Folhas do Caminho PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL Chanceler: Dom Dadeus Grings Reitor: Norberto Francisco Rauch Vice Reitor: Joaquim Clotet Conselho Editorial: Antoninho Muza Naime Antonio Mario Pascual Bianchi Délcia Enricone Helena Noronha Cury Jayme Paviani Jussara Maria Rosa Mendes Luiz Antonio de Assis Brasil e Silva Marília Gerhardt de Oliveira Mírian Oliveira Urbano Zilles (presidente) Diretor da EDIPUCRS: Antoninho Muza Naime Elvo Clemente Folhas do Caminho Porto Alegre 2003 EDIPUCRS Capa: José Fernando F. de Azevedo Preparação de Originais: Eurico Saldanha de Lemos Editoração e Composição: Print Line Artes Gráficas Revisão: do autor Digitação: Vanusa de Andrade Ferreira Impressão e acabamento: GRÁFICA EPECÊ C626f Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Clemente, Elvo, Irmão Folhas do caminho / Ir. Elvo Clemente. – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. 153 p. ISBN: 85 – 7430 – 381 – X 1. Literatura Brasileira – História e Crítica. 2. Poesia Brasileira – História e Crítica. 3. Escritores Brasileiros – Crítica e Interpretação. I. Título CDD 869.909 869. 91709 Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Processamento Técnico da BC – PUCRS Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a autorização expressa da Editora. EDIPUCRS Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33 Caixa Postal 1429 – 90619 – 900 Porto Alegre – RS – Brasil Fone/fax: (51) 3320.3523 www.pucrs.br/edipucrs/ E-mail: [email protected] SUMÁRIO INTRODUÇÃO / 6 FRANCISCO LOBO DA COSTA / 7 A FORÇA LITERÁRIA DE CRUZ E SOUSA / 22 ALCEU WAMOSY / 41 GUERRA JUNQUEIRA X LOBO DA COSTA EM O FLAGELO HUMANO DAS SECAS / 48 SIMÕES LOPES NETO: 80 ANOS DEPOIS... / 65 TRÊS CENTENÁRIOS RIO-GRANDENSES / 76 MACHADO DE ASSIS − O CRÍTICO / 83 O CRÍTICO ALCEU AMOROSO LIMA / 89 HELDER MACEDO E O ENSAIO / 102 ERICO VERISSIMO E A CRÍTICA BRASILEIRA / 109 VITORINO NEMÉSIO / 124 GARRETT − IRRADIADOR DE CULTURA / 138 TRISTÃO DE ATHAYDE E A LITERATURA NO RIO GRANDE DO SUL / 150 RETRATO DA SOCIEDADE / 172 O TRANSCENDENTE EM MÁRIO QUINTANA / 175 FOLHAS DO CAMINHO... Desde longos anos venho deixando nas veredas dos dias folhas caídas da árvore que vai crescendo, que vai oferecendo flores e frutos aos viajantes. São frutos de leitores de novos livros, de livros venerados, de páginas amarelecidas que retomam verdor ao comunicarem verdadeiros segredos guardados com usura aos passantes distraídos. As folhas do caminho abrem-se à curiosa interrogação de adolescentes, de jovens, de adultos que querem saber mais do mistério da poesia. Como conhecer os arcanos dos mundos que se escondem no esconderijo do tempo, na feliz expressão de Mário Quintana? A leitura, a meditação e a contemplação oferecem luz para esquadrinhar, para revelar os segredos do ser humano. Folhas do caminho trazem nomes de escritores, de poetas, de garimpeiros de beleza e de amor que se envolvem nas linhas, nos parágrafos de revelação do irrelevado... Folhas do caminho oferecem uma luz tênue aos iluminados que sabem ler as entrelinhas dos poemas e dos parágrafos em busca sedenta de mais luz... 6 FRANCISCO LOBO DA COSTA O ROMÂNTICO Neste capítulo veremos a figura romântica de Francisco Lobo da Costa em diversas facetas de sua existência e de sua atividade. 1 – Nota Biográfica O poeta nasceu na cidade de Pelotas, no dia 12 de julho de 1853, sendo seus pais Antônio Cardoso da Costa e Jacinta Júlia da Costa. Pertencia à classe média, bem situada na sociedade local. O testemunho das poetisas Revocata H. de Melo e Julieta de Melo Monteiro é interessante: “Dizem-nos que a sua infância correu entre flores, rodeada dos carinhos da querida mãe e do extremoso pai. Aquela, porém, faleceu muito cedo, desgraça que, sem dúvida, influiu bastante na tormentosa vida do desventurado sonhador” (Prefácio das Dispersas. Rio Grande, Livraria Americana, 1910). Rocha Gallo refere-se à mesma infância venturosa quando escreve: “plumagem quente dos aconchegos do ninho doméstico”. Em poemas saudosos, o poeta recorda os tempos da meninice: “Lembrança de tempos idos Por que não vindes aqui? Tão pura, serena e calma Como o amor da minha mãe!” (Auras do Sul, 3ª ed., Rio Grande, Livraria Americana, 1928, p. 42) 7 A orfandade lhe toldou o céu azul da infância com as nuvens sombrias da tristeza e da dor e com afeto se volta ao pai nestes versos: “Sentireis o perfume da saudade Aberta em flor, no coração que sofre. E se chorardes, pai... de vossas lágrimas Será meu livro o inviolável cofre.” (“Última Folha”, Auras do Sul / p. 148-9) Aos 12 anos revela-se poeta no celebrar a retomada de Uruguaiana, 1865, pelas forças brasileiras, episódio significativo da Guerra contra Solano Lopes. Os seus primeiros versos foram estampados no Eco do Sul. Vemo-lo, assim, inserido na vida brasileira, na sociedade com seus problemas, ânsias e esperanças. Aos 15 anos está empregado na estação do telégrafo local, nas horas vagas lia e recitava sofregamente os poemas de Castro Alves, Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo e Gonçalves Dias. No posfácio de “Flores do Campo”, 2ª edição de Dispersas, Rocha GaIlo fala do autodidatismo do poeta: “Dotara-o a natureza de um caráter dócil e meigo e de uma inteligência cujo poder de assimilação revelava-se na presteza com que aprendia as mais complicadas questões literárias e filosóficas. Carecia, porém, da preciosa faculdade de reter o que assimilava com tanta facilidade e era-lhe difícil utilizar os escassos conhecimentos que possuía por não poder tirá-los da desordem em que os bebera à ligeira, sem método, sem sistemas, borboleteando voluvelmente de autor em autor mal tendo, às vezes, tempo de compreendê-los e senti-los. 8 Em compensação, o pendor poético manifestava-se nele alimentado pelas refulgências do estro sempre afinado, e pelas lucilações da inspiração sempre pronta, sempre no estado de máxima tensão”. Por esse depoimento podemos compreender melhor a formação do poeta e sua força inspiradora e sua permeabilidade às influências dos poetas contemporâneos do centro do País. Daí procede a intertextualidade repetida e presente em muitos poemas. É preferível a tese de um Lobo da Costa, poeta inspirado, aedo, autodidata, a de um suposto bacharel... A grandeza do Poeta está aí – sentir e viver o seu povo; sentir e viver a vida social das cidades por onde peregrinou; sentir e viver a vida e a boêmia do seu destino e retratá-la nos versos que nos deixou... É o poeta andarengo que traduz em seus poemas as vicissitudes de sua vida, os altos e baixos da vida social e os episódios significativos da vida brasileira. Colaborou em quase todos os jornais e revistas da época das cidades de Jaguarão, Rio Grande, Pelotas, Bagé, Dom Pedrito e Porto Alegre. Em todos os momentos sente e vive o momento de sua vida e da vida da pátria. A boêmia e sua natural versatilidade o levaram a perambular por todos os escalões da sociedade da Província do Rio Grande até 1888, ano em que no dia 18 de junho morreu na Rua de Santa Cruz, hoje Lobo da Costa, em sua cidade natal. Recolhido à Santa Casa, detestava aqueles cuidados, aquela vigilância, queria a liberdade, a liberdade de buscar a própria morte. Aí, hirto pelo frio, deitado no chão da rua está o poeta!... Até a morte foi fiel de viver e sentir com a sua cidade e com o seu povo o frio e os rigores da estação hibernal. Lobo da Costa, poeta das grandes causas nacionais, viveu, vibrou com a sua gente na guerra do Paraguai, nos anseios da República, na libertação dos escravos, nos prementes problemas que atingiam as grandes cidades daquele tempo. Em todos esses anseios é o poeta romântico por excelência. 9 Ora presente e vive a tristeza, o mal do século, que atingira tão fortemente Álvares de Azevedo, ora vibra e exulta como Castro Alves, ora chora e geme de saudade como Casimiro de Abreu, ora proclama e exalta o indígena como Gonçalves Dias. É o poeta romântico que vibra com todas as melodias da lira brasileira. 2 – A Asa da tristeza No dizer de Afonso Lopes de Almeida, todo poeta é triste e toda poesia é um gemido. Lobo da Costa, apesar de sua vida social intensa, de sua boêmia incorrigível foi um homem solitário, profundamente triste. Ele mesmo define em verso: “A poesia/é um gemido de dor, desfeito em harmonia”. O poeta liberta-se da dor e da tristeza para seguir o seu destino: “Sombras vãs do passado, eu vos adoro! que me importa esta dor que me atormenta?” Sente-se desamparado, abandonado, vivendo, embora nas rodas sociais que o celebram, que o exploram na força de sua poesia: É patética a última estrofe do poema “Proscrito no mar”. “Vim de longe colher palmas: Só a saudade encontrei! Essa coroa das almas Mais pesada que a de um rei. Proscrito! Eis todo o meu nome...” (Auras do Sul, p. 25 e passim) A tristeza é realmente o seu meio, a sua vivência mais profunda em que ele se sente a si mesmo e retoma os temas de Casimiro de Abreu. 10 3 – Sentimento de Pátria Nostálgico, peregrinando pelas cidades do Rio Grande, indo até São Paulo, o poeta vive e sente a Pátria, o sonho de independência, celebra o tema da liberdade, tão caro e profundo no coração romântico. No poema “7 de Setembro” tece loas ao grande feito de Dom Pedro I e dos brasileiros, enaltecendo, ao mesmo tempo, os ideais liberais nos próceres daquela hora; transcrevemos apenas a penúltima estrofe: “Tente embalde o despotismo Os teus brios alquebrar... Brasil! – cingiu-te o Eterno De um destino tutelar! A idéia de liberdade Que ora implanta a sociedade Da glória aos rubros festins, Tem por ti dois combatentes No passado – Tiradentes No porvir – Gaspar Martins!” (Auras do Sul, p. 79) A idéia de liberdade sempre o acompanhou em todos os seus versos, quer louve o Imperador quer o deteste, como poderemos observar na segunda estrofe do poema “Que importa?”, recitado no dia 1° de dezembro de 1885 no Teatro 7 de Abril, em sua terra natal: “E nem sequer uma gota De sangue caiu por terra, E nem o corvo da guerra Lambeu o negro fuzil: 11 E quem mais alto e sublime Baniu o medonho espectro? Não a espada, mas o cetro O imperador do Brasil.” (Auras do Sul, p. 106) Ao mesmo tempo em que elogia o Imperador sente na alma a revolta contra o poder despótico, quer mais liberdade, quer mais participação no governo e nas decisões da Pátria. Exalta a força do povo, em sua luta revolucionária, em seu anseio de liberdade e de colaboração no banquete do poder. Ao lado da reverência que lhe merece Dom Pedro II, procura celebrar o povo, em Flores do campo, no poema escrito em 1888: “Não odeio e não desminto A real exceção. Teve a Europa um Pedro Quinto Que foi rei e cidadão. E o Brasil, no seu monarca Sempre viu um patriarca Que lhe inspira amor e fé, Não é ele quem governa, São os biltres da taberna, Os lacaios de libré!” (Flores do Campo, p. 65-7) 4 – Sentimento de Povo Dentro dessa maneira de ver os acontecimentos e as idéias dominantes na época, sente em si fervilhar o sangue da revolta, sente em si o sentimento 12 de povo, de luta contra a opressão – o poema “O Rei e o operário” coloca as duas posições em luta. A exaltação é grande, vai quase ao paroxismo num diálogo veemente e atrevido. As funções de ambos são avaliadas e contrapostas em dísticos, formando cada estrofe. Vamos apreciar algumas mais significativas. O Rei começa, o Operário responde: “– Eu mando tropas armadas Sustento povos na mão... Pois eu tempero as espadas Que fazem revolução!”... Ao encerrar-se o poema, assim fica a última estrofe: “– Tu és da noite, eu, o dia, Deslumbram-se os vivos sóis... – Tu fundes a tirania, Eu fundo o pulso aos heróis!” (Flores do campo, p. 92) No poema “Sem título”, em Auras do Sul, mostra como todos, representantes do povo, têm sua tarefa traçada desde o pobre operário até o sábio, desde o nauta até o escravo. Num outro quadro está: “O rico, o nobre, que nunca Teve da glória a emoção, Dorme... e entre sonhos murmura: – Que tolos! Que tolos são!” Há outro contraste no meio social daquela época retratado de modo realista com as cores vibrantes de imagens fortes e cheias de vigor. 13 Descreve uma orgia no palácio, onde todos se banqueteiam em companhias galantes e lascivas. É uma espécie de imagem de sociedade da burguesia daqueles dias, o poema sob o nome “Um canto do século” descreve com candentes versos aquelas festas, aqueles esbanjamentos e a pobreza a morrer à míngua junto da porta... A crueza da imagem está bem viva em todas as estrofes, para termos uma pequena idéia reproduziremos o último sexteto: “Ao amanhecer, porém, quando as caleches Roubavam do prazer as flores mortas, As damas do salão: Um vulto levantou-se da calçada e a mão foi estendendo de contínuo, Chorando a pedir pão!” (Auras do Sul, p. 52-5) Em “Homens de Roma” o poeta apresenta novo contraste, entre o povo e o papado naquela época, defendendo seu território, contra as tropas de Garibaldi que, depois da queda da Porta Pia, todos foram excomungados por Pio IX... As idéias em voga naquele tempo perpassam nas estrofes do poema com imagens, metáforas e hipérboles dignas de Victor Hugo ou de Castro Alves. Para termos o sabor do poema apresentaremos a última estrole da primeira parte em que se vê a luta, e a última estrofe da segunda parte em que aparece a profecia dos novos tempos e das novas idéias para o mundo. “Trava-se a luta horrenda e fratricida; A honra, a liberdade, a idéia, a vida. 14 São banidas por lei! Perdura uma só causa – o despotismo... Roubo e morte, – são palmas de civismo Aos pés do Papa-rei! Mas, ah!... não tarda no espaço A aurora da redenção, Em que se estalem os ferros Da imortal escravidão... Então armados os povos, Rebentos de mundos novos, C’os ossos de Galileu Ao mundo dirão: Por terra A igreja que nos faz guerra: Liberdade à luz do céu! (Auras do Sul, p. 31-5) O poeta vive profundamente o contraste real da sociedade, a miséria e a riqueza; o luxo e a pobreza; o desamparo e a segurança... “O mundo contraditório onde para alguns sobra para outros falta, onde alguns morrem de fome e outros morrem de congestão por demasiado comer...” O poeta experimentou, em sua curta vida de andarilho, a fartura e a falta de comida e de compreensão... Experimentou as dores da desgraça e os momentos de glória; o infortúnio e o deslumbramento dos grandes salões; os aplausos e o desprezo; a recepção de seus versos nos jornais e revistas e o roubo de sua produção... As dores e os sofrimentos foram o rosário de sua existência. Tudo isso ele o levou para o esplendor da arte. Ele procurou estabelecer um diálogo entre “o gênio e a arte” de que vamos reproduzir a última estrofe: 15 “ – Entra; meu albergue é pobre, Mas há fogo na lareira; Eu durmo sobre esta esteira... Pode dormir outro mais, Enxuga, pois, teus vestidos... Tenho um só pão... mais reparte... Tu és o gênio, eu – a arte, Ambos nascemos iguais.” (Auras do Sul, p. 15) 5 – O Sentimento do Rio Grande O solo e a gente rio-grandenses são glorificados pelo poeta, quer nas lendas, quer na fala, quer nas recordações. A voz da terra é forte e repercute pelas canhadas dos campos fora. É muito conhecido o poema, muitas vezes recitado ainda hoje, “Lá...” com aquele sabor gauchesco e tão nosso, escrito em São Paulo, em 1874. Conta tantas belezas, tantas maravilhas da vida do campo. Vida simples e saudável, onde a pessoa tem sua querência mais ampla e mais viva. É aquela paisagem que se apresenta na primeira estrofe: “Na minha terra, lá... quando O luar banha o potreiro, Passa cantando o tropeiro, Cantando... sempre cantando... Depois, descobre-se o bando Do gado que muge adiante, E um cão ladra bem distante... Lá... bem distante, na serra! Nunca foste à minha terra?” 16 O sabor gaúcho, tanto na paisagem como nas palavras, leva-nos àqueles ambientes campeiros tão familiares ainda hoje para nós. Ao término do poema bastante longo, assim conclui na mesma cadência: “Ali verás como incita O viver da solidão, Tomando o teu chimarrão feito por moça bonita. Verás vestidos de chita... Muita vida em cada rosto Mas se duvidas do exposto, É fácil: vai até ali. E dirás se eu te menti. (Auras do Sul) Lobo da Costa não só viveu a sua terra, não só perambulou pelas cidades do Rio Grande do Sul como também soube amá-lo, querê-lo mais livre e forte. Em 1885 escreveu um poema que ficou praticamente inédito até 1888: era uma celebração dos cinqüenta anos da Revolução Farroupilha. Seria um poema épico, mas o poeta fez um misto de lírico e de épico. Para ele o passado não ficava tão longínquo, tão imune do presente. O perfeito daquele passado da epopéia não combinava com a poética do romântico. Os últimos versos de Lobo da Costa apareceram esparsos em Flores do campo, foram publicados um mês depois de sua morte no Progresso Literário, jornal de Pelotas, sob o título Epopéia Farroupilha. 1 1 Em 1985 os professores: Alice T. Campos Moreira, Heda Maciel Caminha e Ir. Elvo Clemente organizaram edição do poema com extenso estado crítico-histórico, edição da Livraria Editora Acadêmica Ltda, Porto Alegre, 1985. 17 Nesse longo poema observamos os sentimentos mais profundos de admiração, de amor e de exaltação pela Revolução Farroupilha, pelos próhomens, pelo povo. Enaltece as figuras de Garibaldi e de Anita. Nesta hora em que se celebra o sesqüicentenário vale a pena ler e estudar esta peça de boa literatura, que celebra os feitos dos Farrapos. O motivo da luta e da rebeldia está claramente numa estrofe sucinta e objetiva: “O Rio Grande do Sul vira seus filhos Deserdados da Mãe que os perfilhava, Sem um eco de voz, sem parlamento, Pois que tudo o Poder centralizara.” E a luta começara forte e audaz, combatia-se pelos campos e pelas serranias, tudo era colocado para a defesa da honra, da riqueza e da sobrevida do Rio Grande. O poema reserva belas estrofes para cantar a bravura e o destemor dos bravos: “Ecoa alfim o rebate Pelas longas cordilheiras; Do peito fazem trincheiras Os nobres filhos do Sul! É que o insólito governo Mandava torpes escravos Cuspir a face dos bravos A luz do céu azul!” Tudo vibra com a vitória, com a conquista da liberdade. A idéia da república como bandeira altiva e livre espadaneja pelo azul do céu. O poema celebra num heptassílabo a beleza da conquista: 18 “Não longe no espaço brilha A estrela da Liberdade Derramando claridade; Nas cercanias do Sul! A aurora seu carro impele Pelas escuras de devesas Levando nas rodas, presas As chamas do céu azul!” Francisco Lobo da Costa, poeta viveu profunda e entusiasticamente os ideais libertários dos Farrapos. Em seu espírito romântico foi o verdadeiro pregador da liberdade republicana e democrática, peregrinando pelas principais cidades do Rio Grande. Por toda a parte deixou poemas, por toda a parte deixou saudades, por toda a parte, ainda hoje, há pessoas que recitam os poemas do grande e inesquecível aedo... BIBLIOGRAFIA SOBRE O TEMA: 1 – Clemente, Elvo Aspectos da vida e obra de Francisco Lobo da Costa. Porto Alegre: Livraria Selbach, 1953. 233 p. 2 – Fagundes, Morivalde Calvet Lobo da Costa: Ascensão e declínio de um poeta. Porto Alegre: Sulina, 1954. 218 p. 3 – Till, Enedy Rodrigues 3 vultos marcados: Lobo da Costa, Artur R. Rocha e Fontoura Xavier: Fatos ignorados em suas biografias. Porto Alegre: Flama, 1970. 45 p. 4 – Moreira, Alice Therezinha Campos 19 Lobo da Costa: fixação do texto poético, Porto Alegre. 1988. 3v. Tese (Doutorado em Letras) – PUCRS, Inst. de Letras e Artes. 4 – Moreira, Alice Therezinha Campos Obra Poética. Edição crítica, Lobo da Costa IEL, EDIPUCRS, FAPERGS, 1991. 5 – Moreira, Alice Therezinha Campos Lobo da Costa. Porto Alegre: IEL, 1989. 80 p. (Letras Rio-Grandenses). 6 – Ribeiro, Dulce Fritsch Aspectos da novela. Porto Alegre, 1978. 44f. Diss. (Mestrado em Letras) – PUCRS, Instituto de Letras e Artes. 7 – Costa, Lobo da Auras do Sul. 3ª edição melhorada Rio Grande, RS: Pinto, 1914. 139 p. 8 – Costa, Lobo da Auras do Sul. Rio Grande, RS: Americana, 1928. 183 p. 9 – Costa, Lobo da Auras do Sul. Rio Grande, RS: Americana, 1953. 139 p. 10 – Clemente, Elvo; Caminha, Heda M.e Moreira, Alice T. Campos. Epopéia farroupilha: poema de Lobo da Costa. Porto Alegre: Acadêmica, 1985. 72 p. 11 – Moreira, Alice Campos O discurso poético de Lobo da Costa. Letras de Hoje, n. 79, 1990. P. 7-33. 12 – Baumgarten, Carlos Alexandre 20 Lobo da Costa: uma visão romântica da revolução, Letras de Hoje, n. 61, 1985. P. 17. 21 A FORÇA LITERÁRIA DE CRUZ E SOUSA A REVOLUÇÃO DO SIMBOLISMO (Palestra proferida em 1993, publicada na Revista da Academia RioGrandense de Letras n° 13 de janeiro de 1997). As datas dos acontecimentos humanos, sociais, políticos e culturais têm um fascínio específico para os povos e as pessoas. Neste ano de 1993 lembram-se no Brasil dois fatos importantes. O primeiro a eclosão do movimento simbolista em Santa Catarina com a publicação de dois livros totalmente diferentes – antes de 28 de fevereiro – Missal e em 28 de agosto de 1893 – Broquéis, obras do poeta João de Cruz e Sousa, filho de escravos, nascido em 1861 na cidade de Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis. O segundo no Rio Grande do Sul com a irrupção da Revolução Federalista no dia 5 de fevereiro, que se prolongaria até 1895, em 31 meses de lutas sangrentas e fratricidas nos territórios do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. 1 – Conceito de Revolução Alceu Amoroso Lima, cujo centenário de nascimento celebramos neste 1993 no dia 11 de dezembro, notável homem de cultura filosófica, sociológica, política e literária, conceitua revolução assim: “Revolução é uma ruptura violenta com o passado para a instauração de uma nova ordem. Ruptura, intolerância e substituição — são três elementos normais com todo o movimento revolucionário. A quebra de continuidade é o seu elemento 22 essencial. Opõe o presente ao passado repetindo este em nome daquele. E repelindo violentamente. Pois o segundo elemento do espírito revolucionário é a força.” (lntrodução à Literatura Brasileira”, Rio de Janeiro, Agir: 1957). Na última década do século XIX era evidente uma mudança brusca na filosofia, no comportamento religioso e nas artes, era a nova revolução. 2 – Positivismo e Spencerismo A doutrina positivista havia dominado os intelectuais e escritores franceses após a ação de Augusto Comte. Vale apresentar algumas informações sobre o positivismo surgido em França na primeira metade do século e que na segunda metade se expandia em todos os países da Europa, a começar pela Inglaterra. O termo foi cunhado por Saint-Simon e veio a ser adotado por Augusto Comte, para designar o estágio científico do saber humano em oposição aos dois precedentes teológico e metafísico. Para tornarse “positiva”, a filosofia deve antes de mais nada reconhecer o verdadeiro e único saber humano nas ciências desenvolvidas autonomamente tais como: matemática, física, química, biologia. O esforço da investigação deve restringirse a essas ciências, nada de perscrutar os níveis inatingíveis da metafísica. O positivismo inglês teve o expoente máximo na pessoa de Herbert Spencer que afirma a existência de uma lei universal da evolução do homogêneo ao heterogêneo, considerada válida para qualquer campo da realidade, isto é, da matéria cósmica à psique humana. O seu contemporâneo Darwin restringiu-se a sustentar a evolução para as espécies viventes. O positivismo inglês no campo social e político foi restritamente individualístico e liberal, contrário ao comtiano. Proclamava o progresso, fruto da livre concorrência, longe do intervencionismo 23 estatal. Outra característica do positivismo inglês foi o agnosticismo (anotações de Garzanti, p. 719/22). No Rio Grande do Sul germinaram e cresceram as duas formas de positivismo de maneira forte e alarmante. Haja vista a Constituição, a bandeira do Estado e o Sistema de Governo de Júlio de Castilhos e de Antonio Augusto Borges de Medeiros. É interessante o depoimento de José Salgado Martins: “Os livros de Spencer O indivíduo contra o Estado e os Primeiros Princípios eram os diplomas da doutrina política liberal, nos quais se pregava o regime político em que a máxima liberdade do indivíduo correspondia ao mínimo de intervenção do Estado. Era assim Spencer contra Comte. À sombra do último se eregira, em 1891, a organização política e constitucional de Castilhos. Na Constituição Estadual de 1891 havia pruridos bem acentuados da ditadura científica de Comte. Não se despreze, também, na interpretação desse estado afetivo em que se instalara a ideação de Alcides Maya e de Carlos Maximiano e outros, o fato social representado pela Revolução de 1893 que efeitos terríveis imprimiu na sensibilidade rio-grandense (Maya, citado por Luiz Osvaldo Leite, in “Revolução Federalista, Nova Dimensão”, Porto Alegre, 1993). O cruzamento ou o conflito entre os campos doutrinários comtista e spenceriano prepararam as lutas políticas, orientaram a religiosidade ou o agnosticismo, já que a influência cristã católica era de somenos importância entre os intelectuais e dirigentes do Brasil e do Estado do Rio Grande do Sul. 24 3 – O Parnasianismo Nos idos de 1870 a força do Romantismo tornava-se cada vez menos expressiva. Várias tentativas poéticas se fizeram presentes, fruto das ideologias dominantes na Europa e na América. Aparecem as correntes e tendências: a) Poesia filosófico-científica, de que se devem destacar Sílvio Romero, Teixeira de Sousa, Prado Sampaio e Martins Júnior. O programa seria, segundo as próprias palavras de Sílvio Romero, manifestar pela poesia: “as grandes idéias que a ciência de hoje certifica em suas eminências não para ensinar geografia ou lingüística, préhistória ou matemática, mas para Ievar o belo com os lampejos de verdade, para ter a certeza dos problemas além das miragens da ilusão” (citação feita por Alexandre Pinheiro Torres na “Antologia da Poesia Brasileira”, V.II, p. 351). b) Poesia realista, repelia os pressupostos estéticos românticos, nos versos de Carvalho Júnior e Teófilo Dias. c) Poesia socialista, no dizer de Péricles Eugênio da Silva Ramos “corresponde no Brasil à que se praticava em Portugal, como conseqüência da famosa Questão Coimbrã”. Alexandre Pinheiro Torres resume os traços característicos do Parnasianismo: 1ª) Poesia parnasiana cujo nome se encontra ligado às antologias de poesia “Le Parnasse Contemporain (recueil de vers nouveaux)”, lançada em três fases, 1866, 1871 e 1876, começa por constituir uma “bandeira”, apregoando o regresso ao mundo clássico. Parnaso, monte da Fócida, era 25 mesmo a pátria lendária dos poetas. Depois disso, deve ter como programa a luta contra o subjectivismo, o sentimentalismo, os excessos retóricos, a linguagem indisciplinada e frouxa. Trata-se, pois, de conseguir uma poesia objetiva da qual desapareça a personalidade íntima do poeta. “Le Poète est le sculpteur”, dizia Gautier, o qual queria que a poesia ocupasse um lugar idêntico ao das artes plásticas. 2°) Há, pois, no Parnasianismo o que se pode chamar a assimilação dos ideais das artes plásticas: escultura, ourivesaria, etc. Poesia descritiva, portanto, pintura e representação dos fenômenos da natureza, ênfase dada ao pitoresco, ao exótico, chegando mesmo, no seu descritivismo, a substituir, pela descrição, o próprio objecto, idealmente tirado do arsenal artístico greco-latino: estátuas, metais, vasos, urnas, mármores, pedras preciosas, etc. 3°) Afirmação categórica do princípio da arte-pela-arte. O fim da arte está em si mesma e não na consecução de qualquer objetivo moral, político, social ou religioso. O Parnasianismo condena, assim, a poesia de tendências socialistas ou socializantes que surgira na ultrapassagem do Romantismo. Trata-se, pois, de uma poesia ideologicamente reacionária. 4°) Postos de lado todos os fins, o poeta deve revelar-se, portanto, um impassível e essa impassibilidade deve aflorar nos próprios aspectos de composição do poema: perfeição formal (porque a forma é, agora, o objetivo último), cuidado com a rima, com a própria seleção vocabular (cf. o poema “Profissão de Fé”, de Olavo Bilac). 5°) Nesta ordem de idéias as chamadas “liberdades poéticas” não podem ser permitidas, devendo escolher-se rimas ricas ou raras, nunca, se possível, termos cognatos e também nunca rimas toantes — de origem medieval. 6°) Conseguir dar objetividade aos temas históricos, arqueológicos e mitológicos; 26 7°) Permitir, quando muito, a intromissão de teorias filosóficas se estas forem de caráter pessimista, como as de Schopenhaeur. Costuma servir de paradigma da poesia parnasiana o seguinte soneto de Alberto de Oliveira: Vaso Grego “Esta de áureos relevos, trabalhada de divas mãos, brilhante copa, um dia, já de aos deuses servir, como cansada, vinda do Olimpo, a um novo deus servia. Era o poeta de Zeus que a suspendia então, e, ora repleta ora esvaziada, a taça, amiga aos dedos seus tinia, toda de roxas pétalas colmoda. Depois... Mas o lavor da taça admira, toca-a, e do ouvido, aproximando-a, às bordas finas hás-de lhe ouvir; canora e doce. ignota voz, qual se da antiga lira fosse a encantada música das cordas, qual se essa voz de Anacreonte fosse”. (Torres: 352/354) O introdutor do Parnasianismo no Brasil, Artur de Oliveira (18511882) não deixou obra digna de realce especial. Alberto de Oliveira, 27 pseudônimo de Antonio Mariano de Oliveira, marcou profundamente o movimento parnasiano nacional. Como se pode observar, o Parnasianismo era expressão poética das idéias de Comte e de Spencer assimiladas de maneira mais profunda ou apaixonada pelas novas gerações que presenciam o surto da literatura realista e naturalista na produção de contos e romances pelos autores Emílio Zolá, Eça de Queiroz, Aluísio Azevedo e Machado de Assis. Sentia-se o cansaço do cientificismo e a ausência do sentimento e da fantasia. 4 – Simbolismo Há um cansaço da poesia escultural, em que não existe alma nem coração... Surge novo movimento denominado Decadentismo pelos que viam nele diminuição dos ideais estéticos. Anatole Baju (1886) lança o manifesto decadente nestes termos: “Dissimular o estado de decadência seria o acúmulo da insensatez. Religião, costumes, justiça, tudo decai, tudo sofre uma transformação inelutável. A sociedade se desagrega...” Entre os depoimentos mais interessantes citamos o de Francisco Luiz da Gama Rosa, transcrito por Andrade Muricy: “O Decadismo (Decadentismo), partindo da teoria spencerista de que o progresso é sempre uma marcha do simples para o complexo, do homogêneo para o heterogêneo ordenado, considera que todas as escolas literárias que até agora têm aparecido, não conseguiram, por deficiência de idéia e de estilo, exprimir, nem longinquamente, as modalidades da vida e o pensamento modernista poderosamente complicado pelas impressões multimilenárias do atavismo e as inextricáveis influências do meio, de uma variabilidade infinita”. 