ESCRITURAS DE “PROCURAÇÃO BASTANTE”: POTENCIALIDADE E POSSIBILIDADES DE ANÁLISE, O CASO DE MINAS GERAIS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII Carlos Leonardo Kelmer Mathias1 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro RESUMO: a presente comunicação tem por objetivo apresentar as potencialidades oferecidas por uma documentação que resta – em grande medida – inédita aos pesquisadores que se debruçam sobre a história de Minas Gerais, a saber: as escrituras de “procuração bastante”. A partir da análise das 4.988 escrituras de “procuração bastante” presentes nos livros de nota do primeiro e do segundo ofícios do arquivo da Casa Setecentista de Mariana entre 1711 e 1756, a comunicação busca discutir de que forma o estudo dessa documentação concorre para a melhor compreensão, por exemplo, tanto dos circuitos mercantis nos quais a capitania de Minas Gerais tomava parte, como das redes sociais de interação havidas entre os milhares de indivíduos que em determinado momento de suas trajetórias de vidas nomearam procuradores para alguma paragem dos domínios portugueses. Eram outorgantes nomeando procuradores que representassem seus interesses em Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo, Goiás, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Piauí, Portugal e África. As procurações possuíam um cunho comercial, jurídico ou parental consoante suas localidades de destino. Revelam que assim como um mestre-de-campo poderia fazer do guarda-mor da relação da Bahia seu procurador, de igual forma o poderia uma preta forra, por exemplo. Explorar essas e outras considerações é o propósito da comunicação que ora se propõe. Palavras-chave: procuração bastante, interação espacial e redes sociais. Introdução Entre os anos de 1711 e 1756, 4.988 escrituras de “procuração bastante” foram registradas no cartório do público, judicial e notas do termo de Vila do Carmo, parte integrante da comarca de Vila Rica, capitania de Minas Gerais. Trata-se de uma documentação em grande medida inédita não apenas no que toca aos pesquisadores cujo leque de atenção compreende a capitania mineira, mas também àqueles interessados nas demais paragens dos domínios lusos na América colonial. Em que pese os trabalhos de Antônio Carlos Jucá de Sampaio e de Fábio Pesavento, estudos sistematizados da sociedade colonial brasileira tendo por suporte tal documentação são praticamente inapetentes. Tendo em conta a ululante importância dessa fonte, não deixa de causar certa estranheza o estiolado interesse que as escrituras de procuração bastante despertaram nos pesquisadores até o presente momento. Naturalmente, muito da abnegação dispensada a esse tipo de documentação pode ser explicada em função de a otimização da potencialidade ofertada pelas escrituras de 1 Doutor em História pelo PPGHIS/UFRJ. procuração somente poder ser obtida quando empreendida a análise em duas frentes, a saber: o caráter serial e o caráter micro-histórico. Para que bem se entenda, uma escritura de procuração bastante é ordinariamente composta das notas de abertura de praxe – data de registro da documentação em cartório, introdução do nome do outorgante e dos ditames judiciais etc. –, do enumerar das localidades para as quais o outorgante intentava eleger procuradores, assim como os nomes dos mesmos consoante seus respectivos destinos, da finalidade da procuração e, por fim, de outros tramites inerentes ao bom funcionamento e registro da procuração. Mormente, a escritura guarda um silêncio tumular acerca do ofício dos procuradores e de uma possível incumbência particular para qualquer um deles. Do posto, adentrar nos meandros de um estudo micro respeitante às possíveis relações de reciprocidade entre outorgantes e procuradores não pode prescindir de uma igualmente pormenorizada pesquisa sobre cada um desses nomes – que muitas vezes somam-se milhares. Em boa medida, as escrituras de procuração bastante são documentos do judicial e do econômico. Logo após colmatar os destinos e os nomes dos procuradores, o escrivão registrava: mostradores que