ÁREA TEMÁTICA: Cidades, Campos e Territórios
Entre o gueto e a cidade: perspectivas cruzadas da ‘colónia’ portuguesa na região de Boston
no início do século XX
CORDEIRO, Graça Índias
Doutoramento em Antropologia Social
CIES-IUL
[email protected]
VIDAL, Frédéric,
Doutoramento em História
CRIA-IUL
[email protected]
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Resumo
No início do século XX a ‘colónia’ de emigrantes portugueses em Nova Inglaterra,
constituía, do ponto de vista de Portugal, a segunda maior ‘colónia’ emigrante, a
seguir à que escolhia o Brasil como destino. Propomo-nos fazer uma análise cruzada
de duas obras que na década de 20 caracterizaram a comunidade portuguesa na
região de Boston. A análise dos dois pontos de vista, um americano e o outro
português, permitem perceber como as representações desta ‘colónia imigrante’ são
variáveis e dependentes do esquema perceptivo de cada um dos observadores.
Abstract
In the early twentieth century a 'colony' of Portuguese emigrants in New England
was, from the standpoint of Portugal, the second largest 'colony' emigrant, following
which chose Brazil as a destination. We propose to make a cross-analysis of two
books which characterized the Portuguese community in the Boston area in the 20s.
The analysis of the two views, one American and one Portuguese, let see how the
representations of this 'immigrant colony' are variable and dependent on the
perception scheme of each of the observers
Palavras-chave: colónia portuguesa; imigração; Nova Inglaterra; classificações sociais; cidade
Keywords: Portuguese
colony; New England; social classifications; immigration
[PAP 1534]
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1. Introdução
No estado do Massachusetts, EUA, Portuguese Speaker surgiu nos últimos anos como uma nova categoria
identitária defendida por um conjunto de cidadãos, organizados por uma associação que há mais de 40 anos
presta apoio a imigrantes lusófonos – a Massachusetts Alliance of Portuguese Speakers (MAPS). No último
Censo 2010 esta associação gerou um movimento através da criação de uma comissão, Portuguese Speaking
Complete Count Committee (PSCCC), em prol de uma contabilização destes Portuguese Speakers e da
criação de um novo grupo populacional censitário antecipando assim a possibilidade de esta categoria vir a
ser contemplada nos formulários do próximo Censo, em 2020. A importância e o significado que tal
categoria assume atualmente neste estado decorrem, em grande medida, da persistência, ao longo de quase
dois séculos, de fluxos imigratórios de populações falantes do português, primeiro portuguesas e caboverdianas e, mais recentemente, brasileiras.
Os processos de categorização social, relevantes em qualquer sociedade urbana assumem, no caso
americano, contornos particulares com uma dimensão política e económica fundamental. Desde que se
iniciou, em finais do século XVIII, que o recenseamento populacional dos Estados Unidos tem tido um papel
crucial na construção social das populações (Chamboredon, 1985) de acordo com uma ordem social
adaptável, ao longo dos tempos, às mudanças pelas quais esta ‘nação de imigrantes’ tem passado (Martin,
2011).
The census does much more than simply reflect social reality; rather, it plays a key role
in the construction of that reality (…) census is used to divide national populations into
separate identity categories: racial, ethnic, linguistic, or religious.