28 (Muricy: 130). Os principais líderes da escola decadente: Paul Verlaine e Stéphane Mallarmé. Aos poucos o movimento se afirma sob o nome de Simbolismo. Jean Moréas batizou a escola literária com o nome de Simbolismo, em estrondoso artigo-manifesto publicado no Figaro, de 18 de setembro de 1886. O Simbolismo inaugurava a revolução contra a carga materialista, cientificista de uma época positivista. Muricy afirma: “Os simbolistas foram fautores, a seu modo, da revolução. Cruz e Sousa, Emiliano Perneta, Silveira Neto inseriram na sua obra frequentes traços de interesse social e de revolta. Não há mais forte página de rebelião do que “Emparedado”, nas nossas letras. Apenas, era a grande rebelião humana fundamental, e não informada por ideologias particulares”. Astrojildo Pereira, apreciando o prefácio que Nestor Vitor escreveu para a A Crítica de Ontem, comenta: “Nestor Vitor não admitia a evasão nem subterfúgio. O dever do escritor era participar com os seus meios próprios, durante o conflito e ainda mais depois que ele terminasse. O escritor deve ser o arauto da nova cruzada que se impõe”. (Muricy: 60 e 61). A revolução simbolista não consistiu apenas nas alterações do verso, no deslocamento da cesura, na ausência dela, a divisão de alexandrino segundo medida ternária pareceram falta de música. Com essas alterações deram ao verso mais flexibilidade, matizamento mais variado, mais delicado e sobretudo mais fluidez. 29 Muricy continua o comentário: “Uma névoa translúcida de misticismo envolve a produção inteira, ora resvala para o panteísmo, ora para uma exaltação antropocêntrica à maneira nietzschiana; a alguns leva-os para regiões limítrofes do cristianismo – latente em todos eles. Poucos foram integralmente católicos, porque não era momento para isso. O ambiente, de laicismo integral, inibia a simples menção do nome de Deus.” Outro motivo de escândalo foi o “hermetismo”. Pareceu entrar pela poesia adentro um espírito de humour soluçante, e a frio. Os simbolistas receberam, por isso, em Portugal e no Brasil, o nome pejorativo de nefelibatas”, gente “que anda nas nuvens”, palavra de criação de Rabelais (Muricy: 62/3). A. Hibbard em Writters of the Western World apresenta algumas características do Simbolismo: a) Elemento intelectual: conteúdo relacionado com o espiritual, o místico da vida; b) Concepção mística da vida; c) Tom altamente poético; d) Tentativa de afastamento da realidade e da sociedade contemporânea; e) Conhecimento intuitivo e não lógico; f) Ênfase na imaginação e na fantasia; g) Desprezo pela natureza em troca do místico e do sobrenatural; h) Linguagem ornada, colorida, exótica, poética, em que as palavras são escolhidas pela sonoridade, ritmo, colorido, procedendo-se a arranjos artificiais de partes ou detalhes para criar impressões sensíveis. A sugestão deve substituir a descrição e a explicação. O movimento simbolista estava em gestação em Curitiba (PR), Temístocles Linhares em O Paraná Vivo escreve: 30 “Literariamente podemos demarcar a data de seu nascimento no Simbolismo. Curitiba, em torno da revista O Cenáculo, se fez um dos mais fortes bastiões do movimento. Foi daqui que o movimento se alastrou por todo o País”. O epígono da Revolução Simbolista foi João de Cruz e Sousa, nascido em Nossa Senhora do Desterro no dia 24 de novembro de 1861, filho de pai e mãe de escravos, libertos da família do Coronel Guilherme Xavier de Sousa, que resolveu dotar a criança de primorosa educação reservada às classes dirigentes. O menino correspondeu plenamente ao benévolo e desinteressado gesto de humanidade. Se não fora a largueza de coração e de espírito dos exdonos dos pais, que teria sido do menino? São os caminhos misteriosos e maravilhosos da Providência... A Revolução simbolista eclodia no mesmo ano da Revolução Federalista, esta na fronteira do Rio Grande, em Bagé, aquela na Capital da Ilha de Santa Catarina. O Simbolismo levantava a bandeira de paz e de harmonia, rompendo os duros cânones parnasianos. A Revolução Federalista levantava a força do ódio dos lenços a esvoaçarem nos campos do Sul. Trinta e um meses de sangue e traições, a luta fratricida entre a mesma gente rio-grandense a levar aos campos de Santa Catarina até a Lapa do Paraná o troar dos canhões e o pipocar dos morteiros. O Simbolismo a soltar as asas de paz e de amor reflorescendo na poesia em Curitiba, no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Nordeste, em Mariana (MG). Seguiremos a trajetória rápida e imortal do Cisne Negro. Em 1893, no Rio, publica Missal, prosa poética e no mesmo ano, Broquéis, estava inaugurado o movimento simbolista no Brasil. Massaud Moisés, referindo-se a Missal e Broquéis, assim se expressa: “O poeta utiliza-se longamente das novidades formais trazidas pelo movimento que se instalara. Todo o típico arsenal expressivo dessa 31 poesia ali se encontra, desde a alteração e o uso das maiúsculas, passando pelo exótico vocabular e sintático, até a musicalidade que varia numa escala que principia num tom de ladainha ou de murmúrio, canto envolvente, e termina numa euforia sinfônica que se diria nascida do consórcio da música erudita e as harmonias bárbaras oriundas da ancestralidade do poeta”. (O Simbolismo, São Paulo: Cultrix, 1966, p. III). Araripe Júnior escreveu sobre Cruz e Sousa como um maravilhado, um primitivo. Refere-se, ainda, à grande quantidade de mestiços que têm aparecido e brilhado no Brasil; negro, porém sem mescla, é o primeiro que se torna notório pelo talento. Ingênuo no meio da civilização ocidental; náufrago de uma raça. Todas as coisas o maravilham e lhe arregaçam os lábios, mostrando os alvos dentes dos ancestrais. Sem embargo disto, o Missal é um livro singular pela cadência da frase e pela estranha combinação de dois elementos opostos – o sentimento de um africano engastado em linguagem de fim-de-século. É incontestável que nos versos Cruz e Sousa apresenta-se como um dos nossos poetas mais sonoros (Muricy, p. 103-4). Às opiniões críticas contraditórias de Araripe Júnior juntaram-se as de Nestor Vitor, escritas em 1896 e publicadas em 1899, e, mais claras e entusiastas as de Adolfo Caminha que, sem hesitar, afirma ser Cruz e Sousa: “O artista bem mais dotado entre os que formam a nova geração brasileira, originalíssimo, de rara sensibilidade estética”. (Opus citatum, 105). Andrade Muricy apresentou assim José Veríssimo em a segunda série dos Estudos, no encontro com o Simbolismo, mostrou a falha da armadura: a estreiteza, a insuficiente ambientação de espírito para uma assimilação pronta e 32 atual dos elementos de informações culturais que lhe chegavam. Fechou-se, até com irritação, na concepção clássico-romântica, que tão bem compreendia (Muricy, p. 105). Ao contrário, Sílvio Romero escrevendo para O Livro do Centenário (1500–1900), afirmou ser Cruz e Souza a muitos respeitos o melhor poeta que o Brasil tem produzido. O choque entre o Simbolismo e o Realismo – Naturalismo reinante – expresso na poética parnasiana, duraria várias décadas. Pois o Parnasianismo influenciou todos os poetas entre 1880 e 1920. Imagine-se o esforço de Cruz e Sousa para criar, no início da década de 1890, uma resistência contra essa temática, como afirmou em artigo Ivan Teixeira, no suplemento Cultura de O Estado de São Paulo, de 20 de março de 1993. Cruz e Sousa não desanimou perante as severas críticas a seus poemas, algumas vezes motivadas pela novidade da escola simbolista, outras vezes, pelo preconceito da cor. Não ignorava o poeta a força dos opositores, mas reconhecia a razão de ser de sua vocação revolucionária na literatura nacional. Não foi sem razão que escolhera o texto de Baudelaire para epígrafe de Broquéis: “Seigneur mon Dieu acordez-moi la grace de produire quelques beaux vers qui me prouvent à moi-même que je ne suis pas le dernier des hommes, que je ne suis pas inférieur à ceux que je méprise”. O professor de Literatura Ivan Teixeira afirma: “Mas a sobrevivência artística de Cruz e Sousa deveu-se principalmente ao desvelo de um jovem admirador, Nestor Vitor, que se mostrou como crítico mais aberto às inovações de nossa literatura finissecular. Não só cuidou da edição póstuma de Evocações, Faróis e Últimos Sonetos, como também 33 apoiou financeiramente o poeta nos apertos finais de sua existência (ibidem)”. A Revolução Simbolista inaugurada pelo aparecimento de Broquéis introduzia no Brasil a poesia pura, marcada pelo deliberado abandono do significativo explícito e pelo apego à sugestão insinuante. Desdenhava o verso referencial, de imediata conexão com a realidade exterior, em favor de uma poesia voltada para si mesma, de força centrípeta e implosiva, em que se valoriza sobretudo o choque interno dos signos, imagens e ritmos impressivos. O poeta contrariava a nomeação unívoca do mundo aparente, própria do Parnasianismo, para se concentrar na criação de estruturas significantes, densas e obscuras, de cujas relações internas deveria nascer a sugestão das experiências da vida psíquica do artista. O poeta deixava de ser instrumento de nomeação ou referência para se tornar um fim em si, assumindo a condição de símbolo de sensações e variantes emocionais (Teixeira, 4). Alfredo Bosi iniciou o estudo dos simbolistas no Brasil com esta afirmação: “Nada, porém, se compara em força e originalidade à irrupção dos Broquéis com que Cruz e Souza renova a expressão poética da língua portuguesa. Os Simples, de Guerra Junqueira, e o Só, de Antônio Nobre, ambos de 1892, eram, no fundo, obras românticas, signos de saudosismo que iria vincar a poesia em Portugal antes dos anos modernistas. Mas a linguagem de Cruz e Souza foi revolucionária de tal forma que os traços parnasianos mantidos acabam por integrar-se num código verbal novo e remete a significados igualmente novos” (Bosi, 304-5). 34 A estudiosa e infatigável investigadora das literaturas em língua portuguesa, professora da Università La Sapienza di Roma, Luciana Stegagno Picchio, em seu livro La Letteratura Brasiliana, assim se exprime sobre o Simbolismo: “Verso la fine del secolo una nuova scuola poetica si annuncia in Brasile e impregna di sè (anche non riconosciuta) ogni contemporanea e posteriore esperienza letteraria. DaIla rivolta antipositivista e dal recupero dei valori romantici al di là o entro lo stesso gioco formalístico parnasiano, si genera anche nel Nuovo Mondo il movimento simbolista: che si nutre da un lato di decadentismo francese e dall’altro dell’esperienza metropolitana dei simbolisti portuguesi. Gli stessi poeti parnasiani sono scalfiti dal nuovo verbo e da questo momento la loro pratica si intreccerá sempre più con quella degli avversari della prima ora, alimentadola ed alimentandosene.” (Piechio, 324) A respeito das influências recebidas pelo novo movimento, a docente da Università di Roma escreve: “Mentre l’emozione intima, che sarà una delle molte estetiche del nuovo credo poetico, avrà radice soprattuto francese (Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Mallarmé, ma anche Debussy) e belga (Maeterlink, Verhaeren), con intrusioni anglosassoni (Poe) e germaniche (da Schopenhauer a Wagner): tanto da avvalorare per noi l’interpretazione essenzialmente negativa che del movimento simbolista locale daranno le nuove leve critiche brasiliane” (ibiden, 325). 35 As estrelas fixas do Simbolismo, como as chamava Luciana Stegagno Picchio, aparecem no brilho e nova expressão, e têm os nomes: Cruz e Sousa, Alphonsus de Guimaraens e Eduardo Guimaraens, além de dezenas e centenas de planetas e asteróides que se encontram no Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, em dois volumes, com 1.400 páginas, organizado pelo exímio pesquisador José Cândido de Andrade Muricy. Ronald de Carvalho na sua Pequena História da Literatura Brasileira (RJ, Briguiet, 1919) foi o primeiro a incluir o Simbolismo, de modo definitivo, no panorama de nossas letras. Dá a Cruz e Sousa, Bernardino Lopes e Mario Pederneiras a primeira plana, estudando-os detidamente. Menciona ainda Nestor Vitor, que foi, por assim dizer, o crítico dessa corrente, e os nomes, apenas, de Félix Pacheco, Alphonsus de Guimaraens e Silveira Neto (Municy, 111). O Simbolismo enlaça a geografia nacional do final do século XIX, onde Cruz e Sousa brilha a partir de Florianópolis; Silveira Neto, Tasso da Silveira e Rocha Pombo, de Curitiba; Eduardo Guimaraens, de Porto Alegre, e Alphonsus de Guimaraens, de Mariana, sem falar do Rio de Janeiro, onde Nestor Vitor e outros acolhiam os cultivadores do verso simbolista. Alphonsus de Guimaraens, conhecido por sua poesia de inspiração religiosa, e chamado o poeta lunar, em contraposição com Cruz e Sousa, poeta solar, pelo eminente crítico Tristão de Athayde. Alfredo Bosi diz claramente: “De Cruz e Sousa para Alphonsus sentimos uma descida de tom. Recordam-se os livros Kiriale e Septenário das Dores de Nossa Senhora” (Bosi, 312). No Rio Grande do Sul surge Eduardo Guimaraens, nascido em 1892, ano anterior à publicação de Broquéis, que se imortaliza com Divina Quimera, publicada em 1916 e que teve primorosa reedição crítica em 1944, pelo poeta e 36 crítico Mansueto Bernardi. Alfredo Bosi declara, comparando o poeta de Porto Alegre aos surgidos em outros pontos do Brasil: “Nenhum deles compara-se, porém, a Eduardo Guimaraens, cuja cultura vasta e o gosto exigente levaram cedo a tocar mais fundo no trabalho poético, como criador e ainda mais como tradutor – de Dante, Baudelaire e Mallarmé”. (Bosi, 319 – 20). O Simbolismo vai-se difundindo com modalidades diversas, sempre obedecendo às diretivas dos mestres europeus ou brasileiros. A Revolução Simbolista iniciada há cem anos tomou conta da juventude de todos os pontos do país. As revistas mantiveram viva a chama da poesia e da inovação dos símbolos, apesar dos assédios e escaramuças do Parnasianismo. O Simbolismo rompeu com as formas positivistas e preparou o caminho para as novas gerações modernistas de 1922 e das diversas etapas, até nossos dias. Venceu as tentações dos concretistas e de outras formas de materialização da palavra poética, que não admite amarras nem limitações estreitas positivas. A Revolução de 1893, com seu rastro de sangue e de lutas fratricidas, marcou profundamente o solo rio-grandense, catarinense e paranaense por várias gerações, que ainda hoje ostentam cicatrizes. Quando Prudente de Moraes é empossado na presidência da República, em 1894, concede a anistia aos revolucionários. O episódio sangrento estava encerrado, mas até quando? As sementes revolucionárias caíram nos corações, semeando ódio, ambições de poder. E a história recorda 1923, 1930 e outras datas mais. Revolução e mudança de estruturas, e mudança de rumo de um país e de um povo, ou de movimento artístico e literário. É necessária a verdadeira revolução 37 que Jesus Cristo, o poeta por excelência, realizou amando os homens todos, por sua entrega total à humanidade e a cada pessoa em particular. É a Revolução da Civilização do Amor em que sempre brilhará o símbolo tornado realidade na doação do Amor Supremo. Anexos, Textos de Cruz e Sousa De “Missal” Os Cânticos No templo branco, que os mármores augustos e as cinzeluras douradas esmaltam e solenizam com resplandecência, dentre a profusão suntuosa das luzes, suavíssimas vozes cantam. Coros idênticos inefavelmente desprendem-se de gargantas límpidas, em finas pratas de som, que parecem dar ainda mais brancura e sonoridade à vastidão do templo sonoro. E as vozes sobem claras, cantantes, jubilosas como astros. Cristos aristocráticos de marfim lavrado, como fidalgos e desfalecidos príncipes medievos apaixonados, emudecem diante dos Cânticos, da grande exaltação de amor que se desprende das vozes em fios subtilíssimos de voluptuosa harmonia. O seu sangue delicado, ricamente trabalhado em rubim, mais vivo, mais luminoso e vermelho fulge ao clarão das velas. Dir-se-ia que esse rubim de sangue palpita, aceso mais intensamente no colorido rubro pela luxúria dos Cânticos, que despertam, cilicando, todas as virgindades da Carne. Fortes, violentas rajadas de sons perpassam convulsamente nos violoncelos, enquanto que as vozes se elevam, sobem, num veemente desejo, quase impuras, maculadas quase, numa intenção de nudez. E, através da volúpia das sedas e damascos pesados que ornamentam o templo, das luzes adormentadoras, dos perturbadores incensos, da opulência 38 festiva dos paramentos dos altares e dos sacerdotes, das egrégias músicas sacras, sente-se impressionativamente pairar em tudo a volúpia maior – a volúpia branca dos Cânticos. De Broquéis Antífona Ó Formas alvas, brancas, Formas claras de luares, de neves, de neblinas!... Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas... Incensos dos turíbulos das aras... Formas de Amor, constelarmente puras, de Virgens e de Santas vaporosas... Brilhos errantes, mádidas frescuras e dolências de lírios e de rosas... Indefiníveis músicas supremas, harmonias da Cor e do Perfume... Horas do O caso, trêmulas, extremas, Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume... Visões, salmos e cânticos serenos, surdinas de órgãos flébeis, soluçantes... Dormências de volúpicos venosos subtis e suaves, mórbidos, radiantes... Infinitos espíritos dispersos, inefáveis, edênicos, aéreos, fecundai o Mistério destes versos com a chama ideal de todos os mistérios. 39 Do Sonho as mais azuis diafaneidades que fuljam, que na Estrofe se levantem e as emoções, todas as castidades da alma do Verso, pelos versos cantem. Que o pólen de ouro dos mais finos astros fecunde e inflame a rima clara e ardente... Que brilhe a correção dos alabastros Sonoramente, luminosamente... Formas originais, essência, graça de carne de mulher, delicadezas... Todo esse eflúvio que por ondas passa do Éter nas róseos e áureas correntezas... Cristais diluídos de clarões alacres, desejos, vibrações, ânsias, alentos, fulvas vitórias, triunfamentos acres, os mais estranhos estremecimentos... Flores negras de tédio e flores vagas de amores vãos, tantálicos, doentios... Fundas vermelhidões de velhas chagas em sangue, abertas, escorrendo em rios... Tudo! Vivo e nervoso e quente e forte, nos turbilhões quiméricos do Sonho, passe, cantando, ante o perfil medonho e o tropel cabalístico da Morte... 40 ALCEU WAMOSY SIMBOLISMO O notável crítico e historiador do Simbolismo, José Cândido de Andrade Muricy, em sua obra monumental em dois volumes de 1.315 páginas, Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, edição patrocinada pelo Instituto Nacional do Livro, do Ministério de Educação e Cultura, 1973, fornece a visão total dos numerosos poetas simbolistas brasileiros. Ao referir-se a Alceu Wamosy, à página 1079 e seguintes, assim escreve: “Alceu Wamosy, de ascendência longinquamente húngara pelo lado paterno, nasceu em Uruguaiana, RS, a 14 de fevereiro de 1895. “Em homenagem a Guerra Junqueiro, seu pai, José Afonso Wamosy, advogado, jornalista e poeta, solicitou autorização ao poeta de Os Simples, para dar o nome deste filho. Guerra Junqueiro sugeriu o nome de Alceu, que foi adotado”. O crítico, poeta e biógrafo Mansueto Bernardi observa: “Filho de poeta, com um nome de poeta e batizado, por assim dizer; por um poeta, Wamosy foi, durante toda a sua curta existência, principalmente poeta. Após ter cursado distraidamente a escola pública elementar em Uruguaiana, acompanhou o pai, que transferida residência para Alegrete, em 1910-1911”. Andrade Muricy num parágrafo resume as atividades da jovem existência: “Com apenas 15 a 16 anos de idade começou a sua faina jornalística, no jornal A CIDADE, fundado por seu pai. Em Alegrete formou o espírito e produziu a matéria do livro de versos 41 FLÂMULAS, por ele mesmo impresso, em 1913, aos 18 anos, seguido em setembro de 1914, de TERRA VIRGEM. Neste ano foi residir em Porto Alegre, colaborando em A FEDERAÇÃO e em o DIÁRIO. Após estágio na fronteira, voltou em 1918 a Porto Alegre, colaborando em A MÁSCARA e a A NOTÍCIA. Nesse mesmo ano decidiu ir viver em Sant’Ana do Livramento. Ali comprou o jornal O REPUBLICANO, que dirigiu até à morte. Em 1923, alistou-se como voluntário, no posto de alferessecretário, num batalhão governista, combateu em Santa Maria Chica e na Ponte de Ibirapuitã. No combate de Ponche Verde recebeu uma bala no peito. Levado a Livramento, ali faleceu em 13 de setembro de 1923. Casou-se “in extremis” com a senhorinha Maria Bellaguarda. Ao completar curta vida de 28 anos, a admiração e a estupefação perguntam? Por que são tão breves os dias, para quem tanto tinha a dar à humanidade? O jovem poeta enfrentou cedo a outra realidade da existência — a sobrevida, além da perenidade dos poemas, do ritmo dos versos e das rimas, na cadência dos símbolos. Antes de entrar no tema proposto, vem-me ao espírito a perguta: Onde buscou Alceu Wamosy a formação beletrística, o domínio da língua, o gesto nobre no trato das realidades humanas? A grande escola foi-lhe o jornalismo, o amor à leitura, fazendo-o um autodidata modelar no amanho do verso, no terçar as armas da dialética e as filigramas da arte poética”. Simbolismo O grande poeta Manuel Bandeira organizou em 1937 e 1938, a pedido do MEC. Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Romântica e Antologia dos 42 Poetas Brasileiros da Fase Parnasiana, respectivamente com 25 românticos e 24 parnasianos. Deixou, porém, a tarefa da Antologia dos Poetas Simbolistas a Andrade Muricy, que apresentou o Panorama do Movimento Simbolista com 131 nomes, escorços biográficos e alguns poemas. O Simbolismo, no dizer de Andrade Muricy, se caracteriza pela renovação de valores poéticos iniciada por Baudelaire, pela influência de Edgar Poe, manifestou-se sob influxos vários: de Verlaine, de Mallarmé, de Rimbaud. A vaga de fundo, o maremoto estético tingiu-se de cores requintadas daquele fin-de-siècle. Naquele crepúsculo do “século das luzes”, que foi positivista, cientificista, fanático adorador das próprias invenções e descobertas, naturalista e ideólogo, descendente de JeanJacques Rousseau e Darwin, acenderam-se luzes outras, de cores delicadas, raras, luzes de espiritualidade e de misticismo (Muricy: 42) Simbolismo, movimento literário e filosófico da segunda metade do século XIX, pelo qual as palavras valem nem tanto em si mesmas mas pelos símbolos que evocam ou possam evocar; pela capacidade de imergir-nos numa remota atmosfera. O simbolismo traz nessa acepção o mínimo de concretude, isto é, uma condição que se contrapõe totalmente à da simbologia técnica e científica (Dizionario italiano ragionato, p. 1692, G. D’Anna). Guy Michaud no livro Message Poétique du Symbolisme, 1947, assim descreve o movimento: “Il est déjà fixé pour I’histoire — un air mi-précieux, mireveur; une atmosphère de légende ou, dans un décor de forêts, de parcs et d’étangs, une âme fin-du-siècle, qui se cherche, se sent malade, anaIyse son mal et trouve dans cette analyse même une puissance perverse; l’amour du rare, du rafiné, de l’artficiel; le gôut de l’arabesque et du fer forgé, des feuilles d’iris, des licornes et des ametystes; la manie de ne pus s’exprimer comme 43 tout te mopnde, d’écrite des vers obscurs et contournés, par ellipses et par symboles” (Michaud, 1947:15). Edição da Obra Em vida o poeta editou em 1913, Flâmulas e Na terra virgem, em 1914, em Alegrete, Coroa de sonhos somente veio a público em 1925 nas edições Poesias, da Livraria do Globo. Coube, assim, escreve José Edil de Lima Alves, a Mansueto Bernardi esse gesto de glorificação de uma grande amizade: verteu para letra de forma as 48 belíssimas poesias que compõem o maior acervo literário do decantado vate uruguaianense. O estudioso da poesia wamosyana, Enedy Rodrigues Till registra 110 poemas na obra poética de Alceu Wamosy. José Edil de Lima Alves realizou a edição completa da obra do poeta de Uruguaiana, em 1994, em co-edição com IEL e a EDIPUCRS, com o estudo crítico de Cícero Galeno U. Lopes. É sugestivo e oportuno dado à introdução do livro — Wamosy: Poeta do seu e do Nosso Tempo. O primeiro estudo à obra completa feito por Mansueto Bernardi em 1925 quando lançou Poesias pela Livraria do Globo. O poeta aí é apresentado como quem usa do planeta que habitamos como simples miradouro, ereto à contemplação dos mundos irreais. A idéia que Mansueto Bernardi quer transmitir é que o poeta está sem olhos para ver a realidade circundante. É o poeta o nefelibata, o habitante das nuvens, o sonhador de sonhos indefiníveis e irrealizáveis. São todas maneiras de caracterizar de uma forma ou outra o simbolismo. Em Alceu Wamosy temos o poeta pleno que sente e vive o indefinido, o etéreo mas também como escrevia, em Mãos Dadas, Carlos Drummond de Andrade: “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes”. 44 A figura do poeta no início do século, com pouca escolaridade, lançado na força do trabalho jornalístico. Ambiente dominado por adultos na forja das idéias e dos acontecimentos, transmitindo com as notícias, opiniões, orientações e idéias. Como é que se formou o grande artista do verbo? A leitura solitária, contínua e perseverante em que as páginas de Cruz e Souza se abriam sobre páginas de Guerra Junqueiro ou se imbricavam com poemas de Alphonsus Guimaraens ou com os versos da Divina Chimera, do conterrâneo Eduardo Guimaraens. Como seria importante refazer o caminho das leituras do adolescente e do jovem em Alegrete ou em Porto Alegre... No livro de estréia, escreve Cícero G. U. Lopes, Flâmulas (1913), já se percebem as marcas da reflexão contingencial, do racionalismo (de origem neoparnasiana), como se lê por exemplo, em Monturo humano, em que se estabelecem as bipolaridades e as conseqüentes antíteses características de toda a obra poética de Wamosy: Há criancinhas nuas — açucenas — Desabrochando em lodo! Há virgindades Cantando coisas torpes e obscenas! Deus faz desses antros obscuros, Com toda a infância e a mágoa das cidades, O mais humano e negro dos monturos... Há nesses versos a voz clara de Guerra Junqueiro ou o espírito de Augusto dos Anjos... O último soneto de Flâmulas, nos tercetos aparece o antisimbolista de 1913, do jovem de 18 anos, sensível a todas as leituras que lhe viessem às mãos. Em A Revolta do Corvo recorda a decisão indomável do corvo, que se livra dos quarenta dias de prisão da Arca de Noé e busca a imensidão do horizonte de sua liberdade. 45 É o céu que não escuta e que é marmóreo e torvo Riu, talvez para si, da pequenez do corvo E afivelou de novo a máscara de aço. E o corvo, alçando o vôo, embriagado e tonto, Subiu... cortou a névoa... a bruma...e como um ponto Negro, sumiu-se além, na escuridão do espaço... Não é prudente carimbar uma produção poética sob determinado epíteto, é mister ler atenta e serenamente os poemas e tirar as conclusões que provêm dos versos e das estrofes. O simbolismo está presente na obra de Wamosy como se faz presente em Alvaro Moreyra ou em Eduardo Guimaraens, em quantidades e qualidades diversas. Os sonetos vêm impregnados de tristeza, de mágoas de um passado que ainda é presente. Vejam-se os versos do último terceto de Simples, título semelhante ao poema junqueiriano. E não tenho Iembrado o tempo augusto Em que a minha alma também era pura, E eu também, como vós, fui bom e justo!... Dedica o segundo livro, de 1914, à memória augusta de Cruz e Sousa que foi o mais extraordinário temperamento estético da poesia finessecular, na América. O soneto Glória Suprema tem algo do ritmo e do sentimento do Cisne Negro. Cavaleiro do Sonho, a estrada flórea, Sigo, da Vida, em límpida conquista, Disso que os outros homens chamam glória. E não é mais que uma visão de artista. 46 O tema outonal aparece com o mote de J. Moréas: Tu verses ta douceur, pâle soleil d’autonne”. Ó tristes sóis de outono! Ó moribundos sóis, Cheios de polidez, de amargura e de sono, Feitos para coroar frontes mortas de heróis. E de artistas sem pão, que vivem no abandono! Há em tudo a tristeza “dos teus raios de luz dourada e merencória”. O sentimento solidário está vivo e repetido em muitos versos como no soneto O Grande Gozo: A ventura maior, entre as venturas Que encher o coração, possam, da gente É ter-se a alma para as amarguras De outros seres, aberta, eternamente... Em Via Crucis, recorre a Petrarca para o mote inspirador: “Dolce mal, dolce affano, dolce peso”. Ó Calvário do verso! Ó Gólgota da Rima! Como eu trago as mãos e os tristes pés sangrentos, De te escutar, assim, nesta ânsia que me anima. Neste ardor que me impele aos grandes sofrimentos... Conclui no terceto vitorioso: Hei de ascender, subir, levando sobre os ombros, Entre pragas, blasfêmias, gemidos e assombros, A eterna Cruz pesada e negra do meu sonho! 47 GUERRA JUNQUEIRA X LOBO DA COSTA EM O FLAGELO HUMANO DAS SECAS 2 Não se pode abrir a Bíblia sem encontrar a palavra água. Esse fato mostra a importância do elemento líquido na terra do povo de Israel, após ter enfrentado inundações e a consciência do dilúvio estar tão viva através das gerações. Água, manancial de vida, parte essencial da vida, que dá nova vida no rito lustral do Batismo. O salmo canta a verdadeira felicidade, compara o homem reto e temente a Deus à “árvore plantada à beira das águas, que em tempo próprio, dá o seu fruto, e cujas folhas não murcham” (SI 1,3). Na passagem pelo deserto, a água tem um valor vital para o povo sedento: as águas de Mara se tornam milagrosamente doces para salvar aqueles retirantes (Ex 15.23 — 25). Moisés, sob ameaça de revolta do povo, roga a Deus para mitigar a sede ardente daquela gente e dos animais. “E então Moisés clamou ao Senhor: “Que farei a este povo?” E Deus ordenou que golpeasse a rocha do Horeb. E assim Moisés fez de lá jorrarm abundantes e frescas águas (Ex. 17, 4 – 7). As vicissitudes e as alegrias de um povo se desenrolaram junto das águas. Quando as águas faltam, a vida diminui, fenece e morre. Como o dilúvio marcou a narrativa do Gênesis, a grande seca profetizada por Elias tesbita marcou a era dos Reis de Israel. A seca desencadeada por ordem de Elias tinha por finalidade mostrar ao povo a força do monoteísmo, do único Deus verdadeiro, contra o paganismo devastador, marcado pelo culto de Baal. O historiador Menandro de Éfeso narra também o acontecimento de uma seca obstinada durante o reinado de Itobaal em Tiro. Quer dizer que, por três anos e 2 Texto apresentado no Ciclo de Palestras comemorativas aos 50 anos de Vidas Secas, na Secretaria de Desportos e Turismo, Universidade Federal de Alagoas, publicado em Letras de Hoje, março de 1989. 