serão deste poder aos quais disse dava, e outorgava, cedia e trespassava todo o seu livre e comprido poder mandado geral e especial com bastante direito se requer e alegar todo seu direito e justiça para que por ele outorgasse em seu nome e como ele próprio em pessoa possam os ditos seus procuradores acima nomeados todos juntos ou qualquer deles de per se de cobrarem, receberem, acordarem e a seus poderes houveram (sic!) toda sua fazenda bens móveis e de raiz, dívidas, dinheiro, ouro, prata, açúcares, escravos, encomendas, carregação, seus (?) e coisas outras de qualquer qualidade (ACSM, LN. 02, 10/10/1713). Em muitas ocasiões, o trecho acima era acrescido da seguinte passagem: poderão apelar e agravar vir com embargos isentar suspeições a quaisquer juízes e oficiais de justiça, ouvir sentenças e das que forem a seu favor estar por elas, e das contra ele apelar e agravar e segui-las até moral cada, cobrarem, arrecadarem todas suas dívidas de todas as pessoas que obrigadas lhe forem, dar quitações públicas (ACSM, LN. 02, 10/10/1713). Constava ainda nas procurações poderes para o procurador cobrar os devedores do outorgante e pagar a seus credores. Quer isto dizer que as escrituras de procuração bastante nos dizem muito sobre as ligações mercantis e sociais existentes na América lusa. Do posto, o presente texto tem por fito explorar algumas das potencialidades e das possibilidades que a pesquisa e o estudo das escrituras de procuração bastante podem oferecer ao pesquisador que por ventura direcionar seu olhar para tal documentação. À vista disso, e com base nas considerações acima, o texto será sulcado por duas partes. Na primeira, examinarei as escrituras de procuração em sua faceta serial, atentando para as ligações estabelecidas entre a capitania de Minas Gerais e as demais paragens dos domínios portugueses. Em um segundo momento, debruçarei meus esforços nos sentido de tecer considerações acerca do viés microhistórico passível de ser aferido das escrituras, consagrando especial atenção ao estabelecimento de redes de reciprocidade. Escrituras de procuração bastante, um recorte serial Dentre as localidades para onde se nomeou procurador, destaca-se as partes integrantes da capitania de Minas Gerais – presentes em praticamente todas as quase cinco mil escrituras arroladas –, a capitania do Rio de Janeiro (nomeada em 2.116 escrituras), a região do nordeste – composta por Bahia, Pernambuco, Maranhão e Piauí – (presente em 1.721 escrituras), Portugal (atuante em 1.363 escrituras) e a capitania de São Paulo (participante em 222 escrituras). De resto, também houve nomeações para Sacramento (uma ocorrência), Espírito Santo (três ocorrências), Cuiabá (seis ocorrências), África Centroocidental (nove ocorrências) e Goiás (cinqüenta e uma ocorrências). Escusado aduzir que todas essas localidades estão aqui representadas de forma nominal, ou seja, não esmiucei o destino dentro dessas regiões. A título de exemplo, para Portugal foram nomeados indivíduos nas províncias de Alentejo, Beira, Entre-Douro-e-Minho, Estremadura e Trás-os-Montes, incluindo também as Ilhas Atlânticas. Depurando, em cada uma dessas províncias e ilhas era especificado o arcebispado, a cidade, a comarca, o concelho, o distrito, a freguesia, ou a vila de destino do procurador. O mesmo pode ser dito para a América portuguesa. No caso da capitania do Rio de Janeiro, foram nomeados indivíduos para a cidade de Angra, para Campos de Goitacases, para a Ilha do Governador, a Ilha Terceira, a Ilha de São Sebastião, para a Vila de Parati e para a cidade do Rio de Janeiro. Tendo em conta que as localidades do Rio de Janeiro, do nordeste, do reino e de São Paulo foram as mais freqüentes nas escrituras – afora, é claro, as comarcas constituintes da capitania de Minas Gerais –, optei por representá-las em um gráfico com o intuito de melhor iluminar as possibilidades de análise que as escrituras de procuração bastante podem proporcionar em termos seriais. Com que então apresento o gráfico um. Gráfico 1 – Participação % das principais localidades extra capitania