Leituras / Readings
O Eu e os Outros - 9
Me and the Others - 9
J. Pio Abreu
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SEMPRE FUI UMA MULHER SOLITÁRIA
NO MEIO DE UM MAR DE GENTE. O meu
pai deixou-nos cedo, a mim, aos meus irmãos e à
minha mãe. Foi a velha história: levado por uma mulher mais nova, abdicou de tudo, e de nós também.
Teria as suas razões, mas o que se passou a seguir não
foi fácil. Éramos 7 irmãos, ficámos com a mãe, e lá nos
fomos arranjando. O pai também, romântico mas
teimoso, nunca voltou atrás. Acho que viveu infeliz,
dobrado pelos seus sentimentos contraditórios.
Morreu cedo.
Cada um dos meus irmãos teve de tomar posição, ou
pelo sentimentalismo romântico do pai, ou pelo pragmatismo racional da mãe (cujos sentimentos se iam
transformando em ressentimentos). Como eram
quase todos homens, optaram em geral pela mãe. Só
a minha irmã tomou partido pelo pai, e lá o ajudava
clandestinamente. Não teve muito êxito. Eu, a filha do
meio, fiquei rigorosamente ao centro: nem por um
nem por outro. Sabe Deus o que me custou abafar os
sentimentos que me puxavam, ora para um, ora para
outro. Mas a racionalidade venceu, e nunca me deixei
envolver.Também, foram os sentimentos que levaram
o meu pai à desgraça.
Habituei-me a ser fria e racional, com a factura de
nunca me deixar levar pelos sentimentos. Cheguei a
casar (melhor: alguém decidiu casar comigo), mas
durou apenas uns meses sem deixar qualquer rasto.
Sozinha, levei a vida para a frente, montei muito cedo
uma loja de sucesso, vivi à minha conta sem ter de
pedir nada a ninguém. Era um exemplo para todos,
sobretudo para os irmãos que, levados pelas minhas
cunhadas, se foram afastando dos caminhos traçados
pela mãe. A minha independência e equidistância
eram admiradas por todos.
A minha mãe vive agora sozinha. Às vezes vou ter
com ela para lhe fazer companhia, mas não se pode
dizer que a ela me ligue alguma afeição. O meu estilo
é estar sozinha. Comigo, com o meu apartamento,
com a minha loja. Tenho relações profissionais com
clientes e fornecedores. Mas são muito racionais e
frias, pois sei que à mínima manipulação sentimental
estamos sujeitos a perder tudo em favor dos que nos
seduzem. É assim que me relaciono com toda a
gente, incluindo a família. É verdade que fiquei rigorosamente sozinha, mas antes isso que mal acompanhada. Intimidade, estabeleço-a com os objectos da
minha casa, e sempre me distraio com a televisão.
Foi pela televisão que começou a minha grande aventura. Foi há 4 anos, tinha os 45 já feitos. Estava a ver
um programa sobre radiestesia, coisa em que não
acreditava. Mas resolvi experimentar. E não é que ao
fazer um pêndulo com uma colher de prata senti uma
vibração profunda em todo o meu corpo? Fiquei tão
excitada que mal dormi. Nos dias seguintes voltei às
experiências. Não eram só as vibrações do corpo,
mas também as intuições do espírito. Comecei a
descobrir um mundo oculto que se me revelava
através da interacção com os meus objectos.Tomado
em ritual, cada objecto produzia um sinal que assentava no meu corpo com uma evidência mais forte do
que qualquer convicção profundamente racional. Eu
falava com as coisas, as coisas falavam comigo.
Fiquei mais atenta aos pequenos sinais, tanto bons
como maus. Os maus começaram na loja. Havia uma
encomenda que trazia um rato dentro da embalagem.
Um sinal que não soube decifrar de imediato, mas o
certo é que a loja começou a ser invadida por ratos.
Eram ratos que apareciam e desapareciam por capricho aleatório, fugiam, esperneavam, contorciam-se,
perdiam e recuperavam as pernas ou a cabeça, assim
existisse uma conjunção propícia. Segredos da radiestesia, mas sinais de que teria de largar tudo para me
dedicar à minha missão.
Nada disto acontecia por acaso, fiquei a sabê-lo
depois. São as vozes que mo dizem.A princípio, vozes
VOLUME VIII Nº1 JANEIRO/FEVEREIRO 2006
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imperceptíveis.Agora distingo-as claramente. Não me perguntem
como. Apenas sei que elas existem e mandam em mim. Nada
posso fazer sem a sua autorização, e são elas que decidem todas
as minhas acções. Muita gente não compreende porque faço certas coisas ou não. São as vozes. São várias, é uma comunidade
completa, creio que são amigas. Eu, que sempre vivi sozinha,
tenho agora mais amigos íntimos do que qualquer pessoa. Vivo
com eles e faço o que eles mandam. Claro que ninguém entende,
claro que a loja faliu, claro que me estou nas tintas para as pessoas que vivem à minha volta e que me querem levar ao psiquiatra. Estou muito bem com a minha invejável comunidade. São os
meus anõezinhos.
Comecei a pensar sobre o meu passado, e lembro-me de pormenores que tinham a ver com isto. Em especial certas viagens
que fiz com a família. Os meus irmãos não me dão troco, e tentam enganar-me para me desviar do meu caminho. Pensando bem
na minha história e juntando todos os sinais, descobri que tudo
começou no Século XVI, na Escócia: um amor proibido que levou
ao assassínio de um homem. A cena é histórica e o pudor
impede-me que a descreva. Mas foi a mim que coube a redenção
do amor negado. Cumpro a minha missão e ofe reço-me
deleitosamente em sacrifício. Ninguém o pode entender. Os
psiquiatras muito menos. São todos demasiado frios e racionais.
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