48 meio, a seca assolou toda aquela região do Oriente Médio, em que morreram milhares de pessoas, animais, vegetação e tudo o que tinha vida. A fome tornava-se assustadora, gerando toda a sorte de desolação e misérias. A oração do profeta do cume do monte Carmelo, trouxe à terra a benfazeja água que tudo revivesceu e que tudo alegrou (lRs 17 e 18). O flagelo da seca, desde tempos imemoriais, está presente e vivo na lembrança dos povos, nas lágrimas e sangue dos retirantes. Bem perto dos nossos dias, assistimos, pelos meios de comunicação social, as terríveis devastações e dizimações de povoados e cidades na Nigéria, na dolorida e angustiada Biafra, com as suas chagas abertas e ressequidas aos sóis caniculares das estiagens sem-fim. Ainda agora, secas horrorosas assolam várias e imensas regiões do continente africano. Erguem-se ao céu e aos povos as bocas famintas, os braços descarnados e os rostos desfigurados. E o mundo assiste quase impassível a tanto horror e tanta miséria e fome assassina... Mandam-se aviões com víveres... Vão alguns grupos de voluntários para assistir aos necessitados in extremis, para dar-lhes um pequeno alívio, mas o flagelo continua persistente e devastador... Todo o esforço dos socorros é uma gota d’água naquele mar oceano de miséria e terror. Disso tudo resulta “uma questão terrível”, no dizer de Roberto Campos. (O Estado de São Paulo, 23/10/88, p. 2), poderão esses povos achar a sua sobrevida, poderão achar onde ampararse para não perecer? Perguntava-se Leon Tolstoi: “Poderá a Rússia alimentarse a si mesma?” A frustração agrícola ocasionada por fatores climáticos de seca e de intempéries não permitiam a subsistência daquelas multidões. Houve a malfadada fome do Volga, quando morreram 2 milhões de pessoas. Sob o domínio de Stalin morreram cerca de 5 milhões de pessoas na Grande Fome da Ucrânia 1931/1932... Se olharmos para os lados do Extremo Oriente: Vietnam, Blangadesch, veremos os mesmos quadros de horror, onde milhões de pessoas 49 morrem de fome por causa da seca ou das intempéries. Sempre o flagelo da seca e de sua acompanhante inseparável, a fome, como é o caso da Etiópia... Após esse lançar de olhos sobre o flagelo da seca, sempre constante e presente na história de suor e lágrimas das contínuas migrações, voltemos o olhar sobre o Brasil. E aí estamos distante de outra “questão terrível”, a seca no Norte e Nordeste. O ensaísta Luiz Carlos Baldícero Molion, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, escreve na Revista Ciência Hoje, v.3, n° 18, maio/junho de 1985, p. 26 e segs., vasto e bem fundamentado artigo sob o título Secas, que assim começa: “As secas que atingem periodicamente vastas regiões do Nordeste brasileiro têm sido tema recorrente de nossa literatura, objeto de um sem-número de análises científicas em diversos campos e, em situações agudas como a ocorrida em 1983, fonte de farto noticiário da imprensa. Como todo fenômeno cíclico, sua previsibilidade desafia a imaginação dos homens, pois o cortejo de flagelos que tradicionalmente acompanha estes períodos poderia ser diminuído se dispuséssemos de metodologia capaz de fazer soar o alarme com razoável antecedência. Obras clássicas da nossa literatura registram a presença dessa mesma preocupação entre aqueles que sofrem diretamente o problema. Raquel de Queiroz, por exemplo, descreve em “O Quinze” a decisão de uma proprietária de terras de “abrir as portas do curral” e fazer seu pessoal “ganhar o mundo” se as chuvas não chegassem até 19 de março, dia de São José. Em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, o sertanejo Fabiano sonha desgraças quando vê o mulungu do bebedouro cobrir-se de arribações, sinal inequívoco de que o “sertão ia pegar fogo”. Há registros 50 históricos da ocorrência de secas no Nordeste desde os primórdios da colonização.” Se olharmos para os dias em que vivemos, em 1987/1988, assistimos a uma tremenda seca nos Estados Unidos da América do Norte, que dizimou as colheitas e pôs em pânico o fornecimento de grãos para o mundo. Neste mesmo ano, o Sul do País (São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) viveu meses de grande frio e de grande seca que comprometeram enormemente as plantações, a criação de gado e a vida das pessoas... Não podemos comparar as estiagens de três ou cinco meses do Sul com a seca do Nordeste, que passa ano após ano em seu vergastar de flagelo implacável... É a terrível questão: que fazer? A comiseração dos povos se torna viva e atuante: deslocam-se recursos, enviam-se víveres e socorros diversos. É a solidariedade humana em vista dos flagelos da natureza... Nas páginas da Bíblia eram vistos como a vergasta de Deus... A literatura, solidária com o homem e suas aventuras e desventuras, está sempre presente nos cataclismos e nos flagelos. No século XIX, o poeta Abílio Guerra Junqueiro, lá de Portugal, viveu em versos hugoanos a tragédia da seca do Nordeste de 1877, escrevendo o poema “A fome no Ceará”, publicado no livro A Musa em férias (idílios e sátiras), Lisboa, 1879. O poeta, em seu poema longo e lancinante, nos comove e angustia, como deve ter angustiado e levado à comiseração os nossos irmãos portugueses daqueles tempos. Por ser uma peça de inigualável beleza e de profundo amor humano a transcrevemos integralmente, da 2ª edição, publicada em 1885, em Lisboa, por David Corazzi, no já citado livro A Musa em Férias (p. 167 — 73). A FOME NO CEARÁ 51 Lançai o olhar em torno; Arde a terra abrasada Debaixo da candente abóbada d’um forno. Já não chora sobre ela orvalho a madrugada: Secaram-se de todo as lágrimas das fontes; E na fulva aridez aspérrima dos montes, Entre as cintilações narcóticas da luz, As árvores antigas Levantaram para o ar — atléticas mendigas, Fantasmas espectrais, os grandes braços nus. Na deserta amplidão dos campos luminosos Mugem sinistramente os grandes bois sequiosos. As aves caem já, sem se suster nas asas. E, exaurindo-lhe força enorme que ele encerra, O sol aplica à terra Um cáustico de brasas. O incêndio destruidor a galopar com fúria, Como um Átila, arrasta a túnica purpúrea Nos bosques seculares; E, Lacoontes senis, os troncos viridentes Torcem-se, crepitando entre as rubras serpertes Com as caudas de fogo em convulsões nos ares. O sol bebeu d’um trago as límpidas correntes; E os seus leitos sem água e sem ervagens frescas, Co’as bordas solitárias, Têm o aspecto cruel de valas gigantescas Onde podem caber muitos milhões de párias. 52 E entre todo este horror existe um povo exangue, Filho do nosso sangue, Um povo nosso irmão, Que nas ânsias da fome, em contorsões hediondas, Nos estende através das súplicas das ondas Com o último grito a descarnada mão. E por sobre esta imensa, atroz calamidade, Sobre a fome, o extermínio, a viuvez, a orfandade, Sobre os filhos sem mãe e os berços sem amor, Pairam sinistramente em bandos agoireiros Os abutres, que são as covas e os coveiros Dos que nem terra têm para dormir, Senhor! E sabei — monstruoso, horrível pesadelo! Sabei que aí — meu Deus, confranjo-me ao dizê-lo! Vêem-se os mortos nus lambidos pelos cães, E os abutres cruéis com as garras. II Quando ainda há pouco o vendaval batia Dos grandes montes nos robustos flancos; E as nuvens, como enormes ursos brancos, Em tropel pela abóbada sombria Dos canhões dos titãs, aos solavancos, Arrastavam a rouca artilharia; Quando os rios, indômitos, escuros, Iam como ladrões saltando os muros Para roubar ao camponês o pão; 53 E cruzando-se os raios flamejantes Abriam como esplêndidos montantes De meio a meio a funda escuridão; Quando os ventos aspérrimos, frenéticos, Como cíclopes doidos, epilépticos, Com raivas convulsivas Perseguiam, bramindo, às chicotadas, Das retumbantes ondas explosivas As trôpegas manadas; Quando entre os gritos roucos da procela, A fome — a loba — escancarava a goela Uivando às nossas portas; E andavam sobre as águas desumanas Com os despojos tristes das choupanas Berços vazios de crianças mortas; Oh! nesse instante, ao ver o povo exâmine, Pulsou da pátria o coração unânime, Um coração de mãe piedosa e boa... E das imensas lágrimas choradas Muitíssimas então foram guardadas Entre as jóias da c’roa. Mas é certo também que além dos mares Alguém ouviu, alguém, cortando os ares Essa terrível dor; E esse alguém é que hoje, é que agora Morto de fome a soluçar implora 54 Mais do que o nosso auxílio — o nosso amor. Vamos! Abri os corações, abri-os! Transborda a caridade como os rios Transbordando dos leitos em janeiro! Nem pode haver decerto mãe avara Que o pão recuse a quem lhe deu a seara, Que a esmola negue a quem deu primeiro. A miséria é um horrível sorvedouro; Vamos! enchei-o com punhados de ouro, Mostrando assim aos olhos das nações Que é impossível já hoje (isto consola) Morrer de fome alguém, pedindo esmola Na mesma língua em que a pediu Camões!” A repercussão da seca de 1877 foi tão forte que comoveu os corações do Brasil e do mundo inteiro. No Sul, na cidade de Pelotas, Francisco Lobo da Costa, falecido em 1888, também escreveu um longo poema sobre “A fome nas Províncias do Norte”, publicado primeiramente nos jornais de sua terra e depois inserido por Francisco de Paula Pires na coletânea de textos do poeta, sob o nome “Auras do Sul”. O poeta sente e vibra compassivo conclamando todos a serem generosos e abrirem o coração e as mãos para socorrerem os flagelados da seca. Pela raridade e beleza da peça literária, bem diferente do poema de Guerra Junqueiro, quer no ritmo, quer nas imagens tendo unidade do tema, merece ser transcrito na sua íntegra para ser apreciado pelos leitores nordestinos, que já sentiram em seu corpo e em sua alma a dor pungente dos retirantes, dos flagelados pela dureza e insaciável seca em suas crônicas 55 reincidências. Tanta dor, tanto desespero, mas sempre existe uma luz, uma esperança no meio a tanta escuridão, tanta miséria e tanta desolação. A FOME NAS PROVÍNCIAS DO NORTE A Quintino Bocaiúva Coitados! Que dor tremenda Sobre os seus seios baixou! Seca a ervagem da fazenda... O rio inteiro secou! E o esqueleto do agonia Vai quebrando, dia-a-dia, Em cada tronco uma flor! A fome perpassa irada, Roubando a messe dourada Dos colmos do lavrador! Que é das festas langourosas Das camponesas gentis? Que é dessas faces as rosas? Desses lábios o verniz? — Múmias geladas do norte, Trazem nos seios a morte, Um cancro de maldições... E, famintas e sedentas, Vagam nas plagas poentas, Sem gota d’água... sem pão! Ai! nos desertos vorazes Pára a caravana a medo, 56 Mas Deus lhe mostra um oásis, A rebentar de um rochedo! Para os aflitos da terra, Deus as pálpebras descerra Dos lacrimários do céu; E onde quer que a dor esteja A sua bênção troveja, Cai maná ao povo hebreu. Mas, aqui... ó desventura! É acerba a expiação! No antro da noite escura Só se escuta a maldição... Nas serranias fechadas Retumbam as gargalhadas Das megeras infernais, E o jaguar — solto à devesa, Mergulhando a enorme presa Nos comboios funerais! A fome! Meu Deus, a fome É um espectro cruel! Só ao escutar-se-lhe o nome Galopa o sangue em tropel! É ela — a pálida sombra Que troca a florida a alfombra Em horto negro, sem luz; E apaga o brilho da sorte, Plantando os goivos da morte, Pregando os cravos da cruz! 57 Quereis tremer de surpresa? Vinde comigo aos sertões: Esta morna natureza Vem falar aos corações... Outrora aqui, nestas ribas, Folgaram rudes biribas Em devaneios de amor... Tinha fruto este arvoredo, Relva e flores o varzedo, Muitos perfumes a flor! Dos sertanejos indolentes As cantigas festivais, Já não ressoam contentes À sombra dos laranjais. Nem a viola inspirada, Tangida por mãos de fada, Por dedos de querubim, Suspira e rindo flutua, Bebem orvalhos da lua Ao sussurro do festim. Meu Deus, as pobres cabanas Estão desertas... estão! Pelas tristes arribanas Nem percorre a viração E o campanário da ermida Ergue a prece dolorida Da tarde ao morto rolar... Semelha ao canto de agouro, 58 De um mundo que nada em ouro, Ouvindo o pobre chorar! Em torno ao templo, onde a endeixa Duma oração se agasalha, Prostra-se o povo que deixa Os seus albergues de palha... Belas, formosas crianças, Sacudindo as negras tranças Sobre as espáduas sem véu, Nas bocas negras de fome Bendizem de Cristo o nome, Erguendo as mãos para o céu. As mães, transidas de susto, Apertam os frutos do amor, Bem como as frondes do arbusto Aos ninhos do beija-flor... E da face macilenta Quando a lágrima rebenta, Banhando as pedras do altar, Mais uma estrela divina Rola na etérea cortina, E vai perder-se no mar. Do martírio quando a palma Vamos medrosos colher, A oração nos salta d’alma E o lábio fica a tremer! O misticismo é conforto. 59 Ante o quadro do Deus morto A criança rebenta a rir; Fogo — de a lâmpada etérea, Bafo que apaga a miséria, Chispa que rasga o porvir. Mas ah! Morrer sem conforto, Pisando tesouros mil, Ter por sudários de morto Um céu de esplêndido anil! Mas ceder aos cataclismos, E ter por cova os abismos Onde dorme o Badaró! Onde por sina aos — gigantes — Os vermes — são diamantes, À podridão — ouro em pó! Mas morre-se, como morre No Saara o viajor, Quando uma aragem não corre, Onde não brota uma flor! Morre-se como o precito, Mordendo os lábios, aflito Manchados de negro fel... Mas cair-se de agonia, Quando a pátria tripudia Rojando a fronte ao bordel!.. Brasil! Cuspiu-te na face Grande, excelsa meretriz! 60 Abutre negro, rapace, Bebe-te o sangue, infeliz! Que importa as tribos guerreiras Numas matas altaneiras, Desfraldem verde pendão? Restos das glórias passadas, Levavam nas setas eivadas A baba da escravidão! Brasil! Socorre os teus filhos. Os esteios do porvir. Da morte sobre os ladrilhos Oh! não os deixes cair! Tu que delirante espalhas As mãos cheias as — migalhas — Desse banquete de dor Atira ao pobre que sofre As chaves desse teu cofre De — caridade — e de amor. Esmola! Paz! Felicidade! Ao desgraçado que chora... Ceda a densa escuridade Aos resplendores d’aurora. Luz aos pobres sertanejos, — Troquem-se as dores em beijos, Do luto arranque-se o véu... Irmãos, o preito é devido: Quem socorre ao desvalido Sobe um degrau para o céu.” 61 Não podemos furtar-nos de citar algumas estrofes de literatura de cordel, tão do sabor e do uso do Nordeste. Refiro-me à “A seca e os horrores do Norte”, de autoria de José Bernardo da Silva (publicado pela Escola de Comunicações e Artes, da USP, 1972). “Oh! Virgem da Piedade tende dó e compaixão dos vossos filhos que choram a falta de água e pão como mãe mandai a nós tua santa proteção. Nos sertões pernambucanos de Caruaru a Salgueiro seja Norte, Sul ou Leste o sol é qual um braseiro queima as árvores, seca os angus fede a jogo o taboleiro”. E assim terminamos, com mais esta estrofe que fala diretamente do flagelo: “Olhai a grande miséria desses pobres flagelados que procuram trabalhar como cidadãos honrados abri serviços precisos para que sejam empregados .” 62 Os poetas vibram nas cadências dos versos e nas filigranas da linguagem metaforizada, os prosadores são mais frios, mais racionais, apesar de terem a intuição e a sensibilidade que distinguem os artistas. Percebe-se nas páginas de Os Sertões, de Euclides da Cunha, ou nos parágrafos de Graciliano Ramos em Vidas Secas, ou nos capítulos de O Quinze, de Raquel de Queiroz, a forma indômita e fatal do determinismo no meio ambiente que faz sucumbir o homem e arrasa a natureza inteira. É curioso ver alguns trechos do “Depoimento sobre “O Quinze” de Raquel de Queiroz” (publicado na Revista Letras de Hoje, n° 69, set/87), texto redigido em dezembro de 1977, por ocasião de um Seminário de Crítica realizado na PUCRS. Assim Raquel se exprime: “Via que o meu caminho tinha de ser mesmo literatura da seca, embora já trilhado por tantos — Domingos Olímpio, Rodolfo Teófilo, entre muitos, inclusive cantada por Guerra Junqueiro — poema de que meu pai repetia sempre uns versos, onde se fritava que o retirante ‘Pedia esmola / Na mesma língua em que a pediu Camões’. Mas eu queria que a minha seca, — menos formalmente trágica — sem tantos cadáveres, tantos esqueletos, tantos urubus, como era o tom realista, até então.” (Letras de Hoje, n° 69, 1987, p. 36). Sobre Vidas Secas, de Graciliano, que ora se está celebrando o cinqüentenário de publicação, em poucas palavras, Pedro Américo Maia assim caracteriza a obra: “O drama de Vidas Secas é o entrosamento da dor humana na tortura da paisagem. Nesta obra, Graciliano é o escritor por 63 exelência da terra estorricada. As vidas dos personagens são secas como seca é a terra que os determina à fuga, à miséria e à fome.” (O moderno romance brasileiro. Belo Horizonte, Gente Nova, s.d. p. 124). O flagelo humano da seca está presente em todos os povos, principalmente nos povos do Nordeste brasileiro, que ciclicamente vêm recebendo a fatalidade abrasadora. Após tantos anos e tantas misérias, convém arregimentar forças e energias para achar uma solução na ciência e na tecnologia e, mais do que isso, buscar a energia e a coragem que a prática das virtudes de honestidade, de solidariedade podem dar ao homem para solucionar o grande flagelo da seca. 64 SIMÕES LOPES NETO: 80 ANOS DEPOIS ... 3 A poucos dias de celebrar o 80º aniversário do falecimento de João Simões Lopes Neto as entidades culturais de Pelotas inauguraram o I Seminário de Estudos Simonianos. Nesta noite de gala e de esplandente manifestação cultural, um povo reverencia a memória e o valor literário de um dos mais ilustres filhos. Neste 10 de junho de 1996, a língua portuguesa e a nação lusitana celebram o magno dia de Camões, 416 anos de sua preciosa passagem à imortal eternidade. Estamos de parabéns todos nós, está de parabéns a equipe de instituições que organizou o evento que durante uma semana rememorará sob os múltiplos aspectos a obra literária e a pessoa do cidadão João Simões Lopes Neto, no trânsito terrestre de 1865 a 1916. A temática para as celebrações é vastíssima, fixar-me-ei em especial na repercussão da obra literária simoniana. 1 – Conceituação O mestre Alceu Amoroso Lima, no livro A Estética literária e o crítico (p. 147 − 185) conceitua: “A repercussão da literatura é sempre o momento final e decisivo da curva de expansão literária. Não há morte real na vida do espírito. Há apenas morte aparente. Só morre a matéria ou o psiquismo subordinado aos elementos materiais que o compõem. Se a curva de uma vida humana termina necessariamente pela morte, bem sabemos ser isso devido às participações contingentes de sua matéria. Toda forma, porém, tende a eternizar-se. As obras de 3 Publicado em 1996 65 nosso espírito participam, portanto, até certo ponto, de sua imortalidade. E por isso não termina pela morte a curva de uma produção literária e sim por sua irradiação entre os vivos. E depois da morte.” A autonomia da obra literária é elemento essencial que a torna obra de arte, de expressão do mistério humano e das coisas. E dessa autonomia lhe deriva em grande parte a repercussão entre os homens. Há sessenta anos o mestre Alceu vinha falando da repercussão, coisa que a moderna crítica despertou no início dos anos 80 com a Escola da Universidade de Constança, Alemanha, com Jauss e outros estudiosos. A estética da recepção como foi batizada é a mesma coisa da repercussão que o mestre Alceu protagonizou no livro de Estética Literária, em 1945. O leitor é o grande agente da repercussão. Por isso, é mister, como escreve Tristão de Athayde, pois, criar, estimular e educar o hábito de ler e de ler bem, isto é, com humildade e não com a preocupação de reagir logo; com desinteresse e não se aproveitando da leitura; em profundidade e não pela rama. Em suma, ler por amor. Conclui mestre Alceu com a recomendação ao escritor e ao leitor: “Eis a condição essencial de sua fidelidade a si mesmos e à missão a eles confiada nesta vida. Não apenas divertirem ou consolarem os outros. Muito menos se colocarem a serviço de partidos, regimes ou sectarismos políticos, filosóficos ou moralistas. Mas perpetuarem, ao longo dos séculos, a própria obra do Eterno. É a razão de ser da sua liberdade criadora e da imensa esperança que neles deposita a nossa miséria humana!”. (Ibidem) 66 2 – João Simões Lopes Neto Fenômeno curioso é a repercussão da obra de Simões Lopes Neto cuja vida teve tantos imprevistos, tantas mudanças, tantos empreendimentos malsucedidos, fracassos, desiluções desde a adolescência, até a morte aos 51 anos. Moysés Vellinho, notável crítico das Letras da Província, em 1956, por ocasião da inserção das obras de Simões Lopes Neto, na coleção Nossos Clássicos, a convite de Alceu Amoroso Lima e Roberto Alvim, definiu com rara habilidade as dimensões da repercussão da obra simoniana. A situação histórica de sua vida que iniciou no ano em que a Guerra do Paraguai deflagrara nos campos do Sul; aos 28 anos ficou envolvido na sangrenta Revolução Federalista de 1893, como oficial da Guarda Nacional. Embora devesse defender o regime reinante, desconhecia o servilismo partidário. Não se importava muito pelo que ia pelo mundo daqueles tempos. Ele morreu quando ia em meio a I Guerra Mundial, o pavoroso guerrone, no dizer do Papa Pio X. Moysés Vellinho começa o estudo crítico com esta assertiva: “A carreira póstuma de Simões Lopes Neto, quer no sentido da reputação de sua obra, quer no da crescente irradiação de seu nome, apresenta-se como um dos fatos mais singulares da literatura brasileira. Está-se dando com o autor dos Contos Gauchescos o inverso do que costuma acontecer entre nós com os escritores da Província.” (Nossos Clássicos, n° 5, AGIR editora, Rio, 1957). A obra simoniana cumpriu a parábola do Evangelho: “Se o grão de trigo não morrer não poderá germinar e dar fruto.” (Jo, 12, 24). De fato as humildes 67 edições de 1910 do Cancioneiro Guasca, coletânea de poesias populares; de 1912 Contos Gauchescos e 1913 Lendas do Sul, publicadas pelos editores Echenique e Cia, em Pelotas, não tiveram repercussão além das fronteiras do extremo Sul. Parecia que a obra falecera com a morte do autor em 1916. Em 1926, a Livraria do Globo, orientada por Mansueto Bernardi, publicou num só volume Contos Gauchescos e Lendas do Sul. Dez anos após a morte do escritor o Brasil tomava conhecimento do precursor do Regionalismo, no mesmo ano em que Gilberto Freire e outros lançavam o Manifesto Regionalista no Recife, ignorando a obra fecunda e incisiva de João Simões Lopes Neto. Era o início da ressurreição da obra imortal pelotense. Em 1949, o alagoano Aurélio Buarque de Hollanda oferecia à Editora Globo a edição crítica dos Contos Gauchescos e Lendas do Sul, com introdução, variantes, notas e glossários. Prefácio e notas de Augusto Meyer. Posfácio de Carlos Reverbel. Seguiram-se em 1950, na Coleção Província a 2ª edição; em 1950, 3ª edição e 1954, a 4ª edição. Era a consagração nacional do outrora desconhecido escritor. Em 1952 eram publicados pela Globo os Casos do Romualdo. Em 1955, com introdução e notas de Walter Spalding e apresentação de Manoelito de Ornellas vinha à luz do dia Terra Gaúcha. Para celebrar os 40 anos do falecimento do contista, Moysés Vellinho, convidado por Alceu Amoroso Lima, organizou em 1956 para a Coleção Nossos Clássicos da AGIR, Contos e Lendas, publicados em 1957. Tem importância enorme a apresentação de 15 páginas, feita pelo grande crítico e diretor da Revista Província de São Pedro. A Coleção Nossos Clássicos era adotada pelas escolas secundárias de todo o país e pelos cursos superiores de Letras. Vale a pena transcrever a afirmação de Moysés Vellinho sobre a repercussão após quatro décadas da morte de Simões Lopes Neto: “Entretanto, os tempos foram passando, e hoje, há quarenta anos do desaparecimento do 68 grande regionalista, aí está a impressionante trajetória que sua estrela já descreveu. Quebrado o silêncio que sufocara o surto de seu nome, silêncio que nem o fato da morte lograra romper, a figura literária de Simões Lopes, como que aos poucos emergindo de um quase anonimato, acabou transpondo os estreitos muros de sua cidade e projetando-se muito além do âmbito regional.” (Vellinho, 1957, p. 7) O que dizer, agora, passados 80 anos? Quanta repercussão, quantos estudos, quantas edições de seus livros! Ainda em 1956, Giuseppe Tavani traduzia e publicava pela Fratelli Bocca Editori, Milano-Roma, Storie di Gauchos, trata-se de Contos Gauchescos e Lendas do Sul. Estudos mais aprofundados vêm sendo feitos nos cursos de pósgraduação de Letras que resultam em monografias, dissertações ou teses, sempre no regionalista — Simões Lopes Neto. Haja vista alguns exemplos do Curso de Pós-Graduação de Letras da PUCRS. Em 1978, Alice Therezinha Campos Moreira apresentou a dissertação: “O popular e o literário em Darcy Azambuja, onde a presença dos Contos Gauchescos é palpável. Em 1979, Alda Maria do Couto Ghisolfi defendeu a dissertação Da desmitificação do gaúcho em Alcides Maya e Simões Lopes Neto. Na mesma data Maria Eunice Moreira discute amplamente o Regionalismo Gaúcho, onde Simões Lopes tem lugar de predileção. Em 1980 na Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo, Flávio Loureiro Chaves, orientado por José Aderaldo Castello vê a sua tese aprovada em 25 de agosto sob o título Simões Lopes Neto: Regionalismo e Literatura que mereceu publicação pela Editora Mercado Aberto em 1982. Em 1991, Lisana Bertussi 69 defendia na PUCRS a tese — Regionalismo no Rio Grande do Sul, onde o Cancioneiro Guasca tem real importância e manifesta presença. A obra de Simões Lopes Neto influenciou substancialmente o jovem contista Darcy Azambuja que em 1925 editava pela Livraria do Globo o livro No Galpão, seguindo-se depois outros contos sob o nome de Coxilha. A presença do escritor polígrafo pelotense tornou-se insofismável nas gerações posteriores até mesmo em Cyro Martins recentemente falecido. A leitura dos livros de Simões Lopes Neto orientou muitos contistas que se comprazem em sentir e reviver o Rio Grande em sua gente como Sérgio Faraco, em nossos dias; Josué Guimarães algumas décadas atrás. A força e o vigor da mensagem humana e literária de Simões Lopes Neto, oitenta anos depois, continuam mantendo o frescor do estilo que adere substancialmente às imagens e sentimentos. Moysés Vellinho recordava: “Embora os contos e narrativas de Simões Lopes se prendam a “outros tempos”, “àqueles tempos”, o escritor nunca se deixa dominar pelo sentimento de depressão nostálgica. Ao contrário disso, o que ele nos dá constantemente, como por um passe de mágica, é uma tradição rediviva, reatualizada, uma tradição que achasse de novo o seu verbo perdido”. (Ibidem) Aquele cidadão de Pelotas bem ou malsucedido em seus empreendimentos, que veio a falecer aos 51 anos, em 1916, passeia entre nós com seus personagens, com seu estilo tipicamente regional mas compreensível para qualquer conhecedor da língua de Camões. Circula entre nós, presente e vivo em sua mensagem humana e literária do guasca ou do citadino das peças teatrais ou dos artigos na imprensa; o escritor descansa em sua eternidade feliz, mas a obra literária continua viva nas intérminas caminhadas, recriadas 70 pelos leitores debruçados sobre os causos ou mergulhados nos contos ou sonhando com as lendas, contemplam aqueles tempos que se foram, que mergulharam no oceano da eternidade para emergirem nos tempos da informática e nas viagens interplanetárias da internet. 80 anos depois, Simões Lopes Neto nos ensina a ver o Rio Grande de face juvenil, o Rio Grande que andou e anda a pé mesmo nas asas dos grandes veículos voadores intercontinentais. A mensagem humana e profundamente cristã dos escritos simonianos se perpetua em sua compreensão e em seus gestos solidários de alguém que soube viver solitário para propiciar amável companhia na solidão dos infortunados. BIBLIOGRAFIA SOBRE O TEMA: 1 – Lopes Neto, João Simões Contos Gauchescos. 2ª ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2000, 194 p. 2 – Lopes Neto, João Simões Cancioneiro Guasca. 2ª ed. Porto Alegre: Sulina, 1999. 317 p. 3 –Lopes Neto, João Simões Contos Gauchescos. Porto Alegre: UE Porto Alegre, 1999. 131 p. (Clássicos Populares) 4 –Lopes Neto, João Simões Terra Gaúcha: História Elementar do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Sulina, 1998. 183 p. 5 – Lopes Neto, João Simões O Negro Bonifácio: e outras histórias. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1996. 63 p. 6 – Lopes Neto, João Simões Contos Gauchescos. Rio de Janeiro: Imago, 1993. 155 p. (Coleção Lazuli) 71 7 – Lopes Neto, João Simões La Salamanca del Jarau. Porto Alegre: IEL, 1991. 38 p. (Coleção Latino-América) 8 – Lopes Neto, João Simões Teatro. Porto Alegre: IEL, 1990. 9 – Lopes Neto, João Simões Contos Gauchescos. 10 ed. Porto Alegre: Globo, 1978. 229 p. (Série Paradidática) 10 – Lopes Neto, João Simões Lendas do Sul. 9 ed. Porto Alegre: Globo, 1976, 159 p. (Coleção Província) 11 – Lopes Neto, João Simões Contos Gauchescos. 9 ed. Porto Alegre: Globo, 1976. 183 p. (Coleção Província) 12 – Lopes Neto, João Simões Lendas do Sul. Porto Alegre: Globo 1974. 173 p.; il; 31 cm. 13 – Lopes Neto, João Simões Contos e Lendas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1960. 119 p. (Nossos Clássicos; 5) 14 – Lopes Neto, João Simões Cancioneiro Guasca. 2 ªed. Rio de Janeiro: Globo, 1960. 260 p. (Coleção Província) 15 – Lopes Neto, João Simões Casos do Romualdo: Contos Gauchescos. Porto Alegre: Globo, 1958. 201 p. (Coleção Província) 16 – Lopes Neto, João Simões Contos Gauchescos. 5 ed. Porto Alegre: Globo, 1957. 440 p. (Coleção Província) 17 – Lopes Neto, João Simões 72 Contos e Lendas. Rio de Janeiro: Agir, 1957. 130 p. (Nossos Clássicos) 18 – Lopes Neto, João Simões Terra Gaúcha. Porto Alegre: Sulina, 1955. 165 p. (Coleção Meridional) Cancioneiro Guasca/comp. J. Simões Lopes Neto. Porto Alegre: Globo, 1954. 260 p. 19 – Lopes Neto, João Simões Cancioneiro Guasca. Rio de Janeiro: Globo, 1954. 260 p. (Coleção Província; v.6) 20 – Lopes Neto, João Simões Casos do Romualdo: Contos Gauchescos. Porto Alegre: Globo, 1952. 201 p. 21 – Lopes Neto, João Simões Contos Gauchescos. Porto Alegre: Globo, 1949. 414 p. (Coleção Província) Lendas/comp. Simões Lopes Neto. 1940. 93 p. 22 – Lopes Neto, João Simões Contos Gauchescos. Pelotas: Echenique, 1912. 