de Minas Gerais nas escrituras de procuração passadas no termo de Vila do Carmo, 1711-1756 600 500 400 300 200 100 0 17111715 17161720 17211725 Rio de Janeiro 17261730 17311735 Nordeste 17361740 17411745 Reino 17461750 17511756 São Paulo Fonte: ACSM, LN. 01-80, EPB. A explicação da metodologia adotada na montagem do gráfico acima auxilia na compreensão das escrituras de procuração bastante. Primeiro, um outorgante poderia nomear, em uma mesma escritura, procuradores para várias localidades. Diga-se de passagem, essa prática revelou-se bastante comum na análise de tal documentação. A título de exemplo, em 05 de dezembro de 1713, Manoel Moreira de Freitas registrou uma escritura de procuração na qual nomeou vinte e três procuradores distribuídos da seguinte maneira: seis para Vila do Príncipe, três para Vila do Carmo, dois para Vila Rica – todas as localidades pertencentes à capitania de Minas Gerais –, três para a cidade do Rio de Janeiro, três para a cidade da Bahia, três para a capitania de Pernambuco e três para a cidade de Luanda – África Centro-Ocidental (ACSM, LN. 02, EPB. 05/12/1713). No exemplo acima, considerei uma nomeação para a “região” nordeste – incluindo Bahia e Pernambuco –, uma para o Rio de Janeiro e uma para África. Em 17 de agosto de 1748, Manoel Carvalho Lima nomeou sessenta e dois procuradores, sendo treze para Vila do Carmo, nove para Vila Rica, sete para Vila do Príncipe, quatro para Serro do Príncipe, quatro para a Vila de São João del-Rei – todas localidades pertencentes à capitania de Minas Gerais –, dez para a capitania do Rio de Janeiro, quatro para a capitania da Bahia, cinco para a cidade de Lisboa e três para Angola (ACSM, LN. 58, EPB. 17/08/1748). Tal qual o exemplo anterior, considerei – e excetuando a “região” de Minas Gerais – uma procuração para a capitania fluminense, uma para a “região” nordeste, uma para o reino e uma para África. Segundo, não realizei a especificação acerca das diferentes localidades dentro de uma mesma capitania para onde se nomeava procuradores. A não opção por este procedimento apenas dificultaria a visualizarão do gráfico e em nada acrescentaria nas conclusões passíveis de serem aferidas do mesmo. Para a capitania fluminense, as 2.116 procurações perfizeram um total de 8.237 nomeações, sendo que a cidade do Rio de Janeiro foi o destino de 97,79% dos procuradores. A localidade que recebeu o segundo maior número de procuradores foi a cidade de Angra, com 142 aparições, ou 1,72%. Também se nomeou para Campos dos Goitacases, Vila de Parati e Ilha do Governador. A “região” de nordeste revelou uma variedade ainda maior, constando regiões como: capitania de Piauí e Maranhão, cidade da Bahia, Pernambuco, Vila de Jacobina, Vila de Jaguaripe, Sertão da Bahia, Vila de Cachoeira etc. Dentre essas localidades, a cidade da Bahia respondeu por 94,32% dos 7.405 destinos dados aos procuradores direcionados para a “região” nordeste. Muito distante da cidade da Bahia, Pernambuco recebeu 3,45% dos nomeados. Igualmente, a capitania de São Paulo congregou uma variada gama de vilas para onde se indicou representantes, a saber: Vila de Santos, Mogi, Pindamonhangaba, Itu, Guaratinguetá, Parnaíba, Sorocaba, Taubaté, Ubatuba além, naturalmente, da cidade de São Paulo. Esta última absorveu 63,15% das 825 nomeações, seguida pela Vila de Santos, com uma participação de 22,18%. Nesse sentido, o gráfico um expressa precisamente a participação percentual das principais “regiões” nas escrituras emitidas no termo de Vila do Carmo, independentemente do número total de procuradores nomeados para cada localidade. Conforme pode ser subtendido, a metodologia empregada na elaboração do gráfico oferece uma oportunidade para se analisar o comportamento dessas regiões segundo um mesmo modelo de representatividade na medida em que concorreu para montagem gráfica não o número de procuradores observados em cada escritura, mas sim a ocorrência por localidade. A desvantagem desse modelo consiste em uma possível sub-representação da importância dessas localidades conforme o número de procuradores