ESCRITURAS DE “PROCURAÇÃO BASTANTE”: POTENCIALIDADE
E POSSIBILIDADES DE ANÁLISE, O CASO DE MINAS GERAIS NA
PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII
Carlos Leonardo Kelmer Mathias1
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
RESUMO: a presente comunicação tem por objetivo apresentar as potencialidades oferecidas
por uma documentação que resta – em grande medida – inédita aos pesquisadores que se
debruçam sobre a história de Minas Gerais, a saber: as escrituras de “procuração bastante”. A
partir da análise das 4.988 escrituras de “procuração bastante” presentes nos livros de nota do
primeiro e do segundo ofícios do arquivo da Casa Setecentista de Mariana entre 1711 e 1756,
a comunicação busca discutir de que forma o estudo dessa documentação concorre para a
melhor compreensão, por exemplo, tanto dos circuitos mercantis nos quais a capitania de
Minas Gerais tomava parte, como das redes sociais de interação havidas entre os milhares de
indivíduos que em determinado momento de suas trajetórias de vidas nomearam procuradores
para alguma paragem dos domínios portugueses. Eram outorgantes nomeando procuradores
que representassem seus interesses em Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito
Santo, Goiás, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Piauí, Portugal e África. As procurações
possuíam um cunho comercial, jurídico ou parental consoante suas localidades de destino.
Revelam que assim como um mestre-de-campo poderia fazer do guarda-mor da relação da
Bahia seu procurador, de igual forma o poderia uma preta forra, por exemplo. Explorar essas
e outras considerações é o propósito da comunicação que ora se propõe.
Palavras-chave: procuração bastante, interação espacial e redes sociais.
Introdução
Entre os anos de 1711 e 1756, 4.988 escrituras de “procuração bastante” foram
registradas no cartório do público, judicial e notas do termo de Vila do Carmo, parte
integrante da comarca de Vila Rica, capitania de Minas Gerais. Trata-se de uma
documentação em grande medida inédita não apenas no que toca aos pesquisadores cujo leque
de atenção compreende a capitania mineira, mas também àqueles interessados nas demais
paragens dos domínios lusos na América colonial. Em que pese os trabalhos de Antônio
Carlos Jucá de Sampaio e de Fábio Pesavento, estudos sistematizados da sociedade colonial
brasileira tendo por suporte tal documentação são praticamente inapetentes. Tendo em conta a
ululante importância dessa fonte, não deixa de causar certa estranheza o estiolado interesse
que as escrituras de procuração bastante despertaram nos pesquisadores até o presente
momento. Naturalmente, muito da abnegação dispensada a esse tipo de documentação pode
ser explicada em função de a otimização da potencialidade ofertada pelas escrituras de
1
Doutor em História pelo PPGHIS/UFRJ.
procuração somente poder ser obtida quando empreendida a análise em duas frentes, a saber:
o caráter serial e o caráter micro-histórico.
Para que bem se entenda, uma escritura de procuração bastante é ordinariamente
composta das notas de abertura de praxe – data de registro da documentação em cartório,
introdução do nome do outorgante e dos ditames judiciais etc. –, do enumerar das localidades
para as quais o outorgante intentava eleger procuradores, assim como os nomes dos mesmos
consoante seus respectivos destinos, da finalidade da procuração e, por fim, de outros tramites
inerentes ao bom funcionamento e registro da procuração. Mormente, a escritura guarda um
silêncio tumular acerca do ofício dos procuradores e de uma possível incumbência particular
para qualquer um deles. Do posto, adentrar nos meandros de um estudo micro respeitante às
possíveis relações de reciprocidade entre outorgantes e procuradores não pode prescindir de
uma igualmente pormenorizada pesquisa sobre cada um desses nomes – que muitas vezes
somam-se milhares.
Em boa medida, as escrituras de procuração bastante são documentos do judicial e do
econômico. Logo após colmatar os destinos e os nomes dos procuradores, o escrivão
registrava:
mostradores que serão deste poder aos quais disse dava, e outorgava, cedia e
trespassava todo o seu livre e comprido poder mandado geral e especial com
bastante direito se requer e alegar todo seu direito e justiça para que por ele
outorgasse em seu nome e como ele próprio em pessoa possam os ditos seus
procuradores acima nomeados todos juntos ou qualquer deles de per se de
cobrarem, receberem, acordarem e a seus poderes houveram (sic!) toda sua
fazenda bens móveis e de raiz, dívidas, dinheiro, ouro, prata, açúcares,
escravos, encomendas, carregação, seus (?) e coisas outras de qualquer
qualidade (ACSM, LN. 02, 10/10/1713).