(Kertzer & Arel, 2002: 2)
Por esta razão, o caso ‘português’ merece a nossa atenção. Apesar de nunca ter sido contemplado como
categoria classificatória no recenseamento nacional americano, ele foi objeto de classificações várias ao
longo dos tempos. A atual luta pelo reconhecimento de uma “maioria linguística”, no século XXI, prende-se
com a classificação de meados do século XX como “minoria étnica” baseada, neste caso, não numa língua
partilhada por vários povos mas sim na nacionalidade de origem predominante nessa altura. Contudo, o
estatuto minoritário dos ‘portugueses’ defendido por alguns Portuguese-American, nesses anos 1960-70, em
MA, no momento em que começavam a chegar massivamente imigrantes latino-americanos de língua
espanhola, objeto de descriminações várias, era contrariado por outros, alertando para o risco de confusão
com esses novos imigrantes ‘pobres’, ‘de pele escura’ e falantes de uma língua parecida com o português
(Rogers, 1974; Moniz, 2009). Uma das razões para esta oposição decorria do facto da imigração portuguesa
remontar ao final do século XIX e contar já com níveis elevados de integração na sociedade americana não
desejando, por isso, qualquer confusão com os imigrantes recém-chegados que iriam dar corpo à minoria de
hispânicos/latinos, atualmente tão relevante no formulário do US Census. “Portuguese should not be
considered a minority group because the Portuguese were not Hispanics and, unlike other minority groups,
they were white” (Moniz, 2009: 410).
O caso que aqui vamos explorar remonta aos anos 1920, no final do período correspondente à primeira vaga
de imigração portuguesa que deu corpo a uma das muitas colónias de imigrantes nos Estados Unidos com
uma expressiva concentração na Nova Inglaterra. Tem como objetivo contribuir para o conhecimento destes
processos de categorização, nomeadamente ao nível dos instrumentos de observação e das categorias de
classificação usadas desde final do século XIX (Topalov, 1991) no que se refere às populações de origem
portuguesa ou com elas relacionadas. É parte de uma investigação sócio antropológica em curso sobre as
dinâmicas identitárias relacionadas com a língua portuguesa numa das regiões dos EUA onde, atualmente, se
regista uma maior concentração de populações que falam o português, a Nova Inglaterrai.
2. Dois olhares cruzados sobre os portugueses na Nova Inglaterra
No início do século XX os emigrantes portugueses em Nova Inglaterra constituíam, do ponto de vista de
Portugal, a segunda maior ‘colónia’ emigrante, a seguir à que escolhia o Brasil como destino e, do ponto de
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vista dos Estados Unidos, uma das mais discretas e iletradas ‘colónias’ de imigrantes provenientes dos países
do Sul da Europa. Esta colónia era maioritariamente constituída por açorianos, embora incluísse também
‘continentais, cabo-verdianos e madeirenses’ (Carvalho, 1931; Pap, 1981; Baganha, 1988) e concentrava-se
nalgumas das mais importantes cidades industriais da região: New Bedford, Fall River, Boston, Cambridge,
Somerville, Taunton (MA) Providence (RI) Tinha a dimensão suficiente para suscitar, tanto a preocupação
do governo português, através do seu consulado de Boston (Carvalho, 1925, 1931; Brandão, 1995) como um
interesse científico alimentado por preocupações de gestão urbanística e reforma social (Taft, 1923).
A descoberta de duas obras contemporâneas sobre os ‘portugueses em Nova Inglaterra’ escritas nos
primeiros anos de 1920 por um português (cônsul de Boston) e por um americano (professor universitário)
prendeu a nossa atenção. Com pressupostos e objetivos naturalmente distintos, cada um destes documentos –
uma tese de doutoramento em ciências sociais defendida na Columbia University por um ‘americano’
(Donald Reeve Taft) e um ensaio baseado nos relatórios do cônsul português em Boston no mesmo período
(Eduardo de Carvalho) – traça um retrato singular da ‘comunidade emigrante/imigrante portuguesa’ nesta
região. A ‘colónia portuguesa’ ganha contornos contrastantes, complementares e, por vezes, semelhantes
nestes relatos que, curiosamente, mostram a permanência de certos temas, recorrentes ao longo de quase cem
anos e que fazem parte indissociável da perceção e representação dos portugueses nesta região dos EUA. O
contraste entre, por um lado, uma representação sociológica da ‘colónia imigrante portuguesa’ produzida no
contexto da “sociedade de acolhimento” e, por outro lado, uma visão da ‘colónia portuguesa’ a partir do
olhar nacional e nacionalista de um diplomata português é particularmente interessante, uma vez que
demonstra de forma irrefutável o modo como o conhecimento em ciências sociais depende do ponto de vista
do observador e do seu contexto nacional, cultural, linguístico, semântico. O uso das noções de raça e
colónia, com sentidos diametralmente opostos, são excelentes exemplos de como as traduções conceptuais
têm sempre de ser devidamente contextualizadas nas singularidades linguísticas e culturais de quem as usa.