215 p.; 16,5 cm. 23 – Antunes, Cláudia Rejane Dornelles Simões Lopes Neto: a lógica da criação literária: o exemplo do conto “O negro Bonifácio”. Porto Alegre 2001. 2v; il. Diss. (Mestrado em Letras) — PUCRS. 24 – Chaves, Flávio Loureiro Simões Lopes Neto. Porto Alegre: Ed. Universidade, 2001. 295 p. 25 – Arendt, João Claudio Histórias do “bruxo velho”: a recepção da obra de João Simões Lopes Neto. Porto Alegre 2000. 276 f. Tese (Doutorado em Letras) — PUCRS. Fac. de Letras 26 – Picinini, Adriana 73 Guimarães Rosa e Simões Lopes Neto: a universalidade da narrativa regional. Porto Alegre 1997. 99 f. Diss. (Mestrado em Letras) — PUCRS, lnst. de Letras. 27 – Arent, João Claudio O mito do gaúcho-herói e o imaginário social em “Contos Gauchescos e Lendas do Sul”. São Leopoldo 1995. 177 f. Diss. (Mestrado em História) — UNISINOS. 28 – Chaves, Flávio Loureiro Simões Lopes Neto. Porto Alegre: IEL, 1990. 62 p. (Letras RioGrandenses) 29 – Lopes Neto, João Simões Teatro. Porto Alegre: IEL, 1990. v. 30 – Leite, Ligia Chiappini Moraes No entretanto dos tempos: Literatura e História em João Simões Lopes Neto. São Paulo: Martins Fontes. 1988. 416 p. (Coleção Leituras) 31 – Hohlfeldt, Antônio Simões Lopes Neto. Porto Alegre: Tchê!, 1985. 85 p.; il. (Coleção Esses Gaúchos) 32 – Chaves, Flávio Loureiro Simões Lopes Neto. Regionalismo Literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. 239 p. (Documenta; 12) 33 – Reverbel, Carlos Um Capitão da Guarda Nacional: Vida e Obra de J. Simões Lopes Neto. Caxias do Sul: Martins Livreiro, 1981. 298 p. 34 – Brauner, Flora Osório A estrutura da comparação nos Contos Gauchescos de Simões Lopes Neto. Porto Alegre 1979. 69 f. Diss. (Mestrado em Letras) — PUCRS. Inst. de Letras. 35 – Ghisolfi, Alda Maria do Couto. 74 Alcides Maya e Simões Lopes Neto: a desmistificação do gaúcho. Porto Alegre 1979. 174 f. Diss. (Mestrado em Letras) — PUCRS, Inst. de Letras. 36 – Massot, Ivete Simões Lopes B. Simões Lopes Neto na intimidade. Porto Alegre: Bels, 1974. 181 p. 37 – Filipouski, Ana Mariza et al. Simões Lopes Neto: a invenção, o mito e a mentira: uma abordagem estruturalista / Porto Alegre: Movimento, 1973. 135 p. (Coleção Augusto Meyer; v.2). 38 – Vellinho, Moysés Simões Lopes Neto: contos e lendas. Rio de Janeiro: Agir, 1957. 129 p. (Nossos Clássicos). 75 TRÊS CENTENÁRIOS RIO-GRANDENSES (Palestra na Academia, publicada na Revista n° 15, janeiro de 1999). Os meses de julho e agosto de 1998 nos relembram três importantes centenários de nascimento de poetas. O dia 19 de julho viu o nascimento de Paulo Corrêa Lopes, em Itaqui/RS; o dia 1º de agosto assistiu os primeiros vagidos de Aureliano de Figueiredo Pinto, na Estância de São Domingos, Júlio de Castilhos/RS; o dia 4 de agosto presenciou a chegada em Tupanciretã de Raul Bopp. Os três marcaram a existência por intensa vida profissional e literária. Paulo Corrêa Lopes Paulo Corrêa Lopes, órfão de pai aos 11 anos, emigrou com a mãe Maria Dolores para São Paulo, onde realizou as primeiras letras e formou-se professor com o diploma de normalista, em 1918. Em suas inquietas andanças esteve no Rio de Janeiro e lecionou primeiras letras no interior de São Paulo. Voltou definitivamente para o Sul em 1929, sendo oficial administrativo da Secretaria do Interior, cargo em que se aposentou em 1948. Casou em 19 de julho de 1939 com a Bacharel Iris Pothoff. Veio a falecer a 9 de setembro de 1957. Revelou-se grande modernista após a experiência parnasiana de Penumbra, em 1919. As obras seguiram-se em pequenos volumes, em que se encontram as vivências de uma alma em luta com os valores transitórios em busca da união perene com o Amor absoluto. Os títulos significam as tendências de um homem: Poemas de Mim Mesmo, 1931; Caminhos, 1933; Poemas da Vida e da Morte, 1938 e Canto de Libertação, 1943. Em 1957, Santiago Naud, diretor da Divisão de Cultura da Secretaria Estadual de Educação, conseguiu reunir as obras anteriores e alguns outros 76 poemas em livro sob o título Obra Poética, com texto de prefácio, a poesia essencial, de Guilhermino César. Em 1991, a Mestra em Letras Mirna Dietrich e o autor destas linhas realizaram em co-edição EDIPUCRS e IEL, a 2ª edição de Obra Poética com a fixação técnica e crítica do texto poético. A poesia de Paulo Corrêa Lopes mereceu a tese de Concurso de Cátedra, em 1959 pelo Prof. Ir. Elvo Clemente, que intitulou o texto: O Temporal e o Eterno na Poesia de Paulo Corrêa Lopes, em 1959. O prof. Angelo Ricci apresentou, em 1949, exaustiva análise dos poemas sob o título — Un Poeta delI’Esperienza. Algo de semelhante fora feito pelo humanista e ilustre homem público da Itália, Ministro Amintore Fanfani, na revista Vita e Pensiero sob a epígrafe — Un Poeta Cristiano. Para dar uma idéia da força poética de Paulo Corrêa Lopes, leia-se com expressão o poema Cem Mil Portas, do livro Poemas da Vida e da Morte: Há cem mil portas batendo, desesperadas, na treva. Ventos! levai nas vossas asas todo o mal do mundo, todo o horror do mundo! Amanhã, quando o anjo do Senhor descer sobre a terra, que será das almas que enganaram, que mataram? Amanhã, quando as cem mil portas se fecharem que será das almas que não sabem rezar? Há cem mil portas batendo, desesperadas, na treva... Aureliano de Figueiredo Pinto Aureliano de Figueiredo Pinto, alfabetizou-se em sua terra natal, realizou o primário e o ginásio como interno no Colégio Marista de Santa Maria. 77 Cursou o científico na Capital venceu o vestibular de Direito, desistiu. Alguns anos depois, ingressou na Medicina, formou-se em 1931. Em 1930, sextanista, participou como voluntário na Brigada General Flores da Cunha, indo até o Rio de Janeiro, a fim de estabelecer Getúlio Vargas na presidência da República. Durante os anos de acadêmico freqüentava as rodas e tertúlias literárias onde estavam Raul Bopp, Cyro Martins e Alcides Maya. Em 1932 começou a clinicar em Santiago. Casou-se em 1938 com Maria Zilah Pereira Lopes. Em 1940 e 41 assumiu a subchefia da Casa Civil no governo de Cordeiro de Farias. Cansado da burocracia voltou para Santiago, entregando-se totalmente àquele povo, dando-lhe orientação para a saúde e para a vida. Muito esquivo das vaidades e promoções literárias publicava artigos e poemas em periódicos, escondendo a sua identidade sob o pseudônimo de Júlio César de Castro. Em 1958, sentindo-se atacado de cruel enfermidade — câncer nos pulmões — começou a reunir os poemas esparsos. Conseguiu contemplar, alguns dias antes de morrer, o volume intitulado: Romance de Estância e Querência — Marcas do Tempo. Veio a falecer no dia 22 de fevereiro de 1959. Houve publicações póstumas: Armorial de Estância e Outros Poemas, em 1963. Quarenta anos depois de ter sido escrito, em 1973, foi publicado o romance Memórias do Coronel Falcão. Por causa dessa ocultação de suas obras, a fama do escritor e poeta irrompeu no Rio Grande através da ação constante e benemérita da Estância da Poesia Crioula que ele ajudou a fundar. A poesia de Aureliano de Figueiredo Pinto é uma poesia profunda da temática do homem da campanha, das fainas e sofrimentos de quem vai ganhando o pão na imensidão pampeana. Cantou e difundiu a poesia que emerge das intermináveis léguas de campo onde a solidão e o silêncio se irmanam ao canto estridente do quero-quero. 78 Para que o leitor possa sentir a cadência e as metáforas do poeta transcreve-se um soneto sob o título Querência, para o Velho Domingos: Recordo... Um coxilhão, virgem do arado, Alto e estendido na campanha em frente. Resfolegando a névoa ao sol nascente. Na noite negra era um fortim sitiado. Sombrio sob o crepúsculo indolente nos paradouros acolhia o gado. Promontório nas rotas do El-Dorado ao luar e aos sonhos de um adolescente. Tristão no inverno... Esplêndido na sanha do estio fulgindo... No horizonte aberto a galopada das miragens foge. Tão longe... E ainda a paisagem me acompanha com o encanto das ilhas que no oceano incerto as minhas naves descobrisse hoje... (Do livro Romances de Estância e Querência) Raul Bopp Nasceu em Tupanciretã, a 4 de agosto de 1898, descendente de imigrantes alemães. Terminados os estudos primários e secundários ingressou na Faculdade de Direito. Viajou pelo Brasil, esteve na Faculdade de Direito de Recife. Exerceu as mais curiosas profissões para viver. Foi indo por várias cidades, realizou o 4º ano de Direito em Belém do Pará. Conheceu o Amazonas donde lhe veio a inspiração do notável poema Cobra Norato. Só em 1925 recebeu o diploma de Bacharel no Rio de Janeiro. De 1926 a 29 esteve em São 79 Paulo, onde encontrou e travou amizade com futuras personalidades, que assinariam com ele o Manifesto do Verde Amarelismo ou Escola da Anta. Encetou grande viagem pelo mundo que o levou à China, ao Japão, à Rússia pelo trem transiberiano. Depois Roma, Paris, Londres, donde saltou para Cuba, México e as repúblicas do Caribe. Em 1932 aceitou um lugar de auxiliar consular no Japão, depois seguiu para as Filipinas, Austrália, Índia, Java, Camboja. Em 1941, esteve em Los Angeles, em 1944, secretário da Embaixada em Lisboa. Daí seguiu para Zurique, Barcelona, Guatemala, Viena e por fim Bogotá, onde encerrou a carreira diplomática e suas andanças. José Castello fez, no Caderno 2, de O Estado de São Paulo, de 15/08/1998, interessante crítica do livro Poesia Completa, organização e comentários de Augusto Massi, edição de José Olympio/EDUSP. Assim se refere o crítico: “Considero uma das obras mais importantes do movimento modernista Cobra Norato, seria a princípio uma narrativa para crianças, mereceu em 1947 severa correção do autor que dele expurgou todos os exageros antropofágicos”. O novo livro foi editado em Zurique, muito diferente da edição de 1931. José Paulo Paes assim apresentou o poeta Bopp: “Seu estilo telegráfico e fragmentado é eminentemente modernista, mas se sairmos da superfície para nos embrenhar nas idéias que o sustentam, logo percebemos as diferenças que o separam dos “irmãos” Osvald e Mário e explicam também o menosprezo de que, durante décadas, ele foi vítima”. José Castello, em o Estado de São Paulo, acena com possível risco: 80 “Cobra Norato é um poema épico e também uma tragédia amazônica, envolto em lirismo intenso e em fortes traços populares, e não será surpresa se um dia oportunistas vierem a transformá-lo em alguma peça de consumo fácil”. Raul Boop veio a falecer no Rio de Janeiro em 2 de junho de 1985, após suas longas peregrinações pelo planeta e pela arte da palavra, em prosa e verso. Vemos com alegria a publicação de sua Poesia Completa, que o tornará mais conhecido pelos usuários da Língua Portuguesa. Damos a seguir o começo do II capítulo de Cobra Norato: Começa agora a floresta cifrada A sombra escondeu as árvores Sapos beiçudos espiam no escuro Aqui um pedaço de mato está de castigo Arvorezinhas acocoram-se no charco Um fio de água atrasada lambe a lama Eu quero é ver a filha da rainha Luzia! Agora são os rios afogados bebendo o caminho A água resvala pelos atoleiros Afundando, afundando, Lá adiante a areia guardou os rastros da filha da rainha Luzia Agora sim vou ver a filha da rainha Luzia! 81 Mas antes tem que passar por sete portas Ver sete mulheres brancas de ventres despovoados guardadas por um jacaré − Eu só quero a filha da rainha Luzia! Os três centenários de nascimento dos poetas rio-grandenses: Paulo Corrêa Lopes, Aureliano de Figueiredo Pinto e Raul Bopp, são muito significativos para os estudantes de Letras e para os amantes da poesia com o sabor do lirismo citadino, do lirismo pampeano ou do lirismo escondido e misterioso da floresta amazônica. Três figuras importantes da literatura riograndenses que se perenizam na memória e na veneração de gerações, pois a Língua Portuguesa tem esse condão miraculoso de desvendar o mistério de cada coração humano com vocábulos de ternura, com metáforas singelas que brilham nas retinas das lembranças. 82 MACHADO DE ASSIS O CRÍTICO Escreve-se muito sobre os aspectos literários da ficção de Machado de Assis, de sua poesia, de suas crônicas e de seus contos, pouco ou nada se fala de suas atividades de crítico literário. Mário de Alencar realizou nos primeiros anos do século XX uma importante tarefa; recuperação dos textos de crítica literária de Machado, esparsos nos jornais e revistas de 1858 a 1906: A Marmota, Diário do Rio de Janeiro, A Semana Ilustrada, O Novo Mundo, Correio Mercantil, O Cruzeiro, Revista Brasileira (2ª e 3ª fase), Gazeta de Notícias e outros. Reunidas as crônicas, publicadas nos referidos periódicos, Mário de Alencar publicou: Crítica Literária em 2 volumes pela W.M. Jackson Inc. em 1938 e 1942, anteriormente publicara pela Livraria Garnier um volume sob o mesmo título. Houve, outrossim, a publicação de um volume sobre Crítica teatral, que não estará nas cogitações deste ensaio. Sobremaneira interessante e reveladora é a Advertência que Mário de Alencar assina em 02 de fevereiro de 1910, e publica naquela época sendo reproduzida na edição de 1938 e 1942. No dizer de Mário de Alencar a estréia na carreira das letras de Machado Assis, deu-se justamente pela crítica literária, sendo essa a feição principal do seu engenho. Essa feição se faz presente em suas primeiras e últimas crônicas, onde a fantasia, a cada passo cede o lugar que ali é próprio dela às considerações do espírito afeito a análises de obras literárias. Essa feição não exclui outras nem é incompatível com as faculdades da imaginação e criação. O que era a principal e as outras lhe estavam subordinadas (Mário de Alencar, Advertência à Crítica). 83 Machado de Assis escreve no Diário do Rio de Janeiro, em 8 de outubro, 1865, uma crônica sob o título Ideal do Crítico. O grande romancista vai traçando o perfil do crítico bem como os caminhos e obrigações da crítica literária. Em carta-resposta a José de Alencar que lhe apresentara Castro Alves, Machado apresenta os valores e os espinhos da crítica literária: “A tarefa da crítica precisa destes parabéns; é tão árdua de praticar, já pelos estudos que exige, já pelas lutas que impõe, que a palavra eloqüente de um chefe é muitas vezes necessária para reavivar as forças exaustas e reerguer o ânimo abatido. Confesso, francamente que encetando os meus ensaios de crítica, fui movido pela idéia de contribuir com alguma coisa para a reforma do gosto que se ia perdendo e efetivamente se perde”. (Mário de Alencar, 1910). No referido artigo “Ideal do Crítico”, Machado de Assis, define, estabelece os campos e as virtudes pedagógicas da crítica. Como ele escreve a José de Alencar na citada carta, a grande preocupação da crítica literária da época era “contribuir para a reforma do gosto”, em outras palavras, a função pedagógica. As assertivas se sucedem insistindo na mesma tecla: “Tudo isso depende da crítica, que ela apareça convencida e resoluta, − e a sua obra será a melhor obra de nossos dias”. (Ibidem) Com a crítica agindo sobre os novos escritores apareceriam novos talentos, novos escritos, novos estímulos e ambições! O trabalho do crítico literário vem sendo descrito em seus pormenores como era hábito do autor de Dom Casmurro, o artista das 84 minúcias, o observador arguto e percuciente da alma humana em seus mínimos e íntimos refolhos. O crítico deverá, em seu trabalho, saber a matéria em que fala: procurar o espírito do livro; descarná-lo; aprofundá-lo, até encontrar-lhe a alma; indagar constantemente as leis do belo, tudo isso com a mão na consciência e a convicção nos lábios, dentro de uma regra definida. Para esse trabalho árduo, espinhoso, beneditino se exige a prática de virtudes especiais do espírito e do talento do crítico. Entre as virtudes primordiais recomenda a leitura profunda da obra e de toda a obra, por alguém que possui a ciência literária e a consciência. A primeira lança luz sobre os fatos literários, a segunda modela o juízo crítico de acordo com o seu foro íntimo, no critério de julgar e agir com honestidade. O crítico acima de tudo, dos sorrisos e das desatenções tem o dever de dizer a verdade, e em casos de dúvida, deve antes calála que negá-la. Outra qualidade que orienta o crítico é a coerência, que só pode existir no crítico verdadeiramente consciencioso. A independência é virtude indispensável ao crítico, que deve ser independente em tudo e de tudo: independente da vaidade dos autores e da vaidade própria. Deve, ainda, ser independente das sugestões do orgulho e das imposições do amor próprio. Para que a crítica seja mestra (volta o sentido pedagógico), é preciso que seja imparcial, armada contra a insuficiência dos seus amigos, solícita pelo mérito dos seus adversários. Essa imparcialidade exige do crítico o respeito pelo autor conhecido, amigo ou desafeto, pois acima de tudo deve prevalecer a verdade que está no texto. Outra qualidade importante é a tolerância. No contexto sócio-religiosocultural da época a virtude da tolerância tinha seus ressaibos de velhas lutas de cunho religioso e partidarismo político. Continua o crítico Machado de Assis: 85 “A intolerância é cega, e a cegueira é um elemento do erro; o conselho e a moderação podem corrigir e encaminhar as inteligências; mas a intolerância nada produz que tenha as condições de fecundo e duradouro” (idem p. 16). Como é preciosa a recomendação do mestre! Complementos naturais e imprescindíveis da tolerância são as virtudes da moderação e a urbanidade na expressão sendo o melhor meio de convencer; não há outro que seja tão eficaz. O homem moderado é o que sabe tomar as pessoas e as situações com o verdadeiro espírito de calma, de ponderação, dentro do maior respeito que toda a pessoa merece, como imagem de Deus. Decorrência disso é a prática da urbanidade, virtude que tem o nome de civilidade, ou a qualidade exigida de quem vive em sociedade, numa urbs (cidade), onde o respeito mútuo entre os cidadãos é a lei suprema. O crítico respeita e trata o escritor com toda a deferência e justiça. Nada de arrogâncias, nada de vaidades dominadoras ou de atitudes que pertubem o bem-estar e a liberdade de outrem. E conclui Machado de Assis: “Uma crítica que, para a expressão de suas idéias só encontra fórmulas ásperas pode perder as esperanças de influir e dirigir” (Idem, p. 16/17). Eis a presença constante do mestre, do pedagogo... Tais condições, tais as virtudes e tais os deveres dos que se destinam à análise literária; se a tudo isso juntarmos uma última virtude, a virtude da perseverança (sic) teremos completado o ideal do crítico (Idem p. 17). A perseverança, a persistência nas árduas tarefas da crítica literária é a pedra de toque do bom crítico, como foi Machado de Assis durante tantos anos; como foi Alceu Amoroso Lima pelo espaço de 69. Ambos grandes analistas do ser humano, analistas do fenômeno social, do fato estético-literário, facetas do grande mistério da vida. 86 O crítico literário tornou-se o crítico profundo da situação humana, das condições sociais do Rio de Janeiro, do Brasil e do ser humano universal. A alma não muda em quaisquer atitudes. Cada ser humano é único em sua concepção e em sua realização embora semelhante com grandes similitudes e com grandes diversificações, sempre o homem, em suas paixões, em seus desejos, em suas ambições, em suas misérias e em suas pequenas grandezas. Machado de Assis soube cumprir o que se propusera na crônica “Ideal do crítico” em suas múltiplas críticas a peças de teatro, a livros e a composições literárias de autores brasileiros, estrangeiros, principalmente franceses. É notável a crítica de Machado ao Primo Basílio, de Eça de Queirós. Damos alguns tópicos para observar até onde vai o realismo da crítica machadiana, tomemos a esmo um parágrafo da página 173: “Que os três quadros estão acabados com muita arte, sobretudo o primeiro, é cousa que a crítica imparcial deve reconhecer; mas, por que avolumar tais acessórios até o ponto de abafar o principal?” (Crítica, p.173) Vemos por aí como Machado de Assis quer o equilíbrio das partes, como o belo deve ser traduzido com harmonia... Vejamos como ele analisa a arte queirosiana: “O Sr. Eça de Queirós não quer ser realista mitificado, mas intenso e completo; e daí vem que o tom carregado das tintas, que nos assusta, para ele é simplesmente o tom próprio. Dado, porém, que a doutrina do Sr. Eça de Queirós fosse verdadeira, ainda assim cumpria não acumular tanto as cores, nem acentuar tanto as linhas; e quem o diz é o próprio chefe da escola, de que li, há pouco, e não 87 sem pasmo, que o perigo do movimento realista é haver quem suponha que o traço grosso é o traço exato.” (Ibidem). Por esse exemplo, pequeno exemplo, vemos como Machado de Assis conhecia a ciência literária e tinha consciência dos limites da escola e das exagerações do autor dos Maias... Vale a pena mergulhar em nossos escritores que fizeram crítica literária e tirar desses alforjes relíquias e pedras preciosas de saber e de experiência na arte de analisar e de avaliar o texto literário. Mais vale garimpar tesouros de nossos clássicos que buscar pedras preciosas ou ainda rústicas nos socavões dos teóricos do hemisfério norte. Machado de Assis, crítico literário, é o exemplo acabado da crítica brasileira após 1860 até 1900. Há que ser estudado, tantos belos assuntos para proveitosas e agradáveis dissertações mais realistas e mais condizentes com os nossos pró-homens. O caminho aberto por Machado de Assis, crítico literário, deve ser palmilhado por todos os estudiosos que ora celebram o sesqüicentenário do admirável e inesgotável ficcionista e crítico das letras e das profundezas do ser humano... 88 O CRÍTICO ALCEU AMOROSO LIMA – CENTENÁRIO DE NASCIMENTO – 1893 – 1993 Falar ou escrever sobre Alceu Amoroso Lima no Centenário do seu nascimento é algo de sublime e de muito honroso para um professor de Crítica, para alguém dado à difícil tarefa de incentivar a leitura e de levar as pessoas a admirar, a sentir e a discernir o texto literário, desfrutando-lhe a beleza e o encanto. O homem Alceu Amoroso Lima nasceu no Rio de Janeiro no dia 11 de dezembro de 1893, no casarão azul de tantas evocações. O pai era industrialista no setor de têxteis. Teve fina educação, orientado pela fé cristã. Terminado o Colégio Pedro II, onde teve, entre outros mestres, Sílvio Romero que o marcou com a personalidade e com o saber crítico literário em 1910 e 1911, ingressou na Faculdade de Direito. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, em plena Grande Guerra, embarcou para a França, onde permaneceu até o Armistício 1918. De volta do Velho Mundo precisava iniciar a trabalhar na indústria do pai e ao mesmo tempo cultivar as letras. No livro Estudos Literários, rememora a entrada na crítica literária: Comecei a fazer crítica literária, no primeiro número de O Jornal (17/06/1919), de modo puramente acidental. Convidou-me, de surpresa, Renato de Toledo Lopes, a assumir a secção “Bibliografia”. Éramos da mesma geração; pertencíamos ao mesmo grupo de rapazes, cariocas ou fluminenses, que se interessavam por literatura, mas sem nenhuma preocupação profissional; freqüentávamos os mesmo fatos literários. Quando muito, em 89 nossas viagens à Europa, havíamos freqüentado, como ouvintes, os cursos europeus. Representávamos, realmente, a última ou penúltima geração de autodidatas; se acaso o autodidatismo não representa uma condição intrínseca, de toda a formação intelectual, especialmente literária”. (Teles: 249) O pseudônimo Tristão de Athayde surgiu, para evitar a confusão entre o escritor e crítico literário e o gerente da empresa paterna. Na crítica literária vigoravam as idéias de Anatole France, de Jules Lemaître e de Remy de Gourmont. Foi sempre marcado por uma invencível inclinação ao amadorismo. Talvez pela verdadeira obsessão pela liberdade, pela verdade que constitui o fundo do caráter de mestre Alceu. Viria e sentiria de perto a transformação européia no pós-guerra. Surgiram os movimentos modernistas e os múltiplos manifestos de um e de outro lado do Atlântico. No Brasil por ocasião das celebrações do Centenário da Independência, tudo se movia para a renovação de idéias, de crenças, de postura. Tudo era mais voltado para o Brasil, era o nacionalismo que se revigorava. Farias Brito surgia com a nova filosofia. Os artigos semanais em O Jornal e depois no Jornal do Brasil davam a conhecer o novo crítico literário. Em 1922 a edição de Afonso Arinos com longo prefácio crítico confirma a autoridade do crítico literário. De 1927 a 1933 são publicadas as cinco séries de Estudos que enfeixavam os artigos editados na imprensa. É interessante e oportuno citar parte do artigo de Afrânio Coutinho publicado em 21/06/1959, celebrando os quarenta anos de Crítica Literária de Mestre Alceu: “Todos podemos testemunhar a ansiedade com que aguardávamos, em todos os recantos do País, os seus artigos, os seus ensaios, que líamos sofregamente, bebendo com avidez as 90 suas idéias e ensinamentos. Não nos bastavam os seus livros, os famosos Estudos, nas pequenas brochuras do Centro Dom Vital, cuja imagem ficou para sempre em nossa retentiva”. (Coutinho: 1959) Alceu aproximou-se de Jackson de Figueiredo, apóstolo da renovação católica, e fundador com o P. Leonel Franca S. J. e o cardeal Dom Sebastião Leme do Centro Dom Vital e da revista A Ordem. Em carta de Alceu a Tristão, no dia 31 de janeiro de 1969, narra a volta ao catolicismo dizendo “Adeus à Disponibilidade”. “Afinal o que aconteceu no dia 15 de agosto de 1928, foi um marco decisivo em minha própria existência. Era uma volta à pia do meu batismo”. Jackson de Figueiredo veio a falecer no dia 10 de novembro do mesmo ano. A atitude de Alceu assim foi por ele expressa: De modo que o catolicismo nada tem de conservador em política ou de clássico em arte. Jackson e Mário de Andrade julgavam que a Igreja estava necessariamente ligada a certas formas de arte e de política, isto é, à defesa da Autoridade e ao Classicismo. E por isso nem um nem outro podiam compreender a minha contradição de procurar ser ao mesmo tempo: católico em religião, tomista em filosofia, democrata em política, e modernista em arte”. (Teles: 403) Alceu continuava a produzir artigos, a escrever livros, a administrar a editora AGIR e a ministrar aulas na Faculdade de Filosofia e Letras da 91 Universidade do Distrito Federal. Realizou concurso de cátedra pela defesa da tese a Estética Literária, publicada em livro em 1945. Desde 1929 Tristão de Ataíde afastou-se, em parte, das atividades estéticas e literárias para entregar-se às especulações e investigações do filósofo, do sociólogo e do educador, debruçado sobre os mais queimantes problemas de uma civilização em crise — embora deles participante com o frêmito do cristão e do autêntico humanista. Exímio conferencista era solicitado a apresentar-se perante numerosas assembléias sobre assuntos os mais diversos da política, da religião, sociologia e da pedagogia. A vida de família, de professor, de escritor e de administrador ocupavamlhe o tempo todo, reservando sempre horas para leitura, para a meditação e para escrever livros e artigos para o Jornal do Brasil e para a Revista A Ordem. Veio a falecer no dia 14 de agosto de 1983, pouco antes de completar 90 anos. Carlos Drummond de Andrade dedicou maravilhoso epicédio ao grande amigo — Alceu Brilhante Espelho, que conclui com os dois versos: E lá se vai Alceu, servo de Deus, servo do amor, que é cúmplice de Deus. (Folha da Tarde, 16/08/1983) O escritor Quem perlustrar a vasta bibliografia de Alceu Amoroso Lima fica deveras admirado pelo número de obras e pela vasta temática tratada com séria e eficiente profundidade. O tema mais versado e preferido é sem dúvida a Literatura com 29 títulos entre os quais destacam-se: Afonso Arinos, 1922; Estudos (cinco séries) de 1927 a 1933; O espírito e o mundo, 1936; Contribuição à história do Modernismo, 1939; Estética Literária e O Crítico Literário, 1945; Meio século de presença literária, 1969; Memórias improvisadas, 1973. 