nomeados. Tal deficiência é sanada com o gráfico dois. Para a elaboração do gráfico dois, considerei o número de nomeações totais em uma escritura consoante as localidades em apreço. Em 01 de agosto de 1738, o padre Manoel dos Santos Silva registrou escritura de procuração através da qual nomeava quatro procuradores para a capitania do Rio de Janeiro, quatro para a capitania da Bahia, nove para a cidade de Lisboa e nove para a cidade do Porto, afora os indicados para localidades internas de Minas Gerais (ACSM, LN. 47, EPB. 01/08/1738). No exemplo em questão, considerei quatros procuradores para o Rio de Janeiro, quatro para a “região” nordeste e dezoito para o reino. Nesse sentido, caso na escritura seguinte os mesmos indivíduos tivessem sido nomeados procuradores, consideraria o número de nomeações, independente de o nome dos indicados tivesse ou não se repetido. Gráfico 2 – Participação % dos procuradores das principais localidades extra capitania de Minas Gerais nas escrituras de procuração passadas no termo de Vila do Carmo, 1711-1756 3.000 2.500 2.000 1.500 1.000 500 0 17111715 17161720 17211725 Rio de Janeiro 17261730 17311735 Nordeste 17361740 17411745 Reino 17461750 17511756 São Paulo Fonte: ACSM, LN. 01-80, EPB. Em tais termos, o gráfico foi preparado consoante o número de nomeações para a região em apreço, não representando, dessa forma, o número exato de diferentes procuradores atuantes nas localidades apresentadas. Para as duas principais regiões expressas no gráfico 2, a diferença entre o número de nomeações e o número de diferentes procuradores ajuda a explicitar a metodologia adotada. Na capitania fluminense, os 2.247 procuradores identificáveis atuaram nas 8.237 nomeações. No nordeste, as 7.405 indicações revelaram 1.610 nomes. No gráfico figuram as 8.237 designações para o Rio de Janeiro e as 7.405 para o nordeste, não os 2.247 e os 1.610 qualificados para as respectivas localidades. Comparando os gráficos um e dois entre si, evidencia-se uma não correspondência acerca do número de escrituras emitidas para uma dada localidade e a quantidade de procuradores nomeados para a mesma. De acordo com o gráfico um, somente no lustro de 1741-1745 o nordeste conseguiu ultrapassar o Rio de Janeiro em número de escrituras, sendo que o reino em momento algum o fez. Por seu turno, o gráfico 2 demonstra que no qüinqüênio de 1721-1725 a “região” nordeste já ultrapassa a fluminense no número de procuradores nomeados, seguindo à frente até o período de 1751-1756, momento no qual o número de eleitos para o Rio de Janeiro superara aquele para o nordeste em função do estabelecimento da Relação do Rio de Janeiro em 1751. Ainda neste campo, em 1726 a quantidade de designados para o reino, tal qual o nordeste, sobrepujam o número de procuradores endereçados ao Rio de Janeiro e mantém a frente até o último lustro. Não é meu interesse aqui explicar as razões para tal comportamento, mas tão somente expor as possibilidades que as escrituras de procuração bastante oferecem ao pesquisador.2 Os gráficos acima devem ser pensados à luz do caráter econômico e jurídico das procurações. A forte presença da região nordeste nas escrituras emitidas no termo de Vila do Carmo revela, de forma contundente, o caráter jurídico das procurações passadas no termo de Vila do Carmo. Sabe-se do enorme afluxo populacional para a capitania de Minas Gerias pela feita das descobertas dos primeiros veios auríferos, movimento no qual a participação de imigrantes portugueses foi notável. Tomando essas procurações enquanto reflexo do comportamento imigratório do final do seiscentos e início do setecentos, seria plausível esperar um percentual de procuração para o reino superior ao encontrado para a região nordeste, cujas ligações familiares com a capitania de Minas foram pouco representativas. Nesse sentido, o próprio desempenho de São Paulo deveria ser mais satisfatório, ou superior ao nordestino. Nem mesmo o Rio de Janeiro apresentou um padrão condizente. Que se observe a tabela 1. Tabela 1 – Participação % de parentes nas escrituras passadas