Setembro 96 dos farrapos e se torne, também, a data nacional da Itália! Conta-se que Cezimbra Jacques97, um dos precursores do movimento tradicionalista, ao pedir asilo no Rio de Janeiro, levava consigo um saquinho com terras sul-rio-grandenses, para servir-lhe de travesseiro junto ao caixão mortuário, solicitando a três de seus amigos, que conduzissem suas cinzas de volta ao solo gaúcho, o que nunca chegou a ser efetivado98. Muito embora Cezimbra Jacques, defensor de uma cultura crioula, não tivesse forças suficientes para “entricheirar sua causa”, a atitude de levar consigo o símbolo do apego ao solo sul-rio-grandense legou-lhe, mais tarde, pelo próprio Movimento Tradicionalista Gaúcho - MTG, o cognome de “O Patrono do tradicionalismo”99. Simon também destaca o apego à terra, principalmente à terra natal, como um dos mais fortes sentimentos que reflete o perfil do gaúcho. Em que pese a ligação com a terra natal seja um “fenômeno mundial”, Para Simon esta ligação é ainda mais forte quando relacionada ao povo gaúcho, forte ao ponto deste sentimento acompanhar migrantes em suas travessias, explicando-se 94 Almeida Filho, 1998, p. 61. A Sociedade Sul-Riograndense, hoje, leva o nome de CTG Desgarrados do Pago, mantendo suas atividades de forma ininterrupta desde sua fundação. 96 Lessa, 1985, p. 30. 97 Cfe. Lamberty. 1989, p. 37. João Cezimbra Jacques (1848-1922), militar e ensaísta, natural de Santa Maria, é o pioneiro da afirmação gaúcha, tendo buscado a valorização do gauchismo, assumindo seus usos e costumes. 98 RIGÃO, Maria Helena. João Cezimbra Jacques. In. Página do Gaúcho. [S.l.; s.d.]. Disponível em: <http://www.paginadogaucho.com.br/pers/jcj.htm>. Acesso em: 11 dez. 2009. 99 Lamberty, op. cit., p. 25. 95 43 através das palavras de Caminoto: “é como se levassem o Rio Grande nas costas”100. O reflexo direto deste sentimento nativista e a vontade de manutenção da identidade, foi o surgimento de um movimento, inicialmente tímido, mas que em seguida tomou proporções inacreditáveis. Surgiu, então, o Tradicionalismo Gaúcho Organizado, principal forma de demonstração de signos e significados que permearam a história da formação do Estado, uma espécie de aliança não só entre passado e futuro, mas que tem agregado o “presente” de regiões e sociedades totalmente distintas, unidas por uma causa, por uma crença, por uma mesma tradição. 1.4 Surge um movimento organizado Tradição. Nas palavras de Lamberty, tradição significa “transmitir fatos culturais de um povo, através de suas gerações”, sejam suas lendas, narrativas, valores espirituais ou históricos, costumes e hábitos: “É a memória cultural de um povo. É um conjunto de idéias, usos e costumes, recordações e símbolos, conservados pelos tempos, pelas gerações”. Seguindo este raciocínio, atribui à tradição gaúcha o sentido de ser o “culto à memória dos feitos de seu povo”101. É com base nesta idéia que surge o tradicionalismo gaúcho, elevado por grande parte do povo sul-rio-grandense acima do folclore, da tradição ou mesmo do sentimento nativista. Neste exato sentido se expressa Louzada, para quem o tradicionalismo gaúcho “não é folclore, mas uma coisa viva. Em qualquer lugar do Brasil as festas são folclóricas, mas no Rio Grande do Sul são partes da vida de muitas pessoas. O tradicionalismo é mais do que tradição, é um estilo de vida”102. 100 Simon, 2009, p 35. Lamberty, 1989, p. 20-21. 102 LOUZADA, Hélio Damaceno. Presidente do Conselho Diretor da Confederação Brasileira de Tradicionalismo Gaúcho – CBTG. Entrevista realizada em 17 de novembro de 2009. 101 44 O ano de 1947 foi um marco inicial do tradicionalismo gaúcho organizado, mas este período foi impulsionado por uma série de acontecimentos importantes anteriores, que merecem destaque. Os primeiros aportes mais significativos à tradição gaúcha permearam o meio literário, destacando-se a criação da Sociedade Sul-riograndese, em 1858, que reuniu um grupo de intelectuais que se preocupava basicamente com o folclore gaúcho. É importante destacar que este grupo pioneiro, liderado por Antônio Álvares Pereira Coruja, foi criado no Rio de Janeiro, justamente fora dos limites territoriais do Estado do Rio Grande do Sul, demonstrando que desde sua origem o culto ao tradicionalismo perpassou as próprias fronteiras geográficas. No Rio Grande do Sul, as primeiras tentativas de organização não fugiram da conotação intelectual, com a criação do Partenon Literário, em 1868, liderado pelo escritor José Antônio do Vale Caldre e Fião e Apolinário José Gomes Porto-Alegre. Seus integrantes passaram a organizar bibliotecas, tecer palestras, levantar as lendas gaúchas e incentivar as comemorações de datas importantes. De acordo com Gonzaga, citado por Oliven, [...] caberia aos integrantes da Sociedade Partenon o esforço para a louvação dos tipos representativos mais caros à classe dirigente. Sedimenta-se ali o início da apologia de figuras heróicas, alçadas à condição de símbolos da grandeza do povo rio-grandense. Encontrase na sedição farroupilha os paradigmas de honra, liberdade e igualdade que se tornariam inerentes ao futuro mito do gaúcho, dissolvendo-se os motivos econômicos e as diferença entre as classes, existentes no conflito. A configuração dos heróis não era ainda a do gaúcho estilizado e “glamourizado”, mas o vetor encomiástico já se fazia presente. Compreende-se a apologia em função do surgimento nas cidades, em especial Porto Alegre, de jovens “ilustrados” – oriundos dos setores intermediários – que 103 queriam usar as “belas letras” como alavanca para sua escalada . Ambas as iniciativas possuíam perfil elitista, atingindo pouco ou nada a maior parcela da população. Somente no ano de 1898 é que uma iniciativa se afastou do cunho literário, e tomou forma semelhante ao que hoje se encontra no movimento organizado. Tratava-se do Grêmio Gaúcho de Porto Alegre, que 103 Oliven, 2006, p. 99. 45 trazia como bandeira a “defesa das Tradições Gaúchas, em sua arte, lutas, usos e costumes”, destacando-se, entre seus fundadores, o santa-mariense João Cezimbra Jacques. Conforme Lamberty, o Grêmio Gaúcho foi o responsável pela realização do primeiro desfile de cavalarianos em Porto Alegre, realizar ciclos de palestras e promoções, “visando um calendário de comemorações, ordenamento dos usos e costumes e a redescoberta das danças gaúchas”104. Cabe esclarecer que a iniciativa de Jacques não foi, entretanto, original no sentido de prestigiar as lides campeiras, pois já havia no Uruguai uma associação para este fim, denominada Sociedade Crioula105. De acordo com Oliven, esta formação foi marcada por um desfile de aproximadamente 250 cavalarianos, “vestidos como gaúchos”, que rumaram ao centro de Montevidéu e concluíram o encontro com um churrasco, oportunidade em que fora anunciado publicamente que no mês anterior havia sido criada a Sociedad Criolla, pronunciando-se juramento solene e discurso sobre a proposta do movimento106. De acordo com Jacques, diferente da Sociedade Crioula, o Grêmio possuía outro foco, à medida que era [...] uma associação destinada a manter o cunho de nosso glorioso estado e consequentemente as nossas grandiosas tradições integralmente por meio de comemorações regulares, dos acontecimentos que tornaram o sul-riograndense um povo célebre diante, não só da nossa nacionalidade, como do estrangeiro; por meio das solenidades ou festas que não excluem os usos e costumes, os jogos e diversões do tempo presente; porém, figurando nelas, tanto quanto possível, os bons usos e costumes, os jogos ou diversões do passado; por meio de solenidades que não só relembrem e elogiem acontecimento notável a comemorar, pelo verbo ou pelo discurso, como por meio da representação de atos, tais como canções populares, danças, exercícios e mais práticas dignas, em que os executores se apresentem como traje e utensílios 107 portáteis, tais como os de usos gauchescos . 104 Lamberty, 1989, p. 24. JACQUES, João Cezimbra. Assuntos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Erus, 1979, p. 66. 106 Oliven, op. cit., p. 103 107 Jacques, op. cit., p. 58. 105 46 Em que pese o Partenon Literário ter exaltado a temática gaúcha através da literatura e o Grêmio Gaúcho ser uma agremiação tradicionalista voltada às tradições através da promoção de festas, desfiles e palestradas, dois aspectos lhes foram comuns: o primeiro diz respeito às origens dos participantes de ambas as associações, compostas por pessoas de origens modestas, “não detentoras de terras ou de capital, e que encontram na atividade intelectual uma forma de ascensão e inserção no quadro de poder”; o segundo aspecto similar, é que ambas as associações estavam “preocupadas com a questão da tradição e da modernidade” 108. Oliven complementa: O Partenon ao mesmo tempo em que tem como modelo literário a Europa culta e aquilo que se imaginava que ela oferecia de mais avançado, evoca a figura tradicional do gaúcho e louva seus valores que estavam sendo abalados. O Grêmio Gaúcho, nas palavras de seu fundador, procura manter as tradições sem excluir os costumes do presente. Nas duas associações encontramos como pano de fundo um estado da federação que começa a transformar-se, na qual 109 a tensão entre o passado e o presente começa a se fazer sentir . De acordo com o MTG, depois do Grêmio Gaúcho de Porto Alegre surgiram, no Estado, várias outras entidades – grêmios, clubes, sociedades-, voltadas ao culto do gauchismo. Entretanto, “essas entidades não resistiam ao tempo e ao avanço das culturas de outros povos, vindo a perecer ou a desviar seus objetivos originais”110. Em 1910, João Simões Lopes Neto111 somou-se aos quadros tradicionalistas, auxiliando Jacques na valorização do “gauchismo”112. Foi Lopes Neto quem primeiro se preocupou em levar o gauchismo às escolas, através da publicação de Cancioneiro guasca, que compilava as quadrinhas comuns nas campanhas113. 108 Oliven, 2006, p. 101. Ibidem, p. 101. 110 Movimento Tradicionalista Gaúcho, 2006, p. 09. 111 Cfe. Lamberty, 1989, p. 37. João Simões Lopes Neto, jornalista, teatrólogo, contista e folclorista, natural de Pelotas, proferiu fervorosos pronunciamentos nas principais cidades do Rio Grande do Sul, pregando a valorização do gauchismo, seus usos e costumes, em socorro dos ideais de João Cezimbra Jacques. 112 Cfe. Savaris, 2008, p. 21. O gauchismo foi uma espécie de Liga de Defesa Nacional em âmbito sul-rio-grandense e pretendia, fundamentalmente, a comemoração das datas cívicas. Chegou a ter uma meia dúzia de agremiações, que, ou tiveram vidas efêmeras ou, ao cabo, descambaram para a vala comum dos clubes recreativos. 113 LOPES NETO, João Simões. Cancioneiro guasca. Porto Alegre: Sulina, 1999. 109 47 Mais especificamente em 1947, um grupo de estudantes, liderados por João Carlos Paixão Cortes114 e Luiz Carlos Barbosa Lessa115, fundou o Departamento de Tradições Gaúchas junto ao Grêmio Estudantil Júlio de Castilhos, em porto Alegre, instituindo a Chama Crioula e as comemorações farroupilhas como forma de manifestar sua própria tradição e aproximar a imagem de galpão do interior à realidade citadina. O Departamento destinava-se a estimular o desenvolvimento cultural, por meio de reuniões sociais e recreativas. Era um movimento estudantil com alunos de diversas camadas sociais e segmentos étnicos, que levantava-se e favor das traições. O objetivo era achar uma trilha diante da perda da fisionomia regional; combater a descaracterização; reagauchar o Rio Grande. Em suma: 116 procuravam a identidade da terra gaúcha . O perfil do movimento tradicionalista ainda permanecia voltado aos integrantes dos segmentos escolarizados, conforme sustenta Lessa, ao retratar a ocasião em que Paixão Cortes “encilhou os primeiros ‘pingos’ na capital. E acendeu a primeira Chama Crioula. E realizou a primeira ronda crioula. A primeira Semana Farroupilha” 117. Estas passagens citadas por Lessa merecem melhor destaque. No ano de 1947, Paixão Cortes, que dirigia o Grêmio Estudantil, procurou o Presidente da Liga de Defesa Nacional, major Darcy Vignoli, e manifestou sua vontade de retirar uma centelha do Fogo Simbólico da Pátria. Assim, antes de o fogo extinguir-se no dia 07 de setembro, a chama foi transportada até o Colégio Júlio de Castilhos, oportunidade em que foi aceso o primeiro candeeiro típico. O candeeiro foi depositado em um altar cívico, construído para a comemoração da Ronda Gaúcha, precursora esta da Semana Farroupilha118. Desta forma, a primeira fase literária iniciou a ser suplantada por uma fase de vivência da tradição, havendo uma convocação aos gaúchos 114 Cfe. Lambery, op. cit., p. 38. João Carlos Paixão Cortes (1927 -), pesquisador, folclorista, cantor, ensaísta, natural de Santana do Livramento, foi o responsável pela redescoberta de grande parte das danças gaúchas e suas coreografias, contribuindo significantemente com o engrandecimento da tradição e do folclore gaúchos. 115 Cfe. Lambery, 1989, p. 39. Luiz Carlos Barbosa Lessa (1929-2002), advogado, jornalista, historiador, compositor, contista e romancista. Natural de Piratini, dedicou sua vida ao tradicionalismo, sendo considerado sua maior autoridade. 116 Movimento Tradicionalista Gaúcho, 2006, p. 10. 117 Lessa, 1985, p. 57. 118 Movimento Tradicionalista Gaúcho, 2006, p. 12. 48 residentes na capital, que, mesmo tendo hábitos citadinos, “guardam ainda nas veias o sangue forte da terra rio-grandense”119. No mesmo ano, a Liga da defesa Nacional incluiu, na programação comemorativa da Semana da Pátria, o traslado dos restos mortais do segundo homem da revolução Farroupilha, General David Canabarro, de Santana do Livramento para Porto Alegre. Formou-se, para tanto, uma guarda de honra composta por uma “representação de gaúchos tipicamente trajados, que traduzisse a alma da terra e o espírito farroupilha”. Paixão Cortes, somado a dois alunos da Escola Julio de Castilhos e mais cinco participantes (conseguidos com muito custo, pois “ninguém queria passar o ‘vexame’ de aparecer de a cavalo na cidade”) acompanharam os restos mortais do herói farroupilha.120 O ato simbólico do “Grupo dos Oito” - como ficaram conhecidos-, significou “um ritual de passagem fundamental e como mito de criação do Movimento Tradicionalista Gaúcho”121. Lessa, citado por Oliven, relatou que “ver oito rapazes, no centro de Porto Alegre, vestidos à gaúcha criava tanto impacto quanto descerem, hoje na Praça da Alfândega, marcianos num disco voador”; foi nesta “aparição” que Lessa conheceu Cortes, passando a também fazer parte do Grêmio Estudantil do “Julinho”122. Neste mesmo tempo, outro movimento tomava vulto – a formação de uma entidade, com 35 membros, liderada por Glaucus Saraiva e Hélio José Moro, que objetivava reverenciar a epopéia de 1835 e fazer brotar “a consciência de um movimento cívico, social, desportivo e patriótico”, bem como a “afirmação da defesa de seus valores históricos e sociais” 123. Segundo Oliven, a formação literária de Barbosa Lessa foi fortemente influenciada pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde iniciou o curso de Direito, sob instrução do sociólogo Donald Person e pelo antropólogo 119 Lessa, 1985, p. 57. Movimento Tradicionalista Gaúcho, op. cit., p. 13 121 Oliven, 2006, p. 106. 122 Ibidem, p. 108-109. 123 Lamberty, 1989, p. 26-28. 120 49 Ralph Linton, sendo que “ambos autores estavam preocupados com os efeitos do crescimento da população, com as consequências da urbanização e as modificações que ocorrem na família e no grupo local”. Ao redigir a tese-matriz do Tradicionalismo, Lessa aplicou as teorias norte-americanas de Person e Linton, demonstrando na prática que o conhecimento acadêmico pode se tornar sendo comum: “Nesse sentido, o Movimento Tradicionalista Gaúcho é, sem sabê-lo, um dos maiores difusores das idéias das ciências sociais norteamericanas da década de quarenta”, pois “inicia enfatizando a importância da cultura, transmitida pela tradição, para que uma sociedade funcione como uma unidade”124. Enquanto isto, no interior do estado outras entidades se formavam. Após a criação do 35 CTG, em 1948, na capital gaúcha, as associações seguintes se firmaram no interior do Estado. O segundo CTG foi o Fogão Gaúcho (Taquara, 1948), seguido do CTG Minuano (Iraí, 1949), CTG 35 (Palmeiras das Missões, 1950); Ressurgimento da União Gaúcha (Pelotas, 1950), CTG Bento Gonçalves (Itaqui, 1951), entre outros. Somente no ano de 1953 é que outro CTG foi fundado na Capital, a Sociedade Tradicionalista estância da Amizade, sendo a décima nona entidade tradicionalista a ser concretizada. Ao longo de apenas seis anos, quase quarenta CTGs foram criados no Rio Grande do Sul, todos sob o fundamento de cultivar a história e a tradição sul-rio-grandense125. Este foi um período crítico com relação às tradições gaúchas, pois coincidiu com o término da Segunda Guerra Mundial e com a nova tendência de americanização mundial de hábitos, produtos e ideologias, em meio à “geração coca-cola” ao jazz, ao rock e ao jeans”126. Neste período, a sociedade gaúcha negava as próprias tradições e costumes enquanto tentava “modernizar-se” à americana. Recorda Golin que neste momento houve uma certa divergência entre os dois movimentos, Enquanto Barbosa Lessa e Paixão Cortes procuravam 124 Oliven, op. cit., p. 115-116. Movimento Tradicionalista Gaúcho, 2006, p. 24. 126 Ibidem, p. 09. 125 50 popularizar o tradicionalismo, Hélio José Moro e Glaucus Saraiva mantinham concepções mais míticas, pregando uma organização integrada tão somente por 35 pessoas, materializando a data máxima do Rio Grande 127. Explicitando este primeiro embate, Lessa e Cortes assim dispuseram o ocorrido: Defrontam-se então duas correntes: a do Colégio Julio de Castilhos, que pretendia um movimento aberto, de proselitismo e de expansão popular, e a de Hélio José Moro e Glaucus Saraiva [...] que propugnavam por uma associação relativamente esotérica, fechada, de alto valor cívico-mítico, limitada aos trinta e cinco sócios iniciais e 128 seus futuros e eventuais substitutos . Após encontros mediadores, prevaleceu a idéia de que o movimento não poderia permanecer fechado a pequeno grupo de seguidores. A fusão dos dois movimentos culminou na criação do primeiro Centro de Tradições Gaúchas, doravante denominado CTG, de forma organizada: A finalidade do 35 CTG foi assim expressa: a) zelar pelas tradições do Rio Grande do Sul, sua história, suas lendas, canções, costumes, etc. e consequente divulgação pelos Estados irmãos e países vizinhos; b) pugnar por uma sempre maior elevação moral e cultural do Rio Grande do Sul; c) fomentar a criação de núcleos tradicionalistas no estado, dando-lhes todo o apoio possível. O centro não desenvolverá qualquer atividade político-partidária, racial 129 ou religiosa. A vestimenta gaúcha como hoje é conhecida foi uma espécie de “supressão de lacunas” do passado. Fragmentos, usos e noções dos vestuários, passados tão somente de pai para filho, era o que os tradicionalistas tinham em mãos. O termo pilcha (dinheiro ou objeto de uso pessoal dotado de valor pecuniário) foi utilizado pela primeira vez em 1948, em uma reunião de tradicionalistas, opinião do Secretario Antonio Cândido: “Vamos oferecer ao patrão de honra paixão um churrasco, ao qual a indiada deverá vir toda pilchada. E esse invento colou”130. 127 Golin, 1983, p. 53. LESSA, Luiz Carlos Barbosa; CORTES, João Carlos D’Ávila Paixão. Danças e andanças da tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975, p. 88. 129 Laberty, 1989, p. 27. 130 Lessa, 1985, p. 64. 128 51 Em 1949, Paixão Cortes e Barbosa Lessa, representando o 35 CTG, junto com representantes do Clube Farrapos - da Brigada Militar-, trataram de organizar uma representação brasileira à comemoração do Dia da Tradição, que seria realizada em Montevidéu, Uruguai. Esta visita estabelece significante marco na tradição gaúcha, com o surgimento das danças tradicionalistas, que até então eram praticamente inexistentes, como se pode notar do relato pessoal de Lessa: Paixão Cortes e eu voltamos de Montevidéu decepcionados com a pobreza de nossos temas musicais e coreográficos de cunho tradicional. Aqui chegados, fizemos um levantamento preliminar e nos certificamos que – em contraste com o vivo folclore nordestino, por exemplo – pouco ou nada nos fora legado, para dançar. Neste pouco, mal-e-mal o xote e a vanera dos bailes do rancheiro. [...] Às pressas encomendamos vestidos de chita para nossas irmãs ou primas, tentamos reconstruir uma media-canha assistida em Montevidéu e, na noite da festa, apresentamos ao público, por primeira vez, pedaços de coreografia que havíamos farejado aqui e ali: o “Caranguejo” e o “Pezinho”. O pezinho era novidade absoluta.. Nem sequer seu nome surgia nas anteriores pesquisas de Apolinário, Cezimbra, Simões, etc. dele havíamos tomado conhecimento, como uma espécie de brinquedo de roda, através de duas meninas na estância de nosso amigo Nei Azevedo, em Palmares do Sul. [...] O público porém, aceitou. Mais do que isso: aplaudiu, muitíssimo. Confirmado o que trinta anos depois leríamos em Eric Hobsbawn: a dança do Pezinho estava respondendo a uma necessidade sentida 131 não só por nosso grupo de jovens como pelo público espectador . A partir daí, o movimento descobriu a força comunicativa da dança, optando Barbosa Lessa e Paixão Cortes por “revirar o Rio Grande do Sul na tentativa de descobrir cacos melódicos e coreográficos que, convenientemente reunidos e colados, se aproximassem de nossa herança luso-brasileira. Esta pesquisa durou cerca de dois anos, passando seu resultado a ser difundido através do mercado musical de São Paulo e da publicação de um livro com as evoluções coreográficas diagramadas. Lessa afirma categoricamente que não se tratam de danças folclóricas, mas danças tradicionalistas, classificando-as como uma “projeção estética da tradição popular”132. O tradicionalista, assim, passou a ser definido como o militante do tradicionalismo na defesa de sua tradição. Savariz concorda com Lima, no 131 132 Lessa, 1985. 71-72. Ibidem, p. 72-73. 52 sentido que ser imprescindível ao tradicionalista valores básicos que devem estar presentes em sua personalidade, como o espírito associativo, o nativismo, o respeito à palavra dada, a defesa da honra, a coragem, o cavalheirismo, a conduta ética, o amor à liberdade, o sentimento de igualdade, a politização e o senso de modernidade133. O tradicionalismo cultua valores e os afirma em meio a um momento histórico desprovido de convicções axiológicas. Cultuamos o associativismo, o nativismo (o solo nos pertence não por sermos donatários, mas conquistadores), o respeito à palavra, a defesa da honra, a coragem moral, o espírito empreendedor, a conduta ética, o amor à liberdade e ao trabalho, o sentimento de igualdade, a politização, o senso de modernidade.[...] Nossa música, nossa arte, nosso folclore têm incontestável 134 importância. Maior importância ainda têm nossos valores. A importância da convivência para o tradicionalista, recebida provavelmente por herança germânica, é inegável. Os tradicionalistas “criaram um ambiente de convivência social onde se atende uma das principais necessidades sociais do homem: relacionar-se bem com o avô e o neto ao mesmo tempo”135, sendo isto, para Savaris, talvez o maior dos segredos do movimento organizado. A exemplo do primeiro CTG fundado, nasceram outras entidades associativas similares136, todas com finalidade sócio-cultural, cuja personalidade jurídica dotada de estatutos e diretoria, responsável judicial e extrajudicialmente sobre seus atos. Já em 1954 eram trinta CTGs espalhados pelo Estado, surgindo novas discordâncias sobre o rumo do tradicionalismo137. 133 Savaris, 2008, p. 20. Lima, 2004, p. 58-59. 135 Entrevista com Manuelito Carlos Savaris, realizada em 13.10.2009, na Sede do IGTF, no Centro administrativo em Porto Alegre. Savaris é o atual Presidente do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore – IGTF, e Vice-presidente da Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha. 136 A nomenclatura destas entidades traduz a linguagem campeira, substituindo a convencional. O presidente é denominado “patrão”, e seu vice, “capataz”; o secretário é o “sota-capataz”, o tesoureiro é chamado de “agregado-fiel”, ou “agregado das pilchas”; o assessor de comunicação passou a ser denominado “agregado das falas”, ou “chiru das falas”, enquanto o encarregado dos serviços gerais ocupa a vez de “capataz geral”. O presidente de honra e o conselho deliberativo ou fiscal denominam-se respectivamente “patrão de honra” e “conselho de vaqueanos”; até mesmo o responsável pela limpeza e conservação dos CTGs possui um nome próprio: “peão caseiro”. Outras formações são permitidas, compondo as diretorias de acordo com o tamanho de cada associação, como diretores de artes, diretores culturais ou de esportes. É tradicional a eleição de suas primeiras prendas, responsáveis pela representação dos CTGs dentro e fora de sua sede. 137 Cfe. Lessa, 1985, p. 79-80. De um lado, alguns companheiros acreditavam que os CTGs deveria ter uma preocupação “cultural”, no sentido de uma cultura escolarizada ou cultivada (história, literatura, folclore), enquanto outros julgavam esta ser uma posição preconceituosa, 134 53 Neste ano foi instalado o I Congresso, em Santa Maria, presidido por Manuelito de Ornellas, cuja conclusão foi a de que o tradicionalismo deveria ser um movimento popular, não apenas intelectual. Se antecipa Lessa, ao reconhecerse sabedor de que na verdade “ele será compreendido em sua finalidade última, apenas por uma minoria intelectual”, muito embora seja imprescindível que, “para vencer, ele seja sentido e desenvolvido no próprio seio das camadas populares”138. Surgia, então, o conceito oficial do Tradicionalismo: Tradicionalismo é o movimento popular que visa auxiliar o Estado na consecução do bem coletivo, através de ações que o povo pratica – mesmo que não se aperceba de tal finalidade – com o fim de reforçar o núcleo de sua cultura; graças ao que a sociedade adquire maior solidez e o indivíduo adquire maior tranquilidade na vida em 139 comum . A partir da década de quarenta, a expansão dos CTGs foi muito expressiva, dentro e fora do Rio Grande do Sul. Lembra Simon que “em apenas sessenta anos, os Centros de Tradição Gaúcha transformaram-se naquilo que alguns não hesitam em considerar o maior movimento de cultura popular do mundo”140. É comum os CTGs possuírem sedes festivas urbanas e sedes campeiras. O mais usual é que cada entidade possua uma sede em estilo rústico, similar ao galpão campeiro, onde são realizados fandangos, saraus de prendas e inúmeros cursos típicos – bordados, culinária, danças. É comum também a realização de rodeios e de festivais nativistas, com concursos de músicas e declamações. Nos rodeios são promovidas competições de tiro de laço, doma, prova de rédeas, carreiras de cancha reta entre outras práticas, sempre ligadas às lides do campo, demonstrando as habilidades de seus participantes. ao passo em que negava valor cultural ás expressões populares não-institucionalizadas (lida campeira, medicina caseira, etc); alguns temiam que os CTGs descambassem apenas para o entretenimento, enquanto outros argumentavam que o lazer era importantíssimo; alguns, de perfil mais aristocrata, temiam que os CTGs se popularizassem demais e que as camadas mais baixas acabassem fundando os próprios centros de tradição, enquanto para outros isso era justamente o mais lógico a acontecer, visto que a elite já contava com as próprias agremiações e não seria justo negar acesso ao peão de estância, personagem homenageado no próprio perfil gaúcho. 138 Lessa, 1985, p. 83. 139 Ibidem, p. 83. 140 Simon, 2009, p. 135. 54 Sendo o tradicionalismo a “arte de colocar em movimento uma tradição”141, o tradicionalismo gaúcho organizou o movimento que cultua a tradição de seu povo, e é por esta razão que se denomina tradicionalismo organizado. A ninguém, aqui, será lícito esquecer o papel que a convivência continuada, nos centros de tradições e nas atividades regionalistas exerce sobre a formação daqueles que se compenetram de seus valores. Que o tradicionalismo é uma das forças mais importantes da cultura rio-grandense não é novidade: basta que se divise, dentro e além fronteiras, a extraordinária força que o movimento mantém e incrementa na direção do prestigiamento das nossas coisas, mostrando para os “de dentro” e os “de fora” que não esquecemos nossas raízes, que não renegamos nosso passado, que estamos, continuamente, a criar novas maneiras de irmos às nossas fontes, 142 delas retirando o estímulo para o nosso modo de pensar e agir. O primeiro congresso tradicionalista foi realizado em 1954, oportunidade em que foi defendida a tese O sentido e valor do tradicionalismo, de Luiz Carlos Barbosa Lessa, sugerindo que o movimento fosse popularizado de forma ampla, de forma que abrangesse todas as camadas sociais e não mais ficasse restrita aos estudiosos de cunho literário. Somente em 1961 é que foi aprovada a Carta de Princípios do movimento tradicionalista, de autoria de Glaucus Saraiva, onde se pode notar de pronto a inegável associação entre o movimento e o Estado, porquanto sua primeira indicação seria “auxiliar o Estado na solução dos seus problemas fundamentais e na conquista do bem coletivo”143. O movimento não contou com e ajuda oficial da sociedade ou do estado, muito menor reconhecimento como “cultura” nos currículos escolares. Mesmo assim, sua propagação foi “incontível”, nas exatas palavras de Lessa: Apesar do silêncio dos currículos oficiais, apesar dos preconceitos da cultura “superior”, apesar de Porto Alegre ter continuado proibindo que homens do interior entrassem vestidos de bombacha e botas em seus cinemas, nos anos subsequentes ao 1º Congresso o culto à tradições gaúchas foi experimentando incontível expansão. [...] 141 Lamberty, 1989, p. 22. Lima, 2004, p. 139. 143 SARAIVA, Glauco. Carta de Princípios do movimento tradicionalista. In. CIRNE, PAULO Roberto de Fraga (org.). Coletânea de leis, decretos e normas do interesse do tradicionalismo gaúcho. Porto Alegre: MTG, 2008, p. 08. 142 55 A verdade é que o movimento, com tenacidade e dinamismo, foi conquistando espaços, e alargando espaços, em todas as áreas da 144 comunicação popular . O Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) foi criado no dia 28 de outubro de 1966, sendo hoje, “o órgão catalisador, disciplinador, orientador das atividades dos seus filiados, especialmente no que diz respeito ao preconizado em sua Carta de Princípios”145, com sede física permanente em Porto Alegre. Foi apenas a partir da década de oitenta que as manifestações culturais no Rio Grande do Sul tomaram maior vulto. Azevedo, em carta enviada a Oliven, tece a seguinte reflexão no sentido de que o renascimento do gauchismo: [...] parece evidenciar um desejo de afirmação de gauchidade e de nacionalismo, porém, ao mesmo tempo, talvez um desejo de afirmação de diferenciação – bem nítida em vários aspectos – dos brasileiros de outras partes [...] os gaúchos que se voltam à bombacha, ao chimarrão, à chimarrita, parecem identificar-se mais “brancos” e até melhor ligados aos vizinhos platenses do que os brasileiros mulatos e pretos do norte do país e aos caboclos da 146 Amazônia e do Nordeste. Tratava-se de uma tradição vivida pelos jovens citadinos, e não mais apenas entre os habitantes do campo. O movimento tradicionalista tomou vulto e o chimarrão, as bombachas e os hábitos gaúchos foram aos poucos perdendo o estigma de grossura. Oliven lembra que no Rio Grande do Sul, cerca de 75% da população vive em meio urbano e a grande maioria não possui contato com as lides campeiras147. Hoje, a estrutura organizacional do Movimento Tradicionalista Gaúcho do Rio Grande do Sul – MTG/RS, o subdivide em 30 regiões, geograficamente distribuídas, cada uma com cerca de 10 municípios. São milhares de entidades inscritas que recebem apoio do Movimento em suas atividades culturais 148. De 144 Lessa, 1985, p. 88. Movimento Tradicionalista Gaúcho do Rio Grande do Sul. MTG: o que é? Porto Alegre, [s.d]. Disponível em: < http://www.mtg.org.br/oquee.html >. Acesso em: 14 nov. 2009. 146 AZEVEDO, Thales de. Carta para Ruben George Oliven. In. Oliven, 1992, p. 18. 147 Oliven, 1992, p. 05. 148 Movimento Tradicionalista Gaúcho do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, [s.d]. Disponível em: < http://www.mtg.org.br/>. Acesso em: 14 nov 2009. 145 56 acordo com Helio Ferreira, Secretário do MTG/RS, o crescimento do movimento e a descentralização dos CTGs, Departamentos de Tradição Gaúcha149 (DTGs) e Piquetes demandou uma estrutura maior”150. Afinal, “em qualquer região na qual se instalam, os sul-rio-grandenses criam logo um centro de tradições gaúchas. Passam a dançar e cantar as músicas do Sul e logo recebem a adesão de pessoas da comunidade local”151, situação esta que necessitava de uma estrutura organizacional maior. Assim, no ano de 1987, foi fundada a Confederação Brasileira de Tradição Gaúcha – CBTG, em reunião realizada por tradicionalistas do Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo. Na ocasião, os manifestos surgiram no seguinte sentido: Os tradicionalistas gaúchos do Brasil reunidos na histórica cidade de Ponta Grossa, Estado do Paraná, conscientes da gravidade do momento por que atravessa a humanidade e em especial o laborioso e sacrificado povo brasileiro, que além da espoliação cultural da nossa gente por interesses alienígena que não nos dizem respeito e ferem danosamente os nossos princípios, nossos usos e costumes e a própria filosofia da vida de novo povo, principalmente, expõem: 1 – Considerando que os gaúchos, não só no Rio Grande do Sul, mas em diversos Estados de nossa Pátria, fundaram Centros de Tradições Gaúchas com os objetivos óbvios da Carta de Princípios do Tradicionalismo; 2 – Considerando o crescimento global dos Centro de Tradições Gaúchas de todo o Brasil preocupados com a realidade brasileira, e sentindo a necessidade de pôr em prática os objetivos da Carta de Seival; 3 – Considerando que, a exemplo do Rio Grande do Sul, com o MTG, as entidades tradicionalistas de Santa Catarina, Paraná e São Paulo organizaram-se em Federações; 4 – Considerando a já existência do Conselho Internacional da Tradição Gaúcha que reúne Brasil, Argentina e Uruguai com os objetivos propostos na Proclamação de Montevidéu, e a realização já de dois Congressos; 5 – Considerando que os tradicionalistas gaúchos do Brasil não podem continuar com as suas Federações individualizadas, tendo a necessidade de reunirem-se a formar um bloco uníssono, 152 respeitadas as peculiaridades de cada Estado . Assim, a CBTG dividiu o país da seguinte forma: Movimento Tradicionalista Gaúcho do Rio Grande do Sul – MTG/RS; Movimento Tradicionalista 149 Gaúcho de Santa Catarina – MTG/SC; Movimento Se diferenciam dos CTGs por possuírem uma entidade mantenedora. Entrevista com Helio Ferreira, realizada no dia 13 de outubro de 2009, na sede da entidade, localizada à Rua Guilherme Schell, 60, Porto Alegre-RS. 151 Simon, 2009, p. 35. 152 Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha. Ata de fundação. [S.l.; s.d]. Disponível em: <http://www.cbtg.com.br/_sitio/diversos/mostra.php?tipo=Atas&cod=151>. Acesso em: 14 nov 2009. 