Em muitas ocasiões, o trecho acima era acrescido da seguinte passagem:
poderão apelar e agravar vir com embargos isentar suspeições a quaisquer
juízes e oficiais de justiça, ouvir sentenças e das que forem a seu favor estar
por elas, e das contra ele apelar e agravar e segui-las até moral cada,
cobrarem, arrecadarem todas suas dívidas de todas as pessoas que obrigadas
lhe forem, dar quitações públicas (ACSM, LN. 02, 10/10/1713).
Constava ainda nas procurações poderes para o procurador cobrar os devedores do
outorgante e pagar a seus credores. Quer isto dizer que as escrituras de procuração bastante
nos dizem muito sobre as ligações mercantis e sociais existentes na América lusa. Do posto, o
presente texto tem por fito explorar algumas das potencialidades e das possibilidades que a
pesquisa e o estudo das escrituras de procuração bastante podem oferecer ao pesquisador que
por ventura direcionar seu olhar para tal documentação. À vista disso, e com base nas
considerações acima, o texto será sulcado por duas partes. Na primeira, examinarei as
escrituras de procuração em sua faceta serial, atentando para as ligações estabelecidas entre a
capitania de Minas Gerais e as demais paragens dos domínios portugueses. Em um segundo
momento, debruçarei meus esforços nos sentido de tecer considerações acerca do viés microhistórico passível de ser aferido das escrituras, consagrando especial atenção ao
estabelecimento de redes de reciprocidade.
Escrituras de procuração bastante, um recorte serial
Dentre as localidades para onde se nomeou procurador, destaca-se as partes
integrantes da capitania de Minas Gerais – presentes em praticamente todas as quase cinco
mil escrituras arroladas –, a capitania do Rio de Janeiro (nomeada em 2.116 escrituras), a
região do nordeste – composta por Bahia, Pernambuco, Maranhão e Piauí – (presente em
1.721 escrituras), Portugal (atuante em 1.363 escrituras) e a capitania de São Paulo
(participante em 222 escrituras). De resto, também houve nomeações para Sacramento (uma
ocorrência), Espírito Santo (três ocorrências), Cuiabá (seis ocorrências), África Centroocidental (nove ocorrências) e Goiás (cinqüenta e uma ocorrências). Escusado aduzir que
todas essas localidades estão aqui representadas de forma nominal, ou seja, não esmiucei o
destino dentro dessas regiões. A título de exemplo, para Portugal foram nomeados indivíduos
nas províncias de Alentejo, Beira, Entre-Douro-e-Minho, Estremadura e Trás-os-Montes,
incluindo também as Ilhas Atlânticas. Depurando, em cada uma dessas províncias e ilhas era
especificado o arcebispado, a cidade, a comarca, o concelho, o distrito, a freguesia, ou a vila
de destino do procurador. O mesmo pode ser dito para a América portuguesa. No caso da
capitania do Rio de Janeiro, foram nomeados indivíduos para a cidade de Angra, para Campos
de Goitacases, para a Ilha do Governador, a Ilha Terceira, a Ilha de São Sebastião, para a Vila
de Parati e para a cidade do Rio de Janeiro.
Tendo em conta que as localidades do Rio de Janeiro, do nordeste, do reino e de São
Paulo foram as mais freqüentes nas escrituras – afora, é claro, as comarcas constituintes da
capitania de Minas Gerais –, optei por representá-las em um gráfico com o intuito de melhor
iluminar as possibilidades de análise que as escrituras de procuração bastante podem
proporcionar em termos seriais. Com que então apresento o gráfico um.
Gráfico 1 – Participação % das principais localidades extra capitania de Minas Gerais nas
escrituras de procuração passadas no termo de Vila do Carmo, 1711-1756
600
500
400
300
200
100
0
17111715
17161720
17211725
Rio de Janeiro
17261730
17311735
Nordeste
17361740
17411745
Reino
17461750
17511756
São Paulo
Fonte: ACSM, LN. 01-80, EPB.