Estes dois olhares são em tudo diferentes: ao nível dos pressupostos de partida, do tipo e o âmbito das
abordagens geográfica e social, das fontes e escalas utilizadas, das matrizes analíticas, das audiências para
quem falam, dos pares com que discutem, das idiossincrasias de cada autor... Contudo, há também pontos
comuns que os aproximam ao nível dos conceitos em discussão, mesmo com conteúdos semânticos
diferentes, do espírito reformador, de intervenção, patente na preocupação com a resolução de problemas
(sociais, num caso, nacionais e de identidade, noutro), e, até, no modo como se deixam influenciar pelas
realidades de que falam, transformando os seus pressupostos de partida em conclusões inesperadas. Há ainda
a assinalar uma ponte de comunicação entre os dois autores, uma vez que Carvalho leu e comentou o estudo
de Taft, como referirei mais a frente.
3. Raça, classe e assimilação de um enclave ignorado
Trata-se de uma tese de doutoramento em history, economics and public law que toma como ponto de
partida um problema social: a elevada mortalidade infantil entre populações de origem portuguesa, uma das
mais elevadas de todas as comunidades imigrantes, o que suscita o interesse por esta “neglected nationality”
que tem características raciais e culturais (mores) únicas.
Com amplo uso de informação estatística, o autor tenta encontrar as causas para este problema, discutindo o
peso da herança racial vs o fator ambiental. Trata-se de um bom exemplo da aplicação do método científico
cujos pressupostos iniciais acabam por não se confirmar. A explicação racial, devido ao elevado nível de
sangue negro nos micaelenses (grupo preponderante na Nova Inglaterra, após uma análise detalhada da
diversidade interna deste grupo, aparentemente homogéneo) perde força, uma vez que a taxa de mortalidade
entre populações negras é muito variável e entre os italianos, da mesma raça mediterrânica, é bastante baixa,
levando o autor a inclinar-se mais para fatores sociais como o baixo nível de instrução, a taxa elevada de
emprego feminino, ou o pouco tempo de residência em solo americano. Aliás, parte substancial do livro é
uma comparação entre duas comunidades, uma rural e outra urbanaii, que estudou intensivamente e que o
leva a conclusões inesperadas no que toca ao processo de americanização destes portugueses imigrantes. Diz
o autor que:
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“When the peasant from St Michael’s arrive either in Portsmouth or Fall River, he finds
himself in America but not of America. The innumerable differences between himself and
the native-born American isolate him”
(Taft, 1969: 205)
Mas, enquanto na comunidade rural o contacto com agricultores americanos de diferentes classes é maior,
com benefícios para a sua integração (à qual acresce a oportunidade económica de poder comprar terra que
permite subir na hierarquia social) na cidade industrial, os trabalhadores desqualificados tendem a relacionarse preferencialmente com trabalhadores igualmente pobres, imigrantes (canadianos franceses, judeus,
polacos e sírios, mais do que anglo saxónicos) da mesma classe, o que leva a uma menor integração e
assimilação e, consequentemente, a uma menor mobilidade social.
Nesta obra o autor trabalha a relação entre as variáveis raça, classe e mobilidade social, testando-as neste
grupo nacional organizado em dois tipos de comunidades – uma rural e outra urbano/industrial –, numa
discussão que começa com a importância da força da natureza – a raça – e acaba dando força à sociedade. A
metodologia é muito diversificada, usando abundantemente a análise estatística, os questionários censitários
e o estudo de caso intensivo, de comunidade, baseado em entrevistas e contacto direto com informantes. É de
assinalar que este tipo de abordagem teórico-metodológica está em sintonia com os estudos urbanos, então
emergentes, que nessa época se começavam a afirmar em Chicago, com os seus temas e métodos de eleição
(Park & Burgess, 1984).