150 57 Tradicionalista Gaúcho do Paraná – MTG/PR; Movimento Tradicionalista Gaúcho de São Paulo – MTG/SP; Movimento Tradicionalista Gaúcho do Mato Grosso – MTG/MT; Movimento Tradicionalista Gaúcho do Mato Grosso do Sul – MTG/MS; Federação da Tradição Gaúcha do Planalto Central – FTG/PC; União Tradicionalista Gaúcha do Nordeste – UTGN e União tradicionalista Gaúcha do Rio de Janeiro – UTG/RJ. Sua sede é itinerante, acompanhando o local de residência do presidente. Atualmente, se encontra em Brasília - Distrito Federal, onde reside o Sr. Dorvílio José Calderán, Presidente do CBTG. O MTG/RS se organiza cada vez mais trazer a sede definitiva da CBTG ao Rio Grande do Sul, berço da tradição gaúcha. Além dos cursos, bailes e jantares, grande parte dos CTGs possui programas radiofônicos, transmitidos ou não de suas sedes. Simon reflete, demonstrando grande curiosidade, o fato de que muitos Estados possuem rádios com programas de música nativista, acompanhados não só pelos gaúchos exilados, mas pela população em geral153. Mas a associação entre avanços tecnológicos e o tradicionalismo avançou e o amor pelas tradições gaúchas aparenta não ter limites. No ano de 2007 foi criado um CTG virtual, no jogo “Second Life154”, O Centro de Tradições Gaúchas Estância Celeste Brasil. A iniciativa foi do jornalista Clediney Silva, gaúcho radicado há muitos anos no Paraná, e conta com um tráfego diário médio de 5.000 pessoas: ”desde então, o empreendimento vem construindo uma história de luta, garra e sucesso, retratando com fidelidade no mundo virtual os passos heróicos do povo gaúcho”. Trata-se da realidade vivenciada nos CTGs, elevada ao status e simulação virtual, possuindo rádio ao vivo online, dois locais destinados a realização de bailes, fogo de chão, churrasco e arena de rodeio. Nas palavras do criador do CTG, a expansão para o culto das tradições gaúchas no mundo virtual se justifica à medida e que ele não permanece limitado ao Rio Grande do Sul. Para paixão Cortes, “é uma forma 153 Simon, 2009, p. 34. Second Life is the leading virtual world development platform for the creation of virtual goods and immersive, engaging and productive 3D spaces used by individuals, artists, corporations, governments, academic institutions and non-profits - Segunda Vida é a principal plataforma de munodo virtual para a aquisição de bens virtuais e de espaços em 3 dimensões usados por indivíduos, artistas, corporações, governos, instituições acadêmicas e não-lucrativas. In. Second Life. Disponível em: <http://www.secondlife.com>. Acesso em: 12 dez. 2009. 154 58 atualizada de divulgar a identidade da região. Tradicionalismo não significa ficar parado no tempo. É preciso acompanhar a modernidade, mas não fazer modismo”155. Note-se que a própria Carta de Princípios do Movimento Tradicionalista assume, como meta, o prestígio e o estímulo de qualquer iniciativa voltada à proteção do tradicionalismo, não havendo limites impostos a isto. Nesse contexto, Viale e Brandt analisam o fato de que as pessoas estão se comunicando, cada vez mais, por meio de veículos virtuais, “buscando facilitar a sua vida que é sempre corrida, estão resolvendo várias tarefas por meio de um click”156, e complementam: [...] a internet desempenha um papel fundamental no momento em que se apresenta como a possibilidade de acesso rápido à informação. Além de possibilitar um”encontro” de pessoas ou mesmo uma fuga á situação de complexidade apresentada pela sociedade contemporânea. [...] A proposta, portanto, é possibilitar a criação de um mundo novo, de uma vida nova, com base nas informações que o participante quiser fornecer. [...] Não é à toa que um jogo que reproduza a vida tenha tantos adeptos: ele representa a possibilidade da pessoa poder viver a vida “real”, a vida que ela mesma pode escolher, sem que seja condicionada a 157 vivê-la . A realidade virtual tem transformado a sociedade contemporânea. No movimento tradicionalista não é diferente. Vários dos CTGs possuem sites, onde expõe as atividades da entidade e contribuem com a propagação da tradição e do folclore gaúchos. Nos Estados Unidos da Améric, encontramos um CTG totalmente virtual, diferente daquele do Second Life, pois nele os integrantes não criam uma nova realidade, mas utilizam este meio para suprir uma de suas principais dificuldades: a distância. Trata-se do Núcleo Tradicionalista Gaúcho de Danbury, em Connecticut, sendo que seus 155 CTG Estância Celeste Brasil. [S.l.; s.d.]. Disponível em: <http://www.ctgbrasil.com/historia.htm>. Acesso em: 12 dez. 2009. 156 VIAL, Sandra Regina Martini; BRANDT, Daiana. Second life: fuga ou construção da realidade? In. REIS, Jorge Renato dos; LEAL, Rogério Gesta. Direitos sociais & políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7, Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007, p. 1967. 157 Ibidem, p. 196-197 passim. 59 integrantes somente se encontram para rodas de chimarrão e durante as Comemorações da Revolução Farroupilha158. A análise em um primeiro capítulo dos fatores característicos, definidores da identidade gaúcha - principalmente o nativismo e saudade -, são imprescindíveis para a compreensão do surgimento e alastramento do tradicionalismo gaúcho organizado. Este movimento, hoje, ultrapassa barreiras de natalidade ou geográficas, demandando por parte do Estado a adoção de políticas públicas capazes de fortalecer ainda mais o movimento diante do risco de fragmentação de sua identidade, fenômeno cada vez mais recorrente no contexto da globalização contemporânea. Estes assuntos serão os principais focos dos capítulos seguintes. 158 SARMENTO, Joe. Recebido por e-mail em 20 de outubro de 2009, de [email protected] 60 2 CULTURA E IDENTIDADE: A GLOBALIZAÇÃO E A TRADIÇÃO GAÚCHA EM QUESTÃO Para se adentrar na discussão sobre o sentido e o alcance de qualquer cultura, se torna necessário primeiro analisar, como categoria antropológica, o sentido do que vem a ser “cultura”, enquanto parte integrante de qualquer sociedade. Diferente não se dá com o tradicionalismo gaúcho. Como bem assevera Lima, “para se entender o sentido e o alcance do tradicionalismo gaúcho é necessário examinar o seu substrato, o conteúdo da tradição, sua origem e consistência”159. A questão da identidade também representa importância sumária. No primeiro capítulo tratou-se das concepções culturais e da identidade gaúcha, sem adentrar-se na definição de o que consiste a identidade – o que se pretende analisar neste capítulo. Ainda, é importante destacar as interferências culturais, sua influência na identidade e a fragmentação do sujeito frente a esta realidade global – bem como do risco de fragmentação da identidade gaúcha. Contudo, resta apresentado também o contra-ponto: a “invasão” da cultura gaúcha no mundo, ao que foi denominado mundialização do gauchismo. Antes de adentrar na intrincada análise dos temas aqui propostos, cabe esclarecer que a nenhum deles é possível atribuir um conceito definitivo, palpável, pois globalização, identidade e cultura não possuem uma definição concreta, um conceito amplo o suficiente para abarcar todo o movimento sociológico que lhes dá sentido. Tratam-se, afinal, de idéias decorrentes de um mundo em movimento, o que não lhes permite um conceito imutável, a não ser uma construção de pensamentos que aproxime o pesquisador de seus significados. 159 Lima, 2004, p. 16. 61 2.1 Cultura e identidade Tamanha é a complexidade dos conceitos de cultura e identidade, que se torna inconcebível a presunção de defini-los de forma pétrea, ou mesmo de apresentar a inesgotável discussão que enseja suas definições entre filósofos, sociólogos, historiadores e antropólogos. O que se pretende, nas linhas que seguem, é trazer as principais reflexões que induzam o leitor a exprimir suas próprias conclusões, eis que são significados que também dependem das características idiossincráticas individuais. 2.1.1 Cultura Os conceitos de cultura tem sido sempre analisados com conotação mais ou menos ampla. Há uma minoria que defende um conceito de cultura restritivo, considerando que a amplitude conceitual provoca um “deturpamento do vocábulo, empregado para exprimir as criações mais altas do espírito humano”. Em extremo oposto, há quem sustente que “todo o fato que não seja natural será cultural”, em razão do próprio nexo etimológico da palavra, o “cultivo do intelecto”, que abrangeria todas as criações humanas160. Laraia define cultura como sendo “uma lente através da qual o homem vê o mundo”, lente esta em permanente mudança. O autor aponta dois tipos de transformação cultural: a de ordem interna e aquela provocada por influências externas: enquanto a primeira é lenta, a segunda espraia seus reflexos em acelerada velocidade, pois decorre do contato entre os diferentes sistemas culturais161. Cada mudança, por menor que seja, representa o desenlace de numerosos conflitos. Isto porque em cada momento as sociedades humanas são palco de embate entre tendências conservadoras e as inovadoras. As primeiras tendem a manter os hábitos inalterados, muitas vezes atribuindo aos mesmos uma legitimidade de ordem 160 MELO, Osvaldo Ferreira de. Reflexões para uma política de cultura. Florianópilis: Movimento, 1982, p. 20. 161 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 19. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2006, p. 67 - 96. 62 sobrenatural. As segundas contestam a sua permanência e 162 pretendem substituí-los por novos procedimentos. Já Pozenato, ao procurar identificar uma determinada cultura popular, alerta para a preocupação primeira de “saber o que é essa cultura, de que elementos ela se compõe, como ela se organiza, como ela pode ser descrita”, buscando encontrar, assim, pontos identificadores de determinada sociedade. Em contrapartida, assevera que também seria necessário “saber o que não é elemento desta cultura, se é de alguma forma um elemento estranho e que, portanto, não deve ser considerado como parte desse sistema”. O autor ainda se posiciona no sentido de que “o importante, para se compreender um processo cultural, é ser capaz de vê-lo dentro de um processo de história”, sendo imprescindível identificar as duas espécies de fatores determinantes das mudanças culturais: os que não destroem seu significado cultural e os que interferem na identidade da comunidade163. Nota-se que o conceito não é assim tão simples de se elaborar. Utilizamo-nos das palavras de Smith para exemplificar a complexidade do tema. Partindo de um conceito inicial de cultura, como sendo “o modo coletivo de vida, ou um conjunto de crenças, estilos, valores e símbolos”, vale dizer que não se pode falar em cultura, mas em culturas, pois “um modo coletivo de vida ou um conjunto de crenças, etc., pressupõe diferentes modos e conjuntos dentro de um universo de modos e conjuntos”164. Não se pode conceituar a cultura como se faz com uma pedra, pois uma pedra, mesmo em meio a outras pedras, continuará sendo o mesmo objeto. A cultura é permanenemente mutável, pois decorre da visão de mundo de um indivíduo, de um conjunto de indivíduos ou, como já se pretende sugerir, de uma globalidade de indivíduos165. 162 Laraia, 2006, p. 99. POZENATO, José Clemente. Processos culturais: reflexões sobre a dinâmica cultural. Caxias do Sul: EDUCS, 2003, p. 27-30 164 SMITH, Anthony D. Para uma cultura global. In. Featherstone (org.). Cultura global: nacionalismo, globalização e modernidade. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 183. 165 Ibidem, p. 183. “A idéia de uma ‘cultura global” é praticamente impossível, a não ser em termos interplanetários. Mesmo se o conceito foi atribuído ao homo sapiens, em oposição a outras espécies, as diferenças entre os diversos segmentos da humanidade em termos de estilo de vida e de conjunto de crenças são muito grandes, e os elementos comuns, 163 63 No mesmo sentido, Couceiro adverte para a necessidade de cuidados ao se falar em “cultura” no singular, pois os historiadores e antropólogos já consolidaram que o termo correto seria aplicado no plural, [...] enfatizando a impossibilidade de unir de forma harmônica e generalizante as manifestações culturais das várias esferas da sociedade. Cultura deveria, portanto, ser um termo empregado no plural, já que não se constitui num complexo unificado coerente, mas sim, num conjunto de “significados, atitudes e valores partilhados e as formas simbólicas (apresentações, objetos artesanais) em que eles são expressos ou encarnados”, que são construídos socialmente, variando, portanto, de grupo para grupo e de uma época para outra. Mas, apesar de pequenas divergências, essa 166 visão de cultura já se generalizou entre os historiadores . Ainda pode se apreciar o conceito de cultura a partir do trinômio naçãoetnia-religião, todos os três aplicados de forma conjunta ou em separado, ms sempre associados à idéia de se tratarem de “comunidades imaginadas”, dotadas de fatores de identificação que geralmente seguem um dos três termos antes dispostos. Nas palavras de Moyano, [...] parece de sentido común creer que hay distintas culturas y que cada uno de nosotros pertencemos a uma de ellas. Cuando se habla de uma cultura a la que ponemos adjetivos vinculándola a um Estado-nación (por ejemplo, la cultura española, la cultura francesa, la cultura china), a um religión (por ejemplo la cultura musulmana o la cultura judia) o a uma région (por ejemplo, la cultura vasca o la cultura andaluza) estamos refiriéndonos a comunidades 167 imaginadas . As variadas nuances do termo reforçam a idéia de inexistência de culturas e identidades com limites definidos, a não ser nos discursos políticos e sociais. Assim, por exemplo, determinada pessoa pode definir sua cultura, ao mesmo tempo, como sendo latino-americana (continente), brasileira (nação), católica (religião), alemã (ascendência), gaúcha (regional), etc, sendo possível que não haja nenhum contra-senso em tal alegação - tal é a amplitude do conceito. Exemplo bastante elucidativo é trazido por Damatta: demasiadamente generalizados, para nos possibilitar até mesmo um conceito de uma cultura globalizada”. 166 COUCEIRO, Sylvia. Os desafios da história cultural. In. BURITY, Cultura e identidade: perspectivas interdisciplinares. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 15. 167 MOYANO, Rafael Pulido. Sobre el significado y los usos de los conceptos de interculturidad y multiculturidad. In. GARCÍA, Tomás Fernández; MOLINA, José G. Multiculturidad y educación. Madrid: Alianza, 2005, p. 30. 64 Num dado nível, as regiões são importantes e o gaúcho pode se distinguir radicalmente de um catarinense (“barriga verde”); mas se ambos – o gaúcho e o catarinense – vão para Belém, os dois se juntam como “sulistas” em oposição aos “nortistas”. Mas se um gaúcho, um catarinense e um paranaense se encontram em Buenos Aires, eles imediatamente se definem como “brasileiros!, por oposição aos argentinos [vistos como “gringos”]. Agora, se um argentino e esses três brasileiros se encontram em Chicago, eles invocam sua identidade de latino-americanos” em oposição à cultura local: ianque, individualista, monoglota, provinciana, etc. Nesse nível, então, o “nacional brasileiro” e o “nacional argentino” se 168 regionalizam . Analisando inúmeros conceitos sobre o termo, todos parecem ter em comum os mesmos elementos norteadores, ou seja, definições geográficas, ações e reações peculiares, usos, costumes ou valores espirituais. Diferente não é o conceito trazido pelos tradicionalistas gaúchos, que afirmam ser a cultura [...] um sistema de atitudes e modos de agir, costumes e instituições, valores espirituais e materiais de uma sociedade. Barbosa Lessa ensina que a cultura de qualquer sociedade se compõe de duas partes: o núcleo e as alternativas. O núcleo é constituído pelo Patrimônio Tradicional, onde se concentram os hábitos, princípios morais, valores, associações e reações emocionais partilhadas por todos os membros de determinada sociedade, ou por todos os integrantes de determinada categoria de indivíduos. Este cerne cultural dá aos indivíduos a unidade psicológica essencial ao funcionamento da sociedade. Cercando o núcleo, existe uma zona instável, denominada Alternativas, constituída por elementos culturais, que atingem somente alguns membros de uma sociedade. Essa zona de Alternativas tem a capacidade de fazer a cultura crescer e aperfeiçoar-se, porém se o núcleo, o Patrimônio Tradicional, for fraco, haverá uma invasão das alternativas que destruirão o núcleo, causando confusão social, pois que haverá, fatalmente, a perda das 169 referências e dos indicativos de identidade daquela sociedade . Conforme Santos, há duas concepções básicas de cultura: a mais usual, que se ocupa de todos os aspectos de uma determinada realidade social, dando conta das características específicas que refletem as maneiras de conceber e organizar a vida em sociedade; a segunda, mais específica, se refere ao “conhecimento, idéias e crenças, assim como às maneiras como elas 168 DAMATTA, Roberto. Nação e região: em torno do significado cultural de uma permanente dualidade brasileira. In. SCHULLER, Fernando Luiz; BORDINI, Maria da Glória. Cultura e identidade regional. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 25. 169 SAVARIS, Manuelito Carlos. Conceitos importantes para a compreensão da identidade do Gaúcho. In. Fundação Gaúcha de Tradição e Folclore. Disponível em: <http://www.igtf.rs.gov.br>. Acesso em: 19 jan. 2010. 65 existem na vida social”. O próprio autor confirma que o limiar entre elas é ínfimo, pois na verdade ambas se referem às características de um determinado grupo de pessoas170. A Constituição Federal, regramento normativo máximo brasileiro, não traz uma definição de cultura, mas enuncia quais são os patrimônios culturais nacionais. Assim dispõe o referido artigo: Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:I - as formas de expressão;II - os modos de criar, fazer e viver;III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, 171 arqueológico, paleontológico, ecológico e científico . Ao tratar da definição constitucional, Cunha Filho adverte que “a cultura tem sua concretude, que não se estampa somente nas fachadas dos prédios tombados”, e que é a partir da cultura que se pode “traçar o perfil de desenvolvimento econômico de um povo”172. Esta dificuldade conceitual tem consequências diretas na área jurídica, o que se pode notar, por exemplo, na análise dos tratados internacionais dos quais o país é signatário. Conforme informações do Ministério da Cultura, o Brasil reconheceu e assinou quatro atos multilaterais culturais, todos sobre direitos autorais: a Convenção de Roma (1961), voltada à proteção dos artistas intérpretes ou executantes, aos produtores de fonogramas e aos organismos de radiodifusão; a Convenção de Berna (1971), destinada à proteção de obras literárias e artísticas; a Convenção Universal (1971), também sobre o direito o 170 SANTOS, José Luiz. O que é cultura. In. PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é cultura; o que é contracultura; o que é política cultural. São Paulo: Círculo do Livro, [S.d], p. 21. 171 Brasil. Constituição (1988). Artigo 216. In. Planalto Central. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 02 dez. 2009. 172 CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Teoria e prática da gestão cultural. Fortaleza: Universidade de Fortaleza, 2002, p. 100. 66 autor; e o acordo TRIPS/ADPIC (1994), um acordo sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio.173 Conforme se verifica imediatamente de seus termos, a maior preocupação dos tratados é a proteção das próprias obras literárias e artísticas e de seus autores ou seus legítimos representantes. Isto significa reconhecer que os tratados internacionais reconhecidos e firmados pelo Brasil não contemplam o “direito à cultura”, mas apenas tutelam parte da cultura. Em outras palavras, é como afirmar que tais tratados internacionais dizem respeito a uma parte, e não ao todo, afinal, a produção literária ou artística é parte da cultura, mas não significa cultura em sua totalidade, merecendo esta, ainda maior reconhecimento e proteção. 2.1.1.1 Patrimônio cultural O conceito de patrimônio cultural é vasto, estando diretamente relacionado ao direito de diversidade cultural. Considerando que o objeto principal desta pesquisa é o estudo das políticas públicas de fortalecimento do tradicionalismo gaúcho, torna-se necessário ao menos a abordagem da principal idéia de patrimônio cultural, a fim que se compreenda o porquê da necessidade de protegê-lo. Os bens culturais são merecedores de tutela jurídica, a qual começa por sua individuação, pelo reconhecimento de seu status de bem preservável diante de suas características de representatividade, seu caráter histórico evocativo ou demonstrativo de relevante expressão cultural. O bem, então, passa a adquirir uma nova qualidade jurídica, a qualidade de bem cultural. Portanto, os bens culturais, independetemente de sua natureza jurídica pública ou privada, são bens de uso comum do povo, também denominados bens difusos ou transindividuais. 173 Brasil. Ministério da Cultura. 2010. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/site/2008/01/30/acordos-e-tratados>. Acesso em: 02 jan. 2010. 67 Para fins didáticos, interessante é a colaboração de Rodrigues, o qual refere estar o patrimônio cultural subdividido em três categorias, estabelecidas por Huges de Varie-Bohan, conservador do Museu do Louvre: a primeira, de origem natural; a segunda, proveniente da ciência e do conhecimento; a terceira, dos artefatos fabricados pelo homem. De acordo com esta classificação, há casos em que pode haver confusão entre patrimônio natural e cultural174. Já o patrimônio cultural que surge a partir da ciência e do conhecimento é abstrato, de ordem iminentemente intelectual - compreende as ciências, as artes imateriais (música, dança, crenças), os costumes, as tradições, enfim, tudo o que se relaciona à cultura intrínseca e intangível do ser humano. Por fim, a terceira espécie de patrimônio cultural seria aquela de ordem material, palpável, tangível, e decorrente da própria ação do homem, ao transformar o meio ambiente na construção de sua história175. De acordo com Soares e Klamt, ainda se pode mencionar o patrimônio de ordem emocional, relacionado às manifestações culturais individuais ou coletivas, como o folclore, os desfiles cívicos, a forma de manifestar a religião e as artes, como as procissões religiosas ou a própria Semana Farroupilha176. O conceito constitucional de patrimônio cultural, trazido pelo art. 216, é bastante amplo, incluindo tanto os bens de natureza material quanto imaterial, considerados individualmente ou em conjunto, desde que detentores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. São incluídas no conceito as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver, as criações científicas, artísticas, tecnológicas, as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais e, finalmente, os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e 174 A exemplo das unidades de preservação ecológicas, em decorrência da idéia de que o ambiente natural também possui valor cultural na medida em que é herança de gerações. 175 RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Tutela do patrimônio ambiental cultural. In: PHILIPPI JR, Arlindo; ALVES, Alaôr Caffé. Curso interdisciplinar de direito ambiental. São Paulo: USP, 2005, p. 542. 176 SOARES, André Luiz R; KLAMT, Sérgio Célio. Breve manual de patrimônio cultural: subsídios para uma educação patrimonial. In. Revista do CEPA. Vol. 28. n. especial (2004). Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004, p. 47. 68 científico177. Note-se que o texto constitucional, “suprimindo expressões prolixas, imprecisas e incompletas, como patrimônio artístico, histórico, arquitetônico, arqueológico e paisagístico que foram utilizados nas Constituições anteriores”178, adotou o conceito de patrimônio cultural, por ser completo ao abranger todos os anteriores e não constituir taxatividade, o que é de extrema importância em uma sociedade complexa e mutável. No entanto, deve-se ressaltar que o termo “cultural” não foi padronizado ao longo da Constituição Federal, havendo artigos em que o legislador constou “patrimônio histórico e cultural” (artigo 5º, LXXIII), ou “artes e outros bens de valor histórico” (artigo 23), entre outros. Desta forma, em se tratando de patrimônio cultural, cabe enfatizar que sua proteção atinge diretamente a questão identitária, ou seja, relação entre o bem e o sujeito deve estar dotada de identificação, de forma que o sujeito compreenda a representação cultural do bem e possua o sentimento de pertencimento à memória por ele retratada. Há inúmeros meios de se proteger o patrimônio cultural: o primeiro é através do reconhecimento social da diversidade cultural e da valoração dos bens para a identidade cultural; o segundo são as políticas de preservação, feita através de leis que regulam sua identificação, proteção e exploração. Não há como sobrepor um a outro, pois as políticas preservacionistas somente serão eficazes quando a sociedade de fato reconhecer e se identificar com o bem a ser protegido. Em contrapartida, a proteção efetiva do patrimônio cultural, quando feita pelos órgãos estatais, tende a atingir melhores técnicas de preservação, por questões financeiras, científicas e tecnológicas, entre outras. A Organização das Nações Unidas pela Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, atribuiu ao patrimônio cultural intangível 179 um conceito ligado à transferência temporal de identidade, como sendo aquele que compreende “as expressões de vida e tradições que comunidade, grupos e indivíduos em todas 177 É importante esclarecer que não se considera o rol trazido pelo artigo ora transcrito como sendo de natureza taxativa, mas antes exemplificativa. 178 Rodrigues, 2005, p. 545. 179 Saliente-se que outra denominação cabível ao patrimônio intangível é patrimônio imaterial, ou bens imateriais. 69 as partes do mundo recebem de seus ancestrais e passam seus conhecimentos a seus descendentes”180: É amplamente reconhecida a importância de promover e proteger a memória e as manifestações culturais representadas, em todo o mundo, por monumentos, sítios históricos e paisagens culturais. Mas não só de aspectos físicos se constitui a cultura de um povo. Há muito mais, contido nas tradições, no folclore, nos saberes, nas línguas, nas festas e em diversos outros aspectos e manifestações, transmitidos oral ou gestualmente, recriados coletivamente e modificados ao longo do tempo. A essa porção intangível da herança 181 cultural dos povos, dá-se o nome de patrimônio cultural imaterial. A identidade pode ser tomada pelas peculiaridades de um determinado grupo de pessoas, por sua memória e pelos elementos caracterizadores de seus membros perante outras identidades. O patrimônio cultural dotado de significação para esta sociedade recebe estas mesmas características identitárias e, portanto, passa a ser merecedor das tutelas protetivas, a fim de que esta mesma identidade não se perca. 2.1.2 Identidade Perpassando estes apontamentos iniciais sobre cultura e patrimônio cultural, nota-se neles a reiteração do termo “identidade”, de forma que se torna possível afirmar que não há como analisar separadamente uma da outra – afinal, as idéias de cultura e identidade estão invariavelmente conectadas. Stuart Hall182 adota inicialmente três conceitos de identidade, mais ou menos cronologicamente consecutivos: o sujeito do iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. O primeiro conceito estava centrado em uma pessoa unificada, dotada das “capacidades da razão, consciência e ação”, cujo centro essencial era a própria existência individual. 180 Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura - UNESCO. Disponível em: <http://www.brasilia.unesco.org/areas/cultura/areastematicas/patrimonioimaterial/ patrmimaterial>. Acesso em: 02 jul. 2008. 181 Ibidem. 182 HALL, Stuart. A questão da identidade cultural. 2. ed. Campinas: IFCH/UNICAMP, 1998, p. 10-12. 70 O conceito de identidade do sujeito sociológico, por sua vez, afasta o núcleo do sujeito do próprio self, eis que o homem já não era considerado autônomo e auto-suficiente, mas “formado em relação a ‘outros significativos’, que mediavam o sujeito de valores, significados e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitavam”. Assim, a concepção de identidade evoluiu do conceito do self para a interação do próprio self com a sociedade183, onde o “eu real” é moldado em conformidade com o tempo e com o permanente diálogo entre os mundos culturais externos e com as outras identidades que o compõe. O sujeito sociológico estabelece uma ponte entre os mundos público e privado: O fato de projetarmos “nós mesmos” nestas identidades culturais, ao mesmo tempo internalizando seus significados e valores, fazendo-os “parte de nós mesmos”, auxilia-nos a alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade desta forma costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito na estrutura. Ela estabiliza tanto os sujeitos quando os mundos que eles habitam, tornando os dois 184 reciprocamente mais unificados e previsíveis. Para Hall, trata-se de uma evolução conceitual, onde antes o sujeito era estático, fundado em si mesmo, passando a mutar para uma composição de muitas outras identidades: “o próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais aberto, variável e problemático”, pois as identidades externas que auxiliam a moldar este novo “eu” podem ser, inclusive, contraditórias185. Sobre o sujeito sociológico, Barreto refere que [...] em épocas pretéritas, antes da constituição de estados nacionais ou mesmo em sociedades do presente ainda não incorporadas ao processo da (chamada) civilização ocidental, a questão da identidade está bastante clara. As pessoas pertencem a um clã, a uma tribo, à classe dos servos ou à uma casta. A pessoa nasce, vive e morre tendo a certeza de qual é o seu grupo de pertença. Corresponde a essa situação a visão de identidade como algo essencial e fixo, uma característica humana imutável. Na modernidade, a identidade passa a ser mais flexível, sujeita a mudanças e inovações e depende em grande parte da relação com os outros. A identidade manifesta-se na pertença a determinados 183 Concepção sociológica clássica apresentada por Mead e Cooley, citados por Hall, 1998, p. 10. 184 Hall, 1998, p. 11. 185 Ibidem, p. 11. 71 grupos (religiosos, políticos) ou a papéis (ser mãe, ser professor). As pessoas passam a perceber que a identidade é uma construção 186 social e que pode ser mudada. É neste ínterim que, para Hall, o conceito evolui para um terceiro nível, ou seja, o de sujeito pós-moderno, “isento de identidade fixa, permanente ou essencial”, ou seja, a identidade passou a ser “formada e transformada continuamente em relação às maneiras pelas quais somos representados e tratados nos sistemas culturais que nos circundam”187. Se diferencia do segundo conceito (sujeito social), por reconhecer que o sujeito pode assumir diversas identidades, de acordo com o local e o momento. Dentro de nós coexistem identidades contraditórias, pressionando em direções diversas, de modo que nossas identificações estão sendo continuamente mudadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada do nascimento à morte, é somente porque construímos uma história confortante ou uma “narrativa do self” sobre nós mesmos. A identidade totalmente segura, completa, unificada e coerente é uma fantasia. Ao contrário, à medida que os sistemas de significado e de representação cultural multiplicam-se, confrontamo-nos com uma multiplicidade confusa e fluida de identidade possíveis, podendo nos identificar com cada uma delas – 188 ao menos temporariamente. Nota-se, portanto, que o conceito de identidade acompanha a evolução da própria sociedade, uma vez reconhecida a mutabilidade da formação do self por sua integração com o meio. Neste compasso, adentra-se na delicada análise do mundo contemporâneo, cada vez mais composto de antagonismos sociais em meio à influência de identidades externas, diante da rapidez de informação (e formação) de novas identidades, sendo que se assiste a visível risco de fragmentação. As mudanças desta nova estrutura social globalizada têm acarretado nova introspecção na forma que o homem externaliza sua própria identidade. Em contra-partida a esta crescente introspecção, o mesmo movimento globalizante tem provocado uma necessidade intrínseca de re-localização do indivíduo, de auto-afirmação identitária, de necessidade de pertencimento a 186 Barreto, 2004, p. 45. Hall, 1998, p. 11. 188 Ibidem, p. 12. 187 72 uma estrutura que possui tradição, história, e que ajudou a moldar até então, de forma mais ou menos direta, seus costumes, crenças e atitudes. Estas novas disposições sociopolíticas tem provocado uma preocupação crescente com a reafirmação das identidades e, em decorrência disto, do renascimento do espaço local, cuja particularidade cultural não é algo que possa ser facilmente transcendida e substituída por uma nova cultura global. Bauman lembra que esta crise se estabelece porque, ao mesmo tempo, aumenta a consciência de que “o ‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não tem a solidez de uma rocha, não são garantidos por toda uma vida, são bastante negociáveis e renegociáveis”189. Afinal, “a globalização está, na verdade, também associada a novas dinâmicas de re-localização” 190 e a invariáveis redefinições culturais. Hall argumenta que hoje não há como se analisar a identidade apenas por seu aspecto local, pois ela está em constante contato e remodelação com as demais identidades mundiais. No entanto, o que ele propõe é uma releitura do que chama de “nexo global-local”, o que não significa apenas o “renascimento das culturas locais”, mas um “processo de descentralização cultural e por um ressurgimento de tradições, linguagem e modos de vida limitados localmente”191. O conceito de identidade acompanha a evolução da própria sociedade, uma vez reconhecida a mutabilidade da formação do self (imutável no iluminismo) por sua integração com o meio. Neste compasso, adentra-se na delicada análise da sociedade contemporânea, cada vez mais complexa. O sujeito passa a ter [...] múltiplas identidades, que coexistem e se manifestam em razão de fatores diversos, externos ou internos a ela; é parte integrante de uma sociedade, em grande medida determinado e moldado por sua história e por seu inconsciente; não tem um comportamento nem uma postura sempre iguais perante a vida e em todas as circunstâncias. A matriz contemporânea é a de um sujeito que reage 189 BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 17. 190 Hall, 1998, p. 82-83. 191 Ibidem, p. 84. 