A explicação da metodologia adotada na montagem do gráfico acima auxilia na
compreensão das escrituras de procuração bastante. Primeiro, um outorgante poderia nomear,
em uma mesma escritura, procuradores para várias localidades. Diga-se de passagem, essa
prática revelou-se bastante comum na análise de tal documentação. A título de exemplo, em
05 de dezembro de 1713, Manoel Moreira de Freitas registrou uma escritura de procuração na
qual nomeou vinte e três procuradores distribuídos da seguinte maneira: seis para Vila do
Príncipe, três para Vila do Carmo, dois para Vila Rica – todas as localidades pertencentes à
capitania de Minas Gerais –, três para a cidade do Rio de Janeiro, três para a cidade da Bahia,
três para a capitania de Pernambuco e três para a cidade de Luanda – África Centro-Ocidental
(ACSM, LN. 02, EPB. 05/12/1713). No exemplo acima, considerei uma nomeação para a
“região” nordeste – incluindo Bahia e Pernambuco –, uma para o Rio de Janeiro e uma para
África.
Em 17 de agosto de 1748, Manoel Carvalho Lima nomeou sessenta e dois
procuradores, sendo treze para Vila do Carmo, nove para Vila Rica, sete para Vila do
Príncipe, quatro para Serro do Príncipe, quatro para a Vila de São João del-Rei – todas
localidades pertencentes à capitania de Minas Gerais –, dez para a capitania do Rio de Janeiro,
quatro para a capitania da Bahia, cinco para a cidade de Lisboa e três para Angola (ACSM,
LN. 58, EPB. 17/08/1748). Tal qual o exemplo anterior, considerei – e excetuando a “região”
de Minas Gerais – uma procuração para a capitania fluminense, uma para a “região” nordeste,
uma para o reino e uma para África.
Segundo, não realizei a especificação acerca das diferentes localidades dentro de uma
mesma capitania para onde se nomeava procuradores. A não opção por este procedimento
apenas dificultaria a visualizarão do gráfico e em nada acrescentaria nas conclusões passíveis
de serem aferidas do mesmo. Para a capitania fluminense, as 2.116 procurações perfizeram
um total de 8.237 nomeações, sendo que a cidade do Rio de Janeiro foi o destino de 97,79%
dos procuradores. A localidade que recebeu o segundo maior número de procuradores foi a
cidade de Angra, com 142 aparições, ou 1,72%. Também se nomeou para Campos dos
Goitacases, Vila de Parati e Ilha do Governador. A “região” de nordeste revelou uma
variedade ainda maior, constando regiões como: capitania de Piauí e Maranhão, cidade da
Bahia, Pernambuco, Vila de Jacobina, Vila de Jaguaripe, Sertão da Bahia, Vila de Cachoeira
etc. Dentre essas localidades, a cidade da Bahia respondeu por 94,32% dos 7.405 destinos
dados aos procuradores direcionados para a “região” nordeste. Muito distante da cidade da
Bahia, Pernambuco recebeu 3,45% dos nomeados. Igualmente, a capitania de São Paulo
congregou uma variada gama de vilas para onde se indicou representantes, a saber: Vila de
Santos, Mogi, Pindamonhangaba, Itu, Guaratinguetá, Parnaíba, Sorocaba, Taubaté, Ubatuba
além, naturalmente, da cidade de São Paulo. Esta última absorveu 63,15% das 825
nomeações, seguida pela Vila de Santos, com uma participação de 22,18%.
Nesse sentido, o gráfico um expressa precisamente a participação percentual das
principais “regiões” nas escrituras emitidas no termo de Vila do Carmo, independentemente
do número total de procuradores nomeados para cada localidade. Conforme pode ser
subtendido, a metodologia empregada na elaboração do gráfico oferece uma oportunidade
para se analisar o comportamento dessas regiões segundo um mesmo modelo de
representatividade na medida em que concorreu para montagem gráfica não o número de
procuradores observados em cada escritura, mas sim a ocorrência por localidade. A
desvantagem desse modelo consiste em uma possível sub-representação da importância
dessas localidades conforme o número de procuradores nomeados. Tal deficiência é sanada
com o gráfico dois.
Para a elaboração do gráfico dois, considerei o número de nomeações totais em uma
escritura consoante as localidades em apreço. Em 01 de agosto de 1738, o padre Manoel dos
Santos Silva registrou escritura de procuração através da qual nomeava quatro procuradores
para a capitania do Rio de Janeiro, quatro para a capitania da Bahia, nove para a cidade de
Lisboa e nove para a cidade do Porto, afora os indicados para localidades internas de Minas
Gerais (ACSM, LN. 47, EPB. 01/08/1738). No exemplo em questão, considerei quatros
procuradores para o Rio de Janeiro, quatro para a “região” nordeste e dezoito para o reino.