para as principais localidades extra capitania de Minas Gerais, 1711-1756 Rio de Nordeste Reino São Paulo Janeiro A 2.116 1.721 1.363 209 B 38 8 251 9 C 1,79 0,46 18,41 4,3 Legenda: A – número total de escrituras, B – número de escrituras com parentes, C – porcentagem de B em A. Fonte: ACSM, LN. 01-80, ESP. Os dados em questão indicam claramente que a única região cuja linha representada nos gráficos possuiu um peso parental foi o reino. Em 18,41% das procurações emitidas para Portugal nomearam-se parentes dos outorgantes residentes em Minas Gerais. No que respeita à capitania do Rio de Janeiro, apenas 1,79% das escrituras revelaram ligações parentais. Percentual ainda menor foi observador para a região nordeste, 0,46%. Realmente 2 Para a explicação dessas tendências ver KELMER MATHIAS, 2009. surpreendente foi a participação de parentes nomeados para a capitania de São Paulo, cujos 4,3% não correspondem ao peso desempenhado pelos paulistas nas descobertas auríferas. Embora concorde que a Guerra dos Emboabas contribuiu para a expulsão de muitos paulistas da capitania de Minas Gerais, creio residir na não participação da região enquanto fornecedora de escravos para a área mineradora o principal motivo da baixa representação da capitania nos gráficos arrolados anteriormente, malgrado sua atuação no envio de gado vacum para Minas, por exemplo. Acerca do reino, sua curva expressada nos gráficos representa duas expressões, quais sejam: parental e comercial. Por seu turno, as curvas fluminenses e nordestinas denotam claramente o peso econômico das procurações. Não sem motivo, as duas principais regiões participantes nas procurações emitidas no termo de Vila do Carmo foram aquelas que apresentaram o menor percentual de parentes presentes em tais procurações. Em que pese possíveis casos de subregistros, não creio que esse perfil fosse se alterar consideravelmente. Tabela 2 – Participação % de negociantes nas escrituras passadas para as principais localidades extra capitania de Minas Gerais, 1711-1756 A B C Rio de Janeiro Nordeste São Paulo 2.116 1.721 209 1.365 415 76 64,5 24,11 36,36 Legenda: A – número total de escrituras, B – número de escrituras com negociantes, C – porcentagem de B em A. Fonte: ACSM, LN. 01-80, ESP. Tabela 3 – Participação % de doutores nas escrituras passadas para as principais localidades extra capitania de Minas Gerais, 1711-1756 A B C Rio de Janeiro Nordeste Reino São Paulo 2.116 1.721 1.363 209 1.281 1.414 429 47 60,53 82,16 31,47 22,48 Legenda: A – número total de escrituras, B – número de escrituras com doutores, C – porcentagem de B em A. Fonte: ACSM, LN. 01-80, ESP. Antes de passar à análise das tabelas apresentadas, faz-se necessário pontuar algumas questões. No concernente ao Rio de Janeiro, a categoria negociantes engloba as categorias de homem de negócio, mercador e comerciante, respondendo, individualmente, por 59,59%, 4,25% e 0,66%, respectivamente. Para a Bahia, o grupo de negociantes se refere à traficante de escravos e capitães de navios, respectivamente 20,99% e 3,11%. Acerca de São Paulo, todos eram mercadores. Como não me foi facultado a identificação dos nomeados para o reino, esta região encontra-se ausente da tabela 2. Dentre as categorias constituintes do grupo doutor, concorreram: doutor, licenciado, bacharel, requerente de causas, solicitador de causas e advogado. Comparando as tabelas 2 e 3 com a tabela 1, percebe-se a abissal discrepância entre as participações de negociantes e doutores em relação à de parentes, evidenciando se tratarem fundamentalmente de procurações de ordem econômica e jurídica, com destaque para a primeira. A própria correlação entre os percentuais de negociantes e doutores entre as regiões em apreço aponta para o fato de, habitualmente, nomear-se negociantes e doutores na mesma escritura. Esse fato sugere que esses dois grupos trabalhavam em conjunto frente aos interesses de seus outorgantes. A desconexão entre ambas as categorias notada para o nordeste é explicada em função da presença da Relação na Bahia, indicando que muitos doutores