A cidade surge, neste caso, como um entrave à mobilidade social e integração destes imigrantes portugueses
que, nela se concentram em casas relativamente degradadas em bairros que lembram guetos.
4. Uma colónia em processo de americanização….
Eduardo de Carvalho chega a Boston em 1922, onde vai ocupar o lugar de cônsul até 1925. O livro que mais
tarde publica no Brasil, quando já era cônsul em Porto Alegre, integra os relatórios então feitos, como ele
próprio conta no início da obra:
“O que vai ler-se não é mais do que o desenvolvimento, nalguns pontos, e o resumo,
noutros, dos meus relatórios de 1923 e 1924, sem os gráficos, as estatísticas e os
mapas...”
(Carvalho, 1931: ix).
Dar a conhecer à pátria a ‘colónia portuguesa da Nova Inglaterra’ e chamar a atenção dos poderes públicos
para a situação dos emigrantes votados ao esquecimento é o principal objetivo desta obra. Contrariamente a
Taft, a motivação não decorre de um “questão social”, ou “problema urbano” (Topalov, 1990) mas sim de
uma “questão nacional” ou cultural e ideológica. Este livro é, de certa forma, um texto propagandístico que
produz uma narrativa integradora da colónia (emigrante) portuguesa num projeto de nação abrangente:
A ignorância nacional a respeito das nossas colónias constitui um dos aspetos mais
deploráveis do abandono e a que temos lançado tudo quanto pode contribuir para o
revigoramento da Raça, para o avanço do País, para dar unidade e força ao conjunto
lusíada
(1931, v).
O sentido colonial e expansionista desta perspetiva é patente na comparação que é feita entre estas
esquecidas “colónias de emigrantes” e as enaltecidas “colónias ultramarinas”:
Já para as nossas províncias ultramarinas, se voltaram os olhos dos patriotas. Publicase revistas e livros excelentes que chama sobre os nossos domínios as atenções públicas.
Não sucede o mesmo, porém, com os nossos núcleos de emigrantes. Formam-se, vivem e
desaparecem, integrado em nações novas, sem que o Govêrno, o Povo, a Imprensa,
alguém chegue a conhecê-los.”(idem). Constituem uma parte da nação esquecida, que o
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faz desejar “compor, se alguém me fornecesse os materiais, a História dos Portugueses
na América do Norte, elemento valioso para uma outra, que ninguém talvez, se abalance
a escrever, a História da Colonização Portuguesa do Mundo, ou mais propriamente, a
História da Dispersão Portuguesa.”
(idem, 6).
“O português é como Deus: está em toda a parte”: A colónia dos portugueses em Nova Inglaterra é, afinal
um fragmento da nação, um microcosmos do país. Formada por “açorianos, cabo-verdianos, continentais e
madeirenses” (1931, 26), isto não significa que haja quatro colónias diferentes, nem sequer que haja uma por
localidade.
Há quem chame colónia a cada um dos nossos agregados coloniais (...) Parece-me
preferível considerar cada um desses agregados como um núcleo da mesma colónia (…)
A divisão dos portugueses é já bastante grande para que a aumentemos com uma
designação dispersiva.
(idem, 25).