Nesse sentido, caso na escritura seguinte os mesmos indivíduos tivessem sido nomeados
procuradores, consideraria o número de nomeações, independente de o nome dos indicados
tivesse ou não se repetido.
Gráfico 2 – Participação % dos procuradores das principais localidades extra capitania de
Minas Gerais nas escrituras de procuração passadas no termo de Vila do Carmo, 1711-1756
3.000
2.500
2.000
1.500
1.000
500
0
17111715
17161720
17211725
Rio de Janeiro
17261730
17311735
Nordeste
17361740
17411745
Reino
17461750
17511756
São Paulo
Fonte: ACSM, LN. 01-80, EPB.
Em tais termos, o gráfico foi preparado consoante o número de nomeações para a
região em apreço, não representando, dessa forma, o número exato de diferentes procuradores
atuantes nas localidades apresentadas. Para as duas principais regiões expressas no gráfico 2,
a diferença entre o número de nomeações e o número de diferentes procuradores ajuda a
explicitar a metodologia adotada. Na capitania fluminense, os 2.247 procuradores
identificáveis atuaram nas 8.237 nomeações. No nordeste, as 7.405 indicações revelaram
1.610 nomes. No gráfico figuram as 8.237 designações para o Rio de Janeiro e as 7.405 para o
nordeste, não os 2.247 e os 1.610 qualificados para as respectivas localidades.
Comparando os gráficos um e dois entre si, evidencia-se uma não correspondência
acerca do número de escrituras emitidas para uma dada localidade e a quantidade de
procuradores nomeados para a mesma. De acordo com o gráfico um, somente no lustro de
1741-1745 o nordeste conseguiu ultrapassar o Rio de Janeiro em número de escrituras, sendo
que o reino em momento algum o fez. Por seu turno, o gráfico 2 demonstra que no qüinqüênio
de 1721-1725 a “região” nordeste já ultrapassa a fluminense no número de procuradores
nomeados, seguindo à frente até o período de 1751-1756, momento no qual o número de
eleitos para o Rio de Janeiro superara aquele para o nordeste em função do estabelecimento da
Relação do Rio de Janeiro em 1751. Ainda neste campo, em 1726 a quantidade de designados
para o reino, tal qual o nordeste, sobrepujam o número de procuradores endereçados ao Rio
de Janeiro e mantém a frente até o último lustro. Não é meu interesse aqui explicar as razões
para tal comportamento, mas tão somente expor as possibilidades que as escrituras de
procuração bastante oferecem ao pesquisador.2
Os gráficos acima devem ser pensados à luz do caráter econômico e jurídico das
procurações. A forte presença da região nordeste nas escrituras emitidas no termo de Vila do
Carmo revela, de forma contundente, o caráter jurídico das procurações passadas no termo de
Vila do Carmo. Sabe-se do enorme afluxo populacional para a capitania de Minas Gerias pela
feita das descobertas dos primeiros veios auríferos, movimento no qual a participação de
imigrantes portugueses foi notável. Tomando essas procurações enquanto reflexo do
comportamento imigratório do final do seiscentos e início do setecentos, seria plausível
esperar um percentual de procuração para o reino superior ao encontrado para a região
nordeste, cujas ligações familiares com a capitania de Minas foram pouco representativas.
Nesse sentido, o próprio desempenho de São Paulo deveria ser mais satisfatório, ou superior
ao nordestino. Nem mesmo o Rio de Janeiro apresentou um padrão condizente. Que se
observe a tabela 1.
Tabela 1 – Participação % de parentes nas escrituras passadas para as principais localidades
extra capitania de Minas Gerais, 1711-1756
Rio de
Nordeste Reino São Paulo
Janeiro
A
2.116
1.721
1.363
209
B
38
8
251
9
C
1,79
0,46
18,41
4,3
Legenda: A – número total de escrituras, B – número de escrituras com
parentes, C – porcentagem de B em A.
Fonte: ACSM, LN. 01-80, ESP.
Os dados em questão indicam claramente que a única região cuja linha representada
nos gráficos possuiu um peso parental foi o reino. Em 18,41% das procurações emitidas para
Portugal nomearam-se parentes dos outorgantes residentes em Minas Gerais. No que respeita
à capitania do Rio de Janeiro, apenas 1,79% das escrituras revelaram ligações parentais.