73 e se comporta de formas diferentes em circunstâncias e grupos diferentes. Para alguns teóricos, a identidade está desaparecendo, dissolvendo-se numa sociedade de massas mediatizada, 192 racionalizada e burocratizada . A discussão sobre a identidade ainda flui sob duas principais vertentes: a essencialista e a não essencialista. A primeira, define a identidade como “algo inerte a um grupo, a uma comunidade. Algo pronto, ancestral, atávico. Uma condição pura, cristalina”193. A segunda vertente, o não essencialismo, pode ser explicada pelas lições de Silva, para quem a identidade não é uma essência, um dado ou um fato natural ou cultural e também não pode ser fixa ou homogênea, mas sim uma construção social, um “ato performativo”194. As idéias de Bauman sobre a identidade seguem o fluxo não essencialista, ao afirmar que a identidade somente pode ser revelada como “algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, ‘um objetivo’; uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais”. Sua preocupação com as questões identitárias está fortemente atrelada à análise sociológica da globalização e de suas consequências. Ambas as vertentes são imprescindíveis para a construção da presente pesquisa, pois as principais discussões sobre a identidade gaúcha se baseiam especificamente nesta divergência. Como poderá se verificar ao longo do texto, como corrente majoritária aplicada ao tradicionalismo gaúcho tem-se a não essencialista (salvo alegações antitradicionalistas), culminando pela atribuição, à identidade gaúcha, de um perfil constantemente mutável de acordo com a própria sociedade que nele se enquadra, literalmente se “identifica”, como se verá a seguir. 192 Barreto, 2004, p. 47. NECCHI, Vitor. Dissonância no pampa – a construção identitária do gaúcho no filme Anahy de las Missiones. In. FELLIPI, Ângela; NECCHI, Vitor (org.). Mídia e identidade gaúcha. S Cruz do Sul: Edunisc, 1009, p. 14. 194 SILVA. Tomaz Tadeu da. A reprodução social da identidade e da diferença. In _____ (org.). Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 96. 193 74 2.2 A Globalização da cultura e o risco de fragmentação Apropriamo-nos do conceito de Bauman, para definir a sociedade contemporânea como uma “sociedade líquida”195, diante de sua característica de formação e reformação constante, de acordo com as alterações de cada período. Bauman compara o contexto contemporâneo à questão do movimento, que ocorre aleatoriamente às vontades individuais: Todos nós estamos, a contragosto, por desígnio ou à revelia, em movimento. Estamos em movimento mesmo que fisicamente estejamos imóveis: a imobilidade não é uma opção realista num mundo em permanente mudança. E no entanto os efeitos dessa nova condição são radicalmente desiguais. Alguns de nós tornam-se verdadeiramente “globais”; alguns se fixam na sua “localidade” – transe que não é nem agradável nem suportável num mundo em que 196 os “globais” dão o tom e fazem as regras do jogo da vida . O processo de globalização pode ser compreendido através da percepção de que um mundo sob inquestionável aumento de contato e diálogo entre diferentes nações, culturas e civilizações. A globalização é um novo processo dialógico, capaz de alterar a idiossincrasia humana, uma vez coloca diferentes perspectivas em confronto. Ao contrário do que supor uma conformação social com este advento - e o estabelecimento de uma cultura homogeneizante-, a principal perspectiva que se forma é a do conflito, e não do consenso. Featherstone se preocupa com o contexto da globalização e da fragmentação cultural várias de seus escritos, mas principalmente em O desmanche da cultura e em Cultura global. A primeira obra citada apresenta, de início, um reflexão inquietante sobre a citação de Yeats, de que “as coisas se desintegram; o centro não consegue manter-se”, para ressaltar a idéia de fragmentação e deslocamento cultural, no sentido de que “a cultura já não pode mais proporcionar uma explicação adequada do mundo que nos permita construir ou ordenar nossas 195 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro : J. Zahar, 2001. Idem. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 08. 196 75 vidas”. O autor levanta o questionamento sobre a forma pela qual o processo de globalização “vem ajudando a solapar as pretensas integridade e unidade das sociedades” 197. O processo de globalização sugere simultaneamente duas imagens de cultura. A primeira imagem pressupõe a extensão de uma determinada cultura até seu limite, o globo. As culturas heterogêneas tornam-se incorporadas e integradas a uma cultura dominante, que acaba por cobrir o mundo inteiro. A segunda imagem aponta para a compreensão das culturas.. Coisas que eram mantidas separadas são, agora, colocadas em contato e justaposição. As culturas se Acumulam umas sobre as outras, se empilham, sem princípios óbvios de organização. Existe cultura demais com que se lidar e para organizar através de sistemas coerentes de crença, meios de orientação e conhecimento prático. A primeira imagem sugere um processo de conquista e unificação do espaço global. O mundo transforma-se num espaço singular, domesticado um lugar onde todos tornam-se assimilados a uma cultura comum. [...] Talvez seja preferível considerar uma cultura global no primeiro sentido, como uma forma, espaço ou campo, tornando possível através de meios aperfeiçoados de comunicação, no qual diferentes culturas se encontram e colidem. Isso aponta diretamente para o segundo aspecto da globalização da cultura e, ao mesmo tempo, 198 sugere maior movimento e complexidade cultural . A globalização, para Featherstone, assim como os demais pesquisadores do tema, iniciou-se através da expansão da atividade econômica, “a ponto de as formas comuns de produção industrial, bens, comportamentos de mercado, comércio e consumo terem se tornado generalizadas no mundo inteiro”. A consequência natural foi o entrelaçamento entre as diversas culturas mundiais, transcendendo de uma consciência de que “a identidade era vista como algo fixo”, para um “maior reconhecimento de que as pessoas podem viver felizes com múltiplas identidades”199. Ao mesmo tempo em que emerge uma cultura global unificada, [...] existe uma vigorosa tendência a que esse processo de globalização propicie um estágio para as diferenças globais”, não só para abrir uma “vitrina mundial das culturas”, na qual os exemplos do exótico distante sejam trazidos diretamente para o lar, mas para 197 FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura: globalização, pós-modernismo e identidade. São Paulo: Nobel, 1997, p. 15-16. Nesta obra, o autor define pós modernismo como sendo tão somente uma “modificação que se liga a uma época ou um novo estágio do capitalismo” (p. 16.) 198 Ibidem, p. 21-22. 199 Featherstone, 1997, p. 23- 26 passim. 76 proporcionar um campo para um entrechoque mais discordante das 200 culturas . Assim, ao passo em que a globalização sai da esfera econômica e se infiltra na questão cultural, a sensação de insegurança e não pertencimento provoca um efeito inverso, uma vontade de ruptura com este contexto social com tendências à homogeneização. Em todos os lugares, cada vez mais, as pessoas sentem a necessidade de crer e de se inserir em locais de pertencimento. Assim, à medida que cresce o global, também amplia-se o sentimento local. As razões desse paradoxo são múltiplas, entre as quais mencionaremos a seguinte: a globalização, sinônimo de mercantilização do mundo, introduz localmente um tipo de incerteza e de vertigem na mente humana. Uma das maneiras de reagir a isso consiste na busca da certeza de que somente a proximidade poderá 201 garantir, até certo ponto, o sentimento de pertencer . O que Zaoual pretende dizer com as linhas acima, é que inúmeros movimentos de resistência que se vêem ultimamente são reflexos desta incerteza provocada pela globalização, estando entre eles a retomada da espiritualidade, a difusão ecológica, a adesão a movimentos culturais ou religiosos, o que significaria um início de “falência do economicismo”. Desta forma, o processo que hoje aparenta se instaurar, de homogeneidade e fragmentação, pode dar espaço a um futuro com epistemologia não uniforme, mas multiforme, que se inicia em meio à “tensão entre a ascensão da mundialização das economias, de um lado, e a volta às identidades e aos territórios, de outro”202. Sobre a cultura global, Featherstone lembra ser um equívoco concebê-la como um “enfraquecimento comprometedor da soberania dos estados nacionais” culminando “num estado mundial que produz homogeneidade e integração cultural”203.“De algum modo, é preordenado que “o processo de globalização leva a uma sensibilidade cada vez maior às diferenças”, mas processo de homogeneização da cultura deve ser entendido como “a necessidade de ignorar ou na melhor das hipóteses, de refinar, sintetizar e 200 Featherstone, 1997, p. 30. ZAOUAL, Hassan. Globalização e diversidade cultural. São Paulo: Cortez, 2003, p. 21. 202 Ibidem, 21-27 passim. 203 Featherstone, 1998, p. 07-08. 201 77 misturar as diferenças locais”, num “modelo integrado, nada problemático, de valores comuns”. Featherstone reconhece a possibilidade de que “os resultados da disputa pela eliminação das lutas de poder entre as nações desembocaria no predomínio de uma única nação, a qual estaria na posição de procurar desenvolver uma cultura global comum”, mas considera que isso não importaria necessariamente no êxito de uma homogeneização cultural 204. Já sobre a cultura local, esta se apresenta como oposto ao global205: Emprega-se frequentemente esse conceito para se fazer referência à cultura de um espaço relativamente pequeno, limitado, no qual os indivíduos que ali vivem tem relacionamentos diários, cara a cara. [...] O estoque comum de conhecimentos à disposição no que se refere ao grupo de pessoas que são os habitantes e o entorno físico (organização do espaço, construções, natureza, etc.), é relativamente fixo, segundo se pressupõe, isto é, trata-se de algo que persistiu ao logo do tempo e pode incorporar rituais, símbolos e cerimônias que ligam as pessoas a um lugar a um sentido comum do passado. Tal senso de pertença, as experiências comuns sedimentadas e as formas culturais que são associadas a um lugar, 206 são fundamentais para o conceito de uma cultura local . De acordo com Benincá, “o conhecimento construído no cotidiano cultural é fruto da relação experiencial entre a consciência e o meio ambiente cultural”. Isso importa dizer que o sentido deste conhecimento só pode ser analisado se confrontado com o cotidiano no qual ele foi construído, que passa a ser aceito como natural; em contrapartida, as ações e situações que fugirem deste cotidiano serão estranhas ao senso comum de uma cultura determinada207. Aplicando este conceito ao sentido amplo da cultura global, ela surge como uma “terceira cultura”, ou seja, um “conjunto de práticas, conhecimentos, convenções e estilos de vida” que se desenvolveram independentemente da idéia territorial, principalmente não ligados aos EstadosNação, nem em um espaço finito delimitado pelo globo terrestre, “no qual todos os Estados-Nação e coletividades serão necessariamente atraídos”208. 204 Featherstone, 1997, p. 124-128 passim. O conceito de cultura global deve ser analisado com relativização, se considerado o planeta como uma localidade, o que sugeriria a confusão dos conceitos. Ibidem, p. 131. 206 Ibidem, p. 131. 207 BENINCÁ, Elli. O senso comum e suas articulações de resistência aos processos de transformação. In. ANDREOLA, B.A. et al. Educação, cultura e resistência. Santa Maria: Pallotti/ITEPA/EST, 2002, p68-69. 208 Feratherstone, op. cit. p. 158. 205 78 Desta forma, conceitos como identidade, cultura e mesmo senso comum são necessariamente variáveis, nunca absolutos. A resistência à dissolução da identidade do sujeito somente pode se concretizar à medida em que a concepção do mundo que a caracteriza seja forte o suficiente para que se evite a fragmentação, para que haja interesse suficiente neste sentido, o que se inicia quando o cotidiano cultural percebe a aproximação de uma ação transformadora. 2.2.1 Integração multicultural e fragmentação De acordo com Featherstone, podem ser analisadas primeiramente mas não exaustivamente-, seis processos de integração multicultural, a seguir: a) imersão em uma cultura local há muito tempo estabelecida, com visível resistência aos fluxos culturais; b) as comunidades que lidam com refugiados da globalização atraídos pelo ideal de uma vida mais simples “e para um sentimento de ‘lar’”209; c) as comunidades que buscam redescobrir a etnicidade e as culturas regionais, mas que procuram “conceder maior reconhecimento à diversidade regional e local e ao muticulturalismo”, usualmente se mostrando como uma “máscara” da identidade local - ou voltada ao turismo ou às lutas com os rivais locais210 d) os viajantes ou expatriados, que levam consigo as suas culturas locais, limitando “os perigos dos encontros interculturais a experiências nas quais o estilo adotado é o da ‘reserva’; e) pessoas de orientação cosmopolita, sobre as quais a afiliação local é limitada – em geral, pessoas que “travam e desenvolvem um conceito prático, operacional” com diversas culturas locais; f) os intelectuais cosmopolitas e intermediários culturais211, pessoas que se integram em terceiras culturas com a finalidade de 209 Featherstone, 1997, p. 137. Como por exemplo os havaianos que retornam às origens e passam a ser considerados pela comunidade local, como “pardos por fora e brancos por dentro”. 210 Ibidem, p. 137. Como os escoceses em confronto com os ingleses. O resultado são “reencenações rituais” da cultura imaginada. 211 Ibidem, p. 138. A exemplo dos estudiosos que passam a conviver com determinada cultura a fim de analisa-las do ponto de vista do nativo, a fim de repassar estas informações à platéias cada vez maiores, em geral formadas pela classe média, ansiosa por experiências similares, ou pela classe acadêmica 79 reapresentar seu “exotismo”, seus “lugares surpreendentes” e as diferentes tradições a platéias que se recusam a ter o contato direto com tais culturas212. Estas ações transformadoras podem se dar de forma prejudicial ou ao à identidade, pois, conforme Benincá, “o senso comum encontra vários recursos para resistir à pressão que vem dos contextos sociais e que requerem sua transformação”. Para o autor, o indivíduo que possui uma concepção do mundo não-consciente se permite conviver com habilidade, em cotidianos culturais diferenciados e contraditórios. Assim, quando as influências externas, principalmente as prazerosas, o inconsciente incorpora as novas práticas, exemplificando com a rápida adesão às facilidades tecnológicas, por sua significação no cotidiano cultural. Em contraponto, há possibilidade de que os novos sentidos sejam contraditórios entre si e com os sentidos já existentes, criando conflitos de identidade213. Tentar trabalhar com todos estes conceitos, até se chegar no risco da fragmentação do sujeito é tarefa extremamente delicada, devendo ter-se em mente que o presente trabalho longe está de esgotar a matéria – se é que algum trabalho, diante da complexidade do assunto, se atreve a tanto. Uma forma de simplificar os argumentos é a adoção da perspectiva adotada por Hall – que o próprio autor define como simplista - , de que “as identidades eram completamente unificadas e coerentes, e agora tornaram-se totalmente deslocadas”214. Considerando que neste conceito a cultura existe apenas no plural, poder-se-ia dizer que a idéia de uma cultura global significaria total fragmentação do sujeito, através da perda de sua identidade, de sua própria definição enquanto ser social. Tais conflitos, dúvidas e ansiedades são os geradores dos “motivos pelos quais o ‘localismo’ ou o desejo de permanecer em uma localidade delimitada ou retornar a um sentimento de ‘lar’ tornam-se 212 Featherstone, 1997, p. 137-139 passim. Benincá, 2002, p. 73-74. 214 Hall, 1998, p. 19. 213 80 um tema importante”215. É a dificuldade em lidar com níveis ascendentes de complexidade cultural que desperta este desejo que “volta ao lar”, independentemente deste lar “ser imaginário ou real, ou de ser temporário e sincretizado ou simulado, ou de manifestar-se no fascínio da sensação de pertencer, de afiliação e comunidade atribuída aos lares dos outros” 216. É onde se apresenta a vontade de se preservar a identidade, como forma de evitar as transformações estruturais decorrentes da influência das culturas externas. 2.2.2 Cultura e identidade nacional Embora não seja o objeto principal deste estudo, considerando a recorrente conexão entre os conceitos de cultura e o de nacionalidade, cabe fazer alguns apontamentos sobre identidade nacional. O “nacional” sempre se relacionou com os aspectos culturais de um determinado povo: “Seus elementos étnicos, costumes, sentimentos de comunidade, quando comuns, constituem requisitos necessários à consubstanciação dos contornos determinativos da nacionalidade”, o que não significa necessariamente, um estado de estagnação diante do intercâmbio cultural. Isto significa dizer que um “Estado sem personalidade cultural própria, sem identidade nacional, é organismo institucional carente de identificação social, inapropriado, portanto, às necessidades e clamores da nação que o legitima” 217. Afinal, a criação e a manutenção da cultura e a busca da autonomia política são características consubstanciais da nação, uma vez que “a asserção de que o estado como unidade política deveria coincidir com a nação como unidade cultural é a expressão mais óbvia e mais universal de nacionalismo”218. O homem possui uma necessidade intrínseca de “primeiramente identificar-se a si próprio como algo maior”, seja um grupo, classe ou nação, 215 Featherstone, 1997, p. 144. FEATHERSTONE, Mike. Localismo, globalismo e identidade cultural. In. DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Sociedade e Estado. N. 1, (jan. jun). Brasília: O Departamento, 1996, p.10 . 217 Almeida Filho, 1998, p. 23-24. 218 ARNASON, Johann P. Nacionalismo, globalização e modernidade. In. Featherstone, 1998, p. 226. 216 81 “de algum arranjo ao qual ele pode não associar nenhum nome, mas que ele instintivamente reconhece como um lar”219. Esta necessidade de associação indica uma espécie de construção e valorização de identidades coerentes, de mutação do movimento individualista para o de coletividade e de pertencimento a esta coletividade. O cada vez mais fluente intercâmbio entre as identidades provoca desconfortos, mesmo que inconscientes, desenvolvendo esta necessidade de reaproximação do homem ao convívio em uma sociedade cujas características reconhece como suas. A questão é assim definida por Featherstone: O problema de tentar viver com múltiplas identidades ajuda a gerar infindas discussões sobre o processo de encontrar ou construir uma identidade coerente [...]. No entanto, em contraste com aqueles argumentos que presumem que a lógica da modernidade é produzir um individualismo estreito crescente, preocupação narcisista com a identidade individual, comum na década de 1970, hoje deparamos com argumentos que enfatizam a busca de uma forte identidade coletiva, alguma nova forma de comunidade, nas sociedades 220 modernas . De acordo com Almeida Filho, a humanidade tornou-se individualista por exigência de sua evolução, quando o progresso virou sinônimo de aprimoramento, provocando a organização da sociedade e de sua hierarquia societária. Assim, a “tendência do engrandecimento individual incorporou-se à personalidade humana, […] tornou-se desmedida e atingiu o equilíbrio da sociedade” e, como consequência, as nações passaram a incorporar uma ideologia de dominação. Neste ínterim, a identidade cultural pode contribuir de duas formas: ou como redutor das proporções do individualismo, ou como fomentadora deste – a identidade cultural “tem o condão de unir os homens em torno de uma nação, ou deixá-los obcecados pela própria individualidade”221. A definição do termo “nação” também é passível de algumas considerações; de um lado Williams, citado por Featherstone, afirma que o termo “nação” está radicalmente ligado a “nativo”, à origem em uma comunidade local, e associá-lo à idéia de Estado-nação é algo “totalmente 219 Hall, 1998, p. 37. Featherstone, 1997, p. 165. 221 Almeida Filho, 1998, p. 34-35 passim. 220 82 artificial”. Em contraponto, Anderson associa ambos os termos e afirma que uma nação necessariamente deve ser considerada como uma “comunidade imaginada”, o que sugere o sentido de pertencimento a um espaço geograficamente delimitado, “sedimentado com sentimentos simbólicos”, capazes de representar um laço também simbólico “que supera e incorpora as várias aflições locais que as pessoas tem”222. Ortiz segue a linha de Andreson, associando ambos os termos, porém, questionando mais profundamente a resignifcação do “espaço”. Define nação como “formação social singular, estrutura capaz de soldar os indivíduos e os seus destinos, no contexto de um território específico”, e no contexto globalizado as discussões sobre o declínio do Estado-nação tem implicações que ultrapassam o terreno político, pois “esse processo de integração corresponde a uma profunda transformação da idéia de espaço”, sobressaltando-se daí a importância da cultura como geradora do vínculo entre os homens, “o elo que organicamente articula a ‘solidariedade’”, podendo-se afirmar que a identidade nacional precede a própria a consolidação na nação223. [...] o movimento de globalização não se caracteriza por ser simplesmente uma dimensão metanacional, ele nada tem de “supra” ou de “inter” relacional. Trata-se de um processo social que atravessa o Estado-nação redefinindo-o inteiramente. Lembro que mundialização da cultura (e tenho insistido nesse ponto) implica a 224 transformação da própria categoria de espaço Para Ortiz, “uma das características do Estado-nação é que ele constitui um arcabouço para a organização e a administração da política”, um verdadeiro “lugar de poder” que acaba sendo colocado em risco diante da globalização, uma vez que “parte substantiva deste poder deixa de ser articulado no interior do Estado-nação”, a exemplo da incapacidade de os Estados-nação poder controlar o fluxo de capital financeiro diante do funcionamento do mercado internacional. 222 Featherstone. 1996, p. 16-17 passim. ORTIZ, Renato. Anotações sobre a mundialização e a questão nacional. In. DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Sociedade e Estado. N. 1, (jan. jun). Brasília: O Departamento, 1996, p. 44-48 passim. 224 ORTIZ, Renato. Mundialização: saberes e crenças. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 82. 223 83 Bertussi utiliza as alegações de Oliven, para traduzir que as identidades locais, especificamente no Brasil, devem ser encaradas como reação a uma homogeneização cultural, salientando as diferenças culturais225, no sentido de que retratam um espírito nacionalista na luta contra a massificação cultural. Ao analisar a obra de Oliven, seus apontamentos sugerem que a questão do renascimento da tradição e do sentimento nacional surgem justamente em uma época em que o mundo é visto, cada vez mais como uma “aldeia global”, marcado-se aí o que o autor denomina de tensão entre autonomia e integração, dedicando um capítulo inteiro da obra a este fim: Uma das razões pelas quais a problemática da nação e da tradição permanece sendo extremamente atual num mundo que tende a se tornar uma “aldeia global” se deve ao fato de as pessoas continuarem a nascer num determinado país e região, a falar a sua língua, a adquirir seus costumes, a se identificar com seus símbolos e valores, a torcer por sua seleção nacional de desporte, a respeitar 226 sua bandeira e a morrer pela honra nacional. Mais uma vez reitera-se a importância da identidade pessoal e social, capaz de fortalecer o próprio sentimento nacionalista. Se a sociedade souber gerir os influxos culturais recorrentes de forma crítica e coerente, incorre em menor risco de fragmentação de sua unidade cultural. Nas palavras de Benincá, o sendo comum […] para preservar a identidade de cada indivíduo e do grupo cultural, articula-se em concepção do mundo para resistir às tentativas de transformação de sua estrutura. Opõe-se à reflexão procurando reduzi-la a um mero discurso, principalmente quando este não vem acompanhado de novos sentidos, aceita passivamente a introdução desses sentidos, aceitando submissamente a sua transformação. Como isso é feito de forma não consciente, portanto, de forma não crítica, sua ação continuará sendo espontânea, 227 propenso à ingenuidade e à fragmentação . Oliven recorda a preocupação de Machado de Assis, já no século XIX, sobre a questão da nacionalidade, ao retratar que um escritor, para ser considerado nacional, não deveria restringir-se a assuntos de cunho local, mas seria necessário pertencer-lhe certo “sentimento íntimo, que o torne homem de 225 BERTUSSI, Lisana. Tradição, modernidade, regionalidade. Caxias do Sul: EDUCS, 2009, p. 77. 226 Oliven, 2006, p. 35. 227 Benincá, 2002, p. 78. 84 seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”228. O movimento modernista de 1922, que em muito contribuiu para a projeção cultural do Brasil no cenário internacional, se apresenta como “divisor de águas” na ressignificação cultural brasileira em contexto mundial, mas principalmente se destaca como fomentador das discussões sobre a formação da identidade nacional, com Mário de Andrade, Drummond, Oswald de Andrade, todos preocupados, já no início do século XX, com o contato da cultura brasileira com os estrangeirismos229. A evolução deste embrião, preocupado com a cultura nacional, é o aumento de significação das culturas regionais - que dão aporte a à cultura nacional-, sendo que tal conceito evolui de uma visão negativa para uma visão positiva, ou seja, [...] antes era preciso demonstrar que o regionalismo não consistia em uma visão estreita do processo social, em qualquer de suas dimensões; hoje, a percepção das relações regionais é vista como um modo adequado de se entender como funciona, ou pode funcionar, o processo de mundialização de todas as relações 230 humanas” . Assim como o conceito de nacionalidade, o de regionalismo é uma construção, porquanto se trata de algo voltado à construção de uma identidade regional. Ambos os conceitos, que antes eram ligados basicamente ao espaço geográfico, sofrem crescentes descontinuidades, principalmente ao se conectar a outros espaços. O que ainda separa a todos são elementos comuns e socialmente determinados que os diferenciam e mantém a sensação de “interno e externo”, independente de fronteiras. Psicologicamente retrata uma unidade necessária ao ser humano, ao que se denomina de necessidade de “pertencimento”, de reconhecimento, de identificação com uma estrutura maior, para que seja possível uma definição do próprio sujeito, na modalidade “quem sou”. 228 ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Instinto de nacionalidade. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999, p. 18. 229 Oliven, 2006,, p. 41-42. 230 Pozenato, 2003, p. 149. 85 Através de uma cultura e uma identidade sólidas, o sujeito se identifica como “brasileiro” (identidade nacionalista), “gaúcho” (identidade regionalista), indepentementente do lugar em que se encontra, porque carrega estes aportes culturais consigo, para onde quer que vá. É o “ponto de referência”, citado por Lévi-Strauss, em que pese ser a identidade abstrata e sem existência real231. Desta forma, note-se que a análise da globalização e da cultura não se faz senão pela criação mental de uma rede de conceitos e idéias, todos interdependentes e mutáveis, de forma a se “tentar” compreender os fenômenos sociais decorrentes deste novo processo dialógico mundial. 2.3 A mundialização da cultura gaúcha A cultura gaúcha se manifesta através de sua tradição. O conceito de tradição, aqui, pode ser encarado como “a continuidade de um povo no tempo e no espaço”, como o “espírito de uma raça, uma força poderosa que empresta coesão e firmeza ao caráter de um povo”, referência esta de Moya, citado por Ornellas232. A identidade gaúcha se trata inicialmente de uma identidade local, e o enfraquecimento dos grupos locais e, consequentemente, de sua vida grupal, é uma das características contemporâneas. Conforme o MTG, cada centro de tradições, em si, constitui um grupo local e o espraiamento de novos centros provoca a confusão entre localismo e regionalismo, pois os indivíduos acabam por deter interesses e características comuns, formando uma “unidade psicológica de sociedade regional”233. Afinal, a preservação do regionalismo “antes de representar apego apaixonado às tradições da terra natal, constitui meio por intermédio do qual a integridade da identidade cultural pode ser mantida em relação às nocivas consequências da aculturação”234. 231 Lévi-Strauus, citado por ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 137. 232 Movimento Tradicionalista Gaúcho, 2006, p. 30-31. 233 Ibidem, p. 41. 234 Almeida Filho, 1998, p. 63. 86 Sob o mesmo prisma, à medida em que o tradicionalismo gaúcho avança fronteiras, tem-se o fenômeno que aqui se denomina “mundialização da cultura gaúcha”, dotando os tradicionalistas, dos quatro cantos do mundo, de uma unidade identitária detentora dos mesmos afetos, usos e costumes. A partir deste fenômeno, a idéia de “local”, “regional” ou “global’ se tornam ainda mais solúveis. 2.3.1 A discussão da cultura e da identidade gaúcha O tradicionalismo gaúcho sempre teve inimigos. Aliás, como afirma Lima, “se o MTG não tivesse adversários, deixaria de existir enquanto movimento, para se transformar numa instituição estabelecida, perdendo sua característica fundamental de movimento que é o de atingir adeptos”, citando Tourraine, ao referir que “os movimentos são o ‘lugar’ estratégico onde se renovam e explicitam os valores da sociedade”235. A principal afirmação dos antitradicionalistas é a de que o gauchismo é uma cultura inventada e que a realidade das classes privilegiadas e dominantes, principalmente da latifundiária, trazendo em seu bojo uma identidade irreal, “criada” pelos tradicionalistas. Um dos principais combatentes do gauchismo é o radialista catarinense, radicado em Santa Maria, Tau Golin. Golin sustenta que o movimento tradicionalista “articula-se através de uma ideologia necessariamente unificadora. Exploradores e explorados defendem os mesmos princípios na compreensão do mundo”236. Uma das autoras que dão suporte às alegações de Golin é Pesavento, para quem o tradicionalismo se trata de uma cultura à serviço da classe dominante: O Tradicionalismo é apenas um elemento na superestrutura. Porém, está correlacionado com todos os outros organismos de sustentação da classe dominante. [...] Nesse sentido, o trabalho intelectual e artístico “aprofunda” a coerência do mundo tradicionalista. No Rio Grande do Sul, no transcorrer de sua história, apreciou-se 235 236 Lima, 2004, p. 23-24. GOLIN, Tau. A ideologia do gauchismo.Porto Alegre: Tchê, 1983, p. 12. 87 profundamente a ascensão de intelectuais das classes inferiores, que, a serviço da elite, orientaram “justificativas” à sua visão de mundo. Mantendo essa tradição, os atuais expoentes do tradicionalismo, somam-se as tarefas conjugadas para sua dominação e hegemonia. “criadores da ideologia da classe dominante, os intelectuais atuam no seio da sociedade civil (partidos, igrejas, sindicatos, educação, atividades culturais), bem como no da sociedade política, como administradores, funcionários, militares, 237 políticos . À semelhantes alegações, defende Lamberty ser inegável que “todas as classes sociais atuam nos seios dos partidos, igrejas, sindicatos, atividades culturais, etc.”, o que é muito diferente de possuir uma ideologia políticopartidária238. Afinal, não há razão para supor que os tradicionalistas fossem somente os homens do campo, desfiliados totalmente da vida em sociedade e sem participação alguma nos rumos econômicos ou mesmo políticos do meio em que vivem. Sustenta Golin, a exemplo do que expressou Sérgius Gonzaga, que a massa camponesa “preencheu seu vácuo moral ‘com a moralidade dos poderosos: crença na honra, no direito à propriedade privada, etc’”, pesando sobre esta construção a capacidade de incorporação, pela oligarquia, das noções atinentes ao código moral dos gaúchos, como a valentia, a camaradagem, o respeito à palavra dada239. Desta forma, e a luta pela conquista do aparelho do Estado ocorreu tão somente pela classe dominante, o que pode ser facilmente demonstrado pelo nível cultural dos agentes envolvidos, os heróis republicanos240, sendo inegável que o tradicionalismo nasceu da elite: O que nos interessa perceber é que os tradicionalistas, sem exceção, na primeira fase, eram todos homens da classe dominante, ou seus subalternos comissários. [...] É exatamente nesse sentido que as atividades culturais, etc, dos clubes passam a ser um importante trabalho ideológico. Esse fetichismo do passado implicou, em tese, na supervalorização das coisas representativas dessa classe, notadamente de sua parte latifundiária, que era hegemônica. Vem daí que todas as coisas da estância eram acessórios fundamentais para a sociedade rio-grandense. Essa apologia inclui o 237 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Historiografia e ideologia. RS: cultura e ideologia. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980, p. 61. 238 Lamberty, 1989, p. 43. 239 Golin, 1983, p. 19-20 passim. 240 Ibidem, p. 29. 88 cavalo, o homem da estância, o laço, a boleadeira, o arreio, etc, a “raça forte e galharda”, capaz de “inúmeras epopéias de civismo e de 241 valor” . Nenhum tradicionalista parece se importar em negar as origens “elitizadas” do movimento. Contudo, reconhecem que da forma que se desenvolveu, e que pelos idéias que agrega, o movimento se traduziu verdadeira confraternização de classes sociais no interior dos CTGs, embasados em um pedestal principal: a família. Afinal, “a própria literatura gaúcha aborda uma temática realista, de dominantes e dominados, considerando a pessoa como pessoa, numa convivência social hospitaleira” 242. Neste sentido, Lamberty expõe que o tradicionalismo [...] é um movimento sadio, imparcial, alicerçado na moral, que conserva seus valores. Nele, a sociedade vive dentro de um espírito de liberdade, hospitalidade e respeito á propriedade. Num galpão de estância, verdadeiro clube campeiro, peões e patrões comungam de uma mesma festança. O patrão espera sua vez numa roda de 243 chimarrão . Em crítica a Golin, Lamberty o acusa de “desconhecer a força e a imparcialidade do Tradicionalismo”, e que é provável que deva ter encontrado dificuldades para abrir espaços no movimento, optando pela crítica. Lamberty diz não entender o combate ao ruralismo, indagando se é somente no meio rural que existem desajustes sociais, e se nas demais atividades também não existem dominados ou dominadores. Argumenta: “debitar ao Tradicionalismo os desajustes sociais não me parece correto. O Tradicionalismo quer o povo construindo seu próprio destino”244. Outra base das críticas de Golin é o constante desejo de aperfeiçoamento do movimento sem a identificação profunda de sua essência, o que só é possível por estar o tradicionalismo “solidificado em uma ontologia que estabelece cristalinamente sua natureza”. Para ele, o tradicionalismo é um evento “complexo” e “hegemônico alienante”, cuja tese unifica os homens, levando a crer a inexistência das classes sociais, integração esta que deve ser 241 Ibidem, p. 35-36 passim. Lamberty, 1989, p. 41. 243 Lamberty, 1989, p. 41-42. 244 Ibidem, p. 42-44. 