92 O segundo tema tratado com perspicácia e orientado pelo tomismo de Jacques Maritain é a Filosofia, com 9 obras importantes e atuais: Freud, 1929, explica as influências da psicanálise nas letras e na vida hodierna; Idade, sexo e tempo, apresenta três aspectos da existência humana; Humanismo pedagógico, 1944, estuda a filosofia da educação no choque de ideologias de Dewey e outros; O existencialismo, 1951, elucida os meandros do movimento que sacudiu o mundo a partir das obras de Jean Paul Sartre e Gabriel Marcel, pólos entre o desespero e a esperança; Meditação sobre o mundo interior, 1954, aprofunda a visão e reflexão sobre o verdadeiro mundo da pessoa em sua interioridade; Existencialismo e outros mitos de nosso tempo, 1956, faz uma profunda radiografia e sério diagnóstico sobre as conseqüências da filosofia existencialista e outras formas míticas de vida hodierna; O Espírito Universitário, 1959, perscruta a vida e o sentido da Universidade, casa da ciência e da filosofia em debate com a busca de soluções para a crise do século; pelo Humanismo ameaçado, 1965, alerta para a situação da pessoa no mundo, dominado pelo tecnicismo e pelo materialismo. O seu pensamento e a sua ação de intelectual voltam-se para a situação da Religião no mundo e no Brasil. É o homem que sabe sentire cum ecclesia, os 14 títulos falam do seu amor e dedicação à Igreja Católica. Os mais significativos: De Pio VI a Pio XI, 1929, é o itinerário dos últimos séculos; Elementos de ação católica, 1938, esclarece a razão de ser dessa força tão cara a Pio XI. A Igreja e o Novo Mundo, 1943, esclarece a ação e o apostolado desenvolvidos pelos missionários e pelos católicos em terra da América; O Cardeal Leme, 1943, excelente quadro biográfico do grande antístite do Rio de Janeiro que conquistou o coração de Alceu e de milhares de pessoas; Pela cristianização da idade nova (2v.), 1946, sente-se nessas páginas o Palpitar inquieto e sofredor do coração do apóstolo: A vida sobrenatural e o mundo moderno, 1956, repercute como uma clarinada na inquietação e na angústia dos dias atuais; João XXIII, 1966, projeta a imagem e 93 a mensagem perene de luz e de esperança pelo grande papa Roncalli; Comentário à populorum progressio, 1969, o tema religioso e social tão caro ao escritor e ao católico, é apresentado com força de mestre. A Sociologia foi o tema estudado, discutido e apresentado em artigos, em conferência e livros: Preparação à Sociologia, 1931, espécie de porta de entrada ao estudo da ciência social batizada por Augusto Comte; Problema da burguesia, 1932, e Pela reforma social, 1933, são meditações sobre a realidade que envolve a humanidade do século XX: Meditação sobre o mundo moderno, 1942, e Mitos de nosso tempo, 1943, aprofundam o conhecimento dos males e da situação atual; A família no mundo moderno, 1960, apresenta os sintomas de desagregação e os remédios de salvação à célula mater da sociedade; Europa e América: duas culturas, 1962, analisa com cuidado e profundidade as peculiaridades e as linhas de força das duas vertentes de cultura da atualidade. A Economia não esteve ausente e não mereceu menos espaço e cuidados do mestre e polimorfo pensador, múltiplo nos temas e unitário nas teses e soluções: Economia pré-política, 1932 lança as bases para as reflexões mais profundas; Problema do trabalho, 1947, é um ensaio de filosofia econômica, que tanto preocupa; O trabalho no mundo moderno, 1959, e o Gigantismo econômico, 1964, preocupavam ainda hoje, clamando por soluções. A Política foi preocupação e tema de estudos de Alceu Amoroso Lima nas conferências no centro Dom Vital, nos artigos da revista A Ordem e em livros: Política, 1932, manual prático para iniciantes; Introdução ao direito moderno, 1933, analisa as correntes e as direções das ciências jurídicas; No limiar da idade nova, 1935, apresenta temas para meditação na hora em que se firmavam os totalitarismos; Europa de hoje, 1951, visão panorâmica sociopolítica do velho continente recém-saído do banho de sangue da II Guerra Mundial; Revolução, reação ou reforma, 1964, estuda as linhas e os perigos do movimento de 31 de março. Alceu esteve sempre alerta e independente quanto à Revolução de 64 sobre a qual escreveu veementes artigos e proferiu 94 inúmeras conferências clamando pela liberdade e pelos direitos e deveres dos cidadãos brasileiros, daí proveio a Experiência reacionária de 1968. O rápido panorama dos escritos de Alceu mostra a vastidão dos horizontes abarcados por sua visão segura e inconfundível na busca da Verdade e da liberdade de pensar e agir, dentro da pureza doutrinária do Cristianismo. Não serão mencionadas as 11 obras traduzidas magistralmente do francês. A biografia apresentada por Gilberto Mendonça Teles no livro Tristão de Athayde, em 1980, os últimos títulos citados são de 1968 ou 1973. Nada existe da década de 1973 a 1983. A obra é imensa, grande parte dela ainda em manuscritos, em artigos de jornais e revistas. Nota-se algo de estranho quanto a reedições e a novas edições do imenso tesouro deixado nos escritos de Alceu Amoroso Lima, que não aparecem. O crítico literário Evocar a figura de Alceu Amoroso Lima é trazer para perto de nós o crítico que diuturnamente acompanhou as letras, as artes, a cultura e a vida do País e do mundo de 1919 a 1983. O fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX refervilhavam de novas idéias decorrentes do choque do intuicionismo de Bergson e Croce com a tradição do positivismo de Lanson e outros. Alceu Amoroso Lima com suas constantes leituras dos mestres franceses e das lições de Sílvio Romero tomou um caminho, apoiado no binômio intuiçãoexpressão, assim conceituado: “O artista intui para exprimir. E a expressão é apenas o termo final da intuição. De uma à outra não se quebra a linha criadora do artista. Ela apenas se desloca ou desloca-se o artista ao longo dela”. (Teles, XIV). 95 Marcou época a conferência proferida por Alceu, na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, em 1926, sobre a Beleza e o Número. Inúmeras foram as solicitações para conferências ao longo de sua longa e produtiva existência. Em sua visão crítica valorizou a palavra, quando escreveu: “A expressão verbal literal é a mais ampla e mais compreensiva de todas as expressões da arte! Sendo além disso um elemento de intelectualização” (Teles, XV) No livro A Estética literária assim é conceituada a literatura: “A mais espiritual das artes. Não só por se servir do mais espiritual dos instrumentos — o verbo, mas ainda por visar o mais espiritual dos efeitos — a expressão da alma humana e a representação da vida em geral, traduzida em seu reflexo no espírito”. (Lima, 1954) Em 27 de julho de 1944, Alceu Amoroso escreveu o prefácio de O crítico literário dedicado aos leitores e alunos, de que se destaca: “Se a minha vida de crítica e de crítico está contida no longo diálogo com os meus leitores e com os meus alunos, não podia deixá-los alheios a esta tentativa de balanço. Quando comecei, 1919, a fazer crítica literária, não tinha nenhum programa em mente. Há três formas correntes de crítica literária da conversa, a do ensino e a da escrita. Todas elas nascem da transformação do monólogo em 96 diálogo da vida interior em comunicação, do caminho que nos leva à Mística para o caminho que nos leva à Arte. (Lima, 1954) A atividade de Alceu A. Lima nos 64 anos de crítica sempre esteve no jogo do monólogo e do diálogo com o público — alunos, ouvintes ou leitores: o diálogo se prolonga por todo esse tempo e continuará enquanto houver crítica literária. Os livros fundamentais foram escritos após décadas de diálogos transcritos em artigos, horas de aula ou conferências. A Estética literária e o crítico literário, escritos em 1944 e publicados em 1945, tiveram a 2ª edição em 1954 num só volume, na coletânea das obras completas de Alceu Amoroso Lima, edição da livraria AGIR Editora. O crítico literário se desenvolve em quatro capítulos que consubstancializam o comportamento de quem faz crítica. O crítico se apresenta em face da obra, em face do autor, em face da crítica e por fim em face de si mesmo. Ao encerrar as páginas conclusivas de O Crítico literário assim se exprimia, em julho de 1944: “Só aprendemos realmente conosco mesmos. É possível, entretanto, que o confronto dessa vivência com as esperanças, os projetos ou as saudades de outros oficiais do mesmo ofício ou de simples leitores interessados na vida das idéias, possa trazer algum beneficio a outros espíritos. Basta isso para que estas páginas se sintam justificadas. E não se julguem deslocadas ou inúteis, nesta hora em que a tensão de todo universo se volta para os estertores da luta gigantesca, cujo próximo fim desperta em todos os homens de responsabilidade no mundo de preocupações e de esperanças. A crítica literária delas participa com toda a ansiedade. Pois é vida vivida em 97 união com todas as angústias e vicissitudes dos nossos irmãos ou apenas à sombra de uma vaidade vã...” Alceu Amoroso Lima foi crítico literário na análise e estudo de autores, da historiografia literária, no estudo e meditação dos temas filosóficos, nas discussões sobre religião e catolicismo, nos problemas sociais, nos problemas jurídicos, políticos e econômicos, nos problemas psicológicos e pedagógicos e nos problemas brasileiros e memórias. Em toda a sua vasta e sólida bibliografia foi o crítico, o analista profundo e sereno, o observador arguto e atento, tudo era estudado, tudo era pesado e avaliado no verdadeiro discernimento crítico. Muitos cursos monográficos poderiam ser estruturados no estudo dos livros de Alceu Amoroso Lima para quem “A crítica tem sido, para mim, uma visão da vida através das obras alheias e, simultaneamente, uma concepção das obras alheias através da vida...” Nas duas obras citadas, A Estética Literária e O crítico Literário, nas cinco séries de Estudos e em outras obras, propugnou para uma atividade crítica aberta, para a crítica ontológica, nos passos de Charles Moeller, na Littérature du Xxème siècle et Christianisme. Ao elogiar o grande crítico belga estabelece a própria imagem da crítica ontológica, não restrita a métodos ou a visões parciais da realidade artística e humana. “O que vemos no caso Moeller, é um critério prévio de caráter ontológico, que não prejulga o valor estético das obras nem muito menos pretende silenciar ou submeter os autores a qualquer censura prévia. Trata-se de iluminar as obras pelos focos da verdade integral, natural e sobrenatural e ver em que ângulo elas se colocam em face dessa luz. O leitor aceite ou não essa focalização. Mas não pode rejeitar a iluminação. Pois o que caracteriza um critério ontológico à luz da razão e da revelação, é não diminuir em nada o real. A luz do 98 critério integral tanto ilumina esses planos dos limites do sensível ou do puramente racional. Daí sua objetividade, a sua da clarividência, a sua penetração crítica”. (Lima: 1969) Alceu sempre será “radiante espelho” conforme os versos candentes e saudosos de Carlos Drummond de Andrade, escritos na contemplação e na despedida do grande crítico literário, do grande apaixonado pela liberdade e defensor acérrimo da Verdade perene e Bela. Ao concluir estas linhas vai a citação da estrofe central do poema já referido: Lá se vai, Alceu! as letras não limitam no paraíso da sensualidade das palavras que substituem coisas e sentimentos, diluindo o sangue de existir. Para além das letras restam indícios mais luminosos de uma insondável, solene realidade de que muitos tentam aproximar-se com a cegueira de seus pontos de vista e a avidez de sua insatisfação. E conclui o poema com o dístico: E Iá se vai Alceu, servo de Deus, servo de amor, que é cúmplice de Deus. (Folha da Tarde, 16/8/1983) 99 BIBLIOGRAFIA DE TRISTÃO DE ATHAYDE LITERATURA 1. Affonso Arinos. RJ, Anuário do Brasil, 1922. 2. Estudos. 1ª série. RJ, Terra e Sol, 1927. 3. Estudos. 2ª série. RJ, Terra do Sol, 1928. 4. Estudos. 3ª série. RJ, A Ordem, 1930. 2 v. 5. Estudos. 4ª série. RJ, Centro D. Vital, 1931. 6. Estudos. 5ª série. RJ, Civilização Brasileira, 1933. 7. O Espírito e o mundo. RJ, J. Olympio, 1936. 8. Contribuição à história do modernismo. Vol I. O Premodernismo. RJ. J. Olympio, 1939. 9. Poesia brasileira contemporânea. Belo Horizonte, Paulo Bluhm, 1941. 10. Três ensaios sobre Machado de Assis. Belo Horizonte, Paulo Bluhm, 1941. 11. Estética literária. RJ, Americ-edit., 1945. 12. O crítico literário. RJ, Agir, 1945. 13. Primeiros estudos. Contribuição à história do modernismo literário. RJ, Agir, 1948 14. A Estética literária e o crítico. RJ, Agir, 1954. 2ª edição reunida. 15. Introdução à literatura brasileira. RJ, Agir, 1956, 16. Quadro sintético da literatura brasileira. RJ, Agir, 1956. 17. Bilac (poesia). RJ, Agir 1957, Coleção “Nossos Clássicos”. 18. A Crítica literária no Brasil. RJ, Biblioteca Nacional, 1959. 19. O Teatro claudeliano. RJ, Agir, 1959. 20. Problemas de estética. RJ, Agir, 1960. 21. Meio século de presença literária. RJ, J. Olympio, 1969. Antologia 100 comemorativa do Jubileu de Ouro da atividade literária de Tristão de Athayde. 22. Adeus à disponibilidade e outros adeuses. RJ, Agir, 1969. 23. Tristão de Athayde. Teoria, Crítica e História Literária. RJ, Livros Técnicos e Científicos e Instituto Nacional do Livro, 1980. 101 HELDER MACEDO E O ENSAIO O gênero ensaio foi imortalizado pela obra Essais de Michel Eyquem de Montaigne em 1580 (1533-1542). Foi com Francis Bacon que, em 1597, prosperou na Inglaterra. De acordo com a etimologia, o vocábulo reveste um tipo de obra que escapa a todas as tentativas de definição absoluta e convincente (Massaud Moíses, A criação literária-prosa II, p.71 − 97). O mestre Alceu Amoroso Lima, em A estética, 1945, conceitua assim: “O ensaio é um passeio pelos homens e pelas coisas, dentro de limites mais amplos que a crítica”. Eduardo Lourenço, o maior ensaísta da atualidade em língua portuguesa, declara: “A insatisfação é a essência mesmo do ensaio”. (JL, n. 684, 23/03 a 9/04/96). Em entrevista ao Jornal de Letras, de Lisboa, o professor da Universidade de Vince (França) assim se exprimiu: “O ensaio tem preocupações novas, por um lado, e, sobretudo, abordagens novas. Esta geração de ensaístas tem uma formação cultural muito diversa da das gerações anteriores e a sociedade evoluiu de maneira tão vertiginosa que podemos mesmo falar ensaístas de terceiro grau. O primeiro era constituído pelos ensaístas da geração de António Sérgio. O segundo é formado pelas pessoas de minha própria geração”. Ao longo da entrevista, Eduardo Lourenço cita nomes de ensaístas importantes entre os quais aparece Helder Macedo. Para a sorte do ensaio na civilização atual, na qual tudo é pressa, tudo é acúmulo de informações, pondera o mestre Eduardo Lourenço: 102 “O ensaio necessita de uma espécie de recuo em relação àquilo que acontece de uma maneira de conceber, por assim dizer, diversos cenários sobre os quais é necessário pensar e refletir. Para o homem saber onde está o que faz, o que pretende e para onde quer ir”. (JL n. 664) Na mesma edição do JL, a jornalista Célia Quico entrevista Eduardo Prado Coelho que assim se manifestou sobre o professor da Universidade de Vince: “Se há um modelo absoluto de ensaísmo português é o Eduardo Lourenço. Qualquer ensaísta português vem da linha de Eduardo Lourenço. É uma presença esmagadora. Todos nós somos de certo modo discípulos de Eduardo Lourenço.” (JL) Helder Macedo Aparece nas letras portugueses mais como poeta e crítico literário do que como ensaísta. Nasceu em 30 de novembro de 1935, na África do Sul, passou a infância em Moçambique e a adolescência em Portugal, com algumas estadas prolongadas na Guiné, São Tomé, África do Sul e na Inglaterra, onde se radicou em 1960. Freqüentou a Faculdade de Direito em Lisboa e licenciou-se em Literatura e História na Universidade de Londres, onde também se doutorou e é professor efetivo de Estudos Portugueses e Brasileiros no King’s College. 103 Publicou o primeiro livro de poemas aos 21 anos e entre 1957 e 1968, a obra Poesia pela Moraes editores. Além de poeta e ficcionista Helder Macedo é “ensaísta” de renome. Em 1991, deu à luz ao romance Partes da África, no qual se revela machadiano no estilo, no dizer da erudita critíca literária Tania Carvalhal. Viagem de inverno, publicado em 1994 é o livro mais recente. Helder Macedo, nos últimos dez anos, além das atividades docentes no King’s College, das edições de seus livros, tem-se dedicado à direção e orientação da Associação Internacional dos Lusitanistas. Temos gratas recordações do congresso realizado por essa Associação em 1996, na Universidade de Oxford, Inglaterra. Vamos dedicar o espaço de que dispomos para algumas considerações sobre o Helder Macedo ensaísta. Em 1975 publicou Nós, uma literatura de Cesário Verde, em Lisboa, cuja terceira edição foi lançada em 1986; Do cancioneiro de amigo, em 1976; Do significado oculto da menina e moça, que lhe valeu o prêmio fa Academia das Ciências de Lisboa, em 1977; Contemporany portuguese poetry, Manchester, 1978. Em 1983, apresentou substancioso ensaio para aula inaugural no King’s College — The purpose of praise: past and future in The Lusiads of Luis de Camões. Em 1988, publicou Cesário Verde, o romântico e feroz, obra composta e impressa pela Minigráfica, em Lisboa. Para realizar o nosso trabalho encontramos na Biblioteca Central da PUCRS — Do significado da menina e moça e adquirimos com dificuldade O romântico e o feroz. Os dois livros de “ensaios” vão ser a base de nossa contribuição nesse evento. Do significado da menina e a moça Bernardim Ribeiro fez parte dos cursos de literatura de Helder Macedo no King’s College estabelecendo interessante diálogo com os discípulos, do que 104 decorrem acréscimos para o ensaio. A figura por vezes lendária de Bernardim Ribeiro marcou-lhe longas investigações nas bibliotecas de Portugal. Parece extraordinário que suas obras foram impressas em três cidades no decorrer de seis anos: Ferrara, 1554; Évora, 1557; e Colônia, 1559. Tudo indica que Menina e moça circulou em manuscrito até a sua edição conhecida, impressa em Ferrara, 1554, quando o autor já estava morto. O investigador Helder Macedo vai tranqüilo palmilhando o terreno inseguro onde tantos outros se extraviaram. Cuidadoso e escrupuloso vai indagando a verdade por entre indícios e conclui: No entanto as dificuldades metodológicas de como determinar o significado de uma obra cuja extensão real se ignora são obviamente, enormes e, principalmente, paralisadoras. São elas que certamente ajudam a explicar que, até agora a tendência geral da crítica tenha sido mais no sentido de situar a obra de acordo com gêneros literários exemplificados por outras obras-novela sentimental, novela de cavalaria, novela bucólica do que propriamente investigar o seu significado, ou mesmo sequer formular a existência nela de um problema de signicado a ser resolvido. (p. 13) O trabalho do ensaísta confunde-se com o do critico literário. Realizou a leitura de quatro poemas representativos dos diversos gêneros que cultivou: um vilancete, uma écloga, um romance e a única sextina. Por fim, concluiu para a compreensão global do significado da obra de Bernardim: a) que a condição normal dos personagens de Bernardim, é um “exílio” identificado com a perda da presença da pessoa amada; 105 b) que o amor é apresentado como um súbito desencadear da paixão cuja conseqüência imediata não é o contato com a pessoa amada mas, antes, a sua desaparição e a sua ausência na qual a alma do amante fica “sepultada”; c) que à oposição subjetiva do eu dividido parece corresponder um dualismo radical no universo. Ficou claro que a posição filosófica de Bernardim é neoplatônica e petrarquizante, articulando, porém, uma concepção da qualidade espiritualmente relevatória da mulher amada mais extremada. O ensaio realiza interessante e valioso estudo sobre a função espiritual da mulher jogando entre o gnosticismo e neoplatonismo. Após exaustivos estudos, indagações e investigações concluiu o ensaio com o parágrafo: No contexto da cultura do Renascimento português, a Menina e Moça não é uma anomalia facilmente explicável como tal. Antes, se integra de tal maneira na nossa tradição cultural, que a sua inegável filiação cabalística pode passar, como tem passado, facilmente despercebida. Vem isto em parte da extraordinária semelhança e importância das funções religiosas da Chéquina no cabalismo hispânico e da Virgem Maria no cristianismo hispânico — que aliás, Bernardin utilizou sabiamente ao dar o nome de Maria (“Arima”) à mais “divina” das suas personificações humanas da Chéquina. (p. 123) O romântico e feroz, livro de pequena tiragem de quinhentos exemplares focaliza Cesário Verde em três ensaios: o erotismo de humilhação o bucolismo do realismo e bucolismo e sexualidade. 106 Na introdução, o autor, em 1987, assim se expressa: “Ao transformar agora esses ensaios neste pequeno livro, preferi deixar neles as arestas de algumas recorrências exemplificativas, na altura necessária ao meu processo de pensamento em vez de, retrospectivamente, limá-las numa artificiosa unidade discursiva. A unidade que busquei foi só aquela que a poesia de Cesário determinou, e essa é toda feita das suas férteis e multifacetas recorrências”. No ensaio “O erotismo de humilhação”, o autor faz uma análise dos costumes e ideologias sociais do fim do século XIX em que dominam: Spencer, Proudhon e Courbet. Ao lado da figura do homem fatal surge dominadora a “mulher fatal”. O erotismo tem vasto domínio na poesia de Cesário Verde. Na conclusão Helder Macedo escreve: “É no sentimento dum ocidental que a mulher fatal faz a sua última aparição na obra de Cesário. Nessa vasta sinfonia narrativa em que, antecipando T.S. Eliot em The waste laud, o poeta sobrepõe o mapa da cidade no mapa de um inferno dantesco, a “lúbrica pessoa é, de novo, “uma grande cobra”. Mas, na Babel de que é emblemática, a sua distante figura já mal se distingue do noturno às avessas onde a dor humana busca os amplos horizontes e tem marés de fel, como um sinistro mar”. (p. 33-34) No segundo ensaio sobre Cesário Verde focaliza “O bucolista do realismo”. Autores tão importantes como David Mourão Ferreira e Joel Serrão salientam o contraste central entre a cidade e o campo na obra de 107 Cesário Verde. Helder Macedo considera o contraste cidade-campo como antinomia estruturante da poesia de Cesário, entre os dois pólos menos em termos de progressão de um para o outro do que em nível da significação de cada um deles. Assim entendidos, “cidade” e “campo” passariam a representar duas séries de associações semanticamente opostas: as negativas correspondendo à cidade e as positivas ao campo. O ensaio tem considerações sólidas o pastoralismo e o bucolismo presentes na obra de Cesário Verde. Analisa, outrossim, o emaranhado ideológico do poeta do qual convergem as doutrinas de Pierre Joseph Proudhon, Herbert Spencer e Darwin. O poema “Provincianas”, que ficou inacabado, explicita a significação social e política da obra do poeta. O ensaísta justifica o bucolismo de Cesário: “O seu bucolismo seria obsoleto e postiça a sua modernidade se, no plano da significação poética, não refletissem e não fossem o reflexo das ideologias contemporâneas que, tal como suas poesias realistas, receberam e modificaram a herança da tradição pastoril. E conclui o ensaio com o parágrafo: “Uma equivalente recuperação poética da tradição pastoril tornou Cesário Verde, o poeta da “era das ideologias” num mestre do bucolismo moderno.” (p. 53) O terceiro ensaio toma título “Bucolismo e sexualidade”. O estudante ultrapassa os aspectos da crítica literária para embrenhar-se na problemática antropológica apresentada por Robert Eisler. As páginas da investigação revisam a História Antiga, as páginas da Bíblia e de outros documentos para observar a evolução da sexualidade entre as pessoas, na família ou na tribo. O ensaio é magistral ao descortinar os meandros de influência na obra de Cesário Verde, na caudal violenta das ideologias do século 19. 108 No rápido exame por nós realizado configurou-se a pena vigorosa e a percepção de Helder Macedo como mestre do “ensaio” que não ensombra o mérito do “poeta”. ERICO VERISSIMO E A CRÍTICA BRASILEIRA4 Dez anos após o passamento de Erico Verissimo, ao celebrar-lhe 80 anos de nascimento, recordamos o grande contador de histórias, alma de tantas gerações. A recepção e a crítica do romancista é tarefa lisonjeira mas carregada de dificuldades e de complexidade. Restringimos o campo de pesquisa à crítica publicada em livros. A crítica brasileira esteve presente nos 45 anos de atividade literária de Erico Verissimo e após a sua morte a obra continua a merecer trabalhos como este que acaba de ser publicado por Wilson Chagas, na Editora Movimento, 1985, sob o título bem significativo: Mundo velho sem porteira. Ação especial desenvolveu Flávio Loureiro Chaves: organizador dos 40 anos de vida literária de Erico Verissimo — O contador de histórias, publicado pela Editora Globo em 1972; e do primoroso estudo — Erico Verissimo: realismo e sociedade, edição da Globo em 1976. O trabalho de Flávio Loureiro Chaves balizou a crítica brasileira sobre a obra do grande filho de Cruz Alta. Nesta edição cuidei de buscar, respigar nos livros, a meu alcance, as opiniões de críticos literários de mais renome sobre a obra e a pessoa de Erico Verissimo. Preocupei-me com a posição de Alceu Amoroso Lima na série de Estudos, onde não aparece nenhuma referência à obra de Erico Verissimo, pelo simples fato de serem anteriores a 1930. Depois, na Introdução à literatura brasileira, ao descrever o homem do Sul, parece que Tristão de Athayde tivesse em sua presença o autor de Olhai os lírios do campo: A 4 Texto escrito em 1985. 109 análise psicológica do sulista revela o homem que faz preponderar a razão sobre o coração, a vontade sobre a agitação. É do Sul que vem o espírito de planejamento e de construção para a nacionalidade (p. 164). Em maio de 1974, em entrevista gravada pelos alunos da PUCRJ, transcrita por Gilberto Mendonça Teles no livro Tristão de Athayde, teoria, crítica e história literária, assim se exprimia o grande e insuperável crítico literário: “Temos romancistas de grande categoria que vão ficar, mas menos representativos de uma universalidade do que representativos de uma região, como Erico Verissimo. Eu o considero um romancista extremamente importante, do ponto de vista regional, de um ponto de vista que não preocupa com a originalidade de expressão. Por sua vez, o próprio Erico Verissimo também tem repercussões universais”. (p. 571). Pelo que se depreende, Alceu Amoroso Lima não era muito entusiasta da obra do escritor de O tempo e o vento. Em a Introdução à literatura brasileira refere-se ao romancista, de passagem, com uma frase vaga: “Otavio de Faria, Jorge Amado, Erico Verissimo, Gustavo Corção são grandes romancistas que até hoje desdenham o Conto”. (Teles, 1980, p. 545). De maneira vaga também se refere Manoelito de Ornellas em Rio Grande do Sul nas Letras do Brasil: Entre essa geração magnífica de poetas, romancistas, oradores e ensaístas afirma-se o prestigio internacional de Erico Verissimo, o genial criador de O tempo e o vento (p. 30). 110 Do mesmo modo, Antonio Quadros, citado por Nelly Novaes Coelho em Literatura e linguagem: Como a tantos da minha geração foram os livros de José Lins do Rego, de Erico Verissimo, de Jorge Amado, de Graciliano Ramos, que me abriram os olhos para a realidade cultural do Brasil (p. 256). NeIly Novaes Coelho, no mesmo livro também genericamente a ele se refere: “Ainda entre as obras de registro histórico que focalizam indistintamente o passado (as raízes que explicam um povo) ou o presente social destacam-se as de Erico Verissimo: a triologia O tempo e o vento: O continente, O retrato e O arquipélago”. (1949-1962) (p. 307). Luciana Stegagno Picchio, em La letteratura brasiliana, tem uma posição interessante sobre o nosso escritor: “La prosa fino al 1945 appare communque solo come un esecizio preparatorio deIla grande prosa narrativa realizzata con O tempo e o vento, storia dell’uomo, del paesaggio in un Rio Grande do Sul ben diverso da quello saporoso di storie e di linguaggio gauchesco, presentatoci da Simões Lopes Neto”. (p. 537-8) A professora da Universidade de Roma assim se refere ao último romance: “L’ultima conquista e, per Verissimo, Incidente em Antares (1970) che romanzo 111 di costumi si transforma in traslata meditazione sul tema della morte e dell’intolleranza. Una favola attuale, di grande bellezza e di grande coraggio”. (p. 538) Em Jornal de Crítica, 1ª série, Álvaro Lins, em 1941, escreve uma curiosa crítica sobre a obra de Erico Verissimo, em que coloca Saga numa situação de inferioridade total: “Romance de posição mais que secundária. Recrimina o estardalhaço de publicidade com que o livro foi lançado, que criou antecipadamente para o novo romance um ambiente de expectativa simpática e acolhedora. A leitura do livro, porém, logo se encarregou de transformar a expectativa numa indisfarçável decepção. Confesso, aliás, que me senti tentado a colocar por cima desta crônica o mesmo título que Anatole France usou para fazer a crítica de um romance de Georges Ohnet: hors de la litérature. Mas verifiquei que, sendo merecido para Saga, o título era injusto para o Sr. Erico Verissimo. Deve-se reconhecer e afirmar que ele possui um talento e um espírito de romancista” O crítico enaltece as qualidades e a força romanesca Caminhos cruzados: “Nesse romance o autor alcançou a felicidade e o sucesso, depois foi piorar e chegou ao pior em Saga (...) Não é mais o romancista que impõe a sua arte, 112 de como em Caminhos cruzados: é o público que lhe impõe o seu gosto e as suas preferências”. (p. 84) Na 2ª série do Jornal de crítica, Álvaro Lins anota apenas o aparecimento do livro de viagem aos Estados Unidos: Gato preto em campo de neve. Promete voltar a ele nas próximas crônicas e realmente não volta. Teria sido esquecimento ou atitude desmerecedora. Caberia, nesta altura, uma reflexão do mestre Guilhermino César em O romance social de Erico Verissimo: “A denúncia só pode circular, em certos momentos, por meio de sátira à Swift. Pois é no seu panfletoExame de certos abusos, concepções e atrocidades da cidade de Dublin, publicado em 1733, que estamos pensando agora ao fim dessas reflexões sobre três últimos romances de Erico Verissimo. Não porque os seus enredos se pareçam, mas porque em ambos os autores — o irlandês e o rio-grandense — a intenção de castigar os costumes vem a ser um ato de amor: o homem não é irremediavelmente mau; o coitado não tem é muito vagar para ser essencialmente bom”. (In: Chaves, 1972, p. 70). Nessa maneira de ver, Erico Verissimo é comovente pois se considera mais o lado humano que o lado (grandeza e fraquezas) do artista. Antônio Candido dá a seu depoimento o título com duas datas Erico Verissimo de trinta a setenta, daí o subtítulo do livro organizado por Flávio 113 Loureiro Chaves. De sua análise dos romances, dos personagens, dos espaços romanescos, o crítico conclui com estas palavras: “E na atmosfera mágica do insólito, o bisturi finíssimo do Autor vai recortando em molde realista a figura da verdade, com a mesma coragem serena, o mesmo engajamento desencantado e firme, a mesma irônica e inabalável posição dos livros precedentes [refere-se aqui a Incidente em Antares que vieram marcando, de Trinta a Setenta, o caminho do humano, nunca demasiado humano”. (In: Chaves, 1972, p. 51). Jorge Amado tem admiração especial, como Álvaro Lins, pelos Caminhos cruzados, romance poderoso, rico de substância humana, de ambientes e de ação romanesca, galeria de figuras e conflitos que permanece, a meu ver, entre os maiores livros da década de 30 (Erico Verissimo pelo mundo a fora, (In: Chaves, 1972, p. 32). Refere-se também a Incidente em Antares, leitura feita longe do Brasil: “Li Incidente em Antares nos Estados Unidos, numa cidade universitária, entre jovens ardentes, em meio aos problemas colossais do mundo de hoje. De repente, nas páginas do romance de Verissimo, o Brasil inteiro (não apenas o Rio Grande) invadiu o pequeno apartamento estrangeiro e o calor do trópico fundiu a neve lá fora. Tenho amado, no correr desses quarenta anos, os livros de Erico Verissimo, todos eles, alguns mais do que outros; nenhum me 114 comoveu, tanto quanto esse último, talvez porque o tenha lido assim, distante do Brasil, nele reencontrando minha gente, o bom e ruim, alegria e a tristeza, a opressão e a luta pela liberdade, o Brasil inteiro, cerne da obra de Erico Verissimo”. (In: Chaves, 1972, p. 34). Otto Maria Carpeaux, sob o título Erico Verissimo e o público, assim enaltece a figura e a personalidade do escritor: “Erico Verissimo fala aos brasileiros. Também fala em nome dos brasileiros. Diz o que importa ao brasileiro: para o leitor e seu romancista são importantes o amor e a família, mas também a aventura, sob a condição de que o caminho o leve de volta para casa; só