Percentual ainda menor foi observador para a região nordeste, 0,46%. Realmente
2
Para a explicação dessas tendências ver KELMER MATHIAS, 2009.
surpreendente foi a participação de parentes nomeados para a capitania de São Paulo, cujos
4,3% não correspondem ao peso desempenhado pelos paulistas nas descobertas auríferas.
Embora concorde que a Guerra dos Emboabas contribuiu para a expulsão de muitos paulistas
da capitania de Minas Gerais, creio residir na não participação da região enquanto
fornecedora de escravos para a área mineradora o principal motivo da baixa representação da
capitania nos gráficos arrolados anteriormente, malgrado sua atuação no envio de gado vacum
para Minas, por exemplo.
Acerca do reino, sua curva expressada nos gráficos representa duas expressões, quais
sejam: parental e comercial. Por seu turno, as curvas fluminenses e nordestinas denotam
claramente o peso econômico das procurações. Não sem motivo, as duas principais regiões
participantes nas procurações emitidas no termo de Vila do Carmo foram aquelas que
apresentaram o menor percentual de parentes presentes em tais procurações. Em que pese
possíveis casos de subregistros, não creio que esse perfil fosse se alterar consideravelmente.
Tabela 2 – Participação % de negociantes nas escrituras passadas para as principais
localidades extra capitania de Minas Gerais, 1711-1756
A
B
C
Rio de Janeiro Nordeste São Paulo
2.116
1.721
209
1.365
415
76
64,5
24,11
36,36
Legenda: A – número total de escrituras, B – número de escrituras com
negociantes, C – porcentagem de B em A.
Fonte: ACSM, LN. 01-80, ESP.
Tabela 3 – Participação % de doutores nas escrituras passadas para as principais localidades
extra capitania de Minas Gerais, 1711-1756
A
B
C
Rio de Janeiro Nordeste Reino São Paulo
2.116
1.721
1.363
209
1.281
1.414
429
47
60,53
82,16
31,47
22,48
Legenda: A – número total de escrituras, B – número de escrituras com doutores, C –
porcentagem de B em A.
Fonte: ACSM, LN. 01-80, ESP.
Antes de passar à análise das tabelas apresentadas, faz-se necessário pontuar algumas
questões. No concernente ao Rio de Janeiro, a categoria negociantes engloba as categorias de
homem de negócio, mercador e comerciante, respondendo, individualmente, por 59,59%,
4,25% e 0,66%, respectivamente. Para a Bahia, o grupo de negociantes se refere à traficante
de escravos e capitães de navios, respectivamente 20,99% e 3,11%. Acerca de São Paulo,
todos eram mercadores. Como não me foi facultado a identificação dos nomeados para o
reino, esta região encontra-se ausente da tabela 2. Dentre as categorias constituintes do grupo
doutor, concorreram: doutor, licenciado, bacharel, requerente de causas, solicitador de causas
e advogado.
Comparando as tabelas 2 e 3 com a tabela 1, percebe-se a abissal discrepância entre as
participações de negociantes e doutores em relação à de parentes, evidenciando se tratarem
fundamentalmente de procurações de ordem econômica e jurídica, com destaque para a
primeira. A própria correlação entre os percentuais de negociantes e doutores entre as regiões
em apreço aponta para o fato de, habitualmente, nomear-se negociantes e doutores na mesma
escritura. Esse fato sugere que esses dois grupos trabalhavam em conjunto frente aos
interesses de seus outorgantes. A desconexão entre ambas as categorias notada para o
nordeste é explicada em função da presença da Relação na Bahia, indicando que muitos
doutores para lá nomeados intervinham em assuntos de natureza puramente judicial para seus
outorgantes. Enfim, os gráficos e as tabelas acima auxiliam no sentido de apontar alguns dos
caminhos e das possibilidades de análises que as escrituras de procuração bastante oferecem
ao pesquisador. Com o fito de avançar um pouco mais na questão, passo agora à abordagem
em escala reduzida, alçando o indivíduo ao foco principal de estudo.