242 89 compreendida como “dominação”. Afirma de forma significativa que o tradicionalismo “tem a função precípua de convencer a massa de mais de dois milhões de soldados que, na sociedade, onde cada um está aí é, inalteradamente, o seu lugar”245. Conforme Oliven, os debates sobre a identidade gaúcha se desenvolvem sobre um eixo “baseado num passado que teria existido na região pastoril da campanha no sudoeste do Rio Grande do Sul e na figura real ou idealizada do gaúcho”. O autor é claro na demonstração de que a figura idealizada do gaúcho exclui parte do território e parte da população, principalmente em relação à metade norte do Estado, região esta de notável desenvolvimento econômico e político, graças aos descendentes de alemães e italianos, e afirma que situação ainda pior seria a exclusão relacionada à pálida participação negra e indígena na formação da identidade gaúcha246. Assim, a discussão recai sobre a alegação de que a cultura gaúcha se compõe, na verdade, de idéias e de uma tradição inventada, porquanto se estabelece sobre a figura de mitos e reflete a realidade (histórica e econômica) de uma minoria social – como se somente a cultura gaúcha assim o fizesse. Os “questionadores” parecem esquecer-se de indagar a cultura norte-americana totalmente embasada em ícones históricos (de realidade altamente questionável), onde seus personagens ilustres são exemplos unicamente de virtude, beleza e coragem; ou ainda, sobre os costumes culturais do “Velho Continente”, totalmente moldada pela minoria abastada, como o famoso “Chá das Cinco” inglês ou o uso dos kilts escoceses. Também não se veem questionamentos na literatura sobre o uso do kipá pelos judeus, sempre sob a mesma alegação – de que se deve respeitar seus usos e costumes por fazerem parte de suas culturas. Novamente se pergunta: tais mitos, usos e costumes também não foram inventados? Também não se tornam “inadequados” aos olhos da “modernidade”? Afinal, que diferença (e que mal) há no chimarrão ou na 245 246 Golin, 1983, p. 51-56 passim. Oliven, 1992, p. 06. 90 bombacha, que também são reconhecidos mundialmente como parte da cultura de mais de 2 milhões de pessoas, que, independentemente da origem do termo, sentem-se orgulhosos da denominação de gaúchos? Morello retoma a discussão sobre a construção da “cultura” através da convalidação de seus sentidos, ou seja, de que não se pode falar em uma significação de cultura sem dizer o que não lhe convém. Isto significa dizer que a identificação dos padrões culturais é importante à medida que se pretende proteger a cultura da fragmentação, decorrente da influência do exótico, do desconhecido, do migrante. Assim, “no desdobramento das relações de sentido que entretecem o espaço de significação do cultural”, na atualidade, o espaço comum se apresenta como “ponto de conexão entre um conjunto de práticas político-sociais que sintomatiza limites para se discriminar o um e o outro”, criando definições que se convergem a um único desfecho, apontado pela autora como sendo a “restauração das identidades”247. Sobre a alegação de que a tradição gaúcha é uma “tradição inventada”, vale contemplar os argumentos de Hobsbawn sobre este fenômeno, uma vez que o autor reconhece que, não raras vezes, “’tradições’ que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas”, termo este utilizado em sentido amplo que inclui as tradições “realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas”, quando as que surgem de forma imperceptível, sem ser possível designar-lhes um ponto inicial, e se espalham com extrema rapidez248. Hobsbawn ainda diferencia tradição de costume, pois enquanto este é mutável, as características daquele são essencialmente a invariabilidade de seu passado (real ou forjado), que se reflete em práticas fixas, exemplificadas pela repetição: 247 MORELLO, Rosângela. Casas e centros de cultura e o movimento de sentido na cidade. In. ORLANDI, Eni Puccinelli. (org.). Cidade atravessada: os sentidos públicos no espaço urbano. Campinas: Pontes, 2001, p. 36. 248 HOBSBAWN, Eric. Introdução: a invenção das tradições. In. _____; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 09. 91 Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado historicamente apropriado. [...] Contudo, na medida em que há referência a um passado histórico, as tradições “inventadas” caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial. Em poucas palavras, elas são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase obrigatória. É o contraste entre as constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social que torna a “invenção da tradição” um assunto tão interessante para os estudiosos da história contemporânea. A “tradição”, neste sentido deve ser nitidamente diferenciada do “costume” vigente nas sociedades ditas “tradicionais”. O objetivo e a característica das tradições, inclusive as inventadas, é a invariabilidade. O passado real ou forjado a que elas se referem impõe práticas fixas (normalmente formalizadas), tais como a repetição. O “costume”, nas sociedades tradicionais, tem a dupla função de motor e volante. Não impede as inovações e pode mudar até certo ponto, embora evidentemente seja tolhido pela exigência de que deve parecer compatível ou idêntico ao precedente.[...] O “costume” não pode se dar ao luxo de ser invariável, porque a vida não é assim nem mesmo nas sociedades tradicionais. O direito comum ou consuetudinário ainda exibe esta combinação de flexibilidade implícita e comprometimento formal com o passado. Nesse aspecto, aliás, a diferença entre “tradição” e “costume” fica bem clara. “Costume” é o que fazem os juízes; “tradição” (no caso, tradição inventada) é a peruca, a toga e outros acessórios e rituais formais que cercam a substância, que é a ação do magistrado. [...] Provavelmente, não há lugar nem tempo investigados pelos historiadores onde não haja ocorrido a “invenção” de tradições neste 249 sentido. O autor complementa, afirmando esperar que a invenção das tradições ocorra com maior frequência, pois ocorre quando “uma transformação rápida da sociedade debilita ou destrói os padrões sociais para os quais as ‘velhas’ tradições foram feitas”, ou seja, “inventam-se as tradições quando ocorrem transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da demanda quanto da oferta”, e o estudo destas tradições “esclarece bastante as relações humanas com o passado e, por conseguinte, o próprio assunto e ofício do historiador”, já que “toda a tradição inventada, na medida do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal” 250. 249 250 Hobsbawn e Ranger, 1984, p. 09-10. Ibidem, p. 12-20, passim. 92 Suas palavras vão ao exato encontro das de Morello, para quem esta relação dos sujeitos acaba demandando uma “emergência dos espaços de práticas identitárias”, destacando-se o uso da mesma língua, “que se desloca de seu uso corriqueiro enquanto instrumento de comunicação ou de realização de atos pragmáticos”, bem como o uso de elementos históricos e simbólicos “que engendram o sujeito em seu modo de estar no mundo e habitar o espaço“251, o que acaba sendo deslocado para um lugar próprio, particularizado, mesmo que seja idealizado. Trazendo esta perspectiva à análise da sociedade contemporânea, a identificação do sujeito com uma determinada cultura, e o convívio neste espaço - não necessariamente os centros de tradições, mas a ligação à própria circunscrição territorial do Rio Grande do Sul, parece estar legando aporte suficiente ao enfrentamento da multiplicidade cultura. Divide-se o sujeito em meio à realidade globalizada e ao sentimento de pertencimento a uma cultura bem estruturada, ao “porto seguro” capaz de identificar seu lugar no mundo e sua própria identidade. A luta contra o gauchismo persevera desde seus primórdios. À mesma medida em que as camadas sociais tomavam gosto pelo movimento, a mídia que a ele se opunha não raras vezes passou a denegrir a imagem do gaúcho e as atividades tradicionalistas, atribuindo-lhes a idéia de grosseria, violência, falta de credibilidade e arrogância. Ou seja, nas exatas palavras de Lessa, a imprensa contrária ao gauchismo passou o agir “sub-repticiamente, aproveitando qualquer oportunidade para confirmar a barbárie, o banditismo ou a deseducação de um CTG” 252, suplantando-se principalmente nas páginas e noticiários policiais. Em outra de suas obras, Golin sustenta que, em se tratando de folclore, ou mesmo de tradição, não poderia o detalhe passar à regra, pretendendo referir-se ao movimento tradicionalista. “Ao folclore se deve reservar o lugar de elemento cultural, além de seu valor intrínseco”, argumenta, afirmando em 251 252 Morello, 2001, p. 36 – 37 passim. Lessa, 1985, p. 99. 93 seguida que “por mais que o empirismo das invernadas artísticas dos CTGs se esforcem, não passarão do resultado da imitação”. Exemplifica, desafiando a quem quer que seja, que leve um professor de dança para uma rua da praia, e tentar “encenar” uma coreografia com as cem primeiras pessoas que encontrar. “Espontaneamente (para ser folclore), quantas saberão?”, indaga. “Seria possível considerar folclore a exceção”?253. Note-se que o próprio Golin se contradiz. Busca desenfreadamente justificar que a tradição gaúcha está longe de ser a regra cultural sul-riograndense, por traduzir uma cultura de elite e perfis latifundiários originária da metade sul do Estado. Entretanto, relata, em palestra proferida em Erechim254, região noroeste rio-grandense, praticamente divisa com Santa Catarina: Exatamente no dia 20 de setembro, data máxima do gauchismo, estivemos em Erexim debatendo com os alunos do Centro de Ensino Superior. Era época envolta pelo ufanismo rio-grandense. Repartições públicas, bancos, etc., e até o mais humilde cidadão ostentava com orgulho sua pilcha. [...] Discutir o tradicionalismo e gauchismo em Erexim tem outra dimensão do que fazê-lo na fronteira, onde o cotidiano possui uma “coerência” nesse aspecto. Certamente suscita inquietude a questão: por que Erexim hoje comemora com tanta ênfase, como qualquer região de fronteira, a revolução Farroupilha quando sequer existia na época do decênio glorioso e poloneses e italianos ainda não sonhavam com estas paragens? Sabemos perfeitamente que o que podemos caracterizar como gaúcho típico não existe em Erexim. [...] A ideologia predominante produziu estragos que à primeira vista não 255 se percebe. [...] . Em outras partes de sua obra podem se verificar situações semelhantes. Apenas para exemplificar, colacionam-se seus comentários sobre o Acampamento Farroupilha, onde o próprio autor afirma a diversidade social e sua abrangência, mais uma vez não podendo dizer se tratar da exceção o tradicionalismo gaúcho. 253 GOLIN, Tau. Por baixo do poncho. Porto Alegre: Tchê, 1987, p. 26-29 passim. O autor preferiu escrever o nome da cidade como “Erexim”, palavra indígena que significa campo pequeno, e por sua origem, deveria ser escrito com “x”. O nome da cidade, entretanto, na obedece às regras da Comissão Ortográfica Brasileira, sendo corretamente escrito com “ch” desde a fundação da cidade. 255 Golin, op. cit., 41-42. 254 94 Para o Parque da Semana Crioula, acorre a população do centro urbano e das vilas, e se misturam pelos acampamentos, observando prosas e concursos. Há o assalariado, o biscateiro, o vendedor de bilhetes e pastéis, bolinhos, roscas e rapaduras. Há o “magrinho” curtindo o gauchismo. Há os sorriso, uns com dentes alvos, outros 256 com tocos e gengivas . Ao tecer estas questões, referindo-se à predominância do gauchismo às culturas decorrentes das origens genéticas dos sul-rio-grandenses, bem como com relação à abrangência geográfica e social do movimento, Golin fere as próprias alegações - de se tratar de “exceção” a tradição gaúcha, de afastar as questões folclóricas e tradicionalistas. O autor demonstra, por si só, por mais que não lhe agrade - ou que fuja à sua compreensão-, se tratar o tradicionalismo de uma realidade cultural, presente em todas as fronteiras do Estado e cada vez mais presente nos diversos recantos do Brasil e do mundo. A Uma vez afastada esta tentativa de afirmar se tratar o tradicionalismo de mera “exceção”, a análise retorna às primeiras discussões, que afirmam que a identidade gaúcha fora criada, não retratando o verdadeiro “gaúcho” dos pampas. Neste sentido, cabe retomar a discussão sobre a identidade, e relembrar que a matriz majoritária dos pesquisadores entende ser a identidade justamente um processo de construção social. Woodward, citado por Necchi, questiona a possibilidade de existir qualquer identidade, seja étnica, seja nacional, sem que seja reivindicada uma história que sirva de fase a uma identidade fixa257. Hall afirma, neste sentido, que “não podemos falar por muito tempo, com exatidão, sobre uma ‘experiência, uma identidade’, sem admitir a existência de seu outro lado – as rupturas e descontinuidades258”. Para finalizar, mais uma vez sem pretender esgotar a questão, fica aqui anotado o “desafio” proposto por Lessa, ao escrever o Sentido e Alcance do Tradicionalismo, ao escrever que a passagem do tempo mostraria o acerto ou 256 Golin, 1987, p. 69. Necchi, 2009, p. 15. 258 HALL, Stuart. Identidade cultural e diáspora. Revista ao Patrimônio Histórico Nacional, n 24, 2007, p. 69 257 95 não desta campanha cultural259. Ao menos por ora o tempo parece estar se traduzindo favorável à disseminação e à vivência do tradicionalismo gaúcho, não apenas em solo sul-rio-grandense, mas em todos os territórios atingidos por esta cultura. 2.3.2 O tradicionalismo gaúcho diante do risco da perda da identidade A preocupação com a fragilização da identidade gaúcha é tema recorrente entre os tradicionalistas. Lessa reconhece que “o globo terrestre não é, simplesmente, uma figura astronômica, mas um território onde os países se encontram atrelados, diferenciados, antagônicos”, sendo que “a globalização, de um lado, encanta, de outro, atemoriza”260. Todas as identidades – uma vez que se fundam na cultura e tradições dos povos-, permeiam riscos permanentes: diluir-se diante da perda de reconhecimento popular ou sucumbir diante das influências externas. Certo que as identidades não são estanques, ou seja, são moldadas conforme a evolução da sociedade, mas quando se fala em identidade tradicional a idéia de pontos expressivos, definidos como base fundante desta identidade, devem ser protegidos ante a possibilidade da fragmentação e da perda de seu sentido. Em contrapartida, quando o patrimônio cultural é coeso, a própria identidade é fortalecida. É nestes exatos termos que se manifesta Lessa: Quando a cultura de um determinado povo é invadida por novos hábitos e novas idéias, duas coisas podem acontecer. Se o patrimônio tradicional é coerente e forte, a sociedade somente tem a lucrar com o contato, pois sabe analisar, escolher e integrar em seu seio aqueles traços novos que realmente sejam benéficos. Se, porém, a cultura invadida não é predominante e forte, a confusão social é inevitável: idéias e hábitos incoerentes sufocam o núcleo central. Desnorteando os indivíduos e fazendo-os titubear entre as crenças e valores mais antagônicos. Crescendo nessas circunstâncias, a criança e o adolescente não são capazes de assumir, em seu espírito, qualquer expectativa clara de comportamento. E assim se originam, entre outros, os problemas de 261 delinquência juvenil . 259 LESSA, Barbosa. O sentido e o valor do tradicionalismo gaúcho. 1954. In. Página do gaúcho. [D.l.; s.d.]. Disponível em: <http://www.paginadogaucho.com.br/ctg/valor.htm>. Acesso em: 14 nov. 2009. 260 Lima, 2004, p. 132. 261 Lessa, 1985, p. 81. 96 As influências exteriores não são um evento contemporâneo. Ao contrário. Trata-se de uma ordem natural dos fatores sociais, pois conforme as diferentes identidades se relacionam entre si, sofrem mútuas influências, em maior ou menor escala. Estas influências também não se restringem a aspectos isolados, importando no risco desta mescla identitária nos usos, costumes, crenças, política, economia – todas de forma interligada. No ano de 1917, João Pinto da Silva, teceu importante (e efusivo) grito de alerta, diante do domínio norte-americano quanto às operações bancárias no cenário internacional: As manoplas gigantescas, de dedos de aço e ferro, dos plutocratas do Norte, hoje encerram inúmeros títulos de nossas dívidas. Surdamente, em torno de nós, dia-a-dia cresce uma força estranha que debilita a nossa economia. O grande perigo, para a manutenção do espírito latino, não virá sob forma dramática de uma invasão militar, duma absorção por meio de esquadras e de exércitos: virá, incruentemente, por nosso próprio intermédio, se nos deixarmos seduzir pela civilização norte-americana, se a copiarmos em todos os detalhes. Evitemos o predomínio entre nós do materialismo absoluto. Bastará que nos esforcemos no sentido de conservar os nossos traços distintivos, as nossas linhas características, como raça 262 e como Estado . Entre os riscos “declarados” à cultura gaúcha, destaca-se o período seguinte ao final de Segunda Guerra Mundial, com a forte influência dos costumes norte-americanos. Os Estados Unidos haviam virado mania mundial – Hollywood e rock’n roll tomaram conta das cidades e dos campos. A sociedade sul-rio-grandense, que já negava as próprias tradições e costumes, através da noção pré-concebida que ligava a idéia de “tradição” aos costumes europeus, passou a ligar o conceito de modernidade à América do Norte, sendo invadida por mais uma ideologia alienígena. É justamente nesta época que esta mesma sociedade foi surpreendida com a iniciativa dos adolescentes do Grêmio Estudantil Júlio de Castilhos, em um movimento contrário à alienação cultural que estava se estabelecendo, os quais, conforme Oliven, procuravam a própria identidade gaúcha, combatendo de forma declarada a descaracterização cultural263. 262 263 SILVA, João Pinto da. Vultos do meu caminho. Porto Alegre: Globo, 1918, p. 15. Movimento Tradicionalista Gaúcho, 2006, p. 10. 97 Sobre a insegurança instaurada com as mudanças sociais e o cada vez mais comum contato entre as culturas, em 1954, Lessa se manifestou de forma bastante objetiva, em sua histórica tese O sentido e o valor do tradicionalismo gaúcho, no sentido de que o enfraquecimento do núcleo cultural é um risco incipiente: Pois bem. Devido ao surto surpreendente do maquinismo em nossos dias, bem como da facilidade de intercâmbio cultural entre os mais diversos povos, observa-se que o núcleo das culturas locais ou regionais vai se reduzindo gradativamente, a ponto de se ver sufocado pela zona das Alternativas. E a fluidez naturalmente se acentua, à medida que as sociedades mantêm novos contatos com traços culturais diferentes ou antagônicos, introduzidos por viajantes ou imigrantes, ou difundidos por livros, imprensa, cinema, etc. Nossa civilização, antes alicerçada num núcleo sólido e coerente, transformou-se numa variedade de Alternativas, entre as quais o indivíduo tem que escolher. Sem ampla comunidade de hábitos e de idéias, porém, os indivíduos não reagem com unidade a certos estímulos, nem podem cooperar eficientemente. Daí os conflitos de ordem moral que afligem o indivíduo, fazendo atarantar-se sem saber quais as opiniões e os valores que merecem acatamento.[...] O fundamento científico deste movimento encontra-se na seguinte afirmação sociológica: "Qualquer sociedade poderá evitar a dissolução enquanto for capaz de manter a integridade de seu núcleo cultural. Desajustamentos, nesse núcleo, produzem conflitos entre indivíduos que compõem a sociedade, pois esses vêm a preferir valores diferentes, resultando, então, a perda da unidade psicológica essencial ao funcionamento eficiente de qualquer 264 sociedade” . No mesmo ano, Ornellas proferiu efusivo discurso, ressaltando a importância do culto à tradição, principalmente diante das influências externas, capazes, na opinião dele, não só de desagregar a tradição gaúcha, como desviar a sociedade de seu caminho de retidão moral: [...] Senhores Congressistas. [...] Nossa vida, desde a intimidade dos lares à sociedade comum, vem sofrendo, alarmantemente, a influencia desagregadora de um cinema industrial, que foge às excelências da arte, para se entregar à nefanda vulgarização do homicídio e do roubo tecnicamente estudados, da luxúria e da licenciosidade. A velha família rio-grandense, de cunho patriarcal, com figuras femininas de porte de Ana Terra que Érico Veríssimo desenhou, está ameaçada na sua estrutura magnífica. [...] 264 LESSA, Barbosa. O sentido e o valor do tradicionalismo gaúcho. 1954. In. Página do gaúcho. [D.l.; s.d.]. Disponível em: <http://www.paginadogaucho.com.br/ctg/valor.htm>. Acesso em: 14 nov. 2009. 98 Como pensarmos num movimento tradicionalista no Rio Grande do Sul, sem começarmos pelo retorno ao culto e proclamação desses postergados valores morais?[...] As juventudes da Espanha, da Itália, da Holanda, da França, da Alemanha, da Suíça, reúnem-se periodicamente em festivais internacionais, onde a música e a dança de cada país são atrativos turísticos do mundo. Se esses povos que têm existência milenária apelam pela lembrança do seu passado, como motivo imperioso de sobrevivência e fixação de seus caracteres, que diremos nós, que somos, no Novo Continente, o mais jovem dos povos e dos mais infiltrados por múltiplas imigrações? Para que sejamos uma força assimiladora, é necessário que ofereçamos ao estrangeiro que vem colaborar com seu trabalho e seu capital na grandeza econômica do nosso país, aquilo que representa a razão e o fundamento da nossa vida, nosso patrimônio moral e o contingente insubstituível de nossos hábitos, de nossos 265 costumes e de nossas tradições . Conforme Fighera, Presidente do MTG de São Paulo, frente aos novos tempos a humanidade está [...] exposta a inúmeros desafios, tais como: desenvolvimento sustentável, equilíbrio ecológico, globalização, regulação do uso da informação (internet, msn, orkut), desigualdades e qualidade de ensino, fuga e volta às igrejas, celibato, ordenação das mulheres, cura do câncer e da aids, desemprego, corrupção, políticas que levem ao bem-estar social, distribuição de renda, reforma agrária, drogas, violência, assaltos, sequestros, pobreza, terrorismo, guerras, fome e PAZ. Todas essas mudanças sociais, culturais, econômicas, políticas e ambientais, afetam direta ou indiretamente homens, mulheres e crianças de todas as idades (individualmente), modificando as relações dentro dos “grupos locais”, entre os quais estão incluídos os 266 CTGs, células-mãe do movimento tradicionalista gaúcho . Diante deste cenário, Fighera apresenta apontamentos a serem considerados pelo tradicionalismo, como forma de se manter fortalecido e evitar a fragmentação, a saber: as pequenas concessões do passado, normais num movimento novo, hoje causam dificuldades e é preciso ter muita consciência para retomar o caminho de volta; os CTGs ainda tem dificuldades em entender o que é ser o Grupo Local, ao qual se referia Barbosa Lessa; o movimento que veio do campo, tornou-se urbano e sofre pressões do público citadino; a formação e preparação de jovens (líderes), com reconhecimento, conscientização e comprometimento com a causa tradicionalista são fatores 265 Movimento Tradicionalista Gaúcho, 2006, p. 26-29. FIGHERA. Francisco Carlos. Recebido por e-mail de [email protected], em 17 de novembro de 2009. 266 99 indispensáveis para a manutenção da identidade; a identificação das dificuldades organizacionais, culturais e de captação de recursos e a definição de prioridades/atividades, com a fixação de objetivos, metas e ações, também se inserem no mesmo contexto; a família é e deve ser a bandeira fundamental do tradicionalismo; os novos conceitos ético e morais que a sociedade nos impõe, aos quais parece ser temos que nos acostumar, sob pena de exclusão, devem pelo menos obedecer aos princípios do convívio e associabilidade, dentro dos limites de respeito mútuo, haja vista a responsabilidade pela transferência da herança social. Para enfrentar a globalização e a interferência de outras culturas, na busca do fortalecimento (não necessariamente aumento do número de CTGs e piquetes), salienta ser importante levar-se em conta as bases permanentes do tradicionalismo267. Complementa: O estado de consciência que é o tradicionalismo, é sem sombra de dúvidas, uma idéia vitoriosa, de atitude e corajosa, reconhecida e aplaudida, que atravessou porteiras e fronteiras e, cuja extensão de seus efeitos é praticamente impossível de medir. O movimento tradicionalista gaúcho deve estar sempre posicionado e ter atitude e coragem para enfrentar modismos, modernismos e mudanças que venham a comprometer a causa tradicionalista, seus pressupostos (família, cultura, tradição, folclore), crenças, valores, princípios e convenções, a exemplo do que fizeram os precursores do movimento, em 1947. O mundo contemporâneo e seus desafios tem necessidade de esperança, consciência, conscientização e liderança. É preciso compreender e falar mais a língua do “CO” – consciência, competência, comprometimento, conscientização, cooperação, cooptação – galhos da árvore da liderança e do relacionamento, cujas raízes são, entre outros, a amizade, respeito, bondade, amor, paciência e PAZ. Aproveitando a citação de Fighera sobre Lessa, ao falar em “grupo local”, cabe retomá-la para esclarecer alguns de seus apontamentos, absolutamente pertinentes à questão da fragmentação da identidade. Afinal Lessa alerta, já em 1954, para esta questão, entitulando este raciocínio de A desintegração de nossa sociedade, e apontando como dois fatores dessa desintegração o enfraquecimento da cultura local e o desaparecimento gradativo dos "grupos locais", que define como comunidades transmissoras de cultura: 267 FIGHERA. Francisco Carlos. Recebido por e-mail de [email protected], em 17 de novembro de 2009. 100 A cultura e a sociedade ocidental estão sofrendo um assustador processo de desintegração. Incluídas nesse panorama geral, a cultura e a sociedade de quaisquer dos povos ocidentais, necessariamente, apresentam, com maior ou menor intensidade, idêntica dissolução. É nos grandes centros urbanos que esse fenômeno se desenha mais nítido, através das estatísticas sempre crescentes de crime, divórcio, suicídio, adultério, delinquência juvenil 268 e outros índices de desintegração social . Para Lessa, o núcleo cultural é composto de duas partes essenciais: a) o patrimônio tradicional, composto dos hábitos, princípios morais, valores, associações e reações emocionais comuns aos integrantes de determinada sociedade; e b) os próprios membros que a integram e os papéis por eles desenvolvidos, oferecendo um cerne cultural que “dá, aos indivíduos, a unidade psicológica essencial ao funcionamento da sociedade”. Este cerne cultural é circundado por “uma zona fluída e instável”, ou seja, por alternativas de conduta às ações reações já esperadas, o que permite o desenvolvimento da cultura e sua acomodação ante os avanços da civilização. Por consequência, “quanto maior for o entrechoque com culturas diversas, maior será a possibilidade de adoção de novas Alternativas, por parte dos membros de uma sociedade”. Quanto estas alternativas decorrem de novos padrões culturais, introduzindo novos padrões comportamentais e novas idéias, duas coisas podem ocorrer:ou o patrimônio ´tradicional se consubstancia na própria força e coerência, as influências culturais externas são recebidas como benéficas à sociedade; em contra-partida, quando a cultura invadida não possui tamanha coesão, a confusão social é inevitável, e por isso o núcleo cultural original é sufocado269. Na relação migratória, o sujeito “é despido das relações nas quais aprende cotidianamente a se significar”270, e a fundação dos centros de tradição pode vir ao encontro desta necessidade – de ressignificação do sujeito, principalmente ao travar embate direto com uma cultura que lhe é estranha. A necessidade imediata de fortalecimento da identidade de origem se vislumbra de imediato nos sul-rio-grandenses que desbravam outros territórios. 268 LESSA, Barbosa. O sentido e o valor do tradicionalismo gaúcho. 1954. In. Página do gaúcho. [D.l.; s.d.]. Disponível em: <http://www.paginadogaucho.com.br/ctg/valor.htm>. Acesso em: 14 nov. 2009. 269 Ibidem. 270 MORELLO, Rosângela , in Orlandi, 2001, p. 40. 101 2.3.3 A migração do tradicionalismo gaúcho: um mundo de bombachas Os gaúchos passaram a migrar para outras regiões, levando consigo o culto de sua tradição. O que mais impressiona é o alto grau de aceitação da cultura gaúcha, pois muitas vezes, além de bem receber os tradicionalistas, parte das novas comunidades passama adotar seu estilo de vida. Neste sentido, colacionam-se as palavras de Lima, ao afirmar que a “presença dinâmica de gaúchos em todos os Estados da Federação, a forma como se entrosam às comunidades regionais e a maneira como são acolhidos” é motivo de “enriquecimento e união”, em que pese as diferenças entre Rio Grande do Sul e Brasil. Sobre estas diferenças, o autor se refere no sentido de que são justamente as características culturais que valorizam o patriotismo consciente, condição esta bastante peculiar aos gaúchos271. Para Simon, foi a rápida multiplicação dos CTGs a principal responsável pela coesão dos migrantes sul-rio-grandenses, pela “união de nossa gente dispersa”272. Segundo estimativas trazidas por Lessa, o MTG chegou aos anos 80 com cerca de 800 CTGs e Piquetes de Laçadores no Rio Grande do Sul e cerca de 100 CTGs em outros Estados, importando em dois milhões de pessoas participando diretamente do já maior movimento cultural popular do mundo ocidental273. Para Savaris, [...] as alternativas culturais cada vez mais presentes, o avanço tecnológico, o formidável crescimento das comunicações e a presença cada vez mais forte do fenômeno da globalização não foram capazes de alterar a essência da identidade regional, fortalecida e fortemente defendida pelos Centros de Tradições que se instalaram no Estado e em qualquer lugar do país onde se 274 estabeleceram os gaúchos . Conforme os últimos dados da CBTG (dados estes incompletos, conforme alegação da própria Confederação), hoje o Estado do Rio Grande do Sul hoje possui 1.731 CTGs, DTGs ou Piquetes afiliados; no Estado de Santa 271 Lima, 2004, p. 20. Simon, 2009, p. 136. 273 Lessa, 1985, p. 98. 274 Savaris, 2008, p. 171. 272 102 Catarina, somam-se 587; No Paraná, 336; Rondônia, 36; São Paulo, 28; no Mato Grosso, são 42 entidades, enquanto que no Mato Grosso do Sul são 19; São 9 em Goiás e 07 localizados no Estado do Rio de Janeiro; São 5 entidades na Bahia e 4 em Brasília. Minas Gerais e Pernambuco possuem 2 CTGs cada; Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Tocantins, Acre, Roraima e Maranhão, apenas 1. Somente os Estados de Sergipe, Alagoas, Pará, ceará, Piauí e Amapá não possuem CTGs ou Piquetes afiliados à CBTG. Para Fagundes, no início do Século XX a tradição gaúcha ainda era uma realidade muito próxima, mesmo dos centros urbanos, não havendo o que defender se a tradição não estava ameaçada: “ninguém precisava ir a uma sociedade para ver fandangos e churrascos”, razão pela qual, “sem traumas e sem nostalgias maiores”275, os primeiros movimentos tradicionalistas pareceram perder-se no tempo. O que se depreende com tranquilidade, é ser o sentimento de “saudade” o maior motivador da abertura de centros tradicionalistas no Brasil e no mundo, e a preservação da tradição é intenção que se sobrepõe à sua ampliação, num verdadeiro embate qualidade x quantidade. O que se nota, é que a distância e a ameaça iminente de perda da identidade tem fortalecido substancialmente o movimento tradicionalista. Em São Paulo, o CTG União e Tradição, possui uma média de 400 membros, tendo sido fundado em 1997, assumindo como Patrão o Sr. Max Lindermayer, natural de Santa Catarina. Conforme Pegoraro, que cumula os cargos de Tesoureiro Geral da CBTG e de Posteiro Cultural do CTG União e Tradição, a entidade não recebe qualquer auxílio governamental para sua manutenção, também não possuindo mantenedora. Na opinião de Pegoraro, a saudade foi o fator que mais impulsionou a criação do CTG, aliada ao interesse em dar continuidade à cultura herdada e transmitir o que há de bom no folclore gaúcho. Ao falar da composição dos membros, destaca a diversidade étnica do Estado, afirmando: “Em São Paulo, o povo é muito heterogêneo, no pensar, no agir, pois temos muitas colônias e etnias”, e complementa que “os 275 FAGUNDES, Antonio Augusto. Tradicionalismo. In. Memorial do Rio Grande do Sul. Caderno de História. nº 22. [S.d] Disponível em: <www.memorial.rs.gov.br/cadernos/tradicionalismo.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2009. 103 Riograndenses do sul são poucos, mas temos bons gaúchos de outros estados e países, que abraçam as tradições sem ser naturais do RS”276. As perspectivas de Pergoraro quanto ao futuro do tradicionalismo diante da globalização, tendem ao pessimismo. Aponta como principais entraves as “dificuldades financeiras, distâncias e políticas internas do próprio movimento”, bem como a falta de interesse governamental no apoio à cultura, mas reconhece ser um fator de inclusão social, na medida em que fomenta a cultura, a tradição, o folclore, a simplicidade e o respeito com o próximo277. Outra entidade paulista, o CTG Barbosa Lessa, foi criado com a intenção de ser uma entidade diferenciada dentro do MTG/SP. A proposta dos sóciosfundadores era de um centro de tradições voltado ao ser humano, “no sentido da melhoria de sua condição social e inclusão, através da cultura gaúcha”, nos moldes da proposta de Barbosa Lessa – por isso a opção pelo nome do CTG. O primeiro Patrão foi Francisco Carlos Fighera, natural de Santa Maria, Rio Grande do Sul, sendo que hoje o CTG é conduzido por Osório Henrique Furlan Júnior, catarinense. Atualmente, dos 35 associados (e seus familiares), apenas 10 são naturais do Rio Grande do Sul, sendo os demais de Santa Catarina, Paraná, São Paulo e da Região Noroeste do Brasil278. Fighera é o atual Presidente do MTG-SP, função esta cumulada com a de Sota-capataz no CTG Barbosa Lessa. Relata que nem o MTG-SP, nem o CTG recebem, ou já receberam, qualquer auxílio ou incentivo da administração pública pelo desenvolvimento das atividades culturais, e a interação do movimento com os com órgãos públicos se dá somente quando há interesse na mostra da cultura gaúcha em eventos culturais, principalmente através da dança. Também as escolas privadas e públicas agem do mesmo modo, quando os alunos precisam desenvolver trabalhos voltados às diversas culturas e folclores brasileiros. Para ele, o gaúcho é “um ser diferente”, cuja identidade 276 PEGORARO, José Camilo. Recebido por e-mail em 17 de novembro de 2009, de [email protected] 277 Ibidem. 278 FIGHERA. Francisco Carlos. Recebido por e-mail em 17 de novembro de 2009, de [email protected]. 