para lá nomeados intervinham em assuntos de natureza puramente judicial para seus outorgantes. Enfim, os gráficos e as tabelas acima auxiliam no sentido de apontar alguns dos caminhos e das possibilidades de análises que as escrituras de procuração bastante oferecem ao pesquisador. Com o fito de avançar um pouco mais na questão, passo agora à abordagem em escala reduzida, alçando o indivíduo ao foco principal de estudo. Escrituras de procuração bastante, um recorte micro Um dos principais vieses de desenvolvimento facultados pelas escrituras de procuração bastante é a possibilidade do estudo de redes de reciprocidades. Por intermédio do cruzamento de nomes tendo como mini-centros figuras destacadas ao sabor do interesse do pesquisador, pode-se reconstruir ligações diretas e/ou indiretas estabelecidas entre outorgantes e procuradores – naturalmente, e desde que fique claro para o leitor, nada impede que na montagem das figuras representativas dessas redes sejam inseridos nomes que não tenham participação nas nomeações. As figuras abaixo buscam contemplar algumas das ligações firmadas entre sujeitos nomeados procuradores nas capitanias do Rio de Janeiro e da Bahia. Para tanto, concorreram algumas das figuras de maior relevo tanto nas regiões acima, como dentre os outorgantes residentes na capitania de Minas Gerais. Figura 1 – Mapa de ligações tendo por foco a capitania do Rio de Janeiro Antôino de Abreu Ferrão Francisco do Amaral Coutinho Miguel Nogueira de Abreu Inácio da Silva Medela Antônio Correia Sardinha André Martins Siqueira João Ferreira de Sousa Manoel Pereira Ramos D. Pedro de Almeida (conde de Assumar) Manoel Luis Ferras André Pinto Guimarães Manoel de Queirós Monteiro Antônio Ferreira Pinto Matias Barbosa da Silva Domingos Nunes Neto Luis Barbosa Brandão Domingos Rodrigues Cobra D. Brás Baltazar da Silveira Cosme Velho Pereira Luis Tenório de Molina João Luis de Oliveira Francisco de Seixas da Fonseca Manoel Mendes de Almeida Francisco Ferreira de Sá Paulo Carvalho da Silva Manoel Fernandes da Costa Domingos de Azevedo Coutinho Caetano Álvares Rodrigues Custódio Rebelo Vieira José de Almeida Cardoso Maximiano de Oliveira Leite Domingos Martins Brito José de Sousa Guimarães Alexandre da Costa Francisco Martins de Brito Pedro Taques de Almeida Paes Jácome Ribeiro da Costa Paulo Pinto de Faria Manoel Gonçalves Viana Nicolau da Silva Bragança João Martins de Brito Manoel Correia Vasques Manoel Antunes Suzano Gonçalo de Brito Barros Romão de Matos Durão Legenda: amarelo: nobreza da terra; azul: homem de negócio; marrom: mercador; verde: traficante de escravos; vermelho: residentes em Minas Gerais. Figura 2 – mapa de ligações tendo por foco a capitania da Bahia Antônio Gonçalves da Rocha Gonçalo de Brito Barros Lourenço Antunes Viana Paulo Pereira José Martins Sales Manoel de Queirós Monteiro Antônio Pinto de Miranda Manoel Fernandes da Costa João Pinto Rodrigues Francisco Rodrigues de Miranda João Lourenço Veloso Pedro da Silva de Macedo Domingos de Azevedo Coutinho José Francisco Molina Domingos Nunes Neto Domingos Pinto Magalhães Francisco Rodrigues Feliciano Custóio Rebelo Vieira Manoel Gonçalves Viana André Barbosa de Barros Manoel Mendes de Almeida Torcato Teixeira de Carvalho Domingos Duarte Pereira Manoel Casado Viana Antônio Ferreira Pinto Cosme Velho Pereira Domingos Rodrigues Nunes João Ferreira de Sousa Antônio Correia Sardinha Rafael da Silva e Sousa João da Costa Lima Bento Ferraz Lima Antônio Correia de Seixas João de Araújo de Azevedo Manoel Ferreira Leal Francisco de Barros Rego Pedro Gomes de Abreu Luis Tenório de Molina André Pinto Guimarães Manoel da Guerra Brito José Fernandes de Castro Gregório Pereira Lima João Pinheiro de Vasconcelos Lourenço Nogueira Silva José Ferreira Veiga José Vaz Salgado Legenda: amarelo: nobreza da terra; azul: homem de negócio; marrom: mercador; verde: traficante de escravos; vermelho: residentes em Minas Gerais. Através da análise de redes oferecida pelas figuras um e dois, podemos observar o quanto indivíduos moradores nas localidades arroladas