Escrituras de procuração bastante, um recorte micro
Um dos principais vieses de desenvolvimento facultados pelas escrituras de
procuração bastante é a possibilidade do estudo de redes de reciprocidades. Por intermédio do
cruzamento de nomes tendo como mini-centros figuras destacadas ao sabor do interesse do
pesquisador, pode-se reconstruir ligações diretas e/ou indiretas estabelecidas entre outorgantes
e procuradores – naturalmente, e desde que fique claro para o leitor, nada impede que na
montagem das figuras representativas dessas redes sejam inseridos nomes que não tenham
participação nas nomeações. As figuras abaixo buscam contemplar algumas das ligações
firmadas entre sujeitos nomeados procuradores nas capitanias do Rio de Janeiro e da Bahia.
Para tanto, concorreram algumas das figuras de maior relevo tanto nas regiões acima, como
dentre os outorgantes residentes na capitania de Minas Gerais.
Figura 1 – Mapa de ligações tendo por foco a capitania do Rio de Janeiro
Antôino de Abreu Ferrão
Francisco do Amaral Coutinho
Miguel Nogueira de Abreu
Inácio da Silva Medela
Antônio Correia Sardinha
André Martins Siqueira
João Ferreira de Sousa
Manoel Pereira Ramos
D. Pedro de Almeida (conde de Assumar)
Manoel Luis Ferras
André Pinto Guimarães
Manoel de Queirós Monteiro
Antônio Ferreira Pinto
Matias Barbosa da Silva
Domingos Nunes Neto
Luis Barbosa Brandão
Domingos Rodrigues Cobra
D. Brás Baltazar da Silveira
Cosme Velho Pereira
Luis Tenório de Molina
João Luis de Oliveira
Francisco de Seixas da Fonseca
Manoel Mendes de Almeida
Francisco Ferreira de Sá
Paulo Carvalho da Silva
Manoel Fernandes da Costa
Domingos de Azevedo Coutinho
Caetano Álvares Rodrigues
Custódio Rebelo Vieira
José de Almeida Cardoso
Maximiano de Oliveira Leite
Domingos Martins Brito
José de Sousa Guimarães
Alexandre da Costa
Francisco Martins de Brito
Pedro Taques de Almeida Paes
Jácome Ribeiro da Costa
Paulo Pinto de Faria
Manoel Gonçalves Viana
Nicolau da Silva Bragança
João Martins de Brito
Manoel Correia Vasques
Manoel Antunes Suzano
Gonçalo de Brito Barros
Romão de Matos Durão
Legenda: amarelo: nobreza da terra; azul: homem de negócio; marrom: mercador; verde: traficante de
escravos; vermelho: residentes em Minas Gerais.
Figura 2 – mapa de ligações tendo por foco a capitania da Bahia
Antônio Gonçalves da Rocha
Gonçalo de Brito Barros
Lourenço Antunes Viana
Paulo Pereira
José Martins Sales
Manoel de Queirós Monteiro
Antônio Pinto de Miranda
Manoel Fernandes da Costa
João Pinto Rodrigues
Francisco Rodrigues de Miranda
João Lourenço Veloso
Pedro da Silva de Macedo
Domingos de Azevedo Coutinho
José Francisco Molina
Domingos Nunes Neto
Domingos Pinto Magalhães
Francisco Rodrigues Feliciano
Custóio Rebelo Vieira
Manoel Gonçalves Viana
André Barbosa de Barros
Manoel Mendes de Almeida
Torcato Teixeira de Carvalho
Domingos Duarte Pereira
Manoel Casado Viana
Antônio Ferreira Pinto
Cosme Velho Pereira
Domingos Rodrigues Nunes
João Ferreira de Sousa
Antônio Correia Sardinha
Rafael da Silva e Sousa
João da Costa Lima
Bento Ferraz Lima
Antônio Correia de Seixas
João de Araújo de Azevedo
Manoel Ferreira Leal
Francisco de Barros Rego
Pedro Gomes de Abreu
Luis Tenório de Molina
André Pinto Guimarães
Manoel da Guerra Brito
José Fernandes de Castro
Gregório Pereira Lima
João Pinheiro de Vasconcelos
Lourenço Nogueira Silva
José Ferreira Veiga
José Vaz Salgado
Legenda: amarelo: nobreza da terra; azul: homem de negócio; marrom: mercador; verde: traficante de
escravos; vermelho: residentes em Minas Gerais.
