Leituras / Readings O Eu e os Outros - 9 Me and the Others - 9 J. Pio Abreu 48 SEMPRE FUI UMA MULHER SOLITÁRIA NO MEIO DE UM MAR DE GENTE. O meu pai deixou-nos cedo, a mim, aos meus irmãos e à minha mãe. Foi a velha história: levado por uma mulher mais nova, abdicou de tudo, e de nós também. Teria as suas razões, mas o que se passou a seguir não foi fácil. Éramos 7 irmãos, ficámos com a mãe, e lá nos fomos arranjando. O pai também, romântico mas teimoso, nunca voltou atrás. Acho que viveu infeliz, dobrado pelos seus sentimentos contraditórios. Morreu cedo. Cada um dos meus irmãos teve de tomar posição, ou pelo sentimentalismo romântico do pai, ou pelo pragmatismo racional da mãe (cujos sentimentos se iam transformando em ressentimentos). Como eram quase todos homens, optaram em geral pela mãe. Só a minha irmã tomou partido pelo pai, e lá o ajudava clandestinamente. Não teve muito êxito. Eu, a filha do meio, fiquei rigorosamente ao centro: nem por um nem por outro. Sabe Deus o que me custou abafar os sentimentos que me puxavam, ora para um, ora para outro. Mas a racionalidade venceu, e nunca me deixei envolver.Também, foram os sentimentos que levaram o meu pai à desgraça. Habituei-me a ser fria e racional, com a factura de nunca me deixar levar pelos sentimentos. Cheguei a casar (melhor: alguém decidiu casar comigo), mas durou apenas uns meses sem deixar qualquer rasto. Sozinha, levei a vida para a frente, montei muito cedo uma loja de sucesso, vivi à minha conta sem ter de pedir nada a ninguém. Era um exemplo para todos, sobretudo para os irmãos que, levados pelas minhas cunhadas, se foram afastando dos caminhos traçados pela mãe. A minha independência e equidistância eram admiradas por todos. A minha mãe vive agora sozinha. Às vezes vou ter com ela para lhe fazer companhia, mas não se pode dizer que a ela me ligue alguma afeição. O meu estilo é estar sozinha. Comigo, com o meu apartamento, com a minha loja. Tenho relações profissionais com clientes e fornecedores. Mas são muito racionais e frias, pois sei que à mínima manipulação sentimental estamos sujeitos a perder tudo em favor dos que nos seduzem. É assim que me relaciono com toda a gente, incluindo a família. É verdade que fiquei rigorosamente sozinha, mas antes isso que mal acompanhada. Intimidade, estabeleço-a com os objectos da minha casa, e sempre me distraio com a televisão. Foi pela televisão que começou a minha grande aventura. Foi há 4 anos, tinha os 45 já feitos. Estava a ver um programa sobre radiestesia, coisa em que não acreditava. Mas resolvi experimentar. E não é que ao fazer um pêndulo com uma colher de prata senti uma vibração profunda em todo o meu corpo? Fiquei tão excitada que mal dormi. Nos dias seguintes voltei às experiências. Não eram só as vibrações do corpo, mas também as intuições do espírito. Comecei a descobrir um mundo oculto que se me revelava através da interacção com os meus objectos.Tomado em ritual, cada objecto produzia um sinal que assentava no meu corpo com uma evidência mais forte do que qualquer convicção profundamente racional. Eu falava com as coisas, as coisas falavam comigo. Fiquei mais atenta aos pequenos sinais, tanto bons como maus. Os maus começaram na loja. Havia uma encomenda que trazia um rato dentro da embalagem. Um sinal que não soube decifrar de imediato, mas o certo é que a loja começou a ser invadida por ratos. Eram ratos que apareciam e desapareciam por capricho aleatório, fugiam, esperneavam, contorciam-se, perdiam e recuperavam as pernas ou a cabeça, assim existisse uma conjunção propícia. Segredos da radiestesia, mas sinais de que teria de largar tudo para me dedicar à minha missão. Nada disto acontecia por acaso, fiquei a sabê-lo depois. São as vozes que mo dizem.A princípio, vozes VOLUME VIII Nº1 JANEIRO/FEVEREIRO 2006 Leituras / Readings imperceptíveis.Agora distingo-as claramente. Não me perguntem como. Apenas sei que elas existem e mandam em mim. Nada posso fazer sem a sua autorização, e são elas que decidem todas as minhas acções. Muita gente não compreende porque faço certas coisas ou não. São as vozes. São várias, é uma comunidade completa, creio que são amigas. Eu, que sempre vivi sozinha, tenho agora mais amigos íntimos do que qualquer pessoa. Vivo com eles e faço o que eles mandam. Claro que ninguém entende, claro que a loja faliu, claro que me estou nas tintas para as pessoas que vivem à minha volta e que me querem levar ao psiquiatra. Estou muito bem com a minha invejável comunidade. São os meus anõezinhos. Comecei a pensar sobre o meu passado, e lembro-me de pormenores que tinham a ver com isto. Em especial certas viagens que fiz com a família. Os meus irmãos não me dão troco, e tentam enganar-me para me desviar do meu caminho. Pensando bem na minha história e juntando todos os sinais, descobri que tudo começou no Século XVI, na Escócia: um amor proibido que levou ao assassínio de um homem. A cena é histórica e o pudor impede-me que a descreva. Mas foi a mim que coube a redenção do amor negado. Cumpro a minha missão e ofe reço-me deleitosamente em sacrifício. Ninguém o pode entender. Os psiquiatras muito menos. São todos demasiado frios e racionais. 49 VOLUME VIII Nº1 JANEIRO/FEVEREIRO 2006