estavam, direta ou indiretamente, conectados entre si via outorgantes residentes na capitania de Minas Gerais. Mais de perto, fica patente a ligação havida entre alguns dos mais poderosos homens de negócio fluminenses e traficantes de escravos baianos por intermédio de membros da elite mineira. A título de exemplo, através de Custódio Rebelo Vieira havia uma ligação firmada entre Manoel Gonçalves Viana – traficante de escravos que empreendeu cinqüenta e nove viagens à Costa da Mina para o resgate de escravos – e Paulo Carvalho da Silva – negociante da poderosa família Almeida Jordão. O capitão e comerciante Custódio Rebelo Vieira era homem de prestígio e bem quisto pelo conde de Assumar e por seu antecessor, d. Brás Baltasar. O capitão emitiu procuração para a região nordeste nomeando, dentre outros, quatro traficantes de escravos, um capitão de navio negreiro e um Secretário de Estado. Custódio Rebelo esteve envolvido no mercado de crédito em Vila do Carmo, tendo sido credor em seis escrituras totalizando 11:120$400, e devedor em apenas uma no valor de 3:922$800 (ACSM, LN. 0134, EC). Entre suas atividades no mercado de bens no termo de Vila do Carmo, o capitão Custódio Rebelo vendeu três propriedades entre 1722 e 1732, transacionando sete sítios, terras minerais, engenho de pilão, engenho de roda, capela, criações (bovinos e suínos) e 55 escravos, perfazendo 63:202$800 (ACSM, LN. 19, ECV. 22/06/1722; ACSM, LN. 27, ECV. 03/06/1727; ACSM, LN. 39, ECV. 03/05/1732). O mais destacado devedor de Custódio foi o governador da capitania de Minas Gerais, d. Lourenço de Almeida, para quem o capitão Custódio Rebelo emprestou quantia superior a dois contos e meio de réis. Paulo Carvalho era membro de uma rede que estava envolvida com os circuitos do tráfico negreiro e do ouro. Nas palavras de João Fragoso, a área de atuação dessa rede se estendia de Mato Grosso, Rio de Janeiro e Minas Gerais até a Ilha de São Tomé e chegava à Costa da Mina e a Angola. Dela participavam, entre outros, o governador de Angola, Rodrigo César de Meneses, o vigário geral e o ouvidor da Ilha de São Tomé, João Coelho de Souza. Na América, encontramos o negociante fluminense Inácio de Almeida Jordão, seu cunhado, capitão Paulo de Carvalho da Silva e o capitão-de-navio e negociante Antônio de Araújo Cerqueira. Em Portugal, a sociedade contava ao menos com João Mendes Jordão, irmão de Inácio e negociante em Lisboa. Estas operações, em grande medida, consistiam na troca de ouro das Gerais por escravos vindos da Costa da Mina, o que implicava em negociações com os holandeses, então senhores de parte daquela Costa (...) estamos diante de uma rede imperial digna deste nome (FRAGOSO, 2005, p. 151-152). Ao defender que as procurações atestavam as várias conexões entre as cidades, Rae Flory ilustrou o caso de Manoel Gonçalves Viana, quem nomeou procuradores na Bahia, Rio de Janeiro, Santos, Lisboa, Porto e Angola, autorizando-os a comprar e vender mercadorias em seu nome. O traficante de escravos Manoel Gonçalves Viana recebeu um total de nove procurações por outorgantes residentes no termo de Vila do Carmo (ACSM, LN. 09, EPB. 20/06/1719; LN. 09, EPB. 22/06/1719; LN. 19, EPB. 25/02/1722; LN. 19, EPB. 07/09/1722; LN. 22, EPB. 11/11/1723; LN. 23, EPB. 26/01/1725; LN. 24, EPB. 18/10/1724; LN. 26, SPB. 19/12/1726; LN. 31, SPB. 06/09/1728). Entre 1707 e 1729, foi responsável por 59 viagens à costa africana, sendo sócio majoritário em 55 delas. Todas zarparam do porto de Salvador com destino à África Ocidental, perfazendo uma estimativa de 18.477 escravos desembarcados. O grosso de suas viagens se concentrou nas décadas de 1710 e 1720, 44,06% e 49,15%, respectivamente. Interessante observar que todas as nove nomeações de Manoel Gonçalves ocorreram entre 1719 e 1728, sendo que sete delas na década de 1720 – período de maior inserção do traficante no negócio da carne humana. Outro fato digno de nota: a última viagem promovida por Viana datou de 1729, e a última procuração a ele endereçada no termo de Vila do Carmo foi registrada em 1728. Dentre seus outorgantes