Através da análise de redes oferecida pelas figuras um e dois, podemos observar o
quanto indivíduos moradores nas localidades arroladas estavam, direta ou indiretamente,
conectados entre si via outorgantes residentes na capitania de Minas Gerais. Mais de perto,
fica patente a ligação havida entre alguns dos mais poderosos homens de negócio fluminenses
e traficantes de escravos baianos por intermédio de membros da elite mineira. A título de
exemplo, através de Custódio Rebelo Vieira havia uma ligação firmada entre Manoel
Gonçalves Viana – traficante de escravos que empreendeu cinqüenta e nove viagens à Costa
da Mina para o resgate de escravos – e Paulo Carvalho da Silva – negociante da poderosa
família Almeida Jordão. O capitão e comerciante Custódio Rebelo Vieira era homem de
prestígio e bem quisto pelo conde de Assumar e por seu antecessor, d. Brás Baltasar. O
capitão emitiu procuração para a região nordeste nomeando, dentre outros, quatro traficantes
de escravos, um capitão de navio negreiro e um Secretário de Estado. Custódio Rebelo esteve
envolvido no mercado de crédito em Vila do Carmo, tendo sido credor em seis escrituras
totalizando 11:120$400, e devedor em apenas uma no valor de 3:922$800 (ACSM, LN. 0134, EC). Entre suas atividades no mercado de bens no termo de Vila do Carmo, o capitão
Custódio Rebelo vendeu três propriedades entre 1722 e 1732, transacionando sete sítios,
terras minerais, engenho de pilão, engenho de roda, capela, criações (bovinos e suínos) e 55
escravos, perfazendo 63:202$800 (ACSM, LN. 19, ECV. 22/06/1722; ACSM, LN. 27, ECV.
03/06/1727; ACSM, LN. 39, ECV. 03/05/1732). O mais destacado devedor de Custódio foi o
governador da capitania de Minas Gerais, d. Lourenço de Almeida, para quem o capitão
Custódio Rebelo emprestou quantia superior a dois contos e meio de réis. Paulo Carvalho era
membro de uma rede que estava envolvida com os circuitos do tráfico negreiro e do ouro. Nas
palavras de João Fragoso, a área de atuação dessa rede
se estendia de Mato Grosso, Rio de Janeiro e Minas Gerais até a Ilha de São
Tomé e chegava à Costa da Mina e a Angola. Dela participavam, entre
outros, o governador de Angola, Rodrigo César de Meneses, o vigário geral
e o ouvidor da Ilha de São Tomé, João Coelho de Souza. Na América,
encontramos o negociante fluminense Inácio de Almeida Jordão, seu
cunhado, capitão Paulo de Carvalho da Silva e o capitão-de-navio e
negociante Antônio de Araújo Cerqueira. Em Portugal, a sociedade contava
ao menos com João Mendes Jordão, irmão de Inácio e negociante em
Lisboa. Estas operações, em grande medida, consistiam na troca de ouro das
Gerais por escravos vindos da Costa da Mina, o que implicava em
negociações com os holandeses, então senhores de parte daquela Costa (...)
estamos diante de uma rede imperial digna deste nome (FRAGOSO, 2005, p.
151-152).
Ao defender que as procurações atestavam as várias conexões entre as cidades, Rae
Flory ilustrou o caso de Manoel Gonçalves Viana, quem nomeou procuradores na Bahia, Rio
de Janeiro, Santos, Lisboa, Porto e Angola, autorizando-os a comprar e vender mercadorias
em seu nome. O traficante de escravos Manoel Gonçalves Viana recebeu um total de nove
procurações por outorgantes residentes no termo de Vila do Carmo (ACSM, LN. 09, EPB.
20/06/1719; LN. 09, EPB. 22/06/1719; LN. 19, EPB. 25/02/1722; LN. 19, EPB. 07/09/1722;
LN. 22, EPB. 11/11/1723; LN. 23, EPB. 26/01/1725; LN. 24, EPB. 18/10/1724; LN. 26, SPB.
19/12/1726; LN. 31, SPB. 06/09/1728). Entre 1707 e 1729, foi responsável por 59 viagens à
costa africana, sendo sócio majoritário em 55 delas. Todas zarparam do porto de Salvador
com destino à África Ocidental, perfazendo uma estimativa de 18.477 escravos
desembarcados. O grosso de suas viagens se concentrou nas décadas de 1710 e 1720, 44,06%
e 49,15%, respectivamente. Interessante observar que todas as nove nomeações de Manoel
Gonçalves ocorreram entre 1719 e 1728, sendo que sete delas na década de 1720 – período de
maior inserção do traficante no negócio da carne humana. Outro fato digno de nota: a última
viagem promovida por Viana datou de 1729, e a última procuração a ele endereçada no termo
de Vila do Carmo foi registrada em 1728. Dentre seus outorgantes aparecem nomes como de
Manoel Mendes de Almeida, Custódio Rebelo Vieira, Antônio Correia Sardinha e Bento
Ferraz Lima. Por intermédio de seus procuradores, observa-se uma ligação direta com a
família Almeida Jordão e Teles/Correia, além de uma ligação indireta entre Manoel
Gonçalves – um dos maiores traficantes atuantes na Bahia na primeira metade do século
XVIII – e o conde de Assumar. Fica patente que as escrituras de procuração bastante revelam
uma forte ligação entre alguns dos principais indivíduos estabelecidos nas regiões fluminense,
mineira e nordestina.