104 pode ser compreendida sob dois aspectos: primeiro, por seu costume, através de sua apresentação pessoal (pilcha), culinária (churrasco), hábitos (chimarrão) ou práticas (participação de rodeios e atividades afins), através da “exteriorização de seu sentimento de ser, agir e interagir, transmitindo a herança social que recebeu de seus ancestrais, através do tempo”; segundo, por suas crenças princípios e valores, definindo como base da identidade gaúcha os valores permanentes e os princípios próprios do homem e da mulher gaúcha, que envolvem o próprio conceito de família tradicional, “no respeito, na amizade, que define como sendo a base do relacionamento, na palavra empenhada, na camaradagem, e, principalmente, na ÉTICA” 279. Questionado sobre a relação entre a cultura e o desenvolvimento do ser humano, é taxativo ao responder que “qualquer cultura sadia auxilia no desenvolvimento do ser humano. Não precisa ser necessariamente a cultura gaúcha. Mas é preciso ‘seriedade’ no que se está transmitindo”, querendo dizer que as formas de agir dos transmissores da cultura devem ser suficientemente embasadas em conhecimento e informação histórica, “para não se deturpar a verdadeira cultura que se quer transmitir”. Já, quanto à cultura gaúcha ser fator de inclusão ou exclusão social, é cauteloso, afirmando que a fase atual ainda é “embrionária” e, para seu desenvolvimento, reconhece a importância de um maior apoio governamental e político, bem como de engajamento dos próprios tradicionalistas, que poderiam utilizar os eventos para conscientizar e motivar as pessoas à participação e contribuição de mais causas sociais, não somente culturais280. No Rio de Janeiro, um grupo de sul-rio-grandenses, aliado a um integrante natural do Espírito Santo, fundaram em 1999 o CTG de Niterói. Hoje, tal proporção inverteu-se: trata-se de 20% de componentes nascidos no Rio Grande do Sul, e 80% de outras naturalidades. A principal causa de criação da entidade foi a saudade de suas origens, conforme relata Mattos sobre a fundação do CTG: 279 FIGHERA. Francisco Carlos. Recebido por e-mail em 17 de novembro de 2009, de [email protected]. 280 Ibidem. 105 Muito vivente já passou por isso: sai de sua querência, no caso o Rio Grande do Sul e vai viver em outras terras. Um dia esse gaúcho se depara com o gaúcho se depara com um acampamento crioulo e a saudade aflora forte. Vê gaiteiros, canto, música e danças gaúchas, poesia nativa, fogo de chão e baitas costelas assando. Até cavalos crioulos tem; provas de laço e apartação. Foi no Haras Clube São Sebastião (Niterói) em 1999. Foi demais, tchê! Daí veio a idéia: por quê não fundar aqui em Niterói um Centro de Tradições Gaúchas onde o folclore, a tradição, a cultura e os 281 costumes gauchescos possam ser cultuados? De acordo com Mattos, um dos principais objetivos do trabalho desenvolvido no CTG Niterói é a conscientização da importância da responsabilidade social, através da promoção de hábitos culturais saudáveis, da noção de valores, princípios morais e emocionais, capazes de “amoldar” o homem ao meio ambiente e de promover a inclusão social através do oferecimento de oportunidades, bens e serviços sociais. A formação de outra entidade carioca, o CTG Gaudérios de São Pedro,em São Pedro da Aldeia-, é bastante diferenciada. Segundo seu Patrão, Fábio Luis Mattos Goulart (natural do Rio Grande do Sul), a maioria dos membros não são sul-rio-grandenses, mas de outros locais, como Rio de Janeiro, Ceará, Maranhão, Espírito Sato e Mato Grosso, salientando que os sul-rio-grandenses que vivem em São Pedro da Aldeia “não tem conhecimento de causa e quando vestem pilchas é para simplesmente ganhar dinheiro com a cultura gaúcha, realizando churrascos, inclusive usando indevidamente o nome de nossa entidade”. Esta indignação se explica à medida em que Goulart esclarece o significado que atribui ao gaúcho, como sendo o “tradicionalista até o pescoço”, e não um conceito aliado à natalidade. Para ele, o tradicionalismo é o meio pelo qual se mantém a cultura gaúcha através da história, dos costumes e do folclore, com atividades desenvolvidas em entidades sócio-culturais, sem fins lucrativos, baseadas no tripé da ética tradicionalista, na carta de princípios e nos direitos e deveres tradicionalistas”. Destaca estar o objetivo social da 281 MATTOS, Marli Adelaide de. Recebido por e-mail, em 13 de novembro de 2009, de [email protected]. 106 entidade voltado à formação de pessoas livres, dotadas de bons costumes na formação do caráter, principalmente das crianças envolvidas 282. Como exemplo das atividades desenvolvidas, cabe ressaltar que o CTG Gaudérios de São Pedro desenvolve um Projeto de Inclusão Social juridicamente distinto das atividades culturais, com inscrição no cadastro nacional de pessoas jurídicas, estatuto e coordenadores próprios, trazendo crianças de áreas de risco para dentro do CTG, onde são trabalhados os conceitos de cidadania, folclore, tradição e responsabilidade social283, como forma de aplicar os valores do tradicionalismo às mazelas sociais decorrentes da contemporaneidade. Goulart acredita ser perfeitamente possível aliar-se tradição à globalização e aos avanços culturais e tecnológicos, inclusive na propagação do tradicionalismo gaúcho, citando como exemplo suas próprias palavras, “que estão sendo digitadas, e não sendo escritas com pena ou caneta tinteiro, e estão sendo enviadas pela rede mundial, não por mensageiro ou pombo correio”, razão pela qual acredita que o movimento tende a se fortalecer mundialmente, impulsionado pelo espírito patriota e ativista do tradicionalista gaúcho284. Com o passar do tempo, os CTGs foram se espalhando pelo mundo. Conforme os gaúchos migravam, levavam consigo o amor pela tradição. Fato curioso é que muitos dos fundadores de CTGs nos demais Estados brasileiros ou em outros países nunca tinham pisado em um centro de tradições quando residiam no Rio grande do Sul. Retomando os ensinamentos de Savaris, inseridos no primeiro capítulo, o nativismo, a saudade e o espírito militarista (tanto no aspecto organizacional quanto no de conquistas) fizeram do movimento tradicionalista um verdadeiro fenômeno mundial285. 282 GOULART, Fábio Luis Mattos. Recebido por e-mail, em 23 de novembro de 2009, de [email protected]. 283 Ibidem. 284 Ibidem. 285 Entrevista com Manuelito Savaris, realizada em 13.10.2009, na Sede do IGTF, no Centro administrativo em Porto Alegre 107 Oficialmente, existem 12 CTGs lotados no exterior e inscritos na CBTG. São eles: nos Estados Unidos da América, o Centro Cultural Gaúcho Bento Gonçalves (Los Angeles, Califórnia), CTG Brasil Tche (Bernadesville, New Jersey), CTG Saudade da Minha Terra (Chester, New Jersey), CTG Nova Querência (Fort Lauderdale, Florida), CTG Rancho Grande (Perris, Califórnia) e o Núcleo Tradicionalista Gaúcho de Danbury (Brookfield, Connecticut); no Paraguai, o CTG Índio José (Alto Paraná); em Israel, CTG Deserto da Saudade; Em Portugal, o CTG Pedro Álvares Cabral (Lisboa); No Canadá, o CTG Querência do Norte (Mississaoga); na França, o CTG União de Ideais (Paris) e na Espanha o CTG Recuerdos del Pago (Madrid)286. Entretanto, temse notícia de CTGs no Japão, Itália, Alemanha, entre outros países287. Oliven ainda relata a existência de um CTG em Amsterdã, Holanda, e em Osaka, no Japão – o CTG Sol Nascente, fundado em 1992, e do CTG, reconhecendo não ser descabido [...] imaginar que no futuro haja mais CTGs fora do que dentro do Rio Grande do Sul. Embora esse grande número de entidades tradicionalistas em outros lugares provavelmente já não seja frequentado por gaúchos natos, mas por seus descendentes, sua existência denota uma imensa saudade da querência, em busca de origens rurais perdidas (ou jamais possuídas) à semelhança do que 288 ocorreu com os fundadores do 35 CTG . Nos dias 23 e 24 de abril de 2005, na cidade de Framingham, Estado de Massachusetts, Estados Unidos da América, foi realizado o I Encontro Nacional do Tradicionalismo Gaúcho Brasileiro, promovido pelo CTG Patrão Velho Internacional, de Framingham, e pelo Centro Cultural Gaúcho Bento Gonçalves, de Los Angeles. Nesta mesma data foi fundada a Confederação Norte-americana de tradicionalismo Gaúcho sob a patronagem de Jatir Cosme Delazzeri, envolvendo, além dos Estados Unidos, os países do Canadá e México. Delazeri relata ter chegado aos Estados Unidos em 1984, sendo abatido por súbita saudade “das coisas boas deixadas lá na Velha Querência, como 286 Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha. CBTG. Disponível em: <http://www.cbtg.com.br/_sitio/ctgs/exterior.php>. Acesso em 14 nov. 2009. 287 Simon, 2009, p. 139. 288 Oliven 2006, p. 149. 108 amizades, os parentes, a vida social, familiar, o churrasco, o chimarrão”, mas sentindo principalmente dificuldades com o idioma, a cultura, os costumes e a “frieza” do povo norte-americano. Relata: Logo no início senti que deveria fazer alguma coisa, comecei a pensar em fundar um CTG. Mas não tinha conhecimento nenhum de como fundar um CTG, porque quando estava no Brasil não frequentava CTGs e nem sabia para que eles serviam. Mas com a ajuda dos tradicionalistas do Rio Grande do Sul, a idéia aos poucos ia se tornando realidade. Depois de longo período de preparação finalmente chegou o dia marcado, era 20 de setembro de 1992, reuni 15 famílias no parque Verdugo aqui em Los Angeles, com a finalidade de fundar o primeiro CTG dos Estados Unidos. Foi pendurado (sic) em uma árvore as Bandeiras dos Estados Unidos, do Brasil e do Rio Grande do Sul. [...] Ao meio dia foi servido o churrasco com a carne que eu havia levado. Nesse dia havia somente 3 casais usando a pilcha gaúcha. Com o livro de atas assinado por todos os presentes e nomeada a Diretoria provisória, eu assumi como patrão dessa nova entidade. A finalidade principal do novo CTG, que levou o nome de Centro Cultural Gaúcho General Bento Gonçalves.[...] Das 15 famílias que fundaram o Centro Cultural Gaúcho, a maioria era de fora do Rio Grande do Sul. Eram de outros estados do Brasil 289 e de outros países, como estados Unidos e Guatemala . De acordo com Delazeri, aos poucos foram surgindo novos CTGs, a maioria deles com o apoio do Centro Cultural Gaúcho Bento Gonçalves (Rancho Gaúcho). Para ele, o trabalho e a organização de CTGs localizados em cidades menores dos Estados Unidos é mais simples se comparado ao que ocorre com o Rancho Gaúcho, onde a programação precisa ser feita com, no mínimo, dois meses de antecedência, em razão da distância residencial entre os participantes. A Confederação costuma realizar encontros em parques públicos, em escolas, participam de desfiles cívicos e fizeram documentários para a televisão local mostrando a cultura e as tradições gaúchas290. A rigidez com que são conduzidas as atividades tradicionalistas pela CBTG possui reflexos no exterior. As regas são observadas pelos CTGs de outros países, como no que diz respeito às pilchas, ao churrasco, ao chimarrão. Entretanto, as diferenças culturais são ainda mais destacadas em se tratando das entidades externas, pois é necessária a adequação dos 289 DELAZERI, Jatir Cosme. Recebido por e-mail em 14 de novembro de 2009, de [email protected] 290 Ibidem. 109 costumes e regramentos que são aplicados aos centros de tradições nacionais. Um dos exemplos é a dança do facão, que nos Estados Unidos não pode ser realizada com facões de metal, sendo utilizadas peças similares de material plástico para a realização da dança291. Delazeri questiona a falta de interesse das autoridades envolvidas com o Tradicionalismo e do o próprio Estado do Rio Grande do Sul, que nunca ofereceram apoio ou orientação aos CTGs no exterior. Até hoje, foram realizados cinco encontros confederados na América do Norte, para promover a cultura, a tradição gaúcha e o nome do Rio Grande do Sul e, em que pese os convites, sequer foram visitados por autoridade oficial do Governo Estadual ou do MTG/RS292. Para ele, no contexto da globalização, a melhor forma de fortalecer o movimento tradicionalista seria através de uma melhor comunicação entre o MTG e os CTGs do exterior, com apoio filosófico e envio de material didático. Acredita fortemente que um dos principais fatores para a expansão do Movimento Tradicionalista é o fato dele estar embasado nos princípios familiares, e que, por esta razão, o movimento “poderá ser visto como um modelo de sociedade para o futuro”293. A tradição gaúcha é a principal representante da cultura brasileira nos Estados Unidos, até porque outras formas de manifestação cultural não são bem aceitas – como é o caso do carnaval, cujas apresentações são proibidas em escolas públicas e particulares, bibliotecas e outros espaços reservados à cultura, enquanto o tradicionalismo gaúcho tem acesso livre a estes espaços. Nos desfiles cívicos e comemorativos, é a própria Embaixada do Brasil que entra em contato com a Confederação Norte-Americana para representar a cultura brasileira294. Delazeri ainda menciona que antes de 11 de setembro de 2001, o Centro Cultural recebia com frequência subsídios governamentais pelas atividades culturais realizadas, mas que após o ataque terrorista que marcou mundialmente esta data, os incentivos às culturas “alienígenas” foram 291 DELAZERI, Jatir Cosme. Recebido por e-mail em 21 de novembro de 2009, de [email protected]. 292 Ibidem. 293 Ibidem. 294 Ibidem. 110 cortados. Hoje, o CTG e a própria Confederação Norte-americana, sobrevivem de recursos próprios dos associados295. O Núcleo Tradicionalista Gaúcho de Danbury, em Connecticut, Estados Unidos da América, é uma entidade totalmente virtual, onde os integrantes se encontram durante as comemorações da Revolução Farroupilha, ou para Rodas de Chimarrão. De acordo com José sarmento, Patrão do Núcleo, toda a região de Connecticut é formada por poucos sul-rio-grandenses, o que reflete na formação da entidade, composta principalmente de integrantes naturais de Minas Gerais296. Em Madrid, Espanha, se encontra o CTG Recuerdos Del Pago, também inscrito na Confederação Brasileira, sujo patrão é David Domingues, natural de Porto Alegre, mas com cidadania européia. De acordo com ele, o que impulsionou a criação do CTG foi o interesse em divulgar a tradição gaúcha e promover sua integração com a espanhola, bem como a necessidade de se manter alguns vínculos com as raízes culturais dos sócios, não havendo nenhuma interação governamental no desenvolvimento das atividades culturais, ou órgão mantenedor que dê suporte financeiro à entidade. Para David, “a identidade gaucha é formada por um conjunto de características comuns, históricas, étnicas, geográficas, etc., entre indivíduos afins à cultura pampeana, missioneira e da bacia hidrográfica do prata” 297, sendo o gaúcho [...] uma cultura transnacional com raízes indígenas e muitas contribuições étnicas, baseada em uma confluência de regiões no bioma pampeano. As influências culinárias (Churrasco, Chimarrão...), artísticas (Milonga, Xote...), vestimentas (poncho, bombacha), linguísticas (Che, Guri...), históricas (guerras guaraníticas, farrapa, federalista, getulismo, brizolismo...) moldearam 298 (sic) o caráter revolucionário e crítico do povo . Dominguez justifica a criação do CTG Recuerdos Del Pago pela “inexistência de uma entidade política soberana relacionada à sociedade Sul295 DELAZERI, Jatir Cosme. Entrevista realizada por telefone em 04 de novembro de 2009. SARMENTO, Joe. Recebido por e-mail em 20 de outubro de 2009, de [email protected] 297 DOMINGUEZ, David. Recebido por e-mail em 13 de novembro de 2009, de [email protected] 298 Ibidem. 296 111 riograndense (sic)”, bem como pelo fato de que as características continentais do Brasil não possibilitarem a transmissão da cultura gaúcha em um contexto internacional, “o que obriga os gaúchos a manterem sua identidade, compartida com outros conterrâneos em uma instituição como o CTG”299. As preocupações, tanto de Delazeri quanto de Dominguez, são perceptíveis quanto à necessidade de fortalecimento da própria cultura frente à aculturação global. Delazeri refere que não pretende voltar a residir no Brasil, mas demonstra intensa necessidade de manter as origens, especialmente com o Rio Grande do Sul, como forma de manter sua própria personalidade 300, diante de uma cultura totalmente diferente e, principalmente, se sentir integrado à esta nova sociedade através do reconhecimento do valor de sua própria raiz cultural. Da mesma forma, David manifesta que “a cultura local possibilita o indivíduo acolher com mais firmeza a cultura globalizada”. Complementa: [...] penso que quanto mais globalizado seja o mundo, mais necessidade há de movimentos localistas. Antes de serem excludentes, são absolutamente complementares” 301. Para ambos, o tradicionalismo gaúcho se resume a fator de inclusão social, à medida em que agrega pessoas isoladas, detentoras de sentimentos e problemas comuns. 299 Ibidem. DELAZERI, Jatir Cosme. Entrevista realizada por telefone em 11 de novembro de 2009. 301 Ibidem. 300 112 3 POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORTALECIMENTO AO TRADICIONALISMO GAÚCHO A partir do reconhecimento dos principais elementos da cultura gaúcha,da importância da preservação da identidade diante da globalização e do risco iminente à fragmentação, bem como do fenômeno da mundialização do gauchismo como movimento de resistência, torna-se necessária a visualização de políticas públicas capazes de lhe conferirem maior aporte. Até então, a sociedade se organizou de forma singular – e é necessário reconhecer o êxito desta organização; contudo, a complexidade social e as interações culturais normais no atual contexto tem exigido, cada vez mais, organização e suporte às identidades, sob o risco da perda, da fragmentação iminente. Afinal, os próprios tradicionalistas, que tem mantido praticamente sozinhos o movimento até então, reconhecem os riscos e apontam a necessidade de uma maior interação do Estado na proteção do gauchismo – a cultura sul-rio-grandense. O direito à cultura possui guarida constitucional, mas na prática tem sido tratado como uma “liberalidade” do indivíduo – tanto quanto ao seu acesso quanto à sua “vivência”, como ocorre com inúmeros aspectos da cultura gaúcha. Não se pretende aqui sugerir que o Estado induza o cidadão a conviver no interior dos CTGs, a participar de invernadas artísticas ou acampamentos crioulos. Pretende-se, sim, justificar e encontrar alternativas de fomento viáveis ao Estado para que o tradicionalismo não se perca, não seja “engolido” pelas interações culturais ou se distancie de suas origens, como um filho que se afasta da casa dos pais quando não é compreendido e tratado com a atenção e o respeito que merece. 113 3.1 O direito à cultura O direito à cultura está elencado na Constituição Federal no rol dos direitos fundamentais. Não se pretende adentrar na discussão de o que sejam tais direitos – até porque se trata de um tema reiterado na doutrina e sua exploração no contexto deste trabalho é considerada despiscienda. Pretendese, sim, atribuir um enfoque mais prático ao já consolidado Direito à cultura. Cunha Filho considera que a legislação cultural brasileira oferece um “espaço privilegiado para a gestão democrática”, estando entre os setores que oferecem mais recursos jurídicos e sociais para a gestão direta de seus interesses - esclarecendo que todos os setores, em um Estado que se intitula democrático, deveriam ter igual potencial de gestão, o que infelizmente não ocorre. Para o autor, na prática há um certo escalonamento dos princípios reitores do ordenamento público, sob o seguinte critério: quanto menor a intermediação entre o povo e a gestão dos interesses públicos, mais democrática será a gestão302. Seguindo este raciocínio, a conclusão de que o autor está certo ao afirmar que os direitos culturais são forte aporte à gestão democrática parece inquestionável. No campo específico do setor cultural, a ordem constituinte para uma gestão democrática pode ser vislumbrada em grau superlativo – o que pode ser constatado, inicialmente, pelo estudo dos princípios inferidos do texto normativo de mais alta hierarquia: princípios do pluralismo cultural e da atuação estatal como suporte logístico [...]. Em primeiro lugar, o Princípio do Pluralismo Cultural, consistente em que todas as manifestações de nossa rica cultura gozam de igual status perante o Estado, não podendo nenhuma ser considerada 303 superior ou mesmo oficial . Da exegese constitucional se depreende que não há supremacia ante as expressões culturais, de forma que todos os bens e manifestações culturais merecem igual guarida do Estado e da sociedade, independente de sua autoria. Diante disso, Cunha Filho defende a idéia de que a participação 302 303 Cunha Filho, 2002, p. 21. Ibidem, p. 22. 114 popular, realizada de forma individual ou organizada, é obedecida quando há opiniões e participações sobre as políticas culturais a serem utilizadas. Em que pese esta “amplitude” e “importância” da cultura para a efetivação da gestão realmente democrática quanto aos bens culturais em sua totalidade (materiais e imateriais), a Constituição Federal tutela a cultura em somente dois artigos, aqui dispostos: Art. 215 - O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. §1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais. § 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: I - defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II - produção, promoção e difusão de bens culturais; III - formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; IV - democratização do acesso aos bens de cultura; V - valorização da diversidade étnica e regional. Art. 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. § 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. § 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.§ 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. § 5º - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. § 6º É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo estadual de fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, para o financiamento de programas e projetos culturais, vedada a aplicação desses recursos no pagamento de: I despesas com pessoal e encargos sociais; II - serviço da dívida; III - 115 qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos 304 investimentos ou ações apoiados . É a própria Constituição Federal que diz que o Poder Público, através da colaboração da comunidade, deverá promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro. Em verdade, ocorre uma alteração na prática do Princípio da Atuação Estatal ao se tratar de cultura, pois a ação do Estado depende de prévia participação social. Neste sentido, Cunha Filho: O Princípio da Atuação Estatal (referente à cultura), como suporte logístico, indica que as iniciativas referentes às políticas culturais devem ser essencialmente da sociedade e dos indivíduos, cabendo ao Estado dar suporte a tais iniciativas, através de uma atuação que possibilite a infra-estrutura necessária ao desabrochar das referidas iniciativas. Consiste, em palavras claras, em que devem ser apoiadas a dramaturgia, a literatura, as expressões telúrgicas, e enfim, todas as manifestações culturais, mas o conteúdo delas não pode ser ditado pelos que gerem os negócios jurídicos da cultura. O suporte logístico referido é implementado por tarefas específicas (como a construção de teatros e centros culturais) e pelo ato de tornar possível o acesso a recursos públicos, dentro de critérios. Neste pronto, sublinha-se que tarefas específicas atribuídas ao 305 Estado não o tornam autorizado “a fazer cultura” . Tal posicionamento estaria embasado na própria Constituição Federal, porquanto o art. 5ª, que inclui no rol dos direitos à liberdade, que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”306, conforme se depreende de seu inciso IX. Da mesma fora, as leis infraconstitucionais devem obedecer esta liberalidade cultural, não podendo qualquer das esferas administrativas, ditar as regras da cultura e de suas manifestações, mas oferecer-lhes o aporte suficiente para que se perpetuem. Contudo, o que se percebe na prática administrativa é a reiteração de práticas ativas despropositadas ou, principalmente, ações omissivas, podendo ser citado, como exemplo, a inércia ou rejeição administrativa perante o reconhecimento social de um bem ou manifestação social reconhecidamente 304 Brasil. Constituição (1988). Artigos 215 e 216. In. Planalto Central. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 02 dez. 2009. 305 Cunha Filho, 2002, p. 23. 306 Brasil. Constituição (1988). Artigo 5º. In. Planalto Central. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 02 dez. 2009. 116 dotados de identificação cultural – muitas vezes contrariando pesquisas e laudos técnicos específicos. A Constituição do Estado do Rio Grande do Sul tutela a cultura em seus artigos 220 a 31. A previsão geral é a que atribui ao Estado o dever de estimular a cultura em suas múltiplas manifestações, assim como o acesso a suas fontes em nível nacional e regional e de, com a colaboração da comunidade, proteger o patrimônio cultural, pelas formas legais de acautelamento e preservação307. É específica em afirmar que é dever do Estado proteger e estimular as manifestações culturais dos diferentes grupos étnicos formadores da sociedade sul-rio-grandense. O direito à cultura vem intrinsecamente ligado ao direito à memória, o que importa no exercício da cidadania plena, ou, como pretende Chauí, inserir um conceito de cidadania cultural, como sendo aquela que [...] não se reduz ao supérfluo, ao entretenimento, aos padrões de mercado, à oficialidade doutrinária (que é a ideologia), mas se realiza como direito de todos os cidadãos, direito a partir do qual a divisão social das classes ou a luta de classes possa manifestar-se e ser trabalhada porque, no exercício do direito à cultura, os cidadãos, como sujeitos sociais e políticos, se diferenciam, entram em conflito, comunicam e trocam suas experiências, recusam formas de cultura, 308 criam outras e movem todo o processo cultural. Contudo, a análise desta pesquisa perpassa a abordagem do direito como um ordenamento meramente protetor ou repressivo. Isto porque, como sustenta Bobbio309, “ao lado da função da tutela ou da garantia, aparece, cada vez com maior freqüência, a função de promover” o Direito nas Constituições contemporâneas. Isto porque não é mais suficiente nenhum dos conceitos primários do direito, como os que traduzem teorias que visualizam o direito como um conjunto de normas de um só tipo - positivo/negativo, ou demasiadamente simplistas e insuficientes para designar a teoria do direito que 307 RIO GRANDE DO SUL. Constituição Estadual. In. Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. https://www.al.rs.gov.br/prop/Legislacao/Constituicao/constituicao.htm 308 CHAUI, Marilena. Cidadania cultural: o direito à cultura. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006, p. 138. 309 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007, p. 11. 117 hoje é aplicável. É nesta seara que Bobbio se refere ao caráter promocional do direito, como alternativa à simplicidade teórica antes instalada. A própria Constituição brasileira se encontra repleta de previsões inseridas nesta nova proposta, à medida em que reconhece ser dever do Estado “apoiar” e “incentivar” a valorização e a difusão das manifestações culturais, promoverá os bens culturais, ou valorizará a diversidade cultural existente no país, dentre outros vários termos nucleares como “favorecer”, “facilitar”, “encorajar”, todos voltados ao caráter promocional do direito. Trata-se de uma nova proposta de ordenamento jurídico, agindo como impulsionador dos direitos através das ações do Estado. É importante esclarecer a diferença entre afirmações de tarefas protetoras e a afirmação de tarefas promocionais, já que as segundas possuem condão muito mais encorajador, incentivador que as primeiras, que se contentam em reconhecer e garantir direitos de forma programáticas e subjetivas. 3.2 Tradicionalismo Gaúcho e Estado – um relacionamento conturbado A própria história da formação sócio-cultural do Rio Grande do Sul, que antecedeu e embasou o surgimento de um movimento organizado que retratasse a cultura gaúcha, demonstra inúmeras conexões (e preocupações) do gauchismo com a proteção do território e com o próprio Estado, legitimandoo enquanto unidade de governo do território ao qual se pertence. Entretanto, este é um típico relacionamento onde a recíproca é verdadeira. De acordo com relatos de Lessa, até meados de 1960 “os órgãos governamentais acompanhavam com certo sestro - de longe – o desenrolar do culto às tradições, evitando qualquer comprometimento mais íntimo” 310 . Somente no ano de 1964 foi assinada a Lei nº 4.850, tornando oficial no Estado a comemoração da Semana Farroupilha, prevendo que as festividades seriam organizadas e orientadas pela Divisão de Cultura da Secretaria de Educação e 310 Lessa, 1985, p. 92. 118 Cultura e a Brigada Militar do Estado. Um dos dispositivos legais sugeria a participação direta da Brigada Militar, Ginásios e Grupos Escolares Estaduais, Centros de Tradições Gaúchas e entidades particulares desportivas que dela quisessem participar. Como assevera Lessa, “não tendo havido maior interesse na área da Secretaria de Educação e Cultura, as entidades escolares praticamente se omitiram, e mínima foi a participação das entidades desportivas” 311 . Assim, os CTGs permaneciam autônomos (e solitários) para organizar as comemorações. A redação atual, conteúdo da Lei Estadual n.º 12.422, de 27 e dezembro de 2005, assim estabelece: Art. 1º - é oficializada a “SEMANA FARROUPILHA” no Rio grande do Sul, a ser comemorada de 14 a 20 de setembro de cada ano, em homenagem e memória aos heróis farrapos. Parágrafo Único – Tomarão parte nas festividades da Semana Farroupilha, escolas de 1º e 2º graus das redes estadual, municipal e particular de ensino, Unidade ou Contingente da brigada Militar, Centros de Tradição Gaúcha, Associações de Piquetes e entidades associativas, particulares, culturais e desportivas que dela queiram participar. Art. 2º A Secretaria da Educação, a Secretaria do Turismo, esporte e Lazer, a Secretaria da Cultura, a Brigada Militar, a Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore e o Movimento Tradicionalista Gaúcho e a Associação dos Piquetes do parque da Estância da Harmonia e do Estado do Rio Grande do Sul organizarão e orientarão as festividades da Semana Farroupilha. Art. 3º As prefeituras municipais, mediante convênio com o Estado, organizarão e coordenarão, nos seus municípios, as festividades da 312 Semana Farroupilha. [...] Entretanto, a organização da semana comemorativa parece permanecer sob coordenação preponderante do Movimento Tradicionalista, muito embora tenha sido instituída por decreto uma comissão para organizar e orientar sua programação. Trata-se do Decreto nº 44.448, de 22 de maio de 2006, que definiu os sete membros participantes desta comissão, a saber: representante da Secretaria da Educação, Secretaria de Turismo, Esporte e Lazer, Secretaria da Cultura, Brigada Militar, Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, Movimento Tradicionalista Gaúcho e Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul – FAMURS-, como convidada. Conforme o 311 Lessa, 1985, p. 92. ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 4.850, de 11 de dezembro de 1964. Oficializa a “Semana Farroupilha” e dá outras providências. In. _____. Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. Disponíve em: < http://www.igtf.rs.gov.br>. Acesso em: 12 jan. 2010. 312 119 Presidente do IGTF, Manuelito Savaris, a organização da Semana Farroupilha, na prática, é exercida pelo IFGT, pelo setor de nativismo da Prefeitura Municipal de Porto Alegre (infra-estrutura) e, principalmente, pelo MTG – CTGs, DTGs e Piquetes313. No ano de 1979 houve uma reestruturação junto à Administração do Governo Estadual, sendo criada a Secretaria de Desporto e Turismo, desvencilhando os assuntos da cultura da área da educação. Luiz Carlos Barbosa Lessa, um dos precursores do tradicionalismo gaúcho, foi o segundo titular da pasta, destacando-se sua atuação pela divisão do Estado em 12 polos culturais, na tentativa de interiorizar a cultura incentivando o regionalismo314. O Hino Farroupilha foi oficializado como Hino do Rio Grade do Sul em 1966, pela Lei Estadual nº 5.213. O dia 20 de setembro somente foi reconhecido como dia do gaúcho no ano de 1991, através da Lei nº 9.405, revogando o dispositivo anterior – Lei 8.019, de 20 de julho de 1985, que estabelecia a data de 20 de abril para tal comemoração. Quatro anos depois, através do Decreto nº 36.180, de 1995, o dia 20 de setembro passou a ser a data magna do Estado, tornando-se feriado em todo o seu território. No mais, poucas leis de interesse do tradicionalismo foram elaboradas, podendo ser citadas a lei que institui o Quero-quero como ave-símbolo do Estado315; a Erva-mate passou a ser a árvore-símbolo316; a flor Brinco de 313 Entrevista com Manuelito Savaris, realizada em 13.10.2009, na Sede do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore – IGTF - localizado à Avenida Borges de Medeiros, 1501, no Centro Administrativo, Porto Alegre-RS 314 Oliven 2006, p. 121. 315 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 7.418, de 1º de dezembro de 1980. Institui como Ave-Simbolo do Rio Grande do Sul o Quero-quero, Belonopterus Cayennensis. In. Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. Disponível em: <http://www.igtf.rs.gov.br/legislacao/not.php?id=10>. Acesso em: 10 jan. 2010. 316 _____. Lei nº 7.439, de 08 de dezembro de 1980. Institui a Erva-Mate “Ilex paraguaiensis” como Árvore Símbolo do Rio Grande do Sul. In. Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. Disponível em: < http://www.igtf.rs.gov.br/legislacao/not.php?id=15>. Acesso em: 10 jan. 2010. 120 Princesa foi reconhecida como flor símbolo em 1980317; a seguir, em 1989, a pilcha gaúcha foi definida como traje de honra no Estado318; no ano de 2002, o Cavalo Crioulo, junto com a ave Quero-quero, foram definidos patrimônio cultural sul-rio-grandense319; o churrasco e o chimarrão foram intitulados respectivamente prato típico e bebida símbolo do Estado em 2003320. As danças tradicionais gaúchas foram reconhecidas como patrimônio cultural imaterial do Estado em 2002321, passando a constituir o rol oficial. Para os MTG/RS, o reconhecimento, em 2006, do rodeio crioulo como um dos componentes da cultura popular sul-rio-grandense, teve repercussões importantes. Até então os rodeios não eram enquadrados como atividade cultural, mas esportiva, não se podendo encaminhar projetos de financiamento junto à Lei de Incentivo à Cultura - LIC. Finalmente no ano de 2007, o Movimento Tradicionalista Gaúcho passou a ser parte integrante do patrimônio histórico e cultural do Estado322, nos termos dos artigos 221, 222 e 223 da Constituição Estadual. Interessante é a contribuição da Lei nº 11.720, de 07 de janeiro de 2002, que autorizou o Poder Executivo e o Poder Legislativo Estadual a repassar 317 _____. Decreto nº 38.400, de 16 de abril de 1998. Institui a Flor Símbolo do Estado do Rio Grande do Sul. In. Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. Disponível em: <http://www.igtf.rs.gov.br/legislacao/not.php?id=45>. Acesso em: 10 jan. 2010. 318 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 8.813, de 10 de janeiro de 1989. Oficializa como traje de honra e de uso preferencial no Rio Grande do Sul, para ambos os sexos, a indumentária denominada “PILCHA GAÚCHA”. In. Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. Disponível em: <http://www.igtf.rs.gov.br/legislacao/not.php?id=20>. Acesso em: 10 jan. 2010. 319 _____. Lei nº 11.826, de 26 de agosto de 2002. institui o Cavalo Crioulo como animalsímbolo, reconhecendo-o, juntamente com o Quero-Quero, como patrimônio cultural do Estado do Rio Grande do Sul. In. Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. Disponível em: <http://www.igtf.rs.gov.br/legislacao/not.php?id=55>. Acesso em: 10 jan. 2010. 320 _____. Lei nº 11.929, de 20 de junho de 2003. Institui o churrasco como “prato típico” e o chimarrão como “bebida símbolo” do Estado do Rio Grande do Sul e dá outras providências. In. Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. Disponível em: <http://www.igtf.rs.gov.br/legislacao/not.php?id=65>. Acesso em: 10 jan. 2010. 321 _____. Lei nº 12.372, de 16 de novembro de 2005. Reconhece como integrantes do patrimônio cultural imaterial do Estado, as Danças tradicionais gaúchas e respectivas músicas e letras. In. Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. Disponível em: <http://www.igtf.rs.gov.br/legislacao/not.php?id=75>. Acesso em: 10 jan. 2010. 322 _____. Lei nº 12.748, de 11 de julho de 2007. Declara integrante do patrimônio histórico e cultural do Estado do Rio Grande do Sul o Movimento Tradicionalista Gaúcho – MTG. In. Canto Gaudério Notícias. Disponível em: < http://blogs.universia.com.br/cantogauderio/2009/ 03/18/lei-n-12748-e-constituio-estadual-rs-devem-proteger-vaqueanos-da-tradio/>. Acesso em: 10 jan. 2010. 121 subvenção social ao Movimento Tradicionalista Gaúcho323. Tal previsão legal possibilita ao Estado um auxílio financeiro efetivo às entidades tradicionalistas, instituições de caráter privado e sem fins lucrativos, visando o desenvolvimento e a preservação das tradições sul-rio-grandenses. O contato com o MTG e com as entidades estaduais demonstrou que, se houve subsídio financeiro direto neste sentido, não se tem conhecimento324. Na capital sul-rio-grandense, à modelo do que ocorreu em anos anteriores, dentre as metas e diretrizes orçamentárias (Lei de Diretrizes orçamentárias - LDO) para 2009, chama atenção a total inexistência dos termos “tradição” (ou “tradicionalismo”), “gaúcho(a)”, ou qualquer outro termo que ofereça alguma conexão entre “cultura” e o gauchismo; nas metas previstas para 2009, da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, se encontra a previsão da realização de atividade cultural voltada à Semana da Consciência Negra - longe de desmerecer a iniciativa, o que causa a estranheza é que em nenhuma das previsões de diretrizes orçamentárias destina, sequer menciona o tradicionalismo gaúcho, ou mesmo a fomenta realização da Semana Farroupilha de forma alguma325. Na Lei Orçamentária Anual - LOA de 2009, encontramos a ação 208/PPA, descrita como Nativismo e Manifestações Populares, que compreende “realizar cursos, seminários e palestras; apoiar ações da comunidade em festas e datas relevantes de nossa história e organizar o Acampamento Farroupilha”, destinando a verba de até R$1.000.000,00 (um milhão de reais) para este fim. De acordo com Vinícius Brum, os investimentos diretos da Prefeitua foram apenas de R$200.000,00 (dezentos mil reais), mas 323 _____. Lei nº 11.720, de 07 de janeiro de 2002. Autoriza o Poder Executivo e o Poder Legislativo Estadual a repassar subvenção social ao Movimento Tradicionalista Gaúcho – MTG – e aos centros de Tradições gaúchas – CTGs. In. Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: < http://www.al.rs.gov.br/Legis/Arquivos/11.720.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2010. 324 Entrevista com Hélio Ferreira, Secretário do MTG/RS, realizada em 13 de outubro de 2009, na sede do MTG/RS. 325 PORTO ALEGRE. Lei nº 10.552, de 13 de outubro de 2008. Dispõe sobre as diretrizes orçamentárias para 2009 e dá outras providências. In. Observa POA: Observatório da cidade de Porto Alegre. Disponível em: <http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/observatorio/usu_doc/lei_diretr_orc_2009. pdf>. Acesso 12 jan. 2010. 122 justifica que necessitariam ser computados a este valor os custos com as despesas gerais - água, luz, servidores disponibilizados para o trabalho no evento (limpeza, segurança), entre outros. Note-se que para as atividades carnavalescas, a mesma lei destina R$4.089.000,00 (quatro milhões e oitenta e nove mil reais), através da Ação 192/326. Contudo, nota-se visível disparidade entre os valores (disponibilizados) e a abrangência de ambos os eventos. Conforme notícia da própria Secretaria da Cultura, o Acampamento Farroupilha de 2009 atraiu um público de mais de 800.000 visitantes327. Os dados oficiais de participantes do Carnaval 2010 não se encontram divulgados no site da Secretaria da Cultura, mas pela análise conjunta das notícias ali existentes, acredita-se que, em todos os dias do evento, dificilmente tenha se chegado ao número de 100.000 pessoas envolvidas. Do valor solicitado pelos organizadores do evento 328, através da LIC foi concedido ao Acampamento Farroupilha o montante de R$334.333,98, conforme informação do Sistema Estadual de Financiamento e Incentivo às Atividades Culturais. Importa salientar que um dos pré-requisitos para se fazer parte do acampamento é a apresentação de projetos culturais aos visitantes. Como principal justificativa do projeto (processo n.º 497/1100-09.0), foi apontada, além da grandeza física do evento, o fato dele “refletir a alma de um povo, a identidade de uma raça” 329. Em visita ao site da Secretaria do Estado da Cultura – SEDAC (dezembro de 2009), facilmente se verificou estreita ligação entre cultura sul- 326 PORTO ALEGRE, Prefeitura municipal de. Projeto de Lei Orçamentária para o exercício de 2009. In. _____. Disponível em: <http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/gpo/usu_ doc/mensagem_orcamento_2009.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2010. 327 PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE. Secretaria Municipal da Cultura. Notícias: Acampamento Farroupilha atraiu 800 mil visitantes. Disponível em: <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/acampamentofarroupilha>. Porto Alegre, [s.d]. Acesso em: 12 jan. 2010. 328 Valor total de R$ 502.006,73. 329 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Estado da Cultural. Lei de Incentivo à cultura. Disponível em: <http://www.lic.rs.gov.br/Consulta-Detalhe-projeto.asp?CodProjeto=8489>. Acesso em: 12 jan. 2010. 123 rio-grandense e o gauchismo, pois seu visual era tipicamente gaúcho: no topo, aparecia uma Bandeira do Rio Grande do Sul e, em sua frente, a imagem de um homem à cavalo, com trajes típicos e postura altiva. A nova apresentação do site (notada em nova visita, em março de 2010), destaca a mesma Bandeira e, à sua frente dela, o vulto de inúmeros homens, simbolizando os Farrapos durante a Revolução, trajados de palas e chapéus, todos com lanças às mãos. Em ambas as representações da SEDAC, sua identificação com a cultura gaúcha foi facilmente perceptível. Logo abaixo do nome do site, encontram-se sub-itens de pesquisa, dispostos na forma de links330, na seguinte ordem: “cultura gaúcha”, “programação cultural”, “eventos RS”, “Assessoria de Imprensa”. O aparente destaque à cultura gaúcha continua, ao abrir-se o primeiro link “cultura gaúcha”, onde se encontra a seguinte definição: O gaúcho é o nome dado aos nascidos no Rio Grande do Sul, ao tipo característico da campanha, ao homem que vive no campo, na região dos pampas. Até a metade do século XIX, o termo gaúcho era usado de forma pejorativa, sendo dirigido aos aventureiros, ladrões de gado e malfeitores que viviam nos campos. Resultado da miscigenação entre o índio, o espanhol e o português, o gaúcho, por viver no campo cuidando do gado, adquiriu habilidades de cavaleiro, manejador do laço e da boleadeira, aspectos que perfazem a tradição gaúcha. Sem patrão e sem lei, o gaúcho foi, inicialmente, nômade. Com o passar dos tempos, a partir do estabelecimento das fazendas de gado e com a modificação da estrutura de trabalho, foram alterados os seus costumes, tanto no trajar quanto na alimentação. Mais tarde, já integrado à sociedade rural como trabalhador especializado, passou a ser o peão das estâncias. Atuando como instrumento de fixação portuguesa no Brasil Meridional, o gaúcho contribuiu para a defesa das fronteiras com as Regiões Platinas, participando ativamente da vida política do país. A partir disso, o reconhecimento de sua habilidade campeira e de sua bravura na guerra fizeram com que o termo "gaúcho" perdesse a conotação pejorativa. Após a Revolução Farroupilha, o gaúcho passou a ser considerado sinônimo de homem digno, bravo, destemido e patriota. O gaúcho é definido pela literatura como um indivíduo altivo, irreverente e guerreiro. Às suas raízes, somaram-se as culturas negra, alemã e italiana, e de tantos outros povos que vieram construir, no Rio Grande do Sul, uma vida melhor. O povo gaúcho valoriza muito sua história e costuma exaltar a coragem e a bravura de seus antepassados, expressando, por meio 331 de suas tradições, seu apego à terra e seu amor à liberdade . 330 Links são portais de navegação, formas de atalhos que conduzem o navegador diretamente a determinados locais (virtuais). 331 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Estado da Cultural. Disponível em: <http://www.cultura.rs.gov.br>. Acesso em: 02 dez. 2009. 124 Dentro do espaço destinado à cultura gaúcha, o enfoque se dá, além da definição acima transcrita, à origem do gaúcho, ao chimarrão, à culinária, ao vestuário, às festas juninas e aos símbolos rio-grandenses – sendo apresentada a Bandeira, o Hino e Brasão. Mesmo havendo símbolos próprios do tradicionalismo gaúcho (como a ave quero-quero, a erva-mate, a flor brinco de princesa, entre outros), a SEDAC opta por trazer, junto da cultura gaúcha, os símbolos oficiais do Estado, aparentando demonstrar maior reconhecimento de que esta é a que representa a identidade de seu povo. Em que pese à representação virtual da SEDAC estar invariavelmente ligada ao gauchismo, o mesmo parece não se dar em suas atuações na prática. As atividades da SEDAC se baseiam em cinco programas estruturantes, "criados com base nas prioridades e necessidades do Rio Grande do Sul”332: a) Programa Emancipar; b) Programa Saúde Perto de Você, atuando no Programa de Prevenção à violência; c) Programa Cidadão Seguro, mais especificamente no Projeto Recomeçar, que objetiva a reinserção social do preso; d) RS Mulher; e) RS Idoso. Ao chegar no centro Administrativo, nas instalações da Secretaria da Cultura, o visitante é recepcionado por um banner intitulado Arte de Incluir pela Cultura. Ao lado do banner, um cartaz explicativo das propostas da Secretaria, constando a seguinte descrição: SECRETARIA DO ESTADO DA CULTURA SLOGAN: A arte de incluir pela cultura MISSÃO: levar ao cidadão gaúcho o estímulo ao interesse pela cultura como exercício de cidadania, inclusão social e responsabilidade social a partir do resgate de sua identidade. VISÃO: ser modelo referencial como pólo cultural irradiador e difusor das manifestações e expressões artístico-culturais e de produção cultural do Rio Grande do Sul, tendo na cultura a dimensão e um projeto para a vida, com qualidade, oportunidade e perspectiva de geração de ocupação e renda. VALORES: Inclusão cultural Sociedade satisfeita Colaboradores integrados Qualidade nas ações e políticas culturais 332 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Programas Estruturantes. Porto Alegre, [s.d]. Disponível em: <http://www.estruturantes.rs.gov.br/index.php?option=com_programa& Itemid=2>. Acesso em: 12 jan 2010. 125 Valorização do ser humano e da cultura do no estado Desenvolvimento e sustentabilidade Incentivo e fomento à produção cultural Em oitiva a duas das organizadoras dos projetos de inclusão, ambas relataram que os últimos projetos desenvolvidos na busca da inclusão social foram festivais de Funk e HipHop, pelo programa “Arte de Incluir pela Cultura”, que abrangeram cidades litorâneas e bairros de Porto Alegre. Questionadas acerca da existência de projetos culturais que envolvessem o tradicionalismo gaúcho, a surpreendente resposta foi a de que nas reuniões da SEDAC, ao serem definidos os planos de trabalho, a conclusão foi a de que o tradicionalismo não podia ser considerado “uma cultura de base” e, portanto, não atingiria as camadas sociais mais dependentes dos projetos 333. Parece estranho, no mínimo curioso e altamente questionável, que o plano de desenvolvimento cultural do Estado esteja voltado a práticas de assimilação da cultura norte-americana, demonstrando total descuido com os valores e costumes locais. Apenas para exemplificar, no ano de 2008, a Secretaria da Cultura apoiou dois projetos socioculturais, ambos de pequena expressão, voltados ao tradicionalismo: a) Unidos pela Tradição: visava levar estudantes de escolas públicas até o Acampamento Farroupilha, durante a semana do evento; b) Crioulaço da solidariedade: evento realizado em Viamão, no mês de outubro de 2008, com mostras de provas com cavalo crioulo e premiações, cuja renda seria destinada a uma instituição carente. Enquanto isto, o Projeto de hip-Hop e Funk, realizado no período de agosto a outubro do mesmo ano, envolveu mais de 16 cidades da região metropolitana da capital. Além das competições de Funk e Hip-hop, foram feitas diversas oficinas de dança, rap e grafitagem 334. tais projetos seguiram em 2009. 333 Entrevista realizada na Secretaria de Cultura do Estado do Rio Grande do sul, com Patrícia Assis, Assessora de Gabinete da Secretaria, e Lise Ferreira, vice-presidente do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Rio Grande do Sul, no dia 13 de outubro de 2009. 334 Em que pesem as discussões sobre a disponibilidade patrimonial, a grafitagem permanece incursa no art. 65 da Lei de Crimes Ambientais, lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, por ser o entendimento majoritário o de que o bem jurídico tutelado é o ordenamento público, e não apenas o patrimônio particular. 126 A alegação de que o tradicionalismo gaúcho não se trata de uma “cultura de base” foi sobremaneira espantosa. Questionadas sobre o significado deste termo, não sobreveio nenhuma resposta esclarecedora, restringindo-se a responderem que as comunidades carentes não se identificam com o tradicionalismo, mas sim com o funk, grafitismo, hiphop, nas atividades de DJ’s e MC’s. Semelhante atitude demonstra a falta de sincronia (e de autenticidade) entre a representação da SEDAC e suas ações, pois ao contrário de buscar fortalecer a cultura interna, privilegia os estrangeirismos através de programas sociais que bem poderiam servir para promover a identidade social e individual, o auto-conhecimento e o espírito de “pertencimento” a uma cultura dotada de características próprias. O Governo do estado possui uma espécie de departamento próprio para os assuntos tradicionalistas. Trata-se do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), instituído pelo Decreto n.º 23.613, de 1974, criado para “atuar na área da pesquisa e divulgar a cultura rio-grandense”. A principio suas finalidades eram a promoção de pesquisas sobre o folclore, a tradição, a arte e a história gaúcha”335. Entretanto, o Instituto nunca possuiu auto-gerência ou rubrica que lhe permitisse, de fato, promover as pesquisas e divulgações da cultura gaúcha ao qual fora encarregado e hoje, em que pese as constantes tentativas de relação com as Secretarias do Governo Estadual, este aparentemente se mostra “desobrigado”, alegando que a própria sociedade civil se organizou de forma a não necessitar do Estado336. Conforme relato do próprio MTG, um dos principais auxiliadores do Movimento Tradicionalista são as Leis de Incentivo à Cultura – Federal e Estadual. A Lei Federal n° 8.313, de 23 de dezembro de 1991 (Lei Rouanet), 335 INSTITUTO GAÚCHO DE TRADIÇÃO E FOLCLORE. In. ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Estado da Cultural. Disponível em: <http://www.cultura.rs.gov.br>. Acesso em: 12 jan. 2010. 336 Entrevista com Manuelito Savaris, realizada em 13.10.2009, na Sede do IGTF, no Centro administrativo em Porto Alegre. 127 instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura – PRONAC, com o objetivo de canalizar recursos culturais para I - contribuir para facilitar, a todos, os meios para o livre acesso às fontes da cultura e o pleno exercício dos direitos culturais; II promover e estimular a regionalização da produção cultural e artística brasileira, com valorização de recursos humanos e conteúdos locais; III - apoiar, valorizar e difundir o conjunto das manifestações culturais e seus respectivos criadores; IV - proteger as expressões culturais dos grupos formadores da sociedade brasileira e responsáveis pelo pluralismo da cultura nacional; V salvaguardar a sobrevivência e o florescimento dos modos de criar, fazer e viver da sociedade brasileira; VI - preservar os bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e histórico brasileiro; VII - desenvolver a consciência internacional e o respeito aos valores culturais de outros povos ou nações; VIII estimular a produção e difusão de bens culturais de valor universal, formadores e informadores de conhecimento, cultura e memória; IX 337 priorizar o produto cultural originário do País . No Governo Sul-rio-grandense, a principal norma que pode favorecer diretamente o tradicionalismo é a LIC - Lei Estadual n° 10.846, de 19 de agosto de 1996, sendo que através dela, as empresas que optarem por financiar projetos culturais poderão compensar até 75% do valor do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços – ICMS, desde que recursos sejam destinados a projetos culturais que se enquadrem em seus limites338. Com base em uma Constituição Federal que reconhece a importância da cultura, bem como das possibilidades infraconstitucionais disponíveis, a análise de volta às políticas públicas capazes de fomentar o tradicionalismo gaúcho, a seguir. 337 BRASIL. República Federativa do. Lei n° 8.313, de 23 de dezembro de 1001. Restabelece princípios da Lei n° 7.505, de 2 de julho de 1986, institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) e dá outras providências. In. _____. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8313cons.htm>. Acesso em: 04 dez. 2009. 338 RIO GRANDE DO SUL, Estado do. Lei nº 10.846, de 19 de agosto de 1996. Institui o Sistema Estadual de Financiamento e Incentivo às Atividades Culturais, autoriza a cobrança de taxas de serviços das instituições culturais e dá outras providências. In. Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.al.rs.gov.br/legis/M010/M0100099.ASP?Hid_Tipo=TEXTO&Hid_ TodasNormas=10503&hTexto=&Hid_IDNorma=10503>. Acesso em: 04 dez. 2009. 128 3.3. Políticas públicas de fortalecimento cultural do tradicionalismo gaúcho As políticas públicas de incentivo à cultura começaram a ter expressão no Brasil tão somente no final do século XX, mais precisamente na década de 1990, destacando-se principalmente os incentivos fiscais em seu fomento. Neste sentido, Cesnik lembra que em 1820 D. João construiu a Biiblioteca Nacional, com recursos totalmente públicos. Entretanto, somente na metade do século XX é que a elite brasileira demonstrou sentir necessidade de investimentos na área da cultura: [...] em 1810, D. João VI construiu a Biblioteca Nacional, sem qualquer participação da iniciativa privada. A elite brasileira, em meados do século XX, atentou para a necessidade de investimento; o despertar, no entanto, não foi acompanhado das políticas públicas para o setor, o que representa um erro estratégico do gestor da máquina pública federal da época. As políticas públicas de investimento para o setor surgiram apenas no final de 1990, perdendo o estímulo natural que havia desde a metade do século XX e valendo-se do instituto jurídico que existia, ou seja, do incentivo 339 fiscal . Neste meio tempo houve iniciativas privadas de promoção cultural 340, destacando-se entre elas a Semana da Arte Moderna (1922), “apoiada” pelo Governo de São Paulo, com recursos basicamente particulares, cujo destaque histórico somente se firmou ao longo do tempo. Tarcila do Amaral, Mário e Oswald de Andrade, Anita Malfati, entre outros artistas, iniciaram com isto a projeção internacional do país, buscando mostrar a arte essencialmente brasileira, livre dos conceitos vanguardistas e das influências européias341. Enquanto isto, o Estado permanecia praticamente letárgico, alienado quanto aos assuntos culturais. O Movimento Modernista, formulado na década de 20, tinha entre seus objetivos uma reformulação sobre o conceito “cultura brasileira”. Os diversos elementos que faziam parte de nossa cultura iriam ser redescobertos e demarcados por seuus idealizadores e, a 339 CESNIK, Fábio de Sá. Guia do incentivo à cultura. Barueri: Manole, 2002, p. 02. Criação do Museu da Arte Moderna em São Paulo (São Paulo, 1948); Teatro Brasileiro de Comédia (São Paulo, 1948), Museu de Arte Contemporânea (São Paulo, 1951) 341 Contudo, vale salientar que esta “ruptura” que os idealizadores da Semana da Arte Moderna propunham na época era mais ideológica do que real, pois praticamente todos tinham formação artística nas escolas européias, ou para lá rumaram após a Semana de 22. 340 129 partir daí, cuidadosamente relatados e utilizados em obras de maior ou menos expressão [...] os nossos intelectuais passaram, principalmente a partir de 1924, a ver o Brasil como um vasto campo de inspiração, de demarcação da própria arte, ainda que tais idéias 342 adviessem muito de raízes importadas . Apenas para estabelecer um paradoxo, na mesma época, o governo norte-americano seguia rumo inverso, buscando fomentar a cultura local. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, exigia das grandes empresas investimentos em arte e filantropia, fomentando a cultura local e a obtenção de grandes coleções culturais – verdadeiros “tesouros universais”. Ao mesmo tempo, a cultura norte-americana passou a ser produto de exportação, refletindo em rápido espraiamento mundial do american way of life343, que passou a ser sustentado por inúmeras outras sociedades no mundo344. Enquanto a sociedade brasileira ainda buscava se “auto-identificar”, o governo norte-americano investia altas somas no fortalecimento da identidade nacional. O reflexo social desta iniciativa governamental foi tão significativo que os Estados Unidos, hoje, são reconhecidos como uma das “identidades nacionais” mais consolidadas do mundo, o que merece o devido respeito. O investimento do Estado no fortalecimento cultural importou no fortalecimento do próprio Estado. Pode se dizer que o que se pretende com esta análise – fundamentar a necessidade de ação estatal voltada à elaboração de políticas publicas capazes de proteger a identidade gaúcha -, reflete uma construção histórica desta mesma identidade e de seus fatores de ligação (saudade, nativismo, valores morais e éticos), de identificação, que passam a ser merecedores desta proteção, com consequências no fortalecimento do Rio Grande do Sul e da Nação. Sem duvida, a discussão filosófica sobre a identidade nacional promovida pela Semana de 22, influenciou (talvez não tanto em sua própria 342 GUEDES, Tarcila. O lado doutro e o gavião do penacho – Movimento e Patrimônio Cultural no Brasil: o serviço do patrimônio histórico. São Paulo: Anhablume, 2000, p. 27. 343 Estilo americano de vida. 344 Cesnik, 2002, p. 03. 130 época, mas ao longo dos anos e décadas seguintes) uma maior atenção às tradições e múltiplas faces da cultura nacional, alertando para os estrangeirismos. Ao mesmo tempo, contribuiu para a eleição de uma faceta cultural do Brasil que não traduz necessariamente sua riqueza cultural – passou-se a “exportar” um Brasil-carnaval e um Brasil bossa-nova, até hoje vendido internacionalmente. Enquanto isso, em diversos países, quando os governos locais necessitam da representação cultural brasileira, é o tradicionalismo gaúcho que se faz presente, pois é única manifestação cultural originalmente brasileira dotada de vida própria – afinal como definiu Louzada, é a vivência de uma tradição, um “estilo de vida”345. Não é à toa que antropólogos do mundo inteiro analisam este “fenômeno”, pois ultrapassa os conceitos usuais de cultura, tradição e costume. Para Lima, “a enorme confusão cultural vivida no presente século e a grande confusão mental que provocou em nossos meios” são as principais responsáveis pela criação de uma ambiente social propício ao surgimento do gauchismo, “um movimento voltado para a preservação daquela que deu consistência e vitalidade à sociedade gaúcha quando de sua formação”346, mas estas características sócio-culturais se encontram em constante risco de ruptura, diante da complexidade advinda da globalização. A preocupação do tradicionalismo com a integridade cultural não é recente, o que se vislumbra nas palavras de Oliven, ao afirmar que os tradicionalistas sempre souberam que as ameaças à integridade cultural [...] viriam de fora, pela massificação e introdução dos costumes “alienígenas” disseminados pelos meios de comunicação em massa, e de dentro, através das deturpações de “maus” tradicionalistas, pelo uso inadequado da indumentária por grupos artísticos, por aberrações nas coreografias das danças gaúchas, etc. [...] Assim, todo o cuidado é pouco para frear o que é chamado de atropelo na 347 “descaracterização da cultura e dos costumes” . 345 LOUZADA, Hélio Damaceno. Presidente do Conselho Diretor da Confederação brasileira de Tradicionalismo gaúcho – CBTG. Entrevista realizada em 17 de novembro de 2009 346 Lima, 2004, p. 23. 347 Oliven, 1992, p. 19-20. 131 À medida em que a cultura gaúcha toma espaço no mundo, cabe ao seu Estado-mãe adotar medidas necessárias para que ela não se perca no próprio berço, pois sua contribuição é digna de valorização e respeito, na busca de uma sociedade justa e igualitária, livre da marginalidade e evocadora dos princípios de boa conduta social e do resgate da família348. 3.3.1 Políticas educacionais A educação, cada vez mais, tem sido considerada condição para o desenvolvimento social, reconhecida pela própria declaração dos Direitos Humanos como direito fundamental. O direito à educação compreende tanto seu aspecto formal - sinteticamente, aquela que compreende os métodos tradicionais de ensino em uma estrutura padronizada e planificada-, quanto não formal - traduzida pela forma mais flexível de educação, a qual não segue necessariamente a totalidade das diretrizes e normas governamentais préestabelecidas e pode ser oferecida por instituições sociais governamentais ou não-governamentais, com orientações filosóficas e/ou laborais voltadas aos valores sociais, em atenção ao efetivo exercício da cidadania. Na evolução do trabalho apresentado por Costa e Porto, as autoras contemplam a educação como sendo uma necessidade humana básica, questionando qual o tipo de educação que se deve destinar à formação do sujeito, o que “não se refere exclusivamente ao processo de desenvolvimento da capacidade intelectual de cada indivíduo”, mas também com sua capacidade moral e humanização. As autoras evocam Bordieu, no seu conceito de que a educação é o próprio capital cultural, devendo-se primar por uma educação transformadora, capaz de contribuir 348 Não se pretende aqui apresentar as discussões jurídicas e doutrinárias sobre o conceito de família, tão somente traduzir seu significado repleto de sentimentos, onde as pessoas convivem em harmonia e respeito, na busca do bem comum a todos os seus integrantes. 132 com a compreensão das diferenças e suprir a necessidade de convívio salutar em sociedade 349. [...] a satisfação dessas necessidades confere aos membros de uma sociedade a possibilidade e, ao mesmo tempo, a responsabilidade de respeitar e desenvolver sua herança cultural, linguística e espiritual, de promover a educação de outros, de defender a causa da justiça social, de proteger o meio-ambiente e de ser tolerante com os sistemas sociais, políticos e religiosos que difiram dos seus, assegurando o respeito aos valores humanistas e aos direitos humanos comumente aceitos, bem como de trabalhar pela paz e pela 350 solidariedade internacionais em um mundo interdependente . Diante da construção desta idéia, aponta-se a educação não só como uma “necessidade humana básica”, mas como uma necessidade básica da coletividade, tendo em vista que dela importa o desenvolvimento não apenas do particular, mas da própria sociedade, principalmente se retratarmos a educação voltada à identificação, conhecimento e proteção cultural. Nota-se, assim, que o conceito contemporâneo de educação está intimamente ligado à questão de sua humanização e dos aspectos da proximidade cultural em um contexto globalizado, ou seja, são recorrentes as afirmações da educação como um valor social em si, como um quesito prévio ao desenvolvimento do homem e da sociedade. Sustenta Henz e Rossato que [...] quando falamos em globalização e em tempos que as relações se tornam universais e as fronteiras da cultura são superadas, embora seja inaceitável uma uniformização tanto de pensamento quanto de comportamentos, a educação deve contribuir para uma cidadania mundial, humanitária, solidária, justa e intercultural com 351 respeito à pluralidade de pensamento e de organização social . Para se atingir a humanização pretendida através da educação, primeiro se faz necessário o conhecimento da própria identidade, para 349 COSTA, Marli Moraes Marlene da.; PORTO, Rosane Carvalho. Educação para a cidadania. In: GORCZEVSKI, Clovis. Direitos Humanos, educação e cidadania. Porto Alegre: UFRGS, 2007, p. 74-79. 350 REIS, Suzéte da Silva; COSTA, Marli Moraes Marlene da. A educação como vínculo emancipatório para a construção e para o exercício da cidadania. In: Gorczevski, 2007, p. 97. 351 HENZ, Celso Ilgo; ROSSATO, Ricardo. Educação humanizadora em tempos de globalização. In. HENZ, Celso Ilgo; ROSSATO, Ricardo; BARCELOS, Valdo (org.). Educação humanizadora e os desafios da diversidade.Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2009, p.16. 133 depois se trabalhar a idéia de respeito às diferenças. Nos currículos escolares, nota-se que a cultura local e regional ainda são pouco exploradas, estando ainda presente a idéia de uma “cultura” extremamente elitista. É imperiosa a observação de que a “cultura” se encontra em todas as classes sociais e que o respeito a esta diferença é capaz de auxiliar na promoção da tão aventada inclusão social, o que deve iniciar nos assentos escolares. Desta forma, é necessário que os currículos escolares acompanhem o desenvolvimento da própria política cultural, que abandonou o conceito retrógrado que associava (mesmo que de forma mascarada), a idéia de cultura e patrimônio cultural à representação da minoria abastada da população, detentora de status social e de riquezas materiais, transfiguradas em seus castelos, grandes prédios ou obras de arte de estimada valia pecuniária. Uma educação “culturalmente emancipadora” é capaz de superar este conceito no íntimo dos educandos, que passam a identificar-se com a própria cultura, desenvolvendo sentimentos de pertencimento e responsabilidade social. Esta nova tendência, nas palavras de Barreto, consiste em se [...] levar em conta tanto os grandes feitos como a chamada petit historie, a história das minorias, dos relegados, e a relação entre os diferentes segmentos que compõe as sociedades estudadas, incluindo as relações econômicas e sociais, a vida doméstica, as condições de trabalho e lazer, a atitude para com a natureza, a 352 cultura, a religião, a música, a arquitetura, a educação . A competência legislativa para definir as diretrizes e bases educacoinais é privativa da União, conforme o art. 22 da Constituição Federal e a Lei infraconstitucional que merecem maior destaque é a Lei n° 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDBEN. Os Estados, Distrito Federal e Municípios podem legislar somente, e de forma concorrente com a União, sobre os meios de acesso à educação, bem como sobre normas gerais de funcionamento, mas não podem intervir nos currículos escolares. 352 Barreto, 2004, p. 11. 134 De acordo com Savaris, esta tem sido a principal desculpa da Secretaria de Educação até então, para justificar o fato de não se trabalhar o tradicionalismo gaúcho nas escolas estaduais. No entanto, os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs - destacam que a valorização das diferentes culturas tem se dado de forma desigual, ensejando movimentos de resistência voltados à preservação da identidade. É visível em sua redação a preocupação com a fragmentação da identidade, no seguinte sentido: A cultura, como código simbólico, apresenta-se como dinâmica viva. Todas as culturas estão em constante processo de reelaboração, introduzindo novos símbolos, atualizando valores. O grupo social transforma e reformula constantemente esses códigos, adaptando-se seu acervo tradicional às novas condições historicamente construídas pela sociedade. A cultura não é algo fixo e cristalizado que o sujeito carrega por toda sua vida como um peso que o estigmatiza, mas é elemento que o auxilia a compor sua identidade. Entretanto, o processo de mudança intrínseco a qualquer cultura já foi entendido como desfiguração da cultura tradicional, desvio e perda, o que, do ponto de vista colocado, é uma idéia incorreta. É preciso compreender esse caráter intrínseco da mudança, do ponto de vista dos grupos culturais, diferente de intromissões de elementos externos que sugerem ou impõe fatores estranhos à cultura, ou até de transplantes culturais. A cultura pode assumir um sentido de sobrevivência, estímulo e resistência. Quando valorizada, reconhecida como parte indispensável das identidades individuais e sociais, apresenta -se como componente do pluralismo próprio da vida democrática. Por isso, fortalecer a cultura própria de cada grupo social cultural e étnico que compõe a sociedade brasileira, prom over seu reconhecimento, valorização e conhecimento mútuo, é fortalecer a igualdade, a justiça, a liberdade, o diálogo e, 353 portanto, a democracia . A proposta dos PCNs é oferecer aos alunos “oportunidades de conhecimento de suas origens como brasileiros e como participantes de grupos culturais específicos”, com a finalidade de valorizar a multiplicidade cultural brasileira, fazendo com que o aluno compreenda seu próprio valor, “promovendo sua auto-estima como ser humano pleno de dignidade, cooperando na formação de autodefesas a expectativas indevidas que lhe 353 BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: pluralidade cultural, orientação sexual. vol. 10. Brasília: MEC/SEF, 1997. p. 43-44. 