aparecem nomes como de Manoel Mendes de Almeida, Custódio Rebelo Vieira, Antônio Correia Sardinha e Bento Ferraz Lima. Por intermédio de seus procuradores, observa-se uma ligação direta com a família Almeida Jordão e Teles/Correia, além de uma ligação indireta entre Manoel Gonçalves – um dos maiores traficantes atuantes na Bahia na primeira metade do século XVIII – e o conde de Assumar. Fica patente que as escrituras de procuração bastante revelam uma forte ligação entre alguns dos principais indivíduos estabelecidos nas regiões fluminense, mineira e nordestina. No período anterior a 1710, Gonçalves Viana participou em quatro empresas negreiras, concentrando o grosso de suas atividades nas décadas de dez e vinte. Este foi o momento de maior participação dos traficantes-residentes no total de escravos aportados na capitania da Bahia. No que respeita ao total desembarcado em Pernambuco e Bahia, a década de 1720 foi a que apresentou os números mais elevados. Diga-se de passagem, nesse decênio Viana concentrou quase 50% de suas operações. Entre 1707 e 1722, estabeleceu sociedade com o traficante Manoel Correia Seixas em vinte e duas viagens à Costa da Mina, as quais geraram 6.756 escravos. Com o irmão de Manoel Correia, Antônio Correia de Seixas, Manoel Gonçalves Viana firmou sociedade em seis idas à África Ocidental durante a década vinte, resgatando algo em torno de 1.916 africanos. A última empresa negreira de que se tem notícia da participação de Manoel Gonçalves datou de 1729. A partir de então, Antônio Correia atuou por sua própria conta e risco no trato da carne humana. Entre 1729 e 1740, Antônio Correia empreendeu sete empresas negreiras resultando em 3.212 escravos. No termo de Vila do Carmo, duas foram as escrituras em que Antônio Correia fora feito procurador, uma em 1728 e outra em 1740 (ACSM, LN. 31, EPB. 06/09/1728; LN. 52, EPB. 12/09/1740). Em 12 de setembro de 1740, o alferes Pedro Gomes de Abreu nomeou sessenta e quatro procuradores assim distribuídos: trinta e dois para localidades internas da capitania de Minas Gerais, oito para a capitania de Goiás, oito para a região nordeste – dentre os quais Antônio Correia –, três para a região fluminense – sendo dois homens de negócio – doze para o Reino – sendo um homem de negócio – e “os procuradores dos padres da Companhia de Jesus” “em todo o reino de Portugal e suas conquistas”, o que evidencia a dimensão dos negócios do alferes. Seus procuradores estavam distribuídos entre homens de negócio, traficantes de escravos, coronéis, sargentos-mores, capitães-mores, doutores etc. À guisa de conclusão, o corrente texto intentou demonstrar algumas das potencialidades de análise e de pesquisa a partir de uma documentação em grande medida inédita. As escrituras de procuração bastante favorecem a compreensão de circuitos mercantis, comportamentos populacionais, formação de redes de reciprocidade, interação entre membros das elites políticas e econômicas uns com os outros e com segmentos mais baixos da sociedade – como os forros – etc. Contudo, apenas atingem seu ápice quando seus dados são cruzados com outras fontes de ordem variadas, dentre as quais as cartas patentes, as escrituras de crédito e de compra e venda, ações cíveis e criminais, cartas de variadas naturezas, petições etc. Capacitadas a lançar luz tanto no nível macro como no micro, as escrituras de procuração bastante ainda estão por ser descobertas pela historiografia nacional. Bibliografia FLORY, Rae. Bahian society in the mid-colonial period: the sugar planters, tabocco, growers, merchants, and artisans of Salvador and the Recôncavo, 1680-1725. Texas, Austin, 1978. (Tese de Doutorado). FRAGOSO, João. À espera das frotas: a micro-história tapuia e a nobreza principal da terra (Rio de Janeiro, 1600-1750). PPGHIS: Rio de Janeiro, 2005. (Tese de Professor Titular). KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. A cor negra do ouro: circuitos mercantis e hierarquias sociais na formação da sociedade mineira setecentista, c. 1711 – c. 1756. Rio de Janeiro: PPGHIS, 2009. (Tese de Doutorado).