No período anterior a 1710, Gonçalves Viana participou em quatro empresas
negreiras, concentrando o grosso de suas atividades nas décadas de dez e vinte. Este foi o
momento de maior participação dos traficantes-residentes no total de escravos aportados na
capitania da Bahia. No que respeita ao total desembarcado em Pernambuco e Bahia, a década
de 1720 foi a que apresentou os números mais elevados. Diga-se de passagem, nesse decênio
Viana concentrou quase 50% de suas operações. Entre 1707 e 1722, estabeleceu sociedade
com o traficante Manoel Correia Seixas em vinte e duas viagens à Costa da Mina, as quais
geraram 6.756 escravos. Com o irmão de Manoel Correia, Antônio Correia de Seixas, Manoel
Gonçalves Viana firmou sociedade em seis idas à África Ocidental durante a década vinte,
resgatando algo em torno de 1.916 africanos. A última empresa negreira de que se tem notícia
da participação de Manoel Gonçalves datou de 1729. A partir de então, Antônio Correia atuou
por sua própria conta e risco no trato da carne humana. Entre 1729 e 1740, Antônio Correia
empreendeu sete empresas negreiras resultando em 3.212 escravos.
No termo de Vila do Carmo, duas foram as escrituras em que Antônio Correia fora
feito procurador, uma em 1728 e outra em 1740 (ACSM, LN. 31, EPB. 06/09/1728; LN. 52,
EPB. 12/09/1740). Em 12 de setembro de 1740, o alferes Pedro Gomes de Abreu nomeou
sessenta e quatro procuradores assim distribuídos: trinta e dois para localidades internas da
capitania de Minas Gerais, oito para a capitania de Goiás, oito para a região nordeste – dentre
os quais Antônio Correia –, três para a região fluminense – sendo dois homens de negócio –
doze para o Reino – sendo um homem de negócio – e “os procuradores dos padres da
Companhia de Jesus” “em todo o reino de Portugal e suas conquistas”, o que evidencia a
dimensão dos negócios do alferes. Seus procuradores estavam distribuídos entre homens de
negócio, traficantes de escravos, coronéis, sargentos-mores, capitães-mores, doutores etc.
À guisa de conclusão, o corrente texto intentou demonstrar algumas das
potencialidades de análise e de pesquisa a partir de uma documentação em grande medida
inédita. As escrituras de procuração bastante favorecem a compreensão de circuitos mercantis,
comportamentos populacionais, formação de redes de reciprocidade, interação entre membros
das elites políticas e econômicas uns com os outros e com segmentos mais baixos da
sociedade – como os forros – etc. Contudo, apenas atingem seu ápice quando seus dados são
cruzados com outras fontes de ordem variadas, dentre as quais as cartas patentes, as escrituras
de crédito e de compra e venda, ações cíveis e criminais, cartas de variadas naturezas,
petições etc. Capacitadas a lançar luz tanto no nível macro como no micro, as escrituras de
procuração bastante ainda estão por ser descobertas pela historiografia nacional.
Bibliografia
FLORY, Rae. Bahian society in the mid-colonial period: the sugar planters, tabocco,
growers, merchants, and artisans of Salvador and the Recôncavo, 1680-1725. Texas, Austin,
1978. (Tese de Doutorado).
FRAGOSO, João. À espera das frotas: a micro-história tapuia e a nobreza principal da
terra (Rio de Janeiro, 1600-1750). PPGHIS: Rio de Janeiro, 2005. (Tese de Professor Titular).
KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. A cor negra do ouro: circuitos mercantis e
hierarquias sociais na formação da sociedade mineira setecentista, c. 1711 – c. 1756. Rio de
Janeiro: PPGHIS, 2009. (Tese de Doutorado).
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