135 poderiam ser prejudiciais”, na finalidade de que se apure sua percepção sobre injustiças, preconceitos e discriminações354. Não se pretende aqui, apresentar às práticas educacionais uma cultura cuja verdade hegemônica limita, reprime. Ao contrário. Se pretende, através da apresentação e compreensão consciente da cultura local, seguir os próprios parâmetros curriculares, aproveitando para instigar os educandos à prática dos princípios e valores morais, quer dentro, quer fora do tradicionalismo, propiciando a abertura ao diálogo e à aceitação das diferenças. Os próprios princípios aventados incansavelmente pelo tradicionalismo refletem, justamente, o resgate aos valores e à moral, à família, ao respeito e aos bons costumes. A associação destes princípios, e a apresentação da cultura gaúcha aos educandos poderia ser alternativa eficiente em sua formação psicológica, através do engajamento a estes princípios. O tradicionalismo gaúcho já realiza, dentro de sua estrutura organizacional, uma educação essencialmente humanizadora, se encaixando perfeitamente na luta de resgate de uma sociedade onde os indivíduos parecem ter perdido a [...] “sensibilidade de serem ‘pessoas’, de serem ‘gente’; perderam a humana capacidade contemplativa, não apenas de ‘ser’, mas também de perceber o outro como gente, fazendo com que as relações afetivas, dialógicas e interpessoais se afastem cada vez mais: ‘ estamos vivendo uma crise global profunda, onde o vazio existencial e afetivo, provocado pela manipulação e desmandos, favorece a miséria, a violência, a corrupção, o medo, a insegurança, 355 resultado da fragilidade das relações e dos valores humanos” . A preocupação do tradicionaismo gaúcho com relação à educação é dupla: se apresenta tanto pela preocupação com a formação ética e moral de crianças e jovens quanto à própria proteção do tradicionalismo. Neste sentido, Lessa: 354 BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: pluralidade cultural, orientação sexual. vol. 10. Brasília: MEC/SEF, 1997, p. 51. 355 SILVA, Jalair da Costa; TONIOLO, Jose Medianeira dos S. de A. Educação humanizadora e os desafios da diversidade: alguns pontos para refllexão. In. Henz, Rossato e Barcelos, 2009, p. 190. 136 Deve, o Tradicionalismo, operar com intensidade no setor infantil ou educacional, para que o movimento tradicionalista não desapareça com a nossa geração. Porque nós - os tradicionalistas de primeira arrancada - entramos para os Centros de Tradições Gaúchas movidos pela necessidade psicológica de encontrar o "grupo local" que havíamos perdido ou que temíamos perder. Mas as gerações novas não chegaram a conhecer o grupo local como unidade social autêntica, e somente seguirão nossos passos por força de impulsos que a educação lhes ministrar. Por isso não temo afirmar que o dia mais glorioso para o movimento tradicionalista será aquele em que a classe de Professores Primários do Rio Grande do Sul - consciente do sentido profundo desse gesto, e não por simples atitude de simpatia - oferecer seu decisivo apoio a esta campanha cultural. Aliás, não se concebe que as Escolas Primárias continuem por mais tempo apartadas do movimento tradicionalista. Pois a maneira mais segura de garantir à criança o seu ajustamento à sociedade é precisamente fazer com que ela receba, de modo intensivo, aquela massa de hábitos, valores, associações e reações emocionais - o patrimônio tradicional, em suma - imprescindíveis para que o 356 indivíduo se integre eficientemente na cultura comum . Os precursores do tradicionalismo gaúcho imaginavam que teriam apoio maciço da comunidade educacional desde os primórdios. Estavam certos de que “mais cedo ou mais tarde, as instituições de ensino estaria cerrando fileiras conosco na valorização da cultura brasileira e das tradições regionais. Foi um fragoroso erro de cálculo!357”. Lessa acrescenta: Tínhamos fortes razões para acreditar que a Escola e a Universidade também fariam questão de assumir seu papel histórico, dando uma guinada de 180 graus nos currículos meramente repetidores de modelos alienígenas. [...] Confiávamos principalmente na atuação do ensino primário e secundário, por estarem precisamente na órbita do governo estadual e da comunidade gaúcha. Aqui residiam nossas 358 grandes esperanças . Na esfera educacional os antitradicionalistas não deixaram de opinar. Como o tradicionalismo não faz parte dos currículos disciplinares, esta discussão se dá na volta do folclore, onde o tradicionalismo gaúcho poderia se estabelecer. Para Golin, a dubiedade do material entendido como folclore provocaria a necessidade de cada comunidade procurar as “suas” culturas, o que fortaleceria o debate sobre o tradicionalismo: “imediatamente surgirá a pergunta se o tema merece “tempo” destinado a uma “disciplina”. já que para 356 LESSA, Barbosa. O sentido e o valor do tradicionalismo gaúcho. In. Página do gaúcho. [D.l.; s.d.]. Disponível em: <http://www.paginadogaucho.com.br/ctg/valor.htm>. Acesso em: 14 nov. 2009. 357 Idem, 1985, p. 85. 358 Ibidem. 137 ele o tradicionalismo gaúcho somente é vivenciado em clubes, restaurantes e palcos, e sobrevive graças ao seu trânsito cultural pela rádio e televisão, sendo a cidade, “negritude e rock, e seu maior fato genuinamente folclórico é o carnaval”. Em palavras extremamente pejorativas, complementa: Caso vigorem as determinações tradicionalistas, teremos centenas de idiotas decorando as cartilhas do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore e do MTG para aplicarem lições automáticas (como tem sido nos CTGs), com patéticos bailados e sapateados, a serem reproduzidos por milhares de patetas, de uma cultura que reproduzirá na escola todos os seus valores – o machismo, a empáfia cívica e fascista, o culto ao militarismo, e a exaltação do 359 latifúndio como mundo ideal . Sem adentrar na discussão da questão, vale dizer que causa estranheza o argumento de Golin, ao atribuir ao carnaval a qualidade de folclore genuíno. Sua origem não é brasileira, muito menos regional. O carnaval brasileiro, hoje, é considerado a maior festa popular do mundo, mas utilizando as críticas de Golin sobre a “criação” da identidade gaúcha, elas também não serviriam para o “criação brasileira” sobre o carnaval? Por certo que sim. Mais uma vez reitera-se: não há tradição, cultura pré-concebida: são sempre criações de povos que através delas se identificam, criam linhas de associação capazes de interferir em sua idiossincrasia, na forma pela qual vêem o mundo e vivenciam suas experiências. Seria crível pretender, portanto, que os currículos escolares tratassem do carnaval, mas não da cultura tradicional gaúcha, preferindo “enterrar” os currículos “em sua pior tradição”360, como sustenta Golin? Parece-nos absurda tal alegação por seus próprios fundamentos. Desta forma, estando incluídos os estudos culturais nos PCNs, fortemente justificados através da idéia de que podem promover o fortalecimento da identidade pessoal e coletiva, bem como da inclusão social através da compreensão das diferenças, não há razão para não se trabalhar, 359 360 Golin, 1987, p. 26. ibidem, p. 26. 138 de forma interdisciplinar, com o tradicionalismo gaúcho, face identitária sul-riograndense. 3.3.2 Inclusão social e proteção da juventude O tradicionalismo gaúcho sempre demonstrou preocupação com o desenvolvimento da infância e da juventude, por sues próprios fundamentos, ou seja, por se basear em conceitos morais que envolvem todas as faixas etárias. Inúmeros CTGs, a exemplo do CTG Gaudérios de São Pedro, desenvolvem projetos de inclusão social, juridicamente distintos ou não das atividades culturais, onde são trabalhados os conceitos tradicionalistas, principalmente voltados ao desenvolvimento do senso de cidadania e responsabilidade social, acima, inclusive, da preocupação com a transmissão do folclore e da tradição. Considerando o alto grau de aceitação social do tradicionalismo gaúcho e, acima disto, o “engajamento” social que se nota com crianças e jovens envolvidos, não se vislumbra razão para que não haja ações conjuntas neste sentido. Um dos exemplos é a Lei Federal nº 9.608, que prevê a possibilidade de concessão de auxílio financeiro ao prestador de serviço voluntário com idade de dezesseis a vinte e quatro anos. A própria lei traz o conceito de voluntariedade, como sendo a atividade não remunerada, prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza, ou a instituição privada sem fins lucrativos, que tenha por objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade. Esta lei é plenamente aplicável aos jovens que compõe, por exemplo, os grupos de danças tradicionalistas, seja na participação direta, seja no acompanhamento ou orientações. O público-alvo principal da referida lei são jovens egressos de 139 unidades prisionais ou que estejam cumprindo medidas sócio-educativas, ou ainda grupos específicos de jovens integrantes das taxas de desemprego361. À exemplo da Lei Federal, o próprio Estado poderia criar políticas específicas de fomento ao tradicionalismo gaúcho, de forma a fomentar a inclusão social e permitir um acesso maior dos jovens em risco de disgreção social ou prevendo seu ingresso no mercado de trabalho. 3.3.3 Proteção direta ao patrimônio cultural – tombamento e desapropriação Dentre a doutrina jurídica nacional é consensual o fato de que “a noção de patrimônio cultural é muito mais ampla, que inclui não apenas os bens tangíveis como também os intangíveis, não só as manifestações artísticas, mas todo o fazer do ser humano”362, transformado o bem cultural em uma fonte de memória que compõe a identidade do sujeito ao mesmo tempo em que sua estrutura é composta por ele – e pela integração entre os diversos sujeitos – em perfeita simbiose. Nota-se, entretanto, que as origens do pensamento protetivo ainda permeiam as estruturas sociais dissociando os bens imateriais, ao menos em um primeiro plano, da idéia de patrimônio cultural merecedor de proteção jurídica. Para a presente pesquisa, em se tratando a cultura gaúcha de patrimônio cultural regional - não desmerecendo a atenção do Governo Federal em sua proteção, posto que também faz parte da cultura nacional-, a análise das políticas de tombamento e desapropriação se voltam a um caráter mais definido, por se acreditar que seja melhor desempenhado pelo Estado do Rio Grande do Sul e seus Municípios. 361 BRASIL, República Federativa do. Lei nº 9. 608, de 18 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre o serviço voluntário e dá outras providências. In. Cirne, 2008, p. 87-88. 362 Barreto, 2004, p. 10. 140 3.3.3.1 Tombamento Os primeiros focos de proteção do patrimônio cultural no Brasil datam da década de 30, caracterizada por uma “escolha prioritária de bens arquitetônicos excepcionais, ligados ao período barroco e, particularmente, às expressões de poder dominante”, mais especificamente igrejas, palácios, casas de câmara e cadeias. O resultado foi o “fortalecimento de uma memória monumental em detrimento de outras categorias de laços sociais da memória coletiva”363. Desde a Constituição Federal de 1988, instituiu-se a competência concorrente entre União, Estados e Municípios na preservação cultural. Apenas à guisa de esclarecimentos, o termo melhor adotado seria o de competência compartilhada, ou então competência comum, tendo em vista que o ato de um ente federado legislar sobre a preservação do patrimônio cultural, por exemplo, não exclui competência dos demais. A principal razão da existência dessa competência paralela é a diferença do ponto de vista a partir do qual se protege o interesse público. Isto porque os critérios estimativos para esta avaliação variam significantemente de acordo com o ente federado envolvido - União, Estado ou Município -, pois não se pode exigir que o mesmo bem tenha valor identitário comum a todo o território nacional. O tombamento364 é considerado o instrumento mais eficaz na proteção ao patrimônio cultural no Brasil, ao lado da Constituição Federal, pois vincula o interesse público a fatos históricos nacionais memoráveis, cuja hermenêutica, hoje, deve possuir o viés constitucional de referência à identidade nacional e à memória das mais variadas culturas que compõe a estrutura social brasileira, afinal, [...] o Brasil não garantiria a preservação de sua cultura sem valorizar a profunda diversidade do ser cultural brasileiro. As mais de duzentas nacionalidades indígenas, os diversos grupos negros e a variada composição de europeus e asiáticos, não se transformam 363 MEIRA, Ana Lúcia Goelzer. Patrimônio cultural e globalização. In. POSSAMAI, Zita Rosane; ORTIZ, Vitor. Cidade e memória na globalização. Porto Alegre: Secretaria Municipal da Cultura, 2002, p. 122. 364 Decreto-lei n.º 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. In. Brasil. República Federativaa do. 2006-2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del0025.htm>. Acesso: 31 mar. 2009. 141 em duzentos ou trezentos anos em “valor arqueológico, etnográfico, bibliográfico ou artístico”, mas formam fortes pressões e manifestações de cultura própria, miscigenada aqui, transfigurada ali, mas capaz de formar uma arquitetura, um desenho, uma música 365 singular . Trata-se de um ato administrativo que pode ser praticado por qualquer dos poderes públicos federados. Esta figura jurídica, criada no Brasil em 1937, retrata em seu artigo 1º o conceito de patrimônio cultural, como sendo o “patrimônio histórico e artístico nacional”, compreendendo bens móveis e imóveis “cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”. Souza Filho lembra que o Decreto 25/37 deve ser considerado como uma norma procedimental de tombamento, mas não como regramento de proteção aos bens culturais, pois “é deficiente quanto aos bens culturais locais, porque não está entre seus objetivos a proteção das manifestações diretas da cultura brasileira, mas daquilo que, no Brasil, é reconhecido como cultura universal”, tendo em vista que “lhe falta definição de institutos diferenciados do tombamento, que possam garantir e preservar bens da cultura material popular, bens paleontológicos e bens materiais”.366 Na prática, o tombamento pode se dar de forma voluntária, quando o proprietário o solicita, ou de forma compulsória pelo Estado367, estabelecendose processo administrativo com respeito ao contraditório de todas as partes interessadas, sem possuir força de coisa julgada, ou seja, a decisão administrativa poderá ser revista judicialmente. Importa esclarecer que este instituto não modifica a natureza jurídica do bem, pois “apenas impõe 365 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens culturais e proteção jurídica. 2. ed. Porto Alegre: Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre, 1999, p. 67. 366 Souza Filho, 1999, p. 67-68 367 Cfe. dados oficiais disponíveis em: BRASIL, República Federativa do. Ministério da Cultura: Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico Nacional. Brasília, [S.d]. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=308>. Acesso em 13 ago. 2008. Em nível nacional, o órgão responsável é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, criado em 13 de janeiro de 1937, pela Lei n.º 378. Atualmente, subordinado ao Ministério da Cultura, está organizado por 21 Superintendências, 6 Sub-regionais e 27 escritórios técnicos dentro do território brasileiro, sendo que no Estado do Rio Grande do Sul se encontra a 12ª Superintendência Regional. 142 limitações e restrições, e agrega um direito coletivo difuso ou socioambiental”368. O bem cultural passa a ter idêntico tratamento ao aplicado aos demais bens difusos, principalmente em relação aos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente previstos, sendo assegurado ao público o acesso, a observação e a participação de sua preservação. Quanto à competência protetiva concorrente entre os entes federados, cumpre esclarecer que é pacífica a importância do papel do Município na proteção do patrimônio cultural, muito embora a Constituição Federal, em seu artigo 24, afirme que “compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: [...] VII – proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico”, omitindo portanto, a esfera municipal; em contrapartida, no artigo 30, incisos I e II, afirma que compete ao Município “legislar sobre assuntos de interesse local e de forma suplementar à legislação estadual e federal, no que lhe couber”, bem como com o que dispõe o artigo 215, no sentido de que o “Estado garantirá a todos os plenos exercícios dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional [...]”, estando envolvidas aqui todas as esferas estatais. Sobre a competência municipal, Souza Filho esclarece ser inquestionável sua capacidade normativa, respeitando os conceitos de Autonomia e Auto-governo, mediante um Poder Executivo e Legislativo próprios, isto é, a organização e o estabelecimento de normas e critérios na prestação de serviços de interesse local369. Muito embora a competência municipal tenha sido definida por fatores espaciais, a idéia de interesse local, principalmente no que diz respeito à tutela cultural, não significa propriamente um interesse exclusivo municipal, porque de forma direta ou indireta, os reflexos terminam por atingir interesses difusos estaduais, nacionais ou mesmo internacionais, uma vez que o direito à cultura é partilhado por todas as esferas estatais. Portanto, pelas próprias características espaciais contidas na idéia da competência municipal, esta se estende aos bens e serviços cuja proteção seja efetivamente de interesse local, ou seja, aos bens que, nos termos 368 369 Souza Filho, 1999, p. 118. Ibidem., p. 112. 143 constitucionais, sejam portadores de referência à identidade da população local. Outra questão significativa é o fato de que, independente da esfera legislativa que fizer o reconhecimento do bem como cultural, cabe ao Poder Público, como um todo, garantir sua proteção. Isto porque o patrimônio definido como bem cultural pelo Poder Legislativo Federal estará obrigatoriamente situado em um determinado Estado-membro e, consequentemente, em um Município – e assim por diante. O mesmo ocorre em sentido inverso: quando o Município define em lei própria um bem local como sendo constituinte de seu acervo cultural, sua proteção deve ser garantida inclusive em âmbito federal, pois a Nação é formada pelo conjunto de seus entes federados e das culturas nele inseridas. O que se discute é justamente a diferença do grau de relevância cultural existente entre as três esferas, nacional, estadual e municipal, o que serve de fundamento-base para a justificativa de serem as competências municipal e estadual mais apropriadas do que a nacional em se tratando de bens culturais: é muito possível ocorrer de um bem, considerado imprescindível para o resguardo da memória do Município e para garantir a identidade da comunidade, não tenha a mesma relevância cultural para o Estado-membro onde se encontra situado, situação esta que se agrava se consideradas as dimensões continentais do País. A identificação do patrimônio cultural é realmente subjetiva, principalmente considerando que a cidade “é um complexo fenômeno em contínuo processo de transformação no espaço-tempo”. As “permanências, as rupturas, as continuidades, as relações do antigo com o novo” se dão no espaço local (o qual obrigatoriamente estará inserido em um contexto estadual e federal), pois os valores da sociedade, estabelecidos em um critério de espaço-tempo, é que contribuirão para a identificação de seu patrimônio cultural370. O fundamento é simples: em se tratando de cultura, um espaço 370 MEIRA, Ana Lúcia. O passado no futuro da cidade: políticas públicas e participação popular na preservação do patrimônio cultural de Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2004, p. 13. 144 mais restrito revela uma conexão mais próxima entre o sujeito e o patrimônio, uma identificação do indivíduo com a representatividade do bem a ser protegido. Isto não significa uma tolerância de despreocupação do governo nacional com a cultura local ou regional. Ao contrário. Apenas pretende-se demonstrar que há uma maior garantia de especificidade na definição do que é de fato relevante para a comunidade quando tais decisões surgem do próprio meio, sob as influências internas de sua história e tradições, responsáveis pela identificação e sentimento de pertença do indivíduo com o meio cultural 371. Considerando que as competências nesta área se dividem em competências administrativas e legislativas, importa ressaltar que o papel do governamental na proteção do patrimônio cultural vai além de legislar sobre o tema. Cabe a ele adotar medidas que assegurem a proteção de todos os bens culturais, tenham sido eles elevados a este status por decisão federal, estadual, ou mesmo municipal. É inegável a necessidade de se proteger o patrimônio cultural, com o fim principal de preservar a própria identidade gaúcha. Cabe ressaltar, assim, que o risco de violência e destruição não atinge somente as construções e obras de arte tangíveis, mas também o cultural imaterial, para o que são necessárias políticas de preservação. A lei de tombamento se reflete em importante instrumento de proteção ao tradicionalismo gaúcho, de forma a fortalecer não só o movimento tradicionalista, mas a identidade do seu povo. No Estado do Rio Grande do Sul, o órgão responsável pelos bens tombados é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado – 371 Ainda, deve ser observado que as consequências das políticas de preservação do patrimônio cultural tangível, principalmente em se tratando de edificações, sítios protegidos ou obras de arte, possuem efeitos imediatos sempre sentidos no espaço local. Será no município que surgirão questões urbanísticas a serem resolvidas, as quais ultrapassam a obrigação constitucional de zelar pela manutenção deste patrimônio, como por exemplo a questão da poluição visual, das alterações nos regramentos de trânsito ou as próprias limitações quanto às edificações civis. 145 IPHAE372, hoje vinculado à Secretaria da Cultura. Em se tratando de bens imateriais, em pesquisa junto ao site do IPHAE, nenhum bem cultural imaterial voltado à tradição gaúcha, até hoje, recebeu tal reconhecimento e proteção – nem mesmo o churrasco ou o chimarrão. Note-se, junto ao órgão nacional responsável, o instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, que estão protegidos nacionalmente 15 bens culturais imateriais, a saber: o Ofício das Paneleiras de Goiabeira; a Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi; o Círio de Nossa Senhora de Nazaré; o Samba de Roda do Recôncavo Baiano; o Modo de Fazer Viola-deCocho; o Ofício das baianas de Acarajé; o Jongo no Sudeste; a Cachoeira de Iauaretê – lugar sagrado dos povos indígenas dos Rios Uapés e de Papuri; a Feira de Caruaru; o Frevo; o Tambor de Crioula; as Matrizes do Samba no Rio de janeiro (Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo); o modo artesanal de fazer Queijo de Minas, nas regiões do Serro e das serras da Canastra e do Salitre; a Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres de Capoeira; o modo de fazer renda Irlandesa, produzida em Divina Pastora (SE); e o toque dos Sinos, em Minas Gerais373. Note-se que dentre eles, nenhum bem reflete a cultura sul-rio-grandense. O Núcleo de Cultura do Município de Venâncio Aires (NUCVA) vem desenvolvendo desde 2007 um Projeto intitulado “Chá da Amizade”, aprovado pelo Ministério da Cultura e patrocinado pela Petrobrás Cultural, com auxílio da Lei Rouanet, que será encaminhado ao IPHAN com a finalidade de reconhecer o chimarrão como patrimônio imaterial nacional. De acordo com a Petrobrás, o projeto envolve duas etapas – uma de pesquisa, através do contato direto com produtores e empresas, “com o objetivo de ‘descobrir as origens do chimarrão 372 RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Cultura. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado. Porto Alegre, [s.d.]. Disponível em: <http://www.iphae.rs.gov.br/Main.php?do=paginaInicialAc&Clr=1>. Acesso em: 21 ago. 2009. 373 Brasil. Instituto de Proteção ao Patrimônio Histórico e Artístico nacional – IPHAN. Patrimônio imaterial: bens registrados. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=12456&retorno=paginaIphan>. Acesso em 02 nov. 2009. 146 e desbravar todo o universo que o envolve como patrimônio imaterial’”, e outra que se constitui no próprio processo de tombamento374. O estudo e as análises sobre a temática do Patrimônio imaterial têm propiciado aprofundamentos culturais significativos no Brasil. A questão que circunda a prática cultural do CHIMARRÃO não seria diferente, pois a palavra em si é bastante representativa em todo o país, uma vez que remete diretamente a uma imagem já presente no inconsciente coletivo, da região sul, em especial ao arquétipo do 375 gaúcho . O material de pesquisa realizado pelo NUCVA está concluído, consistindo em um livro, dois DVDs, um CD, que retratam a história do chimarrão e sua identificação social, sendo que o processo de tombamento ainda levará cerca de dois anos. No material elaborado, consideram o costume do chimarrão [...] um “Patrimônio Histórico Imaterial” transmitido de geração em geração através da oralidade e da memória dos grupos, sendo constantemente recriados pelas comunidades em função de seus ambientes, suas interações, das lembranças e histórias, gerando um sentimento de identidade regional que está inserido em suas 376 manifestações . A iniciativa do NUCVA é inédita, pois nem mesmo a Capital do Estado, Porto Alegre, possui qualquer bem cultural de natureza imaterial tombado, mesmo na esfera municipal. Dentre os bens materiais, dentre os fatores de sua identificação se destacam critérios religiosos, econômicos ou arquitetônicos377, à exceção à Estátua do Laçador, único bem material diretamente. O monumento foi elaborado em 1954, por Antônio Caringi, por ocasião da comemoração do sesquicentenário da cidade de São Paulo: 374 PETROBRÁS. Disponível em: http://www.hotsitespetrobras.com.br/cultura/projetos/51/361. Acesso em: 12 fev. 2010. 375 ROSA, Angelita da (org.). O patrimônio imaterial do chimarrão: o chá da amizade. Venâncio Aires: NUCVA, 2008, p. 03. 376 MULHEN, Leonel Renato Von. Contextualização histórica do patrimônio imaterial brasileiro, suas representatividades, através da cultura (da erva-mate ou do chimarrão) na Cidade de Venâncio Aires. In. Rosa, 2010. CD-ROM. 377 Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Secretaria da Cultura. Listagem de bens tombados. Disponível em: <http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/smc/usu_doc/imoveis_tombados_planilha_re visada_site.xls>. Acesso em 04 dez. 2009. 147 Suas principais características são a ênfase nos aspectos externos de masculinidade, através da postura e da musculatura; o sentimentalismo, onde os sentimentos e as emoções estão expressos nos movimentos, nos gestos amplos e teatrais e nos retratos intimistas mas plenos de emoção e a capacidade de expressar a ideologia em obras discursivas e panfletárias, de porte grandioso e que serviram ao discurso formativo de uma simbólica do Estado Novo. O tradicionalista Paixão Cortes, então com 26 anos, pousou para Caringi, o qual fez vários estudos em desenho antes de executar modelos tridimensionais. A figura deveria representar o homem forte do nosso campo e não um guerreiro. Como não havia em Porto Alegre nenhum monumento que homenageasse o homem do campo, a idéia inicial de doá-la aos paulistas deu lugar a reivindicação de que ficasse a escultura na capital gaúcha, em local de destaque para o viajante que chegasse à capital. O monumento, então, foi adquirido pela Prefeitura de Porto Alegre e instalado na Praça do Bombeiro, por ocasião do 123º 378 Aniversário Farroupilha, em 1958 . O Laçador foi eleito, na década de 90, como símbolo da cidade de Porto Alegre, através da Lei Complementar nº 279, de 1992, tendo sido tombada somente no ano de 2001. A necessidade de medidas de proteção dos bens culturais é inquestionável. Chega a ser inconcebível que bens como o chimarrão e o churrasco, as danças, as músicas, ainda não estejam protegidos pelo instituto do tombamento, ao contrário do que ocorre com bens semelhantes das regiões Norte e Nordeste do país. 3.3.3.2 Desapropriação Outra alternativa que pode ser adotada na proteção direta dos bens culturais materiais é a desapropriação, regulada pelo decreto-lei n° 3.365, de 21 de julho de 1941, com inúmeras alterações posteriores, que considera como caso de utilidade pública a preservação e conservação dos monumentos históricos e artísticos, isolados ou integrados em conjuntos urbanos ou rurais, 378 Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Secretaria da Cultura. Listagem de bens tombados. Disponível em: <http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/smc/usu_doc/imoveis_tombados_planilha_re visada_site.xls>. Acesso em 04 dez. 2009. 148 bem como as medidas necessárias a manter-lhes e realçar-lhes os aspectos mais valiosos ou característicos, bem com a proteção de paisagens naturais, à inteligência do seu art. 5º, alínea “k”379. A desapropriação não serve apenas para alterar a propriedade de bens particulares, mas, principalmente, para garantir que tais bens sejam mantidos, preservados de acordo com o interesse público. Lembra Souza Filho que não apenas os bens imóveis, mas também os bens móveis de valor histórico e artístico são passíveis de desapropriação, [...] porque a lei considera sua preservação e conservação adequada em casos de utilidade pública. É de se notar que a lei se refere a conservação adequada porque não basta que o proprietário particular guarde bens móveis. A maior parte dos bens móveis de valor cultural – as obras de arte, documentos em papel, fotografias, filmes, etc. – se deterioram pela ação do tempo, sendo necessário que os locais de preservação tenham condições técnicas especiais, como temperatura e umidade controladas, prevenção contra 380 incêndio, insetos e luz . O procedimento de desapropriação se inicia mediante publicação de um decreto específico, pelo ente público interessado (de qualquer das esferas administrativas), com objeto de declarar a utilidade pública do bem. Tal decreto possui a duração de cinco anos, tempo no qual deve ser levada à cabo a devida desapropriação, mediante pagamento do preço e definitiva imissão na posse pelo órgão público. Não havendo a desapropriação, decreto semelhante só poderá ser proposto novamente no prazo de um ano. Tanto o tombamento quanto a desapropriação são métodos de proteção direta aos bens culturais, principalmente diante do risco de danos decorrentes de cuidados indevidos – ou total falta de zelo por parte dos proprietários. Contudo, ambos os institutos tem sido usados principalmente para resguardo de imóveis sob justificativas religiosas ou 379 Brasil, República Federativa do. Decreto-lei n° 3.365, de 21 de junho de 1941. Dispõe sobre desapropriações por utilidade pública.. In. Planalto Central. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3365.htm>. Acesso em 03 abr. 2009. 380 Souza Filho, 1999, p. 73. 149 arquitetônicas, pouco ou nada sendo considerado com respeito dos bens pertencentes à cultura tradicionalista gaúcha, o que certamente demanda maiores estudos e pesquisas por parte dos órgãos governamentais. 3.3.4 Políticas de incentivo intelectual para uma mediação simbólica Outra das formas de fortalecer o gauchismo é através do incentivo à sua memória, principalmente através da produção científica e cultural. Destacando os apontamentos de Strohschoen, a memória necessita do grupo social para existir, pois “sua dinâmica social é inquestionável”. A autora tece breve raciocínio sobre as formas de transmissão da memória, ressaltando que a oralidade foi se perdendo, principalmente na sociedade urbana, sendo substituída pela escrita e pela mídia381. A importância de políticas que promovam a produção científica na área cultural se justificam à medida que a identidade é uma construção, e de que esta construção deve ser mediada entre o particular e o universal – o que se dá através dos intelectuais, que não encaram a memória coletiva, mas elaboram um conhecimento de caráter realmente globalizante. Oliven trabalha com este tema em As metamorfoses da cultura brasileira382, no mesmo sentido que Ortiz expõe em Cultura brasileira e identidade nacional, onde exemplifica esta mediação dizendo que os intelectuais são os principais responsáveis por definir quais aspectos da memória coletiva merecerão ser politicamente orientados. Para Ortiz, é a produção intelectual que deve descolar as manifestações culturais de sua esfera particular para articulá-las “a uma totalidade que as transcende”. Em outras palavras, o intelectual como mediador simbólico, é o responsável por reinterpretar o folclore e adequá-lo à filosofia – a exemplo do que ocorreu com 381 STROHSCHOEN, Ana Maria. Mídia e memórias coletivas. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004, p. 29. 382 OLIVEN, Ruben. Violência e cultura no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1982. 150 o carnaval, tomado por “expressão da cultura nacional”, ou então um “exemplo de brasilidade” a partir do discurso dos intelectuais e da produção científica383. Desta forma também pode se dizer que a própria denominação e imagem do gaúcho sejam, na verdade, criações intelectualizadas, pois “para que haja a quebra do exotismo é preciso que alguém, um escritor, faça esse trabalho nominador”384, situação que não foi diferente com a cultura gaúcha. Foi isto o que inúmeros escritores fizeram, podendo citar-se, entre eles, Érico Veríssimo e sua trilogia histórico-literária O tempo e o vento, onde as figuras de Capitão Rodrigo e Ana Terra, na saga das famílias Terra e Cambará, se consolidaram na memória sul-rio-grandense como arquétipos gaúchos. Esta idéia pode ser mais facilmente compreendida através do exemplo da expressão cultural negra, que de uma prática particularizada passou a servir de fundamento às ações políticas do Estado através de sua intelectualização: As manifestações de cultura negra sempre existiram enquanto expressões culturais, elas estão particularizadas nas ações dos africanos (por exemplo, uma dança, um ritual religioso) ou dos negros americanos (por exemplo, um gesto, uma fala, um canto); porém, o movimento da negritude só pode surgir no momento em que um grupo de intelectuais toma como objeto de reflexão a condição do negro diante do homem branco. [...] Os movimentos negros atuais operam de maneira análoga. Eles buscam formas concretas de expressões culturais para integrá-las e reinterpretá-las dentro de uma perspectiva mais ampla. [...] A identidade é neste sentido elemento de unificação das partes, assim como fundamento 385 para uma ação política . Tratada a questão da importância da intelectualidade nas manifestações culturais, a visão se volta especificamente à ações estatais de incentivos financeiros a serem destinados à pesquisa e à promoção cultural. Afinal, mais uma vez é a Constituição Federal a primeira a afirmar que “a lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais”, em seu art. 216, §3º. 383 Ortiz, 1985, p. 139-141 passim. BRASIL, Luiz Antonio de Assis. Entre a universalidade e o particular: a literatura antes as identidades regionais. In. Schuller e Bordini, 2004, p. 34. 385 Ortiz, 1985, 141. 