Contrariamente à obra anterior, caracterizada pela aplicação de uma rigorosa metodologia científica cujo
terreno se focalizou em duas comunidades do Sudeste do Massachusettsiii este livro constitui-se como um
périplo através de alguns dos estados da Nova Inglaterra de maior fixação portuguesa (Massachusetts,
Rhodes Island e Connecticut). Parte de pressupostos ideológicos e políticos claros, em defesa de uma
unidade nacional em torno da “Raça Lusitana” e acaba por se transformar num relato sensível, emotivo,
perspicaz, na primeira pessoa, dos vários lugares e comunidades portuguesas que constituem aquilo que o
autor classifica como “a dispersão portuguesa”. Todo o livro se constrói sobre a voz dos portugueses e lusoamericanos, recolhida na variada e profusa imprensa local, sobretudo de língua portuguesa, em conversas e
entrevistas, em folhetos, boletins, jornais, anúncios, estatísticas. É, realmente, uma fonte etnográfica rica e
complexa, em que a voz do autor se constrói num diálogo com a ‘comunidade portuguesa’ com muitos
recados para o governo de Lisboa, defendendo de um modo vivo e crítico as suas opiniões e posturas críticas.
A reputação da Colónia Portuguesa é excelente” – afirma. “É uma colónia trabalhadora
e honesta, uma das que dão menos percentagem de criminalidade. Os poucos
crimes...são derivados da violação da lei que proíbe o fabrico de bebidas alcoólicas,
industria em que os nossos compatriotas são notabilíssimos(36)
O exercício de profissões muito variadas, desde as mais qualificadas (banqueiros, agentes imobiliários,
notários, jornalistas, advogados, médicos, comerciantes, artistas, livreiros, empresários, etc.) até às mais
desqualificadas ao nível do operariado, dos serviços, da agricultura e da pesca. A riqueza e a diversidade da
“Colónia” é detalhadamente descrita e defendida, dando uma imagem bastante polifónica que cobre a
diversidade profissional, o tecido associativo denso e diversificado, a imprensa em língua portuguesa e
bilingue, incluindo recortes de notícias (!), a receita fiscal e estimativas sobre o valor das remessas, as
escolas e o ensino, as festas e paradas, as atitudes e comportamentos...
Um dos pontos mais interessantes na análise desta obra situa-se na indignação da comunidade portuguesa
perante a obra do Professor Taft – indignação da qual Carvalho é o porta-voz, através das transcrições da
imprensa e do seu próprio relatório consular, em que analisa criticamente a monografia do ‘desastrado
professor’ (162). As causas apontadas para a elevada mortalidade infantil são um dos pontos altos da
indignação, suscitando toda uma movimentação em defesa das “Mães portuguesas, em particular, e da
colónia portuguesa em geral, cobardemente atacada pelo professor Taft”, como se escrevia no início dum
poema publicado em New Bedford (p. 165)...
Naturalmente, e para além deste episódio, as preocupações de Eduardo Carvalho são simétricas e opostas às
de Taft. Uma delas surge com maior evidência:
“A gravidade que para nós reveste o problema da naturalização e da desnacionalização” (p. 16) é um
problema que merece alguma atenção. “Não há sinonímia entre naturalização, americanização e
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desnacionalização” (1931, p. 231). O autor discute “a impossibilidade em organizar uma estatística legal e
sentimental exata” (1931, 20), uma vez que devem entrar na contabilidade dos portugueses não só os que são
portugueses de facto e de direito, como também os que, a-pesar-de naturalizados americanos ou de ter
nascido na América, nem por isso deixam de se proclamar portugueses” (18).
Para se organizar um recenseamento rigoroso da população nos Estados Unidos, seria
necessário juntar aos portugueses registados pelas estações oficiais os que pelo coração
nos pertencem. O coração, como se compreendo, não é elemento seguro para uma
estatística demográfica. Podemos saber – e isso com dificuldades – quando um português
passa a luso-americano. Em que altura e em que geração, porém, é que um lusoamericano passa a americano sem mistura? (21).
Apesar de a naturalização ser parte do caminho do processo de americanização, a verdade é que a evidência
do campo lhe mostra que são estes luso-americanos quem acaba por se identificar mais fortemente com a
identidade portuguesa em solo americano:
A fórmula dos naturalizantes é esta: Se queres ser um bom português, faz-te americano.