dentro dela encontra o brasileiro o ar da sua vida, isto é, o anseio tão profundo que enfim, na obra de Erico Verissimo, até os mortos estão falando dela e sonhando com ela: é a liberdade”. (In Chaves, 1972, p. 39) Flávio Loureiro Chaves coloca em Erico Verissimo: “Realismo e sociedade (sua dissertação de mestrado), uma nota prévia que vale uma crítica completa: Do painel urbano de Caminhos cruzados à denúncia política do Incidente em Antares, passando pela reflexão histórica traçada em O tempo e o vento, a ficção de Erico Verissimo alcançou uma notável 115 pluralidade de perspectivas. Mas o seu tema itinerante, ao longo de quarenta anos de produção literária, sempre foi a crise da liberdade individual neste nosso mundo devastado pela violência física e ideológica. É a partir daí que se define a extrema coerência de uma atitude humanista e o modelo realista que, sob muitos aspectos, renovou o romance brasileiro moderno” (Chaves, 1976, p. Xl). Jean Roche, realizando uma análise estatística de O continente, considerado obra-prima de Erico, demostrou com algarismos significativos que o autor realizou constantes pesquisas estilísticas, com cuidado ou ânsia de aperfeiçoar a obra que escreveu (Chaves, 1972. p. 215). Regina Zilberman, assídua, zelosa e conspícua estudiosa da literatura sulrio-grandense, conclui seu artigo sobre O continente do mito ao romance, com as seguintes ponderações: “O romance-história de uma estirpe constrói-se dentro de uma oscilação entre o mito, porque não pode ser epopéia, já que não mais vivemos concretamente o tempo da origem e é somente aquela forma que traz de volta, e o romance, que atesta a realidade temporal circundante. No romance é imposto a cada homem construir a sua vida defrontando-se com os valores, validando-os ou não, num esforço onde recorrer ao passado poderá servir, mas não constituirá a resposta desejada”. (Chaves, 1972, p. 193) 116 Donaldo Schüler volta a O continente com o estudo do tempo. Eis a sua observação final: “São muitos os aspectos tradicionais no romance de Erico Verissimo. Não se lhe percebe intenção de renovar o diálogo, recriar a linguagem ou reinventar a sintaxe. Tudo se passa com tanta familiaridade que o texto cai no esquecimento, diante do variado mundo ficcional. Consegue-se ler Erico Verissimo sem esforço, e esta é uma das causas de sua popularidade”. (In: Chaves, 1972, p. 174) Fábio Lucas caracteriza o romance realista em Erico Verissimo como destinado, em grande parte, a negar a moral de classe e a afirmar o direito de todos à justiça e à felicidade. Critica a sociedade que põe valores inatingíveis num sistema de relações comerciais. E conclui: “A sociedade está em choque consigo mesma, pois conhece os seus ideais e não pode praticá-los”. (In: Chaves, 1972, p. 149). Fábio Lucas traz à memória uma entrevista de Erico Verissimo a propósito de Incidente em Antares, quando o escritor assinala: “Não sou homem de idéias. Sou antes um enamorado da comédia humana e dos aspectos plásticos do mundo (Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, 12 mar. 1972). O crítico contesta o escritor: Diríamos que nem tanto assim. Especialmente com um romancista que deseja preservar a tradição do realismo social, torna-se difícil, se não impossível, evitar a irrupção de um ideário. (...) o ficcionista 117 gaúcho despreza as oportunidades de comunicar as teses de sua formação liberal”. (Chaves, 1972, p. 154). Moysés Vellinho foi um dos maiores e dos mais profundos conhecedores da pessoa e da obra de Erico Verissimo. Foi o crítico sereno, tranqüilo e perspicaz que acompanhava com carinho e severidade o desenrolar da obra do grande romancista. Ao abrir seu artigo “Um contador de histórias”, Moysés Vellinho faz a pergunta: “Apenas um contador de histórias? A sucessiva repetição dessa afirmação leva a desconfiar... É um revide malicioso àqueles que resolveram banir da ficção, como elemento subalterno, o humilde fio da meada, o encadeamento episódio, numa palavra-a história (Chaves, 1972, p. 103). Era naquela época da fúria do roman nouveau em que autores estrangeiros e brasileiros procuravam escrever romance sem história...” O crítico Moysés Vellinho põe em realce as qualidades e os recursos do romancista: “Não resta a menor dúvida de que o escritor, particularmente o da maturidade, põe a descoberto, na ficção como nos depoimentos e impressões de viagem, os dons de um narrador de recursos inesgotáveis, dos maiores de nossa língua. A serviço desses dons, pródigos na sua versatilidade, na sua 118 graça e fluência, um estilo vivo, extraordinariamente plástico, sempre atento, atento como um felino, à presença de quanto lhe fale aos sentidos. (...) O que lhe importa mesmo, sem recusa nem opções, é o assunto, o objeto”. (Chaves, 1972, p. 104) Moysés Vellinho, em sua acuidade de crítico, preocupou-se com o fato de a novela Noite aparecer de surpresa no meio da elaboração da trilogia, quando dois terços da mesma estavam feitos: “Noite é, sem desconcertante. dúvida, Dá um mesmo acidente para brusco, melindrar sensibilidades desprevenidas. Não pelo que há de fantástico e irreal em tudo aquilo, desde o cenário até os figurantes, mas porque, além de quebrar de chofre o largo compasso de O tempo e o vento, veio contrastar violentamente com o clima a que o romancista afeiçoara seus leitores”. (Chaves, 1972. p. 106-7) Neste solavanco ou sobressalto de Noite, se pode surpreender o outro lado, o lado clandestino de sua alma (...) Ninguém soubesse o que ia por baixo de suas “histórias”...(Chaves, 1972, p. 105). Aí está um desafio lançado há 15 anos pelo nobre crítico rio-grandense. Quem responderá às perguntas, quem desvendará o outro lado, o lado oculto da alma de Erico Verissimo? Alceu Amoroso Lima manteve-se bastante parcimonioso no estudo das obras de Erico Verissimo ao longo de seu aparecimento. Quando solicitado a contribuir com um artigo para O contador de histórias respondeu um extenso 119 trabalho sob o título Erico Verissimo e o antimachismo, o que surpreendeu os leitores e críticos mais superficiais. Os argumentos do mestre Alceu são firmes e irrefutáveis. Tece uma série de elogios a Saga, romance detestado e vilipendiado por Álvaro Lins... É patente, em toda obra de Verissimo, a tensão entre os dois pólos do espírito ibérico: a alma ativa; a alma masculina e a alma feminina; o prosador e o poeta. Em Saga, irmanados pelo mesmo idealismo, coloca lado a lado os que têm horror à violência, e nela se jogam para suprimila, e os que lutam por amor da luta como finalidade em si (Chaves, 1972, p. 92). Conclui Alceu Amoroso Lima com estas palavras: “Em suma, a contradição humana bissexuada, em sua miséria e em sua grandeza, infinitamente maior que o machismo, em sua total vaidade viril”. Essa concepção da vida é que penetra toda a obra de Verissimo, tanto em seu aspecto universal como seu aspecto regional.(...) (...) E a obra de Erico Verissimo não só já foi muito traduzida, mas encontra eco fora de nossas fronteiras, porque revela uma galeria de tipos e uma concepção da vida que não se confinam entre fronteiras nem nacionais, nem muito menos regionais (Chaves, 1972, p. 95). Outra posição de crítica à produção de Erico Verissimo é a de Gilberto Mendonça Teles, em A retórica do silêncio: “Quando escrevemos sobre o romance O resto é silêncio, de Erico Verissimo, anotamos que, para Hamletr, todo o tempo da história flui como linguagem até o instante de sua morte e que Shakespeare enfatizou a literariedade de seu discurso fechando-o no tempo da linguagem, pois fora desta o resto era realmente silêncio. Assim também se dá com o romance de Erico Verissimo, com a diferença de que, neste, a redução ao silêncio é declaradamente anterior à narrativa, colocando de início o leitor num 120 processo consciente de recriação ou de co-produção literária. Para Erico, o título era um aviso: tudo isso não passa de ficção: para Shakespeare, afinal do discurso: the rest is silence. O livro de Erico ao mesmo tempo que se fecha no silêncio de sua linguagem, abre-se para outro nível de silêncio — o do leitor, na refabulação agora de sua leitura. Por isso dissemos: No arco do tempo que se estende entre a escritura e a leitura há toda uma retórica do silêncio, um sistema de signos em disponibilidade sobre uma estrutura de discurso quase sempre metonímico. E concluímos o artigo dizendo: É portanto, na eficácia retórica em fazer a língua instaurar-se no silêncio da linguagem que se empenham os grandes escritores de nossa época, tal como Tônio Santiago, digo, tal como Erico Verissimo”. (p. 11). Concluirei esta visão muito rápida à vol d’oiseau da crítica brasileira sobre Erico Verissimo, pesquisada em alguns livros apenas, com as palavras de Flávio Loureiro Chaves, que se irmanam com as de Alceu Amoroso Lima: “Ao final de O tempo e o vento; “Floriano conclui que a liberdade individual não é a alienação mas o compromisso e por isso inicia um romance diferente de todos os que escrevera a nomeação histórica de sua religião, de sua família e de si mesmo. Aí se cumpre o acordo entre a obra e o homem. Esta é a 121 síntese do itinerário de Erico Verissimo, autor e personagem deste drama no qual o romancista, embora desencantado do mundo presente, jamais deixou de observar o homem na sua humanidade e a vida como um convite à ação”. (Chaves, 1976, p. 154-55) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1−Chagas, Wilson. Mundo velho sem porteira. Porto Alegre, Movimento, 1985. 2−Chaves, Flávio Loureiro. Erico Verissimo: realismo e sociedade. Porto Alegre, Globo, 1976. 3−Chaves, Flávio Loureiro, org. O contador de histórias; 40 anos de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre, Globo, 1972. 4–Coelho, Nelly Novaes. Literatura e linguagens. Rio de Janeiro, José Olympio, 1974. 5–Lima, Alceu Amoroso. Introdução à literatura brasileira, Rio de Janeiro, Agir, 1956. 6–Lima, Alceu Amoroso. Estudos. 5ª séries. Rio de Janeiro, Agir, 1927. 7–Lins, Álvaro. Jornal de crítica. 1ª série. Rio de Janeiro. José Olympio, 1941. 8–Lins, Álvaro. Jornal de crítica. 2ª série. Rio de Janeiro, José Olympio, 1943. 122 9–Ornellas, Manoelito. O Rio Grande do Sul nas letras do Brasil; resenha histórica. Porto Alegre, PUCRS, 1965. 10–Picchio, Luciana Stegagno. La letteratura brasiliana. Firenze, Sansón; Milano Academia, 1972. 11–Teles, Gilberto M. Tristão de Athayde, teoria, crítica e história literária. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos, 1980. 123 VITORINO NEMÉSIO HOMEM CULTO — SEMEADOR DE CULTURA 5 O presente ensaio pretende abordar Vitorino Nemésio em duas dimensões: I) O homem culto; II) O semeador de cultura. I – O Homem Culto: No dia 19 de dezembro de 1901, nasceu Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva, filho de Vitorino Gomes da Silva e Dona Maria da Glória Mendes Pinheiro, na Praia da Vitória, Ilha Terceira, Açores. Desde logo afeiçoou-se ao clima e ao panorama das ilhas: as fortes rajadas dos vendavais, os frios invernais, as belezas da estação primaveril. Tudo lhe alimentava a alma, tudo lhe coloria as pupilas, mais tarde saberia restituir aos ilhéus e aos leitores em seus poemas, cantos e romances. Teve educação cristã na família e na comunidade local. Concluiu, em 1912, os estudos primários na Praia da Vitória. Em 1918 terminou o Curso geral nos Liceus de Angra e da Horta, na Ilha do Faial. Aos quinze anos estreava na publicação do volume de versos Canto Matinal, ao mesmo tempo estava na Direção da revista Estrela d’Alva. O pai, além de comerciante, era músico amador, soube transmitir ao filho o gosto das belas-artes. Aos dez anos já freqüentava as páginas de Camilo Castelo Branco, que lhe foram amoldando o estilo. Em 1918, assentou praça como voluntário, em Angra. No ano seguinte realizou a primeira viagem a Lisboa. Em 1920, na Terceira, viabilizou a publicação do conjunto de sonetos A Fala das Quatro Flores, e da peça de teatro Amor de Nunca Mais. 5 Trabalho apresentado no Congresso sobre Vitorino Nemésio, na Universidade dos Açores, na Ilha São Miguel. 124 No ano seguinte, iniciou-se no jornalismo profissional como repórter de A Pátria. Em outubro, instalou-se em Coimbra a fim de preparar o 7° ano liceal de Letras. Em 1922, publicou Nave Etérea; matriculou-se na Faculdade de Direito de Coimbra. Em 1923, faleceu o pai na Praia da Vitória. Foi contratado no cargo de revisor da Imprensa da Universidade, pelo Reitor Joaquim de Carvalho. Ao mesmo tempo prosseguiu o curso de Direito; matriculou-se, outrossim, no Curso de História e Geografia da Faculdade de Letras. Ao mesmo tempo colaborava nas revistas Bysancio e Conimbriga. Elemento integrante do Orfeão acadêmico percorreu as cidades de Salamanca, Valladolid e Madrid. Teve a felicidade de inaugurar encontros com Miguel de Unamuno e Ortega Y Gasset. Em 1924, publicou o volume de contos Paço do Milhafre, prefaciado por Afonso Lopes Vieira. Nesse ano abandonou o Direito e ingressou no curso de Filologia Românica. Esteve presente como co-fundador da revista Triptico, junto com Afonso Duarte, Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões. Formava-se assim o homem culto, o literato polivalente. Participava, do grupo Seara Nova, em que também publicava artigos e poemas. No dia 12 de fevereiro de 1926, realizou o enlace matrimonial, em Coimbra, com Dona Gabriela Monjardino. Em novembro do mesmo ano nasceulhe a filha Georgina. No ano seguinte publicou o romance Varanda de Pilatos. Em 1929, nasceu o segundo filho: Jorge. Iniciou a correspondência com o Reitor de Salamanca, Miguel de Unamuno. Em 1930, considerando-se injustiçado, transferiu-se para o Curso de Filologia Românica, de Lisboa. Colaborou com poemas nas revistas Presença n°27 e 29. Em julho nasceu o filho Manuel. Em 1931, concluiu com brilhantismo o Curso de Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa. Foi contratado de imediato para professor auxiliar de Literatura Italiana. Em dezembro nasceu a filha Ana Paula. 125 Em 1932, publicou volume de ensaios Sob os Signos de Agora. Começou a trabalhar intensamente no doutoramento que se concluirá em Coimbra em 1934, com a aprovação da tese A Mocidade de Herculano até à Volta do Exílio (2 volumes). Na mesma época publicava Alguns Aspectos da Prosa Medieval de Fernão Lopes: tradução de O Que é Vivo e Que é Morto na Filosofia de Hegel, de Benedetto Croce. Em 1935, exerceu a docência como Leitor na Universidade de Montpellier na categoria de chargé de cours. Instalou-se no Collège des Ecossais. Nessa época ocupou o tempo em leituras intensas de poetas franceses contemporâneos e na publicação de um livro de versos franceses La Voyelle Promise. Em 1936, enfrentou o concurso para professor extraordinário, com a tese Relações Francesas do Romantismo Português. A convite do Prof. Georges Le Gentil foi a Paris onde manteve contatos com Jules Supervielle e Valéry Larbaud. Publicou no mesmo ano a biografia de Isabel de Aragão, Rainha Santa. Em 1937, fundou e dirigiu até 1940 a Revista de Portugal, representou tácita reação ao grupismo da Presença (1927-1940). Aconteceu, também, a publicação do livro de novelas A Casa Fechada. 1938 foi assinalado com a publicação dos poemas O Bicho Harmonioso e a coletânea de ensaios Etudes Portugaises. Em 1939, passou a lecionar na Universidade de Bruxelas, primeiro como maître de conférences e depois como professeur agréé. Fato interessante: aí iniciou nos estudos portugueses a sua futura assistente e sucessora de cátedra na Universidade de Lisboa, Andrée Crabbé Rocha, esposa de Adolfo Rocha, ou melhor conhecido como Miguel Torga. Em 1940, voltou a Portugal, aprovado, em concurso de Filologia Românica, Professor Catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 126 Publicou, no mesmo ano o n°10 da Revista de Portugal, onde se encontra o conjunto de poemas Eu Comovido a Oeste. Ao percorrer o Escorço Bibliográfico, afirma-se “Os anos quarenta foram assinalados pelo aparecimento de obras ainda mais decisivas”. Em 1944, apareceu o romance Mau Tempo no Canal, obra-prima do autor e “uma das indiscutíveis obras-primas de toda a ficção portuguesa”. Publicou ainda em 1949: O Mistério do Paço do Milhafre, reedição muito renovada (1949); a novela Quatro Prisões debaixo Das Armas. No mesmo decênio realizou alguns dos melhores estudos críticos sobre os clássicos da literatura: Gil Vicente, Floresta de Enganos, 1941; Gomes Leal, Poesias escolhidas, 1942; Bocage, Sonetos e poesias várias, 1943; Moniz Barreto, Ensaios de Crítica, 1944. Em 1950, elaborou Festa Redonda, rápido e sapiente conjunto de décimas e cantigas oferecidas ao povo da Ilha Terceira. A sua produção literária se avolumou nas décadas subseqüentes: Nem toda a Noite a Vida, 1953; O Segredo de Ouro Preto e outros caminhos, O Pão e a Culpa, 1955; Corsário das Ilhas, 1956; Retrato do Semeador e Conhecimento de Poesia, 1958; O Verbo e a Morte, O cavalo Encantado, 1963; Andamento Hollandês e Poemas Graves, e Romance, Existência e Visão do Mundo, 1964; Viagens ao Pé da Porta, 1965; Caatinga e Terra Caída, 1968; La Génération Portugaise de 1870/1971; Jornal do Observador, 1974; Era do Átomo/ Crise do Homem, 1976. O homem, o literato, o professor, numa palavra o Homem Culto, teve seus trabalhos reconhecidos por diversos organismos de projeção nacional e internacional: desde 1963, sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa, que em 1944, lhe outorgou o Prêmio Ricardo Malheiros, agraciado, com diversas condecorações portuguesas, francesas e brasileiras; distinguido com o grau de doutor honoris causa pela Universidade de Montpellier, 1965; Prêmio International Montaigne, 1974. 127 Ao contemplar a obra imensa e diversificada de Vitorino Nemésio poder-se-ia pensar em pessoa dispersa, longe disso, dos riscos da superficialidade soube proteger-se por obra e graça da poesia. Na última lição que proferiu, em 9 de dezembro de 1971, no grande anfiteatro da Universidade de Lisboa, assim se despedia da cátedra, dos alunos e dos colegas: “Toda a vida estudei de tudo e o mais que podia para o que desse e viesse. Não me preparava dia-a-dia para amanhã e depois ou racionando, como a formiga, do verão propício ao inverno rigoroso. Mas talvez não fosse apenas leviano, como a cigarra, pois nunca tive de dançar no inverno e cantei sempre”. O professor em Montpellier, em Bruxelas, em Lisboa; em suas viagens ao Brasil, soube ministrar aulas magistrais nas universidades do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Porto Alegre e do Recife. O pai de família que soube viver ministrando sábia educação aos quatro filhos, guiando-os no caminho do saber e da cultura como também na trilha do Evangelho de Jesus Cristo. O crítico e o historiador soube perlustrar e estudar com profundidade a Literatura Portuguesa dos primeiros séculos como também dos autores do romantismo e modernismo. Numa palavra, Vitorino Nemésio foi o homem culto de Portugal nos três memoráveis quartéis do século XX. David Mourão Ferreira encerra o Escorço biobibliográfico, com as palavras: “Com Vitorino Nemésio desaparecia, além de um humanista incomparável, talvez o mais dotado romancista que tivemos depois de Eça de Queirós e, 128 sem dúvida, o maior poeta que entre nós viveu, depois de Fernando Pessoa”. II – O Semeador de Cultura “O semeador saiu a semear sua semente”, assim começa o relato da parábola, no Evangelho de Lucas (Lc. 8-5). Vitorino Nemésio começou cedo a jornada que terminaria muito tempo depois ou que ainda não terminou pois a semeadura estar-se-à realizando enquanto existir a Língua Portuguesa, enquanto um texto nemesiano fôr lido... Em 1958, publicou o poema Retrato de Semeador, em que se pode observar os traços que o caracterizam e o identificam. Pode-se acompanhar a trajetória do Semeador através dos anos dedicados à poesia, à cátedra e às viagens. Dai decorrem os títulos: o poeta, o narrador, o professor e o viajor-conferencista. 1 – O Poeta Ainda adolescente saiu a semear a boa nova da poesia em Canto Matinal e Nave Etérea. Conforme o estudo de António José Barreiros, a vasta obra poética pode dividir-se em dois ciclos balizados por Nem Toda a Noite a Vida. No primeiro canta as saudades da infância na Ilha; no segundo as suas preocupações filosóficas e religiosas, o choque frontal com a Graça. No prefácio a Poesia (1935-1940): “A obra Eu Comovido a Oeste desenha o que se possa chamar o meu pensamento poético com os temas coerentes e reiterados do sentido da existência pela representação: o mundo da infância no microcosmo da Ilha; o isolamento no seio de uma comunidade patriarcal; a reelação de Deus e do 129 próximo na vizinhança e na família, do destino no amor e na promessa da morte”. (p. 19) Ponto saliente na semeadura de Nemésio é a preocupação religiosa e filosófica, muito presente no livro O Pão e a Culpa, publicado em 1955, em que se mostra profundamente tocado pela graça. O circunstancial, escreve António José Barreiras, e o etnográfico quase desaparecem e deixam o Poeta, uma vez por outra sob a influência de textos bíblicos e litúrgicos, a monologar com Deus, a invocar o Espírito Santo e os Anjos (devoções da infância), a segredar com os seus mortos, a cochichar com a própria alma. Nos poemas de O Pão e a Culpa, o Poeta examina a sua consciência, toma atitudes penitenciais, pois sente culpa e remorso, arrepende-se e confia. O Verbo e a Morte lembra as preocupações máximas da filosofia existencialista de caráter cristão. Em Limite de Idade, resultado de leitura perseverante de obras científicas, descobre-se forte densidade de imagens colhidas no campo lexical da ciência e da tecnologia moderna. No prefácio escrito em 1961 assim se refere ao poema em francês: “Para depor sobre a autenticidade das circunstâncias que me levaram a poetar em francês precisaria de um ensaio à parte, em que alegasse o relativo domínio de ofício de uma língua românica que para nós, portugueses, é segundo veículo de cultura, e uma situação existencial em ambiente francês que pôde reduzir ao domínio o artifício coloquial de semelhante recurso estilístico. Contento-me por agora em assinalar o símbolo-chave de Voyelle Promisse, isto é: 130 como se à língua nativa, que a vogal portuguesa simbolize, uma vogal alheia lhe viesse, de surcroit!” (p. 20) Outro traço importante na poesia de Vitorino Nemésio, é sem dúvida, o erótico e o sensual como escreve Oscar Lopes: “Parece-nos claro psicogênese dos que isto investimentos se relaciona, afetivos com na a sexualidade agressivamente supercompensadora de La Voyelle Promise, sobretudo em “Le Gazon Violé”; com o auto-sarcasmo à inibição amorosa, bem sensível, por exemplo, em “A vaga verde” e “O Abuso da Harmonia”, ambos de O Bicho Harmonioso”. (Lopes, p. 782) Assim vê-se quanto semeou de cultura o poeta e ainda hoje os seus versos germinam, crescem, reflorescem e dão abundantes colheitas. 2 – O Narrador A sementeira é grande e primorosa nos contos, novelas e romances. O Mistério do Paço do Milhafre, de 1949, é o único volume homogêneo de contos ilhéus. Óscar Lopes ressalta o valor específico de dois: “Os Malhados”, p. 50 e “O Espelho da Morte”, p.14. São alguns dos motivos condutores do epos de Nemésio. 131 Outro conto curioso Varanda de Pilatos, narrativa de costumes e de aprendizagem, trata de amores adolescentes e da paisagem natural e social da Terceira. As novelas: A Casa Fechada, O Tubarão e Negócio de Pomba desenham o panorama social de uma população insular. Mau Tempo no Canal é considerada a obra-prima de Nemésio. Romance complexo e denso, corre do princípio ao fim estruturado em dois planos: o social, que analisa a paisagem e toda a população açoreana do primeiro quartel do século XX, e o psicológico, que expõe o conflito amoroso vivido nesse espaço e nesse tempo pela protagonista principal, Margarida Clark Dulmo. No discurso ficcional, Vitorino Nemésio soube colocar muita vida, muita experiência vivida na Ilha Terceira e em Portugal e alhures na França, Bélgica e outros recantos da Europa. Nas páginas de ficção retrata vivências daqueles tempos e da hora presente, quais sementes germinam em cada leitor. 3 – O Professor A atividade de semeador de cultura se notabilizou nas salas de aula das Universidades de Lisboa, de Coimbra, de Montpellier, de Bruxelas e das Universidades do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Recife e de Porto Alegre. Como era belo e entusiasta vê-lo e sobretudo escutá-lo em suas exposições de matéria da historiografia literária, da crítica, da estilística. Em todas as aulas, preleções ou conferências sabia dar de si, de seu profundo saber, de sua contagiante cultura. Transmitir cultura é saber despertar nos ouvintes o desejo e a vontade de se cultivarem, de se aperfeiçoarem, de dotarem a sua pessoa de outras atitudes mais voltadas à valorização do interior e do espírito. Vitorino Nemésio sabia manejar com maestria a língua portuguesapadrão e as suas formas dialetais açoreana e brasileira, por isso era tão apreciado em suas comunicações e palestras. 132 António José Barreiros acentua: “Rondando ora o grave ora o anedótico, esta linguagem é de uma comunicabilidade transbordante de simpatia. Num jeito muito seu de oralidade, quebra a monotonia do ritmo pendular da prosódia, que desenvolve em conscientes assimetrias e condimenta de vez em quando com trocadilhos e jogos de paronímia ao gosto neobarroco”. (p. 476) O professor Fernando Cristóvão, em Colóquio/Letras de março de 1979, ao celebrar o primeiro aniversário de falecimento de Vitorino Nemésio compôs o artigo Nemésio: Uma Perspectiva Crítica do Brasil. Assim se expressa: “Professor e escritor mais por imperativo existencial que profissional, perscrutador e artífice da palavra, foi “em couro de verbo” que naturalmente traduziu o seu contributo para a aproximação cultural e Iiterária dos dois irmãos”. (p. 23) Mais adiante, destaca-se o parágrafo: “A critica literária de temática brasileira é em Nemésio episódica, e sempre ligada, no teor e na circunstância, à uma atividade docente. Volta-se mais para os 133 poetas que para os prosadores demonstrando, até nisso, a determinante maior da sua condição de criador literário, e diversifica-se em três linhas principais: na da seletividade das antologias, na das análises de compreensão e nas crônicas jornalísticas”. (p. 26) O eminente ensaísta Eduardo Lourenço publicou excelente artigo sob o título — Nemésio: clown de Deus, uma glosa lírica a Limite de Idade. Toma-se, por exemplo, o parágrafo em que se refere ao domínio das novas tecnologias: “No mundo da informática e dos robots próximos que lhe fornecem “imagens” novas mas não mais insólitas do que sempre foram as suas, o poeta de Limite de Idade conserva e reforça o cordão umbilical que o liga não apenas à terra perdida e viva das gerações, mas à pura e viva infância de ilhéu outrora e agora feliz de se rememorar boieiro junqueirianamente morto como seu bisavô: Não negarei poesia de antes com poesia de depois Mas sim direi com moléculas. Fosse eu niño dos bois! Sim, o menino da aguilhada Do meu bisavô boieiro: Dono de bois, 134 Dono de bois... (p. 20 de Colóquio/Letras n° 48). E ao terminar o artigo Lourenço escreve: “É nesta íntima sístole e diástole de angústia e humor que o poeta de Eu, Comovido a Oeste joga na praça da vida e de Deus o seu destino de poeta metafísico que nunca se tomou a sério senão sob a máscara burlesca da contorção verbal ou da contrição do pecador. Sem máscara aparente pode interrogar a esfinge com a ressonância do verbo heideggeriano: Quando voltará o sentido à casa do Homem? Quando chegará a Loucura à árvore do Símio E o Siso ao Equinoderme Cucumária abissal esmagada nas ondas? (Ibidem p. 22) Pode-se concluir estas poucas observações sobre o professor, sobre o conferencista sobre o semeador de cultura, com as palavras de Jacinto do Prado Coelho, escritas no Colóquio/Letras nº 42, de março de 1978 poucas semanas após o falecimento: “Em Nemésio coexistem, defrontam-se, o eterno saudoso das ilhas a Oeste-infância, família, antepassados, povo que trabalha, montanhas, furnas, o mar, o riso, a distância — e o vagamento de olhos curiosos bem abertos, insaciáveis (“Minha mãezinha 135 ao longe, e eu nato andante”), cosmopolita apesar de castiço, poeta francês em França ou na Bélgica, poeta brasileiro no Brasil, com receptividade e poder mimético admiráveis, escritor europeu (Prêmio Montaigne por ato de justiça que tardava) que é preciso ler na intertextualidade mais ampla, num quadro de referência onde, por exemplo, se encontram um Pascal e um Unamuno, um Rilke e um Ortega, um Valéry e um Heidegger não faltando entre os portugueses Camões e Pessoa, claro, e Nobre, Pessanha, Raul Brandão, Pascoaes”. (p. 5) NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 1 – Nemésio, Vitorino. A Mocidade de Herculano, 1° vol. Lisboa: Bertrand, 1978. _ Corsário das Ilhas, Bertrand, Lisboa, 1983. _ Jornal do Observador, Verbo, Lisboa, 1974. _ Limite de Idade, Editora Estúdios Cor, Lisboa, 1/d _ O campo de São Paulo, A Campanha de Jesus e o Plano Português do Brasil, Edições Panorama, Lisboa, 1971. _ Poesia, Lisboa: Bertrand, 1986. _ Sapateia Açoriana, Andamento Holandês e Outros Poemas. Lisboa: Arcádia, 1976. 2 – Barreiros, António José. História da Literatura Portuguesa, Vol. 2° - 8ª ed. Séc. XIX e XX. Lisboa: 1979. 3 – Coelho, Jacinto do Prado. Nemésio uma espécie de humildade, in Colóquio Letras, n° 42, março 1978. 136 4 – Cristóvão, Fernando. Nemésio: uma perspectiva crítica do Brasil, in Colóquio/Letras, n° 48, março 1979. 5 – Garcia, José Martins. O Drama Camiliano de Vitorino Nemésio, in Colóquio/Letras, n° 119, janeiro/março 1991. 6 – Langendorff, Mathias. Vivência e Poesia em Andamento Holandês, in Colóquio/Letras n° 135/136, janeiro/junho 1995. 7 – Lopes, Óscar. Entre Fialho e Nemésio, Imprensa Nacional. Lisboa: 1987. 8 – Lourenço, Eduardo. Nemésio Clown de Deus, in Colóquio/Letras, n° 48, março 1979. 9 – Pires, António Machado. Nemésio e os Açores, in Colóquio/Letras n° 48, março 1979. 137 GARRETT IRRADIADOR DE CULTURA 6 Serão apresentados, nesta comunicação, três aspectos: Garret — o homem culto; Garrett — renovador da cultura pelo movimento do Romantismo; Garrett — irradiador de cultura pelas novas gerações em Portugal, no Brasil e noutros países de Língua Portuguesa. 