384 151 A Constituição Estadual também prevê o apoio direto às formas de manifestação cultural, inclusive através da pesquisa intelectual, com o objetivo de criar condições que viabilizem sua continuidade. Especificamente quanto à produção cultural “gaúcha”, define que mesma será preservada através e de livro, imagem e som, observados os direitos autorais pertinentes. É o que dispõe os artigos 227 e 229, colacionados a seguir: Art. 227 - O Estado promoverá, apoiando diretamente ou através das instituições oficiais de desenvolvimento econômico, [...] outras formas de manifestação cultural, criando condições que viabilizem a continuidade destas no Estado, na forma da lei. Art. 229 - O Estado preservará a produção cultural gaúcha em livro, imagem e som, através do depósito legal de tais produções em suas instituições culturais, na forma da lei, resguardados os direitos autorais, conexos e de imagem. O IGTF, órgão vinculado a Secretária de Estado da Cultura para atuar na área da pesquisa e divulgar a cultura Rio-Grandense, deveria receber subsídios do governamentais para promover estudos, pesquisas e a divulgações dos quais fora encarregado, visando a compreensão e o fortalecimento da identidade gaúcha. Conforme seu Presidente, verifica-se que a prática desta atribuição do Instituto foge à realidade. Para ele, a criação do IGTF pode ser definida como uma “marca negativa de influência forçada do Estado”, num período em que o movimento estava em franca expansão, com o objetivo de “controle” estatal, o que, felizmente, não ocorreu. Entretanto, o IGTF permanece sendo um “fantasma” na administração, sem relacionar-se satisfatoriamente com as diversas Secretarias, sem abertura ou incentivo governamental, sequer para a produção intelectual da cultura gaúcha. Tampouco possui rubrica própria para a publicação de obras, manutenção do site ou da rádio virtual, o que se realiza às expensas dos próprios tradicionalistas, principalmente do Presidente. Savaris recorda que o último Governo Estadual a oferecer incentivo direto ao Instituto - por diminuto que fosse -, foi na gestão do Governador Jair Soares (1983-1987) 386. 386 Entrevista com Manuelito Savaris, realizada em 13.10.2009, na Sede do IGTF, no Centro administrativo em Porto Alegre. 152 Quanto às leis infraconstitucionais específicas, elas devem geralmente ser estruturadas “de forma a conceber um fundo para a cultura”, e “constituemse, potencialmente, em uma boa mecânica entre liberdade que devem ter as expressões culturais e o necessário apoio do Estado”387, dentro dos limites constitucionais. Entretanto, como bem aponta Salvo, um dos maiores problemas da produção cultural no Brasil se volta às questões financeiras: “os produtores culturais, os artistas e mesmo os cidadãos interessados no assunto tem em seus discursos a mesma mensagem, ou seja, o Estado deve direcionar mais verbas para a área cultural”, apelo este que parece não encontrar resistência em nenhuma camada social, mesmo se considerando o fato de não haver abundância de recursos.388 Talvez a força do movimento tradicionalista se justifique justamente na forte base intelectual que o consolidou. Os principais ícones da Revolução Farroupilha eram pessoas de alta influência e extremamente cultos, destacando-se entre eles Bento Gonçalves (político e chefe militar), Domingos José de Almeida (político e administrador), José Gomes de Vasconcelos Jardim (político), Antônio de Souza Neto (militar e político), João Manuel de Lima e Silva (membro da Corte Imperial), Antônio Vicente da Fontoura (político e diplomata), entre tantos outros. O primeiro movimento de ressurgimento do gauchismo foi exclusivamente voltado ao meio intelectual, através do Partenon Literário (1868), liderado por José Antonio do Vale Caldre e Fião (jornalista, médico, político e professor) e Apolinário Porto-Alegre (historiador, filósofo, poeta e jornalista), entre outros. O mesmo perfil se deu entre os integrantes do Grêmio Gaúcho, a exemplo de seu presidente João Cezimbra Jacques (militar, político e escritor); ou ainda junto ao Departamento de Tradições Gaúchas do Grêmio Estudantil Colégio Júlio de Castilhos, de Porto Alegre, idealizado por João Carlos Paixão Cortes (pesquisador, folclorista, cantor, ensaísta) e Luiz Carlos Barbosa Lessa (advogado, jornalista, historiador, compositor, contista e romancista). 387 Cunha Filho, 2002, p. 40-41. SALVO, Mauro. Políticas públicas para a produção cultural: uma abordagem econômica. In. Revista do CEPE. n. 18 (jul/dez. 2003). Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003, p. 64-65. 388 153 Desde estes elementos históricos, a literatura e a filosofia do gauchismo continuou a ser retratada por intelectuais, sendo bastante vasto o contingente de obras a respeito da história e da cultura gaúcha. Poucas, porém, são de iniciativa ou possuem auxílio governamental – o que pode se depreender das próprias alegações do Presidente do IGTF, que também retrata não haver fomento às pesquisas culturais locais, imprescindíveis à manutenção destas prerrogativas culturais, principalmente em um contexto social onde a fragilidade da identidade é a regra. Vale dizer que o Estado pode atuar, sob esta perspectiva, nos mesmos moldes do setor privado, tanto no incentivo da produção cultural em si quanto com relação à sua demanda, viabilizando economicamente tais investimentos. Um exemplo são os investimentos na produção intelectual sobre determinado patrimônio, dotado de identidade, o que pode ser facilmente convertido em atrativos turísticos, tendo como uma das consequências imediatas o aumento no recolhimento de impostos, decorrentes desta exposição (e exploração) do bem cultural. Ou, ainda, investimentos diretos na área de pesquisa e publicações voltadas à cultura sul-rio-grandense, como forma de propagar a informação e fortalecer a identidade social, o que permite a relocalização do Estado em seu próprio espaço, não só enquanto ente federado, mas como um “povo” de individualidade cultural própria. 3.3.5 Políticas tributárias: incentivos fiscais na proteção e no fomento à cultura Perpassando a discussão da importância da preservação do patrimônio cultural, verifica-se que uma boa intervenção estatal, pode transformar em realidade os instintos preservacionistas da história humana e da identidade cultural dos povos. Os incentivos fiscais são medidas governamentais estratégicas criadas para estimular determinados setores sociais ou da economia - uma simples 154 definição que se encaixa perfeitamente ao objeto ora analisado: as políticas de fortalecimento cultural ao tradicionalismo gaúcho. A Constituição Federal apresenta o incentivo fiscal em seu art. 174, prevendo que o Estado, na qualidade de agente normativo e regulador da atividade econômica, deverá exercer as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, de forma determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. Desta feita, são os aspectos extrafiscais da intervenção estatal tributária, constitucionalmente permitidos, que entram em foco. A história dos incentivos fiscais à cultura datam da Roma Antiga, ocasião em que filosofia e arte se tornaram pensamento oficial do Império Romano graças à Caius Cilnius Mecenas, ministro do Imperador Julio Augusto. Em razão de sua origem histórica, “mecenas” e “mecenato” são hoje utilizados pelo Ministério da Cultura, para designar projetos a que se concede incentivos fiscais, associando diretamente as idéias de poder e cultura389. O fomento e a administração da cultura e dos bens culturais interferem significantemente na ordem econômica, retratada por Eros Roberto Grau como um conjunto normativo capaz de definir, de forma institucional, os modos de produção econômica: “Assim, a ordem econômica, parcela da ordem jurídica (mundo do dever ser), não é senão o conjunto de normas que institucionaliza uma determinada ordem econômica (mundo do ser)”390. A atuação do Estado na ordem econômica é plenamente legítima quando voltada à proteção dos princípios constitucionais, nas funções de fiscalização, incentivo e planejamento, incluídos aí a proteção e o fomento da cultura, pois o Estado não pode permanecer alheio às questões importantes para a mantença da estrutura social. Assim, de acordo com Cesnik, sendo os incentivos fiscais uma espécie de solução governamental voltada ao estímulo 389 Cesnik, 2002, p. 01. “Caius Mecenas como estrategista de talentos múltiplos, é o responsável, entre 74 a.C. e 8. d. C, por uma política inédita de relacionamento entre governo e sociedade dentro do Império. Para Mecenas, as questões de poder e cultura são indissociáveis e cabe ao governo a proteção às diversas manifestações de arte. Na equação de trocas, cabe à arte um papel no âmbito desse poder”. 390 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 60. 155 de determinados setores, a cultura se apresenta como um destes setores que tem necessitado do estímulo governamental, pois a partir dele “a sociedade adquire consciência de sua importância e passa a contribuir voluntariamente”391. Para Ricardo Lobo Torres, a extrafiscalidade seria a forma de intervenção do Estado na esfera privada, cuja configuração se apresenta praticamente de duas formas: “de um lado, a extrafiscalidade se deixa absorver pela fiscalidade, constituindo a dimensão finalista do tributo; de outro, permanece como categoria autônoma de ingressos públicos, a gerar prestações não-tributáveis”392. Ainda no tocante aos aspectos extrafiscais, importa dizer que o que interessa ao Estado não é a simples arrecadação de valores, mas sim a promoção do desenvolvimento, através da criação de empregos, na garantia de saúde pública, na preservação e recuperação ambiental e cultural, entre outras, quer seja na redução dos efeitos da fiscalidade sobre determinadas pessoas, de acordo com suas peculiaridades, como nos casos de extrema pobreza ou deficiência física ou mental. 393 Nas palavras de Berti, [...] ao deixar de lado o fim meramente fiscalista-arrecadatório, o Estado se preocupará com outras metas, podendo para tanto mexer no aspecto quantitativo das hipóteses de incidência dos diversos impostos enumerados ao longo deste trabalho, seja para mais seja 394 para menos. Importa esclarecer que nem toda a isenção significa incentivo fiscal, a exemplo das isenções diplomáticas. Nelas, o Estado não pretende “incentivar” ou interferir na ordem econômica ou social, como ocorre nos comandos extrafiscais voltados à cultura. 391 Cesnik, 2002, p. 01. TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro, Renovar, 1993, p. 149. 393 RODRIGUES, Hugo Thamir. Políticas Tributárias de desenvolvimento e de inclusão social: fundamentação e diretrizes, no Brasil, frente ao Princípio Republicano. In. Reis e Leal, 2007, p. 1906. 394 BERTI, Flávio de Azambuja. Impostos: extrafiscalidade e não-confisco. Curitiba: Juruá, 2003, p. 128 392 156 As leis de incentivo à cultura possibilitam principalmente a captação de recursos junto às empresas privadas, o que não significa a total desobrigação financeira do Estado, mas o fomento do pluralismo cultural frente à participação e comprometimento de todas as parcelas sociais. Afinal os investimentos do setor privado nos projetos culturais importam em renúncia fiscal por parte do Estado, que deixará de receber a totalidade dos tributos que lhe eram devidos. A primeira lei de incentivos fiscais com foco cultural data do Governo Sarney – Lei 7.505395, de 02 de julho de 1968-, e previa abatimento no imposto de renda nos índices de 100% para doadores, 80% para patrocinadores e até 50% para investidores. De acordo com Cesnik, esta lei, em que pese ter sido a primeira, foi a principal fomentadora das discussões sobre a concessão de incentivo fiscal à cultura, pois os destinos dos recursos não eram claros, ensejando constantes dúvidas sobre mau emprego e desvio de verbas 396. Em 1990, o Governo Collor aboliu semelhantes incentivos, retomados em 1991 pelo então Secretário da Cultura, Sérgio Paulo Rouanet. Surgiu, então, a Lei que leva até hoje seu nome – Lei Rouanet – Lei n° 8.313397, de 23 de dezembro de 1991, que nos primeiros anos teve pouca procura pelo setor privado. Somente no Governo de Fernando Henrique Cardoso é que houve um aparelhamento e regulamentação da norma legal, inaugurando-se uma verdadeira política de incentivo ao setor. A Lei Rouanet instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura PRONAC – cujo objetivo principal é o fomento e a promoção do produto cultural nacional dentro e fora do país398, sendo exigência que o uso, a exibição e a circulação dos bens culturais privilegiados seja pública, jamais circunscrita a circuitos particulares ou coleções privadas, à inteligência do art. 2º, Parágrafo 395 BRASIL. República Federativa do. Lei 7.505, de 02 de julho de 1996. Dispõe sobre benefícios fiscais na área do imposto de renda concedidos a operações de caráter cultural e artístico. In. Planalto Central. Disponível em: <http://200.181.15.9/CCIVIL_03/LEIS/L7505.htm>. Acesso: 04 dez. 2009. 396 Cesnik, 2002, p. 04. 397 BRASIL. República Federativa do. Lei 8.303, de 23 de dezembro de 1991. Restabelece princípios da Lei n° 7.505, de 2 de julho de 1986, institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) e dá outras providências. In. Presidência da Republica. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8313compilada.htm>. Acesso: 04 dez. 2009. 398 Apesar de estar voltada principalmente à produção cultural brasileira, o PRONAC também se estende à cultura estrangeira que venha a ser apresentada em solo nacional. 157 Único). Os projetos especiais, previstos no art. 18 envolvem artes cênicas (teatro, dança, circo, ópera e mímica), livros e valor artístico, literário ou humanístico (biblioteca e livros); música erudita ou instrumental; circulação de exposições de artes plásticas (pintura, escultura, gravura, exposições itinerantes); doações de acervos para bibliotecas púbicas ou museus e a preservação do patrimônio cultural (arquitetônico, museu, acervo, folclore, artesanato – conservações e restaurações de ordem geral). Os valores aplicados em cultura, desde que se encaixem na Lei Rouanet, podem ser deduzidos até 100% dos impostos de renda de pessoas físicas e jurídicas, nos imites estabelecidos pela lei: até 6% para pessoas físicas e 4% para pessoas jurídica – empresas que apuram seu imposto pelo Lucro Real. Interessante esclarecer que tanto entidades públicas quanto privadas podem buscar incentivos fiscais à cultura junto ao setor empresarial. Reiteradamente, o próprio Estado tem feito uso desta alternativa para fomentar obras e atingir metas de proteção e produção cultural. Entretanto, ao receber recursos do setor privado para este fim, na prática é o próprio Estado o autor do subsídio, uma vez que os cofres públicos deixam de receber tributos das empresas fomentadoras. Esta falta de lógica tem suscitado constantes críticas doutrinárias, diante da possibilidade de mascarar a realização de despesas sem previsão orçamentária, ferindo princípios básicos da Administração. Fica a moralidade pública, por sua vez, comprometida, porque o Governo, para realizar a obra de conservação de um bem público de uso especial, vai precisar dos favores de iniciativa privada, algo que 399 torna suspeitas as relações entre o incentivador e o beneficiário . Desta feita, pode facilmente se depreender que os projetos culturais originários do Estado, que buscarem incentivo fiscal junto ao setor privado, serão sempre admitidos, concorrendo de forma no mínimo desleal com pessoas ou entidades promotoras da cultura, que não estejam diretamente ligadas ao Governo. 399 Cunha Filho, 2001, p. 43. 158 Como no exemplo das isenções ficais, já não se discute que as interferências estatais são necessárias, principalmente diante do conceito transindividual dos bens a serem protegidos. Assim, outra possibilidade de atuação extrafiscal do Estado é a isenção de impostos diretos, a exemplo do IPTU. As razões que levam à isenção de IPTU aos imóveis de cunho cultural (promotores da cultura ou dotados de identidade cultural) se justificam pelo tempo. O processo de proteção possibilitado pelo tombamento no núcleo urbano iniciou-se sem considerar que os bens faziam parte de um organismo vivo e altamente complexo – a cidade. Com isto, os proprietários viam seus direitos restritos sem compreender qual a “vantagem” que lhes advinha deste procedimento, e a falta de interesse público na recuperação e conservação dos bens provocou a ruína de muitos. Isto acarretou inicialmente a estagnação dos núcleos urbanos tombados, principalmente diante da falta de interesse do proprietário na manutenção de um bem que poderia não lhe ser útil em vista das restrições que eram impostas pelo processo de tombamento. Como bem lembra Souza filho, estas limitações decorrentes do tombamento “são muito mais profundas porque modificam a coisa mesma, passando o poder público a controlar o uso, transferência, modificabilidade e a conservação da coisa”400. Os incentivos fiscais tem sido usados principalmente desde a década de oitenta, como fomento à proteção cultural – e, implicitamente, como forma de diminuir o “desconforto” do particular, que muitas vezes não concorda com as restrições de uso de seu bem, que fora tombado pelo interesse da coletividade. Ou seja, foi a inexistência de uma consciência cultural forte que demandou ações do Estado para tutelar estes bens transindividuais. Concordamos, neste sentido, com Souza Filho, que aponta o IPTU como sendo “o mais eficaz para ajudar na proteção cultural de bens imóveis”, já que “incide sobre o bem que se deseja preservar e, com uma adequada política de incentivo, é possível ajudar 400 Souza Filho, 1999, p. 29. 159 na sua preservação”.401 Tratando especificamente do IPTU, Geraldo Ataliba salienta consistir a extrafiscalidade na adoção de instrumentos tributários “para a obtenção de finalidades não arrecadatórias, mas estimulantes, indutoras ou coibidoras de comportamentos, tendo em vista outros fins, a realização de outros valores constitucionalmente consagrados”402. Grande parte dos Municípios possuem previsões extrafiscais aplicáveis ao patrimônio cultural, como a Prefeitura de Porto Alegre, que proporciona aos proprietários de bens tombados a opção de pleitear isenção IPTU sobre bens tombados e por sua redução no caso dos bens inventariados. O benefício, entretanto, é concedido sob a condição de conservação dos referidos bens, com direito à vistoria pela administração403. Art. 111. Ficam isentos do pagamento do IPTU as seguintes pessoas e bens: [...] XVIII – o imóvel, ou parte dele, reconhecido como Reserva Particular do Patrimônio Natural de acordo com a Lei Federal nº 9.985, de 18 de julho de 2000; as áreas de Preservação Permanente conforme a Lei Federal nº 4.771, de 15 de setembro de 1965 ou a Lei Estadual nº 11.520, de 3 de agosto de 2000; as Áreas de Proteção do Ambiente Natural definidas na Lei Complementar nº 434, de 1999; e outras áreas de interesse ambiental, desde que se mantenham preservadas de acordo com critérios estabelecidos nos arts. 115 a 123; XIX – o imóvel, ou parte dele, tombado pelos órgãos de preservação histórico-cultural do Município, do Estado ou da União, que não tenha sido doado ao Patrimônio Público e que esteja preservado, segundo os critérios estabelecidos pelos órgãos 404 responsáveis pelo tombamento; [...] Além da isenção fiscal já reiteradamente utilizada a bens tombados e catalogados – dependente do funcionamento da política de tombamento-, outras alternativas extrafiscais podem ser adotadas, como isenção dos centros de tradições do pagamento de impostos, ou de contribuições de melhoria, 401 Souza Filho, 1999, p. 101. ATALIBA, Geraldo. IPTU: Progressividade. Revista de Direito Público.v. 23 nº 93, p. 233238, jan./mar., 1990, p. 233. 403 Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Secretaria Municipal da Cultura. Incentivos à preservação. Disponível em < http://www2.portoalegre.rs.gov.br/smc/default.php?reg=11&p_secao=87>. Acesso em 04 dez. 2009. 404 PORTO ALEGRE, Prefeitura Municipal de. Decreto nº 16.500, de 10 de novembro de 2009. Regulamenta as Leis Complementares n. 7, de 7 de dezembro de 1973, no que diz respeito ao Imposto Sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU); e 113, de 21 de dezembro de 1984, que institui a Taxa de Coleta de Lixo (TCL); e revoga os Decretos nos 5.815, de 30 de dezembro de 1976; e 14.265, de 11 de agosto de 2003. Recebida por e-mail de [email protected], em 16 fev. 2010. 402 160 considerando as atividades culturais e educativas prestadas em suas dependências. De acordo com a análise da legislação tributária de Porto Alegre, há a previsão expressa de isenção do pagamento do imposto predial territorial urbano as entidades culturais ou recreativas, sem fins lucrativos, quadro em que se enquadram perfeitamente os CTGs: Art. 70 - Ficam isentos do pagamento do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana as seguintes pessoas físicas e jurídicas: [...] II - entidade cultural, recreativa, sem fins lucrativos e a entidade esportiva, observada a exigência anterior, e, quando for o caso, 405 registrada na respectiva federação ; Desta forma, os CTGs localizados no território da cidade de Porto Alegre gozam do referido benefício, mas considerando que a legislação referente ao IPTU é de competência Municipal, o mesmo não ocorre em outros locais. No Município de Santa Maria, por exemplo: conforme se denota de simples consulta ao site do Tribunal de Justiça, inúmeros CTGs são alvo de execuções fiscais por parte da administração. Decisão recente do Tribunal de Justiça manteve a sentença proferida em primeira instância em favor da imunidade tributária concedida ao CTG Sentinela da Querência406, que tramitou na Primeira Vara Cível da Comarca. Na sentença, foi expressamente reconhecida a imunidade tributária versada no art. 150, VI, alínea “c”, da Constituição Federal407, que define os limites à tributação. A principal alegação do CTG é de se tratar o Centro de Tradições de uma instituição educacional sem fins lucrativos, por não ser possível dissociar cultura de educação, bem como pela necessidade de se dar interpretação ampla às previsões de imunidade. Conforme um dos patronos do caso, inúmeros CTGs de outras cidades e outros estados estão mantendo contato 405 Recebida por e-mail de [email protected], em 16 fev. 2010. Execução Fiscal n° 027/1.05.0007663-7, que tramitou na 1ª Vara Cível da Comarca de Santa Maria; Apelação n° 70023719511, da 21ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 407 Brasil. Constituição (1988). In. Planalto Central. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso: 02 fev. 2010. Constituição Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:[...] VI - instituir impostos sobre: [...] c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei. 406 161 constante, solicitando cópias das decisões para pleitear idêntica garantia constitucional408. Ao se procurar o Governo para investimentos da área da cultura, principalmente em relação às tradições gaúchas, as alegações de insuficiência de recursos são recorrentes por parte dos tradicionalistas. Hoje, o incentivo financeiro que os CTGs recebem são referentes à realização de eventos em parceria com Prefeituras ou Governo do Estado, ou então através de encaminhamento de projetos que possam ser incluídos na LIC, cujas demandas nem sempre são aceitas. As desculpas de que não se pode investir em cultura por esta ou aquela razão, são injustificáveis, no que concorda Cunha Filho, ao referir que nem “seca, crise, miséria” podem obstar investimentos na cultura, pois a solução das demandas coletivas somente se dará a partir do momento em que se “conhecer a alma do povo, respeitar seus desígnios e deixá-lo decidir, dentro dos mais elevados princípios humanitários, a sua própria sorte”409, ou seja, o investimento na cultura, além de ser capaz de fortalecer a identidade e o comprometimento cidadão, é capaz de fomentar o desenvolvimento social e econômico em pouco tempo. 408 Entrevista com Ricardo Vollbrecht, advogado responsável pelos processos relativos às partes, realizada por telefone no dia 09 de março de 2010, por telefone. 409 Cunha filho, 2002, p. 100. 162 CONSIDERAÇÕES FINAIS A presente dissertação teve como objetivo principal a análise das políticas públicas culturais e sua aplicabilidade na proteção do tradicionalismo gaúcho. Conforme pode se depreender do primeiro capítulo, a identidade gaúcha foi “forjada a ferro e fogo”, e com a mesma vontade de defesa do território, uma das características pela qual mais se destaca o “gaúcho”, aqueles que se apoderam desta identidade o fazem de forma a protegê-la diante das novas invasões: a aculturação. Para tanto, utilizou-se de pesquisa bibliográfica e entrevistas com inúmeros tradicionalistas, a fim de que se pudesse estabelecer uma melhor compreensão sobre o que é a cultura gaúcha, também denominada como gauchismo, e sua importância como movimento de resistência à fragmentação do sujeito, a ponto de demandar ações estatais para seu fortalecimento. A idéia de que a cultura, em um sentido amplo, é uma idiossincrasia social – ou seja, é a forma pela qual determinada sociedade vê o mundo e com ele interage -, analisada no contexto da globalização, sugere que as identidades são constantemente deslocadas, dificultando a definição do próprio sujeito e gerando um desconforto íntimo que demanda urgente ressignificação. A pesquisa iniciou pelas influências culturais que serviram de base para a atual cultura gaúcha, reconhecida pelo amor às origens, pelo empreendedorismo, e pelo perfil político renovador. Esta “construção” da identidade encontrou resistências em seu próprio meio, principalmente quanto à sua denominação. O termo “gaúcho” evoluiu de um extremo a outro: da idéia de “ladrão”, “bárbaro” e “vagabundo”, passando pelo “vaqueano” e “lutador” - aí já revestido de uma aura mítica de herói farrapo – seguida da conotação gentílica do termo, inicialmente rechaçada por boa parte dos sul-riograndenses, para culminar no sentimento que hoje parece ser comum entre estes, o de “orgulho gaúcho”, extremado no conceito dos tradicionalistas, que assim definem aquele que segue, que cultua a tradição. 163 Verificou-se que o tradicionalismo gaúcho é impulsionado principalmente por dois sentimentos: o nativismo e a saudade, sendo que ambos não podem ser analisados separadamente, porque justificam-se entre si. Afinal só se sente saudade sobre o que se tem apego, e, neste caso, trata-se do apego ao pago, ao sentimento de “lar”, pertencimento e segurança, trazidos como base fundamente da identidade gaúcha. Ao mesmo tempo, se tem ainda maior apego das coisas pelas quais se sente saudade, ou risco de perder. A trajetória da formação sul-rio-grandense se embasou em lutas pelo território e pelo reconhecimento, legando a população de um espírito questionador e inconformado com o que lhes é estranho. Através da análise da história do Rio Grande do Sul, fica ainda mais fácil compreender a vontade com que este povo resguarda sua identidade, a necessidade íntima de autodefinição, de saber-se “gaúcho” onde quer que se encontre. Isto se reflete na proliferação dos CTGs em outros Estados Federados, bem como em outros países, como Estados Unidos, Espanha, França e mesmo no Japão. Quanto às principais críticas, estas se fundam basicamente no fato de se tratar de uma cultura inventada e à serviço das classes dominantes, desde sua origem. Em contrapartida, justificam os tradicionalistas não ser justo debitar ao gauchismo os desajustes sociais, e de que, longe de ser uma cultura hegemônica e alienante, pretende tão somente resgatar conceitos de humanidade e respeito, principalmente de boas condutas diante do convívio social. Afinal, todas as culturas e tradições são, de alguma forma, inventadas, pois não é possível conceber a idéia de uma cultura preexistente, fixa, imutável. Ao que parece, o desafio proposto por Lessa, que conferiu ao “tempo” a tarefa de definir o acerto ou não do tradicionalismo gaúcho parece estar se traduzindo de forma favorável ao seu fortalecimento, na exata medida em que o tradicionalismo avança fronteiras e luta contra a fragmentação de sua identidade. A questão da identidade gaúcha tem sido alvo de estudos reiterados, sob varias óticas de pesquisa, notadamente na antropologia e sociologia, e agora também no mundo jurídico, pois tudo o que reflete da sociedade possui 164 consequências no Direito. Em sede de direitos culturais, verifica-se com certo ânimo que a Constituição Federal possui um viés promocional, fomentador, várias vezes utilizando verbos nucleares encorajadores das ações estatais, saindo da confortável área das normas programáticas que se apresentam tão somente como um ideal a ser atingido. Ao contrário destas, as normas promocionais conferem obrigações reais, objetivos palpáveis e aplicáveis ao que se destinam. É desta forma que a cultura é tratada em nosso ordenamento jurídico, principalmente na Constituição Federal, ao afirmar que o Estado “garantirá” os direitos culturais e o acesso ás fontes da cultura nacional, “apoiará” e “incentivará” a valorização e a difusão das manifestações culturais, principalmente as manifestações populares, indígenas e afro-brasileiras, estabelecerá, dentro do Plano Nacional de Cultura, a “promoção” e “difusão” dos bens culturais, “valorizará” a diversidade étnica e regional, “incentivará” a produção e o conhecimento dos bens e valores culturais, entre outras previsões. Diante deste caráter promocional e encorajador, a análise do tema passa a outras responsabilidades: a de verificar quais as formas de ação estatal que, respeitando as previsões legais, são capazes de fortalecer a cultura de se povo, traduzindo-se em políticas públicas voltadas a este fim. Ressalte-se que a linha de pesquisa foi desenvolvida especificamente na área de políticas públicas, na busca de condições viáveis de gestão dos interesses públicos voltados à cultura. O relacionamento do Estado para com a cultura gaúcha nunca teve aportes muito significativos, o que facilmente se nota ao verificar quão recentes são as leis específicas que reconhecem ou protegem o patrimônio cultural gaúcho e seus simbolismos (patrimônio imaterial), bem como a quase ausência de políticas públicas diretas aplicáveis ao tradicionalismo gaúcho. A “desobrigação” mostrada pelo Estado no fomento à cultura regional, justificando que a sociedade o faz por si, não merece prosperar, porquanto 165 frequentes ações estatais deixam de reconhecer e promover a própria cultura para valorizar (e muitas vezes impor) culturas externas, a exemplo das ações da SEDAC que, sob a bandeira da “arte de incluir pela cultura”, o fazem através do hiphop, funk e grafitismo, alegando que o tradicionalismo gaúcho “não é cultura de base”, ao mesmo tempo em que veste a máscara do gauchismo para apresentar-se em meio virtual, como se nota no site oficial da Secretaria. Nota-se que o embasamento conceitual deste trabalho foi feito de forma despretensiosa, já que nenhum dos temas nele inseridos são pacíficos de esgotamento. Contudo, pretendeu-se analisar as políticas públicas culturais realizadas pelos governos, principalmente nacional e estadual, algumas das quais poderiam ser melhor utilizadas para o fortalecimento da cultura gaúcha, auxiliando sobremaneira a luta cada vez maior do homem por seu reconhecimento íntimo, sua identificação e pertencimento, estabelecida diante da interpelação do inesgotável número de sistemas culturais que rodeiam o sujeito. Ao tratar das políticas educacionais, foi-se taxativo ao afirmar que são necessidades humanas básicas. A educação para a cultura e, mais, a educação para a própria cultura é crucial para o desenvolvimento da consciência, do senso de responsabilidade e de pertencimento do indivíduo, de sua relocalização enquanto homem e cidadão. Uma educação cultural é capaz de imprimir novos conceitos sociais e banir preconceitos, pois, a partir do conhecimento e da valorização da própria cultura se desenvolve a idéia de que existe uma universalidade de culturas tão dignas de respeito quando àquela a qual se pertence. Tratam-se, assim, de políticas públicas de inclusão social através do reconhecimento das diferenças. Neste contexto, não se vislumbra nenhuma razão pela qual não se dê maior guarida à cultura local sul-riograndense, até porque ela se encontra repleta de condutas e valores que resgatam a moral, a família, ao respeito e aos bons costumes, desenvolve os amores pela terra e pela nação e estimula a cidadania através o estímulo à participação política e à não apatia diante das desconformidades sociais, administrativas e políticas. 166 O insignificante índice de tombamentos relativos à epopéia farroupilha, por exemplo, ou às lendas e mitos originários do sul reflete esta realidade. A lei de Tombamento é reconhecida como um dos melhores instrumentos para a proteção do patrimônio cultural, instrumento este pouquíssimo explorado pelo poder público. O Rio Grande do Sul é um dos Estados federados de maior importância econômica e representatividade política mas, mesmo assim, não possui nenhuma representatividade cultural dentre os bens tombados pelo IPHAN. O mundo inteiro reconhece a importância do tradicionalismo gaúcho, sendo que o movimento frequentemente representa o Brasil no exterior (a exemplo dos Estados Unidos), mas isso parece nada importar para o Governo Federal e Estadual. Ainda mais alarmante são as políticas públicas de inclusão social aplicadas pela SEDAC que, mascarada sob o slogan de “arte de incluir pela cultura”, não possui nenhum projeto que trate da cultura gaúcha, mas prioriza sobremaneira o funk e o hiphop, o grafitismo e outras culturas alienígenas, demonstrando total desconsideração com os valores e costumes tradicionalistas. A Constituição federal também prevê políticas de incentivo intelectual para que haja uma mediação simbólica, compreendida no apoio à pesquisa cultural e na produção de ferramentas que garantam sua continuidade – livros, mídia, documentários, entre outros. Sem a mediação não há que falar em cultura, pois é necessário que se transporte a cultura do particular para o universal. Em que pese a previsão legal e a reconhecida importância da mediação simbólica, a administração pública (neste caso estadual) deixa seus órgãos destinados a promover a cultura regional às traças. Todas as obras e pesquisas realizadas pelo IGTF foram feitos com recursos próprios angariados dentre os tradicionalistas. Se a cultura, na Constituição Federal, foi inserida através de normas programáticas e promocionais, as leis infraconstitucionais específicas necessitam ser elaboradas com maior praticidade, criando fundos específicos para a cultura regional e formas de perpetuação destes bens culturais. 167 O que se viu nesta pesquisa é que existem meios pelos legais quais se pode fomentar a cultura local, e, principalmente, que tamanha tarefa é preconizada pela própria Constituição Federal. Contudo, a inércia governamental demonstra o total desinteresse pela proteção do tradicionalismo gaúcho, uma vez que inúmeros são os exemplos em que, utilizando-se das previsões legais e de projetos administrativos culturais, incentiva e estimula culturas alienígenas sem ao menos reconhecer a importância de se conhecer a própria identidade,mesmo diante do risco de fragmentação do sujeito através da desintegração de sua própria cultura, processo este ao qual já sucumbiram a maior parte das identidades no mundo globalizado. 168 REFERÊNCIAS ALMEIDA FILHO, Agassis. Globalização e identidade cultural. São Paulo: Conesul, 1998, p. 27. (2) ANDREOLA, B.A. et al. Educação, cultura e resistência. Santa Maria: Pallotti/ITEPA/EST, 2002 ALVES, Alaôr Caffé. Curso interdisciplinar de direito ambiental. São Paulo: USP, 2005 ALVES, Francisco da Neves; TORRES, Luiz Henrique. Visões do Rio Grande. Rio Grande: URG, 1995 ATALIBA, Geraldo. IPTU: Progressividade. 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