Humanismo
Escrita na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, “Auto da
Barca do Inferno” oscila entre os seus valores morais de duas épocas: ao
mesmo tempo que há um severa crítica à sociedade, típica da Idade
Moderna, a obra também está religiosamente voltada para a figura de
Deus, o que é uma característica medieval.
O Humanismo caracterizou-se como um período de conflitos e mudanças
de valores. Aos poucos, o ser humano foi deixando de lado a visão
teocêntrica da existência humana, passando a interferir mais
objetivamente no mundo em que vivia. Começou a valorizar sua própria
capacidade intelectual e artística, tornando-se autor de descobertas
científicas e de obras de arte admiráveis.
O Auto
“Auto" é uma designação genérica para peça, pequena representação
teatral. Originário na Idade Média, tinha de início caráter religioso; depois
tornou-se popular, para distração do povo.
Tudo indica que foi Gil Vicente (1465(?) – 1536(?) o introdutor da arte
teatral do auto em Portugal. Seus autos versam sobre temas tradicionais
de caráter religioso-moralizante ou pastoris.
A proteção real foi uma constante na sua vida. Manteve-se preso às
tradições medievais e fez, antes de tudo, um teatro de tom didáticomoralizante, enraizado no teocentrismo e na ideia de salvação da alma.
Apesar de suas personagens serem planas, sem profundidade
psicológica, elas tocam a universalidade de aspectos psicológicos
significativos que havia naquele tempo, bem como os valores prezados ou
repelidos por aquela sociedade.
PERSONAGENS
TIPOS E SIMBÓLICOS
Os personagens “tipo” são os que apresentam características gerais de
uma determinada classe social.
Esses tipos utilizados por Gil Vicente raramente aparecem identificados
pelo nome. Quase sempre, são designados pela ocupação que exercem
ou por algum outro traço social (sapateiro, onzeneiro, clérigo, frade,
bispo, alcoviteira etc.).
Também podem ser caracterizados como personagens simbólicos por
representarem tipos particulares de comportamento humano.
É uma obra alegórica, tanto com relação aos personagens quanto às
idéias que, no geral, perpassam uma dedução moral.
Personagens
Fidalgo: é condenado à barca do inferno por ter levado uma vida tirana cheia de
luxúria e pecados.
Onzeneiro: é condenado ao inferno pela ganância, usura e avareza.
Parvo: ao chegar à barca da gloria o parvo diz não ser ninguém e, por causa da
sua humildade e modéstia, a sua sentença é a glorificação.
Sapateiro: é condenado por roubar o povo com seu ofício durante 30 anos e por
sua falsidade religiosa.
Frade: condenado à barca do inferno por seu falso moralismo religioso.
Alcoviteira: condenada à barca do inferno pela prática de feitiçaria, prostituição e
por alcovitagem.
Judeu: condenado ao inferno por desrespeitar o Cristianismo.
Corregedor e Procurador: condenando-os ao batel infernal por usarem o poder do
judiciário em benefício próprio.
Enforcado: condenado ao batel infernal pela corrupção nos meios burocráticos.
Cavaleiros das Cruzadas: O fato de morrer pelo triunfo do Cristianismo garante a
esses personagens uma espécie de passaporte para a glorificação.
Os membros da Igreja são alvo constante da crítica vicentina. É
importante observar, no entanto, que o espírito religioso presente na
formação do autor, jamais critica as instituições, os dogmas ou hierarquias
da religião, e sim os indivíduos que as corrompem.
Acreditando na função moralizadora do teatro, colocou em cenas
fatos e situações que revelam a degradação dos costumes, a imoralidade
dos frades, a corrupção no seio da família, a imperícia dos médicos, as
práticas de feitiçaria, o abandono do campo para se entregar às aventuras
do mar.
Linguagem - Estilo - Humor
Linguagem:
As personagens falam um português variadíssimo (vulgar, médio,
elegante, erudito, com arcaísmos, etc). Falam também o espanhol e um
latim muito distorcido, chegando a trazer um tom humorístico.
Gil Vicente registra a variedade linguística da época fazendo com que
cada personagem utilize as formas da linguagem falada próprias de seu
meio social.
DIABO - De que morreste?
PARVO -De quê? Samicas de caganeira. * talvez
DIABO - De quê?
PARVO - De caga merdeira! Má ravugem que te dê! * sarna
DIABO - Entra! Põe aqui o pé!
PARVO - Houlá! Nom tombe o zambuco!
*barco (depreciativo)
DIABO - Entra, tolaço eunuco, que se nos vai a maré! * grande tolo castrado
PARVO - Aguardai, aguardai, houlá! E onde havemos nós d'ir ter? *dirigir-nos
DIABO - Ao porto de Lucifer.
PARVO - Ha-á-a...
DIABO - Ó Inferno! Entra cá!
PARVO -Ò Inferno?... Eramá... Hiu! Hiu! Barca do cornudo.
*Hora má
Pêro Vinagre, beiçudo, rachador d'Alverca, huhá! Sapateiro da *nome de aldeia
Candosa! Antrecosto de carrapato! Hiu! Hiu! Caga no sapato, filho *costas
da grande aleivosa! Tua mulher é tinhosa e há-de parir um sapo *mulher traidora
chentado no guardanapo! Neto de cagarrinhosa!
* colocado
Furta cebolas! Hiu! Hiu! Excomungado nas erguejas! Burrela, cornudo * igrejas
sejas! Toma o pão que te caiu! A mulher que te fugiu per'a Ilha da Madeira! Cornudo
até mangueira, toma o pão que te caiu!
Hiu! Hiu! Lanço-te üa pulha! Dê-dê! Pica nàquela! Hump! Hump!
* injúria
Caga na vela! Hio, cabeça de grulha! Perna de cigarra velha,
* tagarela
caganita de coelha, pelourinho da Pampulha! Mija n'agulha, mija n'agulha! * bairro
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Auto da Barca do Inferno