1 – Garrett — O Homem Culto Nasceu no Porto a 4 de fevereiro de 1799, filho de Antonio Bernardo da Silva Garrett, de família de origem irlandesa, emigrara à Espanha, donde foi a Portugal no séquito da rainha D. Maria Ana Vitória, esposa do Rei Dom José I; sendo Ana Augusta de Almeida Leitão, mãe de João Batista. Latino Coelho assim o apresenta: “Incitado pelo talento, que já como que se lhe sazonava na idade pueril, e ajudado por uma esmerada educação, o poeta insigne anunciava desde os primeiros anos o vigor de uma inteligência excepcional e de uma precoce imaginação, que haviam de assegurar-lhe um lugar de honra no primeiro plano dos talentos nacionais, e dá-lo como rival a muitas das mais prediletas das musas nas literaturas estrangeiras”. (p. 96-97) 6 Tema escrito para o Congresso na Universidade de Coimbra, em 2000. 138 Por ocasião da invasão francesa a família transferiu-se para os Açores, na Ilha Terceira. A Providência colocou na estrada do menino João Batista, Dom Alexandre da Sagrada Família, bispo resignatário de Malaca e seu tio paterno. O respeitável prelado conheceu no sobrinho a afeição natural aos estudos clássicos das línguas grega e latina e respectivas literaturas. Ao mesmo tempo foi-lhe amadurecendo uma equívoca vocação ao sacerdócio, recebendo, adolescente ainda, as ordens menores. Em 1816, aos 17 anos decidiu ir a Coimbra e matricular-se no Curso Jurídico. Após um ano de estudo de Direito, passou aos estudos do curso matemático e filosófico. Dessa forma aumentava-lhe a formação cultural, regressando depois à Faculdade de Direito, onde obteve o diploma de bacharel. Revelou-se desde cedo o talento poético compondo e publicando uma elegia por ocasião do falecimento do catedrático Dr. Fortuna. A cultura ia-se sedimentando pelos estudos, pelas aulas na Universidade, pelas intensas e vastas leituras das obras antigas e modernas da modelar Biblioteca. Recebera a herança preciosa dos vates da Arcádia com os dois expoentes: Filinto Elísio e Bocage que o tio lhe dera a conhecer e a praticar desde os primeiros alvores da adolescência. Em 1820 concluiu com brilhantismo o Curso de Direito, ingressando a seguir como oficial na Secretaria dos Negócios do Reino e logo após chefe da repartição de Instrução Pública. No mesmo ano, Portugal vibrou com a Revolução. Garrett aproveita o momento para elaborar e publicar a tragédia Catão, onde glosou o terna “Liberdade ou morte”. Em 1821, publicou O Retrato de Vênus, história da pintura, em versos. José Agostinho de Macedo denunciou-o como ímpio e escandaloso. Levado ao Tribunal, Garrett soube defender-se e defender a sua criatura com brilho e exaltação. Em julho de 1823, o golpe de Estado, denominado Vila-Francada, aboliu a Constituição de 1822, embarcou para a Inglaterra com a jovem esposa 139 Luísa Midosi, recebeu acolhida na intimidade de uma família burguesa. Desse exílio, Garrett tirou o máximo proveito no estudo e apreensão da cultura inglesa e a vivência do movimento romântico, que florescia nas terras de Albion. Saiu da Inglaterra para refugiar-se no Havre, França, onde exerceu as funções de correspondente comercial numa filial da Casa Lafitte. Naquele exílio encontrou tempo para escrever o Camões, 1825 e a D. Branca, 1826. Em 1826, após a morte de Dom João VI e da outorga da Carta Constitucional por Dom Pedro IV, retornou a Portugal; participou intensamente na efervescência política compondo para as eleições a Carta de guia para eleitores, fundando, em colaboração o jornal O Português, e sozinho O Cronista, (1826). Em junho, 1825, Garrett, saiu de novo para a Inglaterra. Envolvido na política, reservava sempre o tempo para a leitura e para a produção literária. Em 1829, ao chegar à Inglaterra, a jovem rainha Dona Maria, escreveu Da Educação, (1829, 10 volume). Interessava-se pelo cancioneiro popular e publicava a Aduzinda (1826), nele inspirado. Incorporou-se na expedição de Dom Pedro, intervalando o serviço militar com o de gabinete; trabalhou sob as ordens de Mouzinho da Silveira na redação de decretos revolucionários. Durante o cerco do Porto, encontrou tempo para iniciar a escrita de O Arco de Sant’Ana. Sob o novo governo voltou à diplomacia como Cônsul-Geral em Bruxelas. Esta quarta saída de Portugal oportunizou-lhe o estudo e a prática na língua e literatura alemã. Passos Manuel, líder do movimento renovador, concebeu largas reformas culturais, chamou Garrett para executá-las. A proposta continha três pontos importantes: 1. construção de um edifício para o atual teatro de Dona Maria II (em Lisboa); 2. planejamento e execução de uma escola para formar artistas e o Conservatório; 3. constituição de um repertório dramático português. 140 Esses trabalhos, o moveram a reatar, em moldes românticos, a produção teatral, interrompida desde o Catão; escreveu o Auto de Gil Vicente, em 1838; Dona Filipa de Vilhena, em 1840; O Alfageme de Santarém, em 1842. Homem de atividades múltiplas, sociais, políticas, partidárias, administrativas e literárias, soube sempre alimentar a cultura pessoal. Ao lado de tudo isso, acontecia o malogro do casamento com a jovem Luísa Midosi; em 1837, entrou em sua vida Adelaide Pastor, que morreu aos 20 anos, deixando-lhe uma filha. Em 1844 travou conhecimento com a inspiradora das Folhas Caídas, a mulher do Visconde da Luz, Rosa Montufar Barreiros. A produção literária refloresce rapidamente com Frei Luís de Sousa, 1844; As Flores sem Fruto, 1845; As Viagens na Minha Terra, 1846. Pelos méritos de sua vida cultural e seus serviços prestados ao país é nomeado Visconde, par do Reino em 1851. Aceitou em 1852 o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros. Por seu título nobiliárquico foi alvo de acirradas críticas e oposições. No prefácio ao 2° volume dos Versos procurou defender-se alegando que nunca professara “as hipócritas doutrinas do nivelamento social”. Em 1853, incompatibilizou-se com o governo, voltou à solidão das letras, mergulhando num romance Helena, deixado incompleto. Morreu solitário a 9/12/1854, na casa que mobiliara com mil cuidados de artista. Em História da Literatura Portuguesa, António José Saraiva e Oscar Lopes apresentam a figura culta de Garrett: “A personalidade de Almeida Garrett, que seria injusto sublinhar nos aspectos de dandy vaidoso e volúvel, não reúne todo o seu interesse nas suas criações literárias, mesmo incluindo nelas o orador parlamentar, o teorizador de uma democratização cultural, o ensaísta da história da arte e da literatura 141 nacional. Como agente relevante da revolução liberal, particularmente das reformas de Mouzinho e da breve governação setembrista, que tão grande papel desempenhou na instrução pública e nos primeiros ensaios do capitalismo industrial, Garrett apresenta importantes facetas pessoais de pedagogo, político, jornalista e tribuno político, legislador, jurista e fundador de instituições culturais”. João Gaspar Simões descreve a cultura de Garrett: “A sua formação mental reveste-se desde as primeiras letras: da língua latina que aprende na aula regia, da língua francesa, em que se exercita no regaço da mãe, da língua espanhola castiçamente falada pelo pai, e depois a língua grega, língua inglesa, língua italiana e finalmente a língua alemã — era a formação humanista”. (Simões, p. 10) Nestas linhas tem-se um pequeno quadro de João Batista Leitão Almeida Garrett, homem de cultura profunda e vasta que soube fazer admirável síntese da tradição cultural greco-latina, com a Idade Média, com o enciclopedismo para apresentar as múltiplas facetas do movimento romântico que modificou o mundo das artes, das ciências, da filosofia e da religião — gerando nova cultura. 142 2. Garrett — Renovador da Cultura O trabalho fulgurante de João Batista Leitão Almeida Garrett repercutiu fortemente na juventude universitária e literária da época. O ardor revolucionário, a busca de renovações sociais e políticas, a atração, pelo novo movimento literário fizeram numerosos seguidores. Conscientemente em a ode À Pátria, da Lírica de João Mínimo é declarado o Alceu da Revolução de Vinte (Monteiro, 165). Ainda nos bancos acadêmicos, criou e representou Xerxes, aplaudida por toda a Universidade. Em 1820, na Sala dos Capelos, com paladino ardor recitou entusiasta o poema “Ao Corpo Acadêmico”, do qual destacam-se os versos: “Sejamos sempre heróis e sempre livres; Sejamos, como sempre Portugueses; Vivamos livres, ou morramos homens”. Concluiu num frêmito de exaltação: “Mas tenho um coração que é lusitano; Mas tenho um coração que é livre, é de homem”. (ibidem, p. 191) Vai pregando o humanismo naturista, fruto dos conceitos newtonianos de sua ideologia: “O que é o mundo físico é o mundo moral: as leis materiais das atrações, das afinidades, da gravitação e do movimento correspondem exatamente às morais do interesse, da utilidade e da necessidade. O homem físico e o homem moral são o mesmo homem, e tanto 143 pesa o seu entendimento para o centro de seus interesses, quanto pesa o seu corpo para o do planeta que ele habita. Assim é o indivíduo homem e assim é o coletivo sociedade”. (Monteiro, p. 226-227) Em seu Retrato de Vênus procura explicitar a teoria da mimese da natureza, Vênus, seria símbolo. Em sua defesa houve declarações de liberdade individual, base do movimento romântico, caminho aberto para tantos outros. Eis algumas expressões que explicitam a afirmação: “A natureza me deu a propriedade do meu coração e do meu pensar; constituição e legítima as sagradas me bases confirmaram duma aquele inauferíveI direito. Não faço aqui minha profissão de fé... porque não quero”. (Monteiro, p. 234-235). O Retrato de Vênus como livro e como afirmação de personalidade e de liberdade de atitudes serviu como modelo a ser seguido pela geração de Garrett e pelas gerações subseqüentes. O jovem escritor João Batista tomou as lições de Chateaubriand. Haja vista como o fragmento dramático, Atala, as cenas garrettianas são freqüentemente meras traduções do mestre francês. A grande especialista de Garrett, Doutora Ofélia Milheiro Caldas Paiva Monteiro assim concluiu o capitulo do “Santo furor” de um humanismo naturista: 144 “A experiência da liberdade e o seu caminhar difícil na sociedade portuguesa devem assim ter representado no humanismo do jovem Garrett um marco capital. Na sua confiança entusiasta julgara fácil mudar estruturas e mentalidades sedimentadas ao longo dos séculos, crera na bondade desse Homem natural que a liberdade acordara no Homem histórico [...].” (p. 302) João Gaspar Simões escreve: “Garrett sente-se na obrigação de fazer para Portugal o que os demais românticos levavam a cabo nos seus países. Quem conservava as veras tradições poéticas portuguesas era a memória milenar do povo”. (Simões, p. 64). Latino Coelho, na carta-prefácio, pondera: “Todos os grandes românticos compartilharam da mesma psique teatral, e todos eles, de Chateaubriand a Lamartine, e de Bryon a Victor Hugo, avançaram sobre o proscênio para receberem as aclamações da turba”. (p. 15) Soube desbravar sem ter modelo anterior a arte teatral, não lhe faltava talento ou imaginação, precisou buscar o método certo e seguro. Assim surgiu a obra admirável o Catão. Compôs a tragédia para satisfazer às instâncias de 145 uma sociedade de pessoas instruídas e notáveis pela sua posição e pelos seus talentos — drama grandioso pelo conteúdo de idéias republicanas. John Addison, escritor inglês apreciava a obra de Garrett: “O seu Catão é o maior personagem, e a sua tragédia a mais bela de quantas jamais se deram em nenhum teatro do mundo” (Latino Coelho, p. 200). Inovador por excelência, “por temperamento e feito mental era, de fato, um homem de palco. A teatralidade estava-Ihe no sangue. E é esta outra das contradições de seu destino e do destino da maior parte dos românticos”. (Latino Coelho, p. 85). Crabbé Rocha considera na história do teatro nacional e, relativamente à época romântica, equivalente ao prólogo de Victor Hugo ao falhado Cromwell, tal foi o Auto de Gil Vicente, de Garrett. Renovou o teatro tanto nos gêneros como nos temas, buscados nas lendas e histórias da Idade Média. O movimento arcádico deixara vários gêneros literários, em especial o teatro sem maiores representações. Filinto Elísio e Bocage continuadores da Arcádia, revolucionada pelas idéias do século em que viviam, deixaram valiosos monumentos nas letras, sem vivificar ao menos o teatro nacional que continuou com eles e depois deles a mesma vida valetudinária e artificial no dizer de Latino Coelho. Francisco Manuel era mais erudito que poeta. Faltava-lhe aquela mais preciosa e mais rara porção da fantasia que engendra esboços dos mais grandiosos quadros literários. Muito diferente foi Garrett destinado a regenerar as letras pátrias, os seus projetos deveriam ser gigantes desde o alvorecer de sua imaginação. 146 A obra Frei Luis de Souza, composta em 1844 constituiu-se a verdadeira coroa dramática. Outra inovação de Garrett, após ter trabalhado e produzido Adozinda, foi o Romanceiro e Cancioneiro Geral, em 1943. Exercitou a sátira discreta e o purismo lingüístico no romance O Arco de Sant ‘Ana. Na mesma década escreveu e publicou o belíssimo livro Viagens na Minha Terra, talvez seja a mais pensada e mais rigorosamente escrita de suas obras. Latino Coelho referindo-se a esse período escreve: “O teatro do poeta enobreceu-se com nova composição, a Sobrinha do Marquês, em que a formosura do diálogo se alia à justa apreciação de um grande vulto histórico, o de Pombal. A voz do poeta solta-se, pela última vez, nas Folhas Caídas, mimosa coleção de poesias líricas, de saudosa amenidade e de sabor original inimitável”. (Latino Coelho, p. 220-221). Garrett inovou na prática do movimento romântico, nos poemas líricos, nos aspectos folclóricos e populares elevados aos cimos da arte, os vários e fecundos gêneros do teatro, em especial, os dramas e as sátiras. É o renovador da cultura do século XIX, projetando-se no século XX. 3. Garrett — Irradiador de Cultura Irradiador de cultura pelas novas gerações em Portugal, no Brasil e noutros países lusófonos. A densidade cultural, da imensa obra de Garrett devia irradiar-se no seu tempo, apesar das oposições de invejosos e detratores. 147 Garrett recebera as influências dos românticos ingleses, alemães e franceses, trabalhou-as com mãos e espírito de artista inovador. Haja vista, o que o escritor declara: “O que é preciso é estudar as nossas primitivas fontes poéticas, os romances em versos e as legendas em prosa, as fábulas e crenças velhas, as costumeiras e as superstições antigas. O tom e o espírito verdadeiro português, esse é forçoso estudá-lo no grande livro nacional que é o povo e as suas tradições e as suas virtudes e os seus vícios e os seus erros”. (Saraiva e Lopes, p. 698). Quantos escritores após ele tomaram o caminho dos alfarrábios préhistóricos para se abeberarem e darem vida aos romances, dramas e poemas. Alexandre Herculano (28/03/1810 — 13/09/1877) andou por veredas próprias, embora sofresse influência de Garrett, A Harpa do Crente tem o lirismo maravilhoso, publicado em 1838. Livro romântico, sentimentalmente, repleto de religiosidade popular bem ao gosto da época. Herculano notabilizouse no romance histórico nas veredas de Walter Scott, Garrett fizera algo de semelhante nos poemas de Camões, Dona Branca e outros. Notáveis foram Monge de Sister, Eurico o Presbítero, buscados nas lendas e histórias da Idade Média dos conventos e das aventuras guerreiras contra o invasor. Tanto Garrett quanto Herculano têm a força do romantismo na exaltação e valorização do seu pais, do Portugal que emergia para o século da ciência. Garrett teve momentos importantes em sua afirmação política e social, Herculano teve as famosas polêmicas com a Igreja Católica, em nome de suas idéias altamente liberais. 148 Antonio Feliciano de Castilho (21/11/1800 - 18/06/1875), assimila a métrica, o estilo de Camões e D. Branca, e ensaia as primeiras composições poéticas, sob os títulos A Noite do Castelo e Ciúmes do Bardo, publicadas em 1836. Publicou, outrossim, os Solaus, em 1839. Outros poetas, dramaturgos e escritores românticos tiveram obras de somenos importância. A irradiação cultural de Garrett projeta-se para dentro do realismo e do naturalismo. As figuras importantes do romance têm a marca de Viagens na Minha Terra ou do Arco de Sant ‘Ana. Júlio Dinis surge em 1866 com As Pupilas do Senhor Reitor, no Jornal do Porto, seguindo-se outros romances com o sabor da Morgadinha dos Canaviais. A obra de Camilo Castelo Branco colheu as influências de Garrett, em grande número dos 263 romances ou novelas que escreveu. Eça de Queirós o grande romancista e escritor não se esquivou das avançadas e brilhantes iniciativas de Garrett no campo da ficção realista quer no Primo Basílio, quer no Crime do Padre Amaro, especialmente em A Cidade e as Serras. A tese das influências ou da irradiação das idéias, dos moldes ficcionais, das temáticas de Almeida Garrett é imensa e vasta, merece profundas e importantes investigações literárias. O tema é inesgotável, impossível de avaliá-lo em suas dimensões na produção literária dos romancistas brasileiros no século XIX partindo dos Suspiros Poéticos e Saudades até as cogitações e vivências de Dom Casmurro. Nos 200 anos de João Batista Leitão Almeida Garrett celebramos uma pessoa culta, renovadora da cultura e irradiadora da verdadeira Cultura. 149 TRISTÃO DE ATHAYDE E A LITERATURA NO RIO GRANDE DO SUL 7 Na copiosa obra crítica de Tristão de Athayde de 1919 até 1983, englobando 64 anos de trabalho, com numerosos livros e números e permanentes artigos em jornais e revistas, há um lugar especial para os homens de letras do Rio Grande do Sul. Não direi lugar privilegiado, mas um lugar bem definido e destacado. Neste escorço crítico-histórico e literário abordaremos os aspectos: 1 – Carlos Dante de Moraes apresenta Tristão de Athayde 2 – Tristão de Athayde e o homem do Sul 3 – Tristão de Athayde e os escritores do século XIX 4 – Tristão de Athayde e os escritores do século XX 5 – Conclusão 1. Carlos Dante de Moraes e Tristão de Athayde Em seu estudo “Algumas Reflexões à Margem de Um Itinerário”, no livro Tristão de Athayde e outros estudos, o notável ensaísta e crítico literário Carlos Dante de Moraes, recentemente falecido, apresenta-nos um estudo sobre Tristão de Athayde datado de 1937. No início do livro, faz algumas considerações sobre o comportamento de Tristão de Athayde ao escrever sobre a pessoa e a obra Afonso Arinos sob o título “A Crítica de Hoje” (prefácio Afonso Arinos, Rio, Anuário do Brasil, 1922). Não é aí que se vê o verdadeiro crítico, o verdadeiro escritor, pois “Se, em última análise o Afonso Arinos é estudo perfeito, também não exclui frieza, nem a monotonia, pois encobre uma insatisfação intelectual que bem pode passar despercebida” (Carlos Dante de Moraes 1937, p. 8). 7 Publicado em Letras de Hoje, nº 55, março de 1984. 150 A situação do após-guerra. Em algumas palavras de um curto parágrafo temos a imagem do crítico, orientador do modernismo brasileiro: “Despertara nos inovadores o gosto nativo e sumarento da realidade. Ansiavam por viver das coisas nuas e ásperas e queriam esquadrinhar, novos bandeirantes, todos os recantos da terra e da nação... Neste passo é que surge o verdadeiro Tristão de Athayde. Ele é por esse tempo, a inteligência crítica atenta a todos os quadrantes em cada momento suscitada e estimulada. Sob a aparência de um puro cerebral, estua-lhe um potencial afetivo que pode levar até à paixão e ao deslumbramento. (Carlos Dante de Moraes, 1937, p. 11-2). “Voltado para o mundo exterior, se conserva sempre, desde a primeira hora, refratário aos contágios fáceis. Em face de si mesmo, sem ser propriamente introspectivo. Em face do universo despregar a atenção da nacionalidade.” (p. 12). Alguns tópicos da personalidade do crítico vêm assim descritos: “O pensamento de Tristão de Athayde segue direção muito diversa, (dos inovadores e dos reformadores 151 modernistas) ainda mesmo nas duas primeiras séries dos Estudos, onde o crítico atinge a sua plenitude. Nem de leve conhece a sensualidade de um Ortega Y Gasset, aquela que, ao mirar e remirar as idéias vai descobrindo gulosamente as suas perspectivas. Tudo nele tende a se explicitar a se definir imediatamente. O crítico e o ensaísta já preludiam o homem de ação”. (p. 20). “Outra de suas características é fazer ressaltar a cada passo a riqueza do aspecto do objeto estudado, por ele abrangida numa visada mental rápida e funda. Tão preocupado das coisas que perduram quanto é atento à obra que passa. Eis por que no movimento modernista entre nós, sua grandeza de visão podia perceber na corrente as mudanças secretas e vagas da direção, sem o recuo do tempo e a perspectiva da distância”. (p. 21-2). O surto renovador da Semana de Arte Moderna de 1922 não houve maior aprofundamento dos valores morais e metafísicos da nacionalidade e do povo, dentro da tradição religiosa. Ficara-se, apenas no sensorial, nos aspectos raciais... “Uns reafirmaram o primado do homem branco. Outros aconselhavam a entoar à mãe preta a canção votiva... Terceiros refrescam o indianismo, depois de soprar a grossa poeira dos anais românticos... 152 Também à linguagem popular se recorria em busca desse selo inconfundível que se devia estampar em todas as nossas criações”. (p. 42-3). Tristão de Athayde não cansou em suas numerosas advertências aos novos artistas para que voltassem às fontes da tradição se transportassem da superfície sensorial a um plano supra-realista, reincorporando o mistério na sua materialidade agreste ou civilizada. E, como Alceu Amoroso Lima, escrevia textualmente em Estudos (2ª série, p. 331-32): “Ora não é passível traduzir esse sentido dramático da existência brasileira numa arte apenas de luzes, cores, tons gritantes, sonoridades, onomatopéias, roupagens lindas. Porque a nossa arte deve ser um ato do compreensão e de expressão que leve consigo um pouco do sangue. Pois, quando tudo nos fala a linguagem dos sentidos, já é um pouco do sangue, sem dúvida, voltar ao espírito. Quanto mais subir ao Espirito...” Tristão de Athayde preocupava-se desde logo em sua crítica pela preservação dos valores da nacionalidade, da consciência moral de nosso povo. Temia a influência da americanização como um dos “declives quase irremediáveis da nossa lenta despersonalização coletiva...”. Isso era escrito e repercutia nas consciências nos idos de 1920... Apesar de tudo o Brasil será sempre, no dizer de Luc Durtain, um celeiro de almas! No dia 15/8/1928 Alceu Amoroso Lima reencontrava a plenitude da Verdade e então escreve em Tentativa de itinerário. 153 “Optando pela Verdade eu bem sei que arranco de mim mesmo as últimas veleidades de influir sobre a “nossa geração e o nosso momento” que só amam a ilusão. Sei que me coloco ao menos na estrutura fundamental de minhas convicções, em oposição ao espírito do tempo, à inclinação invencível do momento e mesmo a tudo aquilo que, no fundo de nossas almas, se inclina a aceitar tudo isso, com o carinho e a saudade dos estados de espírito longamente cultivados...” (p. 50-1) É interessante reler aquelas palavras que Tristão de Athayde escrevia, há 61 anos, no prefácio ao Problema da Burguesia, 1932: “No dia em que vi que a Verdade existia e que o grande mal da nossa geração tinha sido não crer na sua existência nesse dia perdi também a obsessão do escrever perfeito e dominando integralmente os temas. Senti que era mais urgente dizer algumas coisas imperfeitas, mas necessárias — para um país em que há mais de meio século medram todas as ideologias destruidoras da civilização cristã que ainda nos resta-do que silenciar, por uma modéstia que as necessidades do momento trágico que vivemos transformariam em traição”. (p. 58) 154 “Alceu Amoroso Lima foi o lutador denodado a serviço da Verdade, dando uma demonstração segura de seu itinerário Vivido ardentemente do individualismo à Fé — continua Carlos Dante de Moraes. A inquietação de quem não se satisfaz com as verdades parciais. A necessidade de afirmar, de empenhar o ser inteiro, de harmonizar o mundo das coisas tangíveis com o da metafísica e atividade prática com a finalidade espiritual”. (op. cit., p. 60) Aí está a visão que nos deixou o saudoso crítico rio-grandense em 1937. Terminarei esta primeira parte citando alguns parágrafos da homilia de Dom Marcos Barbosa, O.S. B., pronunciada por ocasião da missa de 15 de agosto, despedida de Alceu Amoroso Lima: Também Tristão do Athayde traz nos braços, velho Simeão, menino AIceu Como os baixos relevos das catedrais góticas, Onde Maria, morta ou adormecida, oferece a Deus uma miniatura de si mesma. O menino outrora triste, que começou a devorar a Esfinge Ao receber pela segunda vez a Corpo do Cristo na festa da Assunção da Virgem, Na capela do Nossa Senhora das Vitórias, Se oferece e é oferecido por nós. 155 Chegou para ele o momento de entrar num Templo não feito pela mão dos homens; Mas na Casa Azul que o Apocalipse em vão procura descrever: É a terceira grande Comunhão de sua Vida agora eterna. Alceu disse adeus em artigos a muitos que ele chamou Companheiros de Viagem, Seis dos quais nascidos no mesmo ano que ele. Hoje nós que ficamos no vale de lágrimas, e que nos despedimos dele, Dizendo-lhe, no seu sentido mais forte, o adeus em ditas palavras: A Deus! E dizemos ao menino que encontrou a segredo do felicidade: Ao céu, Alceu! (Revista Eclesiástica Brasileira, vol setembro do 1983, p. 457-58). 2. Tristão de Athayde e o Homem do Sul Na Introdução à Literatura Brasileira, Tristão de Athayde dedica belas páginas ao estudo do espaço em que se desenvolve a literatura no Brasil. Sentia em si as coordenadas de Taine, sem ser manietado por elas. Sentia-lhes 156 a influência sem pagar-lhes tributo mais pesado. Sabia ser livre, consciente e decidido em suas posições de historiador da Literatura no Brasil. Fazia três oposições muito interessantes para a sociologia da literatura nas diferenciações espaciais internas: 1 – Norte – Sul 2 – Litoral – Sertão 3 – Cidade – Campo Cada uma dessas diferenciações admite uma situação Intermediária como seja o Centro, entre o litoral e o sertão; o Povoado, entre a cidade e o campo. Para o nosso estudo ficaremos mais voltados ao homem do Sul, em sua psicologia, em suas atitudes sociopolíticas e a repercussão na vida literária. A configuração do quadro é simples e incisiva: “O sulista, ao contrário do seu patrício do Norte, é reservado e sóbrio de palavras. Não gosta de confiar seu coração a ninguém. Fecha-se em si mesmo. Retrai-se em face da expansividade nortista. E a sua frieza, ao menos aparente, transtorna o ardor do homem do Norte. Seria curioso fazer este contraste de psicologia por uma nota pitoresca: a dos “portões”. A análise psicológica do sulista ainda nele revela o homem que faz preponderar a razão sobre o coração, a vontade sobre os nervos, a ação ponderada sobre a agitação. É do Sul que vem o espírito de plano e de construção para a nacionalidade. Numa síntese bem elaborada e lúcida dá a visão dos pontos de vista moral e religiosa; ainda mais eloqüente, seria a lição dos fatos. Cristão nasceu o Brasil. Cristão educou-se. Cristão cresceu. E erros de sua formação ou de sua alma derivaram, sempre, do esquecimento desse fato fundamental da sua história, sem o qual se torna ininteligível o estudo e a compreensão da 157 psicologia brasileira, pois todos os traços que hoje encontramos na psicossíntese do povo brasileiro são derivados preliminarmente de sua formação religiosa. A análise do povo brasileiro vai longe e é de grande importância para a compreensão da vida literária do País. Perscrutar a alma brasileira, sondar-lhe os anseios e as inquietações, eis o papel do verdadeiro artista, do profundo escritor que deseja, realmente, ser intérprete, pela arte, da alma humana. E Tristão de Athayde reafirma os ideais de sua crítica e de sua visão da literatura: “Há uma crítica perene como há uma filosofia perene, fora e acima das flutuações metodológicas. E se os bons críticos superam até certo ponto os maus métodos, os bons métodos não corrigirão os maus críticos. Pois a crítica literária nemé pura ciência como a filologia, a estilística, a história da literatura, etc”. (Introdução à literatura brasileira, p. 553) Muito bem ponderada é essa última observação do grande crítico. Em nossos dias muita tinta se derramou e se derrama na luta pela hegemonia dos métodos, quando o essencial é a boa formação do crítico, da atenção e da profundidade e acuidade do leitor maior, que é o critico. Tristão de Athayde esteve sempre de olhos abertos sobre todo o Brasil literário, ora dando mais espaço ao Norte, ora ao Sul, ou, ainda, mais ao Centro, com Minas, São Paulo e Rio de Janeiro. Sempre, porém, interessandose por toda e qualquer manifestação de arte literária nos mais diversos rincões da Pátria. 3. Tristão de Athayde e os Escritores do Rio Grande do Século XIX 158 Tristão de Athayde estreou na crítica literária nas páginas de O Jornal, em 1919, e encerrou sua contribuição à crítica líterosociopolítico e cultural poucas semanas antes de falecer, somando ao todo, 64 anos de intensa atividade de escritor, de jornalista, de orientador das mentes do Brasil. O primeiro livro de crítica surgiu em 1922 sobre a obra de Afonso Arinos. Apesar de ter sido um fruto de juventude, já é considerado sazonado e sumarento. Se olharmos o esquema do referido livro veremos: 1ª parte: A vida, a alma e a obra; 2ª parte: O sertanismo, onde estuda as raízes dessa tendência nas diversas províncias do Império, desde as eras mais remotas até ao ano de 1900. Aí é que encontramos estudos e belas referências aos escritores românticos sul-rio-grandenses, nas raízes do sertanismo. O oitavo capítulo, no fim da 2ª parte, há um destaque importante: Caráter e influência de sua obra. Vemos aí como Tristão de Athayde naquela época, 62 anos atrás, já se preocupava com a estética da recepção ou da repercussão da obra entre o público ledor. Na introdução deste capítulo está a verdadeira diretriz do jovem crítico. Para se conhecer uma obra literária é mister estudá-la e compreendê-la em uma individualidade característica, distinguindo-lhe os dois elementos essenciais — a determinação histórica e criação estética. Toda obra que apresente qualquer valor literário sem deixar de ser pessoal, adquire uma objetividade própria transcendente que a coloca no seu meio literário, com vida naturalmente integrada na corrente de outras obras análogas em espírito ou expressão (p. 612). Vemos, assim, como o Crítico sabe dar toda a dimensão da obra em seu contexto histórico, social e literário. Chama a atenção para figuras marcantes do sertanismo no Sul do País, contemplando o esforço importante de Caldre e Fião, Bernardo Taveira e, sobretudo, de Apolinário Porto Alegre, Lobo da Costa e outros. 