Fora dos Estados Unidos, talvez ninguém compreenda lá muito bem esta lógica; mas o
que posso afirmar é que ela dentro da América, produz efeitos surpreendentes.”(221)
A direção das associações e dos jornais, a propriedade, as melhores profissões
pertencem, geralmente, a naturalizados. Naturalizados são os que, à frente da Colónia,
enfileiram nas grandes manifestações patrióticas (216).
Para este autor que não se focaliza numa única comunidade (cidade), como Taft, mas que circula por toda
uma área metropolitana com o epicentro em Boston, pode-se afirmar que é este ambiente urbano que
promove a integração destes imigrantes portugueses e a afirmação de uma identidade positiva das suas
origens, nacional ou étnica.
5. Conclusões
Salvaguardadas as devidas diferenças entre ambas as fontes, a sua análise cruzada permite, não apenas traçar
dois retratos diferentes e complementares destas ‘colónias/comunidades’, como, sobretudo, permite perceber
o modo como este conhecimento social e urbano se constrói em torno de pontos de vista particulares,
condicionados pela dimensão nacional, linguística, político-ideológica, científica, profissional, pessoal e
como a realidade relatada se cria em torno de categorias analíticas que fazem parte de sistemas de
significados cujas comparações devem ser acauteladas. As noções de raça e colónia, usadas por ambos os
autores com sentidos diferentes, são disto um bom exemplo. Para Taft, que procura os vestígios de negritude
nos açorianos das diferentes ilhas, a raça é usada num sentido biológico, que fragmenta a ‘comunidade’
portuguesa em grupos distintos; para Carvalho, a raça portuguesa ou lusitana, numa aceção ideológica, é
sinónimo de unidade nacional que liga todos os portugueses numa única comunidade/nação. No sentido
americano, colónia de imigrante é sinónimo de enclave étnico/nacional, ou gueto, no meio um mosaico
composto por muitas colónias, enquanto no sentido português e nacionalista da época a colónia portuguesa
surge com conotações expansionistas, de um povo que se dispersou pelo mundo, antecipando, de certo
forma, a catual noção de diáspora. A dimensão urbana de Taft é a de uma comunidade industrial comparável
a uma outra em meio rural; a urbanidade por onde Carvalho circula é mais ampla e mais próxima do sentido
moderno do termo difícil de delimitar geograficamente.
Este tipo de análise ajuda-nos a melhor entender como os saberes sobre a cidade resultam de esquemas
percetivos que orientam o olhar e organizam a informação. As construções identitárias coletivas aqui
referidas – de tipo nacional, étnico, racial, ou outro – são processos complexos que devem ser geográfica e
temporalmente situados. Identificar as várias dimensões, desde as mais individuais às mais institucionais, no
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seio das quais se desenvolvem as negociações de significado, por vezes subtis, que fazem parte dos legados
com que o presente etnográfico lida, tanto a nível local como transnacional passa por um incluir um olhar
retrospetivo. As ambiguidades semânticas que palavras como português, língua portuguesa ou lusofonia
transportam, hoje em dia, não são alheias às várias histórias locais que lhes dão sentido. Compreender as
transformações destas identidades no estado do Massachusetts, relacionadas com as representações de
‘colónia imigrante’ do princípio do século XX, de ‘minoria étnica’, pelos anos de 1970 e, mais recentemente,
de ‘maioria linguística’ passa por empreender este tipo de incursões histórico-antropológicas (Cordeiro,
2012).
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Falar português em Boston: identidades em acção e interacção, CIES-IUL-Centro de Investigação e Estudos de
Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa, ISCTE-IUL / FLAD-Fundação Luso-Americana para o
Desenvolvimento, coordenado por Graça Índias Cordeiro, com Frédéric Vidal e Lígia Ferro (investigadores), início em
2011.
iiPortsmouth, RI (rural), 100% da população e Fall River, MA (urbano/industrial), 15 quarteirões (blocks), 102 famílias.
Ver Cap. 6, pp 194- 342
i
iii
Na área hoje conhecida pelo ‘arquipélago português’.
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