1 – Caldre e Fião — Assim escreve Tristão de Athayde: 159 “Não podia o Rio Grande do Sul ter ficado estranho a esse movimento geral de nacionalização literária. Graças à constituição particular de sua gente, às suas origens históricas e ao aspecto peculiar que aí revestia a natureza, conservou sempre a grande província do extremo Sul um caráter marcado de independência que até hoje a distingue de todas as unidades de nossa federação. É possível mesmo que, literariamente, fosse a primeira a inspirar o gérmen inicial do regionalismo em nossas letras, se fosse lícito incluir a vaga novela rio-grandense do Dr. Caldre e Fião — A divina pastora, de 1847”. (Alceu A. Lima, 1966, p. 607-8). 2 – Apolinário Porto Alegre é, talvez, a figura mais importante, mais polarizadora do movimento romântico e do Partenon Literário. Tristão de Athayde assim descreve a atuação de Apolinário: “Com ele (Caldre e Fião), outro poeta e prosador, inspirado também no meio local, Apolinário Porto Alegre, um dos fundadores do Partenon Literário, de cuja atividade voltada, em geral, para o regionalismo nascente, de que foi um precursor, nos ficaram algumas páginas, dignas de menção, como os cantos gaúchos Paisagens, de 1875, onde criou o tipo de Sancho Escafuza, a ‘monarca das coxilhas’ o romance O vaqueano, 1872 ou a lenda O crioulo do pastoreio, 1875, uma de nossas escassas obras 160 literárias da escravidão, todas elas, repassadas de certo perfume rústico e de amor pelo torrão natal”. (Idem, p. 608) 1 – Bernardo Taveira é apresentado pelo crítico como um dos desencadeadores da literatura romântica, regionalista: “Em um deles, Bernardo Taveira, vimos refletida a evolução do elemento nacional crescente em nossa literatura, intitulando-se em 1869 de Americanas, a seu primeiro volume de versos quase todos indianistas e de Provincianas as poesias que vinte anos depois vieram a lume, de caráter mais acentuadamente local e espontâneo”. (Ibidem, p.608) 2 – Lobo da Costa: “A outros poetas menores ia inspirar um provincialismo que desde então distinguiu essa opulenta região de nosso território e, Lobo da Costa, com as Auras do sul, Bernardino dos Santos também autor do romance regional Serões do tropeiro, com as Flores de maio e outros, cantaram superficiaImente a paisagem rio-grandense e os costumes do pampa”. (p. 608) 161 Para encerrar a visão do séc. XIX apresentamos Comendador Coruja na busca das formas dialetais da língua portuguesa e Karl Von Koseritz, que mereceu o seguinte destaque: “Já vimos, em 1852, foi pelo vocabulário rio-grandense que começaram entre nós os estudos das transformações dialectais do idioma, e a riqueza e peculiaridade notáveis de seu folclore foram divulgadas por Von Koseritz”. (p. 608) 4. Tristão de Athayde e os Escritores do Século XX Existe um homem do Sul que está sempre muito próximo a Alceu Amoroso Lima. Trata-se do notável sacerdote jesuíta Leonel Franca, que motivou as atitudes religiosas do eminente escritor. A renovação do cristianismo no Brasil muito deve ao ilustre homem de Deus e orientador dos intelectuais da época, no Centro Dom Vital, fundador da PUCRJ. Entre os escritores mais estudados por Tristão de Athayde no fim do século XIX e que vão adentrando o século XX poderemos respigar e destacar: 1 – Alcides Maya é a pessoa que toma consciência da situação do Rio Grande do fim do século e já preestabelece as perspectivas para o novecentos. Assim escreve o ilustre crítico carioca: “Dera-se no (Rio Grande) como nos outros meios a aproximação gradativa do sentimento localista, desde o vago americanismo de aparência até o regionalismo espontâneo e original. Veio ter este último Sr. Alcides Maya o seu melhor representante que desde a sua estréia em 1897 escrevia: ‘O cenário da pátria já 162 incompreendido abandonado, e raros são os tipos genuinamente brasileiros trazidos à luz amortecida de nosso proscênio histórico-literário, pelos escritores nacionais...’ Veio a dar-nos as páginas dialectais de Ruínas vivas, em 1910 e Tapera, 1911, ascendendo à concepção de uma estética lidimamente nacional, como seria o ‘titanismo’ do Sr. Carlos Maul e prometendo-nos ainda obra inédita, onde se acentua o regionalismo gaúcho”. (Alceu Amoroso Lima, 1966, p. 608-9) 2 – Roque Callage: dentro do regionalismo encontra-se a figura de Roque Callage, que mereceu uma crítica bastante acerba de Tristão de Athayde quanto aos contos: “A objetividade transcendente ou subjetividade imanente da grande arte e que se distingue a um tempo da objetividade fotográfica e da subjetividade inerte é ela que absolutamente não encontramos nos contos do Sr. Roque Callage. Revelam boa intenção o que é nada em arte, e certo conhecimento da matéria gauchesca, que lhe permite vaga cor local em alguns desses contos. Em outros contos ainda é pior, pretendendo o autor fazer literatura com os elementos que mal dariam para escrever honesta e laboriosa crônica no boletim de uma Exposição Pecuária... É assim que um de seus contos, ‘O intruso’, visa nem mais nem menos do que condenar a introdução do zebu no 163 rebanho rio-grandense... E que tal? Não há arte em tudo? Responderá vitorioso a Sr. Roque Callage...” (p. 608) 3 – Álvaro Moreyra, figura notável na poesia e na crônica entre Simbolismo e Modernismo, atrai as atenções do crítico com algumas linhas densas e oportunas: “O Último livro de Álvaro Moreyra é de índole inteiramente diversa, em cada uma das partes em que se divide. A primeira é simples jornalismo superficial, notas e observações à margem de figuras e fatos, pecando em geral pelo artifício e preciosismo de todas essas figurinhas ocas ‘do outro lado da vida’. Na segunda parte, porém, mudam inteiramente o aspecto e o espírito do livro. Acentua-se o humorismo discreto e fino, que já repontara em um outro fragmento anterior, e desaparece o rebuscamento das primeiras páginas. ‘A Sala dos Incansáveis’ fragmentos de romance que o autor supõe ‘escrito por um louco’, reflete uma concepção profundamente cética, mas não desencantada, das coisas. Há ali páginas excelentes, em que as simples ironias sem apoiar, satíricas sem ferir sabem caricatuar a realidade sem desfigurá-la. Brasílio por exemplo é talvez a melhor coisa do livro, é realmente uma página admirável de observações de profunda ironia”. (Ibidem, p. 691-2) 164 4 – Augusto Meyer é um nome importante do início do Modernismo que se projeta na poesia, na crônica e na crítica. Como Tristão de Athayde o caracteriza: “na linha, aliás, da maioria dos nossos grandes poetas modernos encontra-se Augusto Meyer (Tristão de Athayde, 1980, p. 545). Mais adiante, prossegue o crítico: “O Rio Grande revelou-se este ano em um delicioso poeta, o Sr. Augusto Meyer, cujo Coração Verde continha todo um manancial de poesia autêntica: Espírito vivo, inquieto, sutil, tão fino poeta quanto crítico agudo de idéias, é uma das forças novas riograndenses dos srs. Raul Bopp, Pedro Vergara, Paulo Arinos (Moysés Vellinho), Theodemiro Tostes, Carlos Dante de Moraes, Ruy Cirne Lima, João Pinto da Silva, etc. que estão criando também, nas coxilhas não apenas um regionalismo pitoresco, mas alguma coisa de mais geral e compreensiva”. (Idem, p. 373) Em outras linhas acentua o valor do crítico rio-grandense: “Entre os grandes críticos (modernistas) Antônio Cândido, Temístocles Linhares, Afrânio Coutinho, Augusto Meyer...” (Idem, p. 549). 5 – Homero Prates. Em 4 de abril de 1921 Alceu A. Lima escreveu um artigo de crítica sob o título “Dois Poetas”: “Ao meu ver, porém, não é propriamente, na criação desse mundo maravilhoso que está a maior beleza do poema do Sr. Homero Prates. Onde ele alcança de fato uma verdadeira ressonância, livre de exaustiva e 165 inalterável perfeição que leva a pregar ao longo de todo o livro, é nas páginas realmente formosas em que faz a apologia do Poeta. Nunca entre nós, depois do romantismo, se elevou tão alto com tais acentos, de louvor, a condição de Poeta. Sr. Homero Prates ele aparece realmente como aquele deus que recria, e o seu canto atinge uma nobreza e elevação, tocadas de humanidade repercutem em todas as almas sensíveis à beleza”. (lbid, p. 241-2) 6 – Felippe D’Oliveira surge espontaneamente e fúlgido das páginas do Crítico: “A Lanterna verde do Sr. Felippe D’Oliveira toda afinada em otimismo criador na alegria dos sentidos, na geometria da realidade difusa e tão enraizada na corrente americanismo energético”. (Ibid. 1980, p. 373). 7 – Raul Popp, muita importância tem o poeta dentro do modernismo como o crítico destaca: “A obra da primeira geração modernista foi, essencialmente demolidora dessa concepção da primazia do verso, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Ronald de Carvalho, Cecília Meireles, Almeida... todos Raul os Bopp, Guilherme constituintes da de primeira assembléia poética modernista formam unânimes na reação da poesia contra o verso, do conteúdo contra o continente, do elemento formal contra material... Sem verso não há poesia verdadeira e completa. De modo que não é um julgamento de 166 valor, e, apenas de caracterização estética que marca o domínio de um elemento sobre o outro”. (lbid, p. 537) 8 – Jorge Salis Goulart, o crítico saúda o jovem poeta com palavras deveras entusiastas: “Impetuosa e estuante romântica é a poesia de Jorge Salis Goulart que nos previne serem os seus versos escritos dos 15 aos 19 anos. Isto explicará talvez todas as demasias e vulgaridades de um romantismo adolescente. É impossível julgar um poeta pelas suas primeiras produções. Desde já, o melhor que se pode dizer é que sua inspiração não denota submissões acadêmicas e se expande livremente, cheia de defeitos e vazia de novidades, mas sincera e espontânea. Alma apaixonada e generosa, canta o que toca o coração é mesmo ao ensaiar a poesia impessoal nela deita todo o calor da sua mocidade”. (Ibid, p. 241-2) 9 – Mario Quintana aparece como o poeta da terceira geração, de 45: “Era a recomposição da poesia com o verso e, já agora, novo, o primado do verso sobre a poesia. Menção especial pela importância de sua obra, mereciam, cada um em separado: Domingos da Silva Ramos, que juntamente com Mario Quintana, mostram 167 uma preocupação crescente e renovada com o elemento verso”. (Ibid, p. 539) Encerrada a lista dos poetas vamos aos prosadores, contemplados pela crítica de Tristão de Athayde: 10 – Erico Verissimo tem um lugar de destaque entre os prosadores. “Na segunda geração modernista podemos acompanhar a forte influência poética em um Otávio de Faria, onde há sempre, um predomínio da vida interior e, por vezes, como nos Renegados creio eu expresso abandono da forma em prosa pela poética ou, como em Erico Verissimo, especialmente no Tempo e o Vento”. Continua Gilberto Mendonça Teles, ao escrever sobre a entrevista concedida por Tristão de Athayde aos alunos da PUC/RJ em 1974: “Temos romancistas de grande categoria que vão ficar, mas menos representativos de uma região, como Erico Verissimo. Eu o considero um romancista extremamente importante no ponto de vista regional, de um ponto de vista que não se preocupa com a originalidade de expressão. Por sua vez, o próprio Verissimo também tem repercussões universais”. (p. 571) 168 Na Introdução à literatura brasileira volta o referir-se a Erico Verissimo: “A novela está mais próxima do romance que do conto. Por isso mesmo é que um romancista avesso ao conto como Erico Verissimo, já nos deu uma novela Noite, (1954) (p. 545). 11 – Outros romancistas rio-grandenses estão presentes na Crítica de Tristão de Athayde: “O neomodernismo é uma volta ao realismo e ao naturalismo. Especialmente na prosa nordestina: Graciliano Ramos, Jorge Amado, Raquel de Queiroz... e no Sul: Dionélio Machado e Telmo Vergara... assistimos a volta à primazia da realidade exterior”. 12 – Paulo Hecker Filho. Alceu Amoroso Lima refere-se à crítica dos anos 60 com muito carinho e amizade: “O humanismo crítico impressionista ou expressionista... nas novas gerações tem continuadores de alto mérito com Paulo Hecker F° ou Horácio Sales...”. Dessa maneira encerramos a caminhada pelos autores rio-grandenses estudados ao longo da trajetória crítica de Tristão de Athayde de 1919 a 1983. Muito haveria que garimpar em seus artigos nos jornais e revistas, ficamos, porém, nas críticas consignadas em livros. CONCLUSÃO Após essa jornada pelos Estudos e pela Crítica do Mestre Alceu, no que tange os escritores sul-rio-grandenses, é tempo de encerrar com uma apreciação geral. É por demais interessante o jogo que o mestre faz com o crítico e com o autor. 169 Nem a arte é difícil nem fácil a crítica por definição, pois o criador laborioso é sempre um crítico exigente. O autor é o primeiro crítico de si mesmo. E o mau artista é quase sempre aquele em que o criador desdenha do crítico ou se apaga perante ele. Não existem autores e críticos, como há juízes e réus ou acadêmicos e candidatos à Academia. Existem apenas autores que se criticam, ora mais, ora menos, e críticos que criam, muito ou pouco. E tanto não pode haver uma grande arte inconsciente da própria beleza como uma grande crítica apenas consciente da própria verdade. A arte não pode deixar de ser pensada, como crítica não pode deixar de ser sentida. Porque ambas se confundem na mesma unidade fundamental da alma humana, que é o segredo da nossa consciência. Apesar de crítico, e de vítima, portanto, de todos os gênios em botão, não vejo motivo para essa timidez com que os críticos de hoje se penitenciam das audácias passadas ou sobreviventes. Falar da crítica é falar da própria arte, pois não vejo como distingui-las. E falar da arte é criar um pouco de beleza ou um pouco de emoção, que ainda é beleza. Tive a condescendência de chamar “crítica expressionista” a certo espírito com que procuro animar e corrigir uma atividade literária por vezes mal compreendida ou mal julgada. Não sei se fiz mal. Parece que sim, mas não sou competente para dizer o que há de vaidade e de ilusão no termo. Quisera esclarecê-lo um pouco mais. Essa beleza, porém, e essa sensibilidade, que a crítica procura nas obras de arte; “não devem construir de forma alguma padrões fixos ou normas determinadas”. A beleza objetiva ou a sensibilidade perfeita são puras criações abstratas de nossa fantasia, sem nenhuma existência efetiva. A beleza e a sensibilidade só existem no indivíduo, em cada homem de carne e osso, no frio crítico que escreve estas linhas, em ti, leitor, que me acompanhas, ou no gênio incompreendido que se ri de nós dois, ali adiante. A beleza e a sensibilidade são, portanto, simples expressões individuais, simples materialização profunda 170 que precede a toda exteriorização de arte e de sentimento. Se a crítica deve procurar, acima, de tudo, a beleza e a sensibilidade, se uma e outra são apenas a “expressão” de uma alma cheia de vida, está entendida que a “crítica expressionista” é aquela que se justifica pela “investigação sincera, nas obras de arte, desses dois elementos de perpetuação e de comunhão estética’’. A crítica será o que for o crítico, falível como ele e como ele dependente do carinho, do prazer e da simpatia com que espiritualiza a sombra fugaz e luminosa de Anel. A crítica é apenas a passagem da arte por outro espírito criador e, portanto, “uma nova criação”. Quanto mais frescor, quanto mais humanidade, quanto mais graça natural houver nesse outro espírito, tanto mais viva e corada será essa formosa adolescente que maliciosamente sorri dos tardos paquidermes. Porque a crítica não é ensino, nem história, nem ciência é “bom-gosto e pouco mais”. Não acham? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. ATHAYDE, Tristão de. Teorias, Crítica e História Literária; seleção e apresentação de Gilberto Mendonça Teles, Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos, INL MEC, 1980. 2. LIMA, Alceu Amoroso. Estudos Iiterários. Rio do Janeiro. Aguilar, 1966. 3. MORAES, Carlos Dante do. Tristão de Athayde e outros estudos. Porto Alegre, Globo, 1937. 171 RETRATO DA SOCIEDADE 8 PATRÍCIA BINS Patrícia Bins, após ter publicado quatro livros de ficção: O assassinato dos pombos, Jogo de fiar, Antes que o amor acabe e Janela do Sonho, volta com a sua literatura intimista num trabalho de ficção que retrata a sociedade consumista e frívola em que vivemos. Pele Nua do Espelho, com o subtítulo de 1º volume da Triologia da paixão, procura abrir mais uma janela, não de sonho e nem para o sonho, mas para a crua e dolorosa realidade da sociedade que vive em festas, vernissages, encontros e desencontros do amor e sobretudo de ódio surdo e subterrâneo. A autora transporta o leitor que acompanha ao longo das 174 páginas de suave e doce estilo para espelhar cenas fortes e rígidas, cenas de construção e desconstrução do mundo neste final do século. O título do livro é intrigante, o complemento nominal lança o leitor para uma metáfora violenta. Mas o que é a língua senão um instrumento dútil na pena do artista? Língua é esse barro em que o oleiro, artífice de beleza, vai amoldando a imagem de sua tese e de sua comunicação. Perambulam artistas, pessoas comuns pelas salas luxuosas das mansões e dos apartamentos. A paixão incendeia e o fogo se alastra não importa se constrói ou se destrói, o importante é que inflame os corações e deixe as mentes desnorteadas tateando nas trevas das cinzas deixadas pelas labaredas... Os topoi em que se desenrolam as cenas e os movimentos é o palco da existência em qualquer situação geográfica em que viceja a sociedade de consumo que se joga nas colunas dos jornais contra capitéis da existência. No intimismo dos cinco capítulos, desdobram-se os refolhos da alma humana que geme, se diverte e chora no entrechoque de atitudes morais ou 8 Texto publicado em julho/agosto 1990 Conquista Ano XX, nº 154. 172 arbitrárias ao sabor do hedonismo. É bem escolhido dístico que está no umbral do romance do qual veio a título, “assim escreveu Júlio Cortazar: ‘Pois acredito que caminho em uma direção quando, na realidade, caminho em outra. É horrível, vamos com toda a segurança até o banheiro, e de repente sentimos no rosto a pele nua do grande espelho”... A bofetada recebida no rosto é o eco que nos deixa o romance ao fecharmos a última página. As figuras sem rosto das personagens transitam nos mesmos caminhos em que nós andamos. Freqüentam os mesmos salões e se alimentam do mesmo vazio que sentimos ao deixar um ambiente de festa ou de simples reunião socioliterocultural... Ainda que a narradora se proponha “escrever para elucidar a trama” O tecido inconsútil das vidas ou remendado ou esfarrapado continua sendo o terrível enigma. Em vão mergulhamos no ser humano para desvendar-lhe a profundidade. “O mistério”, como diz Antonio Gedeão, “persiste emoliente e arteiro”... As vidas constituem o puzzle que por mais persistentes e perseverantes sejam as investigações do artista ficamos no inefável mistério. Só o conhecimento de Jesus Cristo possibilita iluminar os locais escuros do coração do homem. Somente Ele, o Cristo, sabe tudo o que existe na profundidade do ser humano. Em vão os escapelos da psicanálise, da psicologia ou da observação profunda procuram avançar ou levantar a proteção craniana, as sombras persistem e o mistério se agiganta e se ri da veleidade dos artistas, dos filósofos e sábios que tentam descobrir-lhe os arcanos. E o narrador se expressa com crueza e força nas ânsias de perscrutar o esconso: “A náusea e a inabilidade de conviver com ela no interior da coisa viva que imaginava ser. Então tudo que escrevo traduz o grande vômito para tentar superar o pequeno vômito”... As personagens vão tateando na existência sem brilho, sem luz e sem rumo, perdidas nos afazeres artísticos, nos comentários das vaidades de uma sociedade de falsidade e de mentira. 173 O modus faciendi da escrita desliza num monólogo interrompido por pequenos diálogos do começo ao fim. Encontram-se em cena desmaiada e quase imperceptível Emily, Juan e Felicity. Os onomásticos com o som estrangeiro levam-nos a outros lugares para além do sonho e para perto de uma vaidade de sentir-se outra na própria geografia, na intimidade da própria casa. O monólogo domina o intimismo, às vezes, o fluir do “reconto” de coisas sabidas e de fatos comezinhos da existência. A habilidade reside aí nessa enseada pequena de águas calmas e rasas com o desejo de serem mar profundo. “Pele Nua do Espelho” é o levantar de leve a cortina que encobre o mistério das pequenas e grandes vidas nas aparências desta sociedade de fimde-século, de fim crepuscular de uma civilização. Ao encerrar esta visão crítica dos livros de Patrícia, encerramos com o poema do grande e saudoso poeta P. Oscar Bertholdo. PATRICIA Escrevo-te este poema que não é longo nem curto porque sei, sabes tu e sabem todos que em toda palavra há uma carta que já foi escrita um dia mas subitamente outra pessoa retorna pela simples necessidade de rever no próprio espelho a pele que nem sempre faz-se nua mas muitas vezes fica velada em outros sonhos que não são pomos e que nunca existem aonde pomos, sonhos que são pomos retornando inutilmente ainda neste caleidoscópio que se tornou hoje 174 a palavra que um dia foi fonte de água pura o refletiu o nosso rosto e agora apenas registra fragmentos de inventos de paixões, escusas. Ritos e bocejos — aliás não será a palavra um bocejo que de repente temos diante do espelho e nua fica assim a pele com que cobrimos as lembranças e as medidas que o tempo guardou para dizer que tudo é pouco e o que vale é revelar de vez que a nudez resiste e os dias e as estações e os anos não são narcisos nem precisam de espelho, existem como textos prontos ou inacabados pouco a pouco e que somente a palavra custa ficar nua diante de nós mesmos que aprendemos a vesti-la despojando-a da inocência só para termos depois a surpresa menos distraída de surpreendê-la como espelho. O TRANSCENDENTE EM MÁRIO QUINTANA 9 Mário Quintana tem uma produção inesgotável, acaba de lançar pela Editora Globo outro livro de versos: A Cor do Invisível. É a vigésima quinta obra do inefável poeta. A Cor do Invisível surge como algo de inesperado como ele próprio escreve: “O poema (o livro) é uma garrafa de náufrago jogada ao mar. Quem a encontra salva-se a si mesmo”... O poeta encontrou a garrafa 9 Publicado na revista D.O. Leitura 9(97) − junho de 1990 − São Paulo 175 salvadora, a pérola preciosa da poesia escondida no campo ou no fundo do mar da existência. Deixou tudo para poder assegurar a posse da pedra preciosa, guardá-la em si e fazê-la brilhar para os outros, a fim de que seja a palavra viva e vivificante para todos os leitores. O próprio da cor é ser visível, ela existe pela luz, base de toda a visão. O toque irônico que a oximoro apresenta não deixa de ser um choque à consciência lógica, habituada aos esquemas cientifico-tecnológicos, longe dos humanísticos. A Cor do Invisível leva-nos a ver a poesia de Quintana em outra dimensão para além dos sentimentos, das aparências, nas alturas da transcendência, campo aberto da espiritualidade que tem a sua plenitude em Deus. Numa quadra intitulada Poeta define-se em sua existência para além dos tempos, para além do tangível e do conhecido: Venho do fundo das Eras, Quando o mundo mal nascia... Sou tão antigo e tão novo Como a Iuz de cada dia (p. 49) O jogo irônico, por assim dizer, brinca sobre algo tão importante como é a vida e o ser de cada pessoa. Numa Elegia apresenta a vida em sua variegada composição dum mesmo colorido. Variedade e monotonia, diferenças e mesmices é o dístico filosófico, de profundo humor: Minha vida é uma colcha de retalhos Todos da mesma cor... (p. 110) 176 Outras vezes é a vida um painel exposto aos olhares discretos e olhares curiosos e ao mesmo tempo concentrados na estrofe final do Poema para uma exposição: “Ó Vida Transfixada ao muro que palpita, entanto, num misterioso, eterno movimento!”. (p. 22) O filosofar poético sobre a vida continua em muitos poemas variando as metáforas, mantendo, porém, a força da ironia e a atitude do desligado, do despreocupado, quase diria blasé, no poema Nunca: A vida é triste, o mundo é louco! Nem vale a pena matar-se por isso. Nem por ninguém. Por nenhum amor... A vida continua indiferente! (p. 97) O constante andar do tempo, o perene fluir das horas, dos dias e das coisas no incansável “panta rei!” dos gregos, Quintana coloca tudo em um modo lindo e gracioso na Canção de beira de estrada: Uma canção que não tem sentido Como não tem sentido o vento Nem a minha nem a tua vida... (p. 109) 177 Como insiste nesse sem-sentido da existência, da passagem célere ou morosa no peregrinar neste mundo em contraste com a eternidade como nos diz bem o soneto “Ah! os relógios”, de que extraímos o quarteto: Porque o tempo é uma invenção da morte: Não conhece a vida — a verdadeira — em que basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira. (p. 79) Outro soneto Detrás de um muro surge a lua mostra a tentação do nada. Aparece o cético, o niilista no terceto misto de humor e de amarga desesperança: E enquanto a Vida corre — ó Mascarada! Ele abre, vagamente sobre o Nada, o seu olhar sonâmbulo de mocho! (p. 37) Tudo parece escurecer, nessa noite da esperança e do sentido da existência. A dúvida paira qual ave noturna sobre os sonhos, sobre a vontade de viver... E a morte vem trazida pelos ventos para tudo amortalhar no sono mais duradouro que os mundos. No soneto, escrito em 1935, Esses inquietos ventos aparece o ainda jovem Quintana preocupado com a vida e com a morte, antes mesmo de ter alcançado a celebridade dos anos sessenta e setenta...O terceto contrapõe a vida e a morte numa interrogação que se reduz em reticências: 178 Os ventos vêm e batem-me à janela: ‘A tua vida, que fizeste dela?’ E chega a morte: ‘Anda! Vem dormir... (p. 111) O poeta varia em seus poemas, em sua temática, mas no fundo é sempre o mesmo lírico irônico que não perdoa a si nem aos outros. Em A viagem, quadrinha, profunda, lírica, está expressa no movimento do pássaro e do mar o vaivém dos dias e das noites, o vaivém das fases da existência: Como é bela uma asa em pleno vôo... Uma vela em alto mar... Sua vida — toda ela! — está contida Entre o partir e o chegar... (p. 86) Outro poema menos plástico, mais filosófico, irônico e profundo sob o título Os rios em quatro versos exprime a essência do pensamento espargida em milhões de folhas: Há na vida tanta coisa, Tanta coisa e um só olhar! Toda a tristeza dos rios É não poderem parar... (p. 92) Em tudo sobressai o mistério, o que se lê, o que não está escrito, o que se decifra sem estar nas letras, é o âmago do ser humano, que desafia filósofos, teólogos e glorifica o poeta no poema Ariel: 179 Mesmo porque a poesia mora é nas entrelinhas, Mora no branco puro do papel. (p. 98) A contradição, a ironia, é a figura sempre presente nas quadrinhas e nos poemas, com fosse o mundo um paraíso: Fosse o mundo um paraíso... — paraíso de verdade! morrerias sem saber o que é a felicidade... (p. 88) Outro antagonismo presente e preocupante é a eternidade e o momento que passa, tão bem estruturado em Poema de que apresentamos os quatro versos finais: Tu? Não! Instante e eternidade, a teu sorriso é imemorável como as Pirâmides e puro como a flor que abriu na manhã de hoje! (p. 89) A monotonia da vida é descrita numa quadra profunda e bela que expressa o valor insuperável da arte em A letra e a música: Quando nos encontramos Dizemo-nos sempre as mesmas palavras que todos os amantes dizem... 180 Mas que importa que as nossas palavras sejam as mesmas sempre? A musica é outra! Realmente, a amor, eterna música dos corações faz vibrar com novidade a monotonia dos sons dos vocábulos... E no fim de tudo a morte que se assemelha à corrente de um rio, que vai morrendo a cada instante. Desapego, despreendimento de tudo como as águas caudalosas que levam tudo e vão cantando tragicamente nas devastações. O poema O rio tem algo de mensagem profunda e transcendente, que se retrata nos versos iniciais: A morte é um rio onde a gente Embarca de olhos fechados Se queres partir contente Nada deixes deste lado. É deste lado de cá que moram nossos cuidados. (p. 39) No fim da vida, deste rio que vai sem parar há coisas que “o vento não levou”, título parodiado da célebre obra e famoso filme americano: No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas que o vento não conseguiu levar: Um estribilho antigo um caminho no momento preciso o folhear de um livro de poemas o cheiro que tinha um dia o próprio vento... 181 (p. 118) Nesse entrevero dolorido, divertido, contraditório da existência, agarrada ao chão e sonhando com a transcendência, atada ao tempo e suspirando pela libertação da eternidade, estão as Rezas expressas na singela e melodiosa quadra: Rezas da infância, tão puras... Um dia a gente as esquece! Mas o bom Deus, das alturas, Ainda escuta a nossa prece... (p. 33) O livro vai fechando suas folhas e pétalas com a mensagem final que é o poema Oração inteiriço de uma estrofe extensa e melodiosa, densa de poesia e brilho: Dai-me a alegria Do poema de cada dia. E que ao longo do caminho às almas eu distribua Minha porção de poesia. Sem que ela diminua... Poesia tanta e tão minha que por uma eucaristia Possa eu fazê-la sua Eis minha carne e meu sangue! A minha carne e meu sangue Em toda a ardente impureza Deste humano coração... 182 Mas, ó Coração Divino, Deixai-me dar de meu vinho, Deixai-me dar de meu pão! Que mal faz uma canção? Basta que tenha beleza... (p. 125) Nesta revoada simples e despreocupada sobre A Cor do Invisível, sente-se ar tênue, vibrante, perfumado, da transcendência. É o vagar do poeta pelas estradas poeirentas do existir, que ora sonha, ora medita, ora canta, tudo dentro dos parâmetros do poema... Limo, pó da terra, luz dos astros, variações de luar, música perdida, perfume de florescências, tudo isso está no poeta, no íntimo de sua vibração terrestre humano-divina na contingência a caminho da transcendência. No dizer de Péguy, o poeta é o lobo uivando para o infinito. O poeta dirige-se ao interlocutor invisível como a cor e pergunta “Lembras-te?, cuja resposta é a quadra com que encerramos o vol d’oiseau destas considerações: Minha lanterna andante, meu cachorrinho cego... Perdidos naquela Babilônia, nem sei bem se eras o caminho... Se, acaso, eras a verdade... Eu sei